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Observação clínica: estudo da implicação psicoafetiva

Clinical observarion: a study of psycho-affective implications

Resumos

Trabalhar a implicação do pesquisador é fundamental na investigação clínica. A implicação psicoafetiva é entendida como parte integrante do processo cognoscitivo, permitindo o elo entre o saber e a vivência afetiva do observador clínico durante o processo de conhecimento. A prática lhe suscita representações, valores, emoções, que, associados ao contexto de trabalho, podem permitir a valorização ou não de certas temáticas e percursos teóricos e metodológicos do pesquisador. Este artigo mostra a importância deste estudo na abordagem clínica e na prática investigativa, através de exemplos de experiências implicativas de uma pesquisadora iniciante que atua como colaboradora de um sistema terapêutico-investigativo (supervisão, atendimento e pesquisa). Observa-se que esta implicação aparece sobretudo como um “terceiro incluído”, que permitiria sobretudo evitar a reificação das análises clínicas.

implicação psicoafetiva; clínica psicossocial; pesquisa participante


The role of the psycho-affective implication of the researcher is an important aspect in clinical investigation. This implication is essentially understood as a part of a cognoscitive process allowing the link between knowledge and affection of the observer during the research. In clinical praxis, representations, values and emotions emerge, which when associate to the work context , may show the valorization or not of certain subjects, theoretical and methodological orientations of the investigator. This article tries to show the importance of this study in clinical approach and in the investigative practice through the examples of implicative experiences performed by one research-assistant, collaborating in a system of therapeutic investigation (supervision, clinical research and psychotherapeutic attendance). It was observed that this implication appears like a “third included” which, most of all, would try to avoid a reification of the clinical analysis.

Psycho-affective implication; psychosocial clinics; participant research


ARTIGOS

Observação clínica: estudo da implicação psicoafetiva

Clinical observarion: a study of psycho-affective implications

Nilson Gomes Vieira FilhoI; Valéria Maria da Silva TeixeiraII

IProfessor-adjunto (Doctour), Departamento de Psicologia, LABCLIN - UFPE. Doutor em Psicologia pela Universidade Paris VII

IIGraduada em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, Mestranda em Saúde Coletiva,UFPE

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Av. Boa Viagem, 4364, B. 5 CEP 51021-000, Recife-PE E-mail: gomes@npd.ufpe.br

RESUMO

Trabalhar a implicação do pesquisador é fundamental na investigação clínica. A implicação psicoafetiva é entendida como parte integrante do processo cognoscitivo, permitindo o elo entre o saber e a vivência afetiva do observador clínico durante o processo de conhecimento. A prática lhe suscita representações, valores, emoções, que, associados ao contexto de trabalho, podem permitir a valorização ou não de certas temáticas e percursos teóricos e metodológicos do pesquisador. Este artigo mostra a importância deste estudo na abordagem clínica e na prática investigativa, através de exemplos de experiências implicativas de uma pesquisadora iniciante que atua como colaboradora de um sistema terapêutico-investigativo (supervisão, atendimento e pesquisa). Observa-se que esta implicação aparece sobretudo como um “terceiro incluído”, que permitiria sobretudo evitar a reificação das análises clínicas.

Palavras-chave: implicação psicoafetiva, clínica psicossocial, pesquisa participante.

ABSTRACT

The role of the psycho-affective implication of the researcher is an important aspect in clinical investigation. This implication is essentially understood as a part of a cognoscitive process allowing the link between knowledge and affection of the observer during the research. In clinical praxis, representations, values and emotions emerge, which when associate to the work context , may show the valorization or not of certain subjects, theoretical and methodological orientations of the investigator. This article tries to show the importance of this study in clinical approach and in the investigative practice through the examples of implicative experiences performed by one research-assistant, collaborating in a system of therapeutic investigation (supervision, clinical research and psychotherapeutic attendance). It was observed that this implication appears like a “third included” which, most of all, would try to avoid a reification of the clinical analysis.

Key words: Psycho-affective implication, psychosocial clinics, participant research.

INTRODUÇÃO

A abordagem clínica não é, obviamente, uma aplicação de conhecimentos técnicos e métodos práticos de diagnóstico, de testes, entrevistas etc. Ela se constrói numa dialética permanente entre teoria, metodologia e prática. Seu ponto de partida é o posicionamento dialógico do observador em relação ao outro/sujeito, à valorização da subjetivação emergente e às condições concretas de onde e como este saber e relação ocorrem. Lagache & Favez-Boutonnier, conforme citados por Lévy (2001, p.19), completam enfatizando a necessidade de se considerar a

singularidade do sujeito visto em sua globalidade e em sua história, a implicação do terapeuta pesquisador numa situação concreta, a meta de pesquisa, de estrutura e de sentido.

Destaca-se então o estudo da implicação do observador como um dos momentos significativos da pesquisa clínica. Ao invés de considerá-lo como independente da construção de seu objeto/sujeito de estudo, entende-se que se deve incluí-lo como parte integrante do processo cognoscitivo. Construir um conhecimento defensivo em relação às emoções, às opiniões diferenciadas dos padrões comuns, aos valores pessoais e de grupo significa, antes de tudo, desimplicar o clínico de seu saber/fazer.

Trabalhar a implicação psicoafetiva é, destarte, fundamental, além de possibilitar momentos de elucidação crítica do processo de conhecimento. O objetivo principal deste artigo é mostrar a relevância desse estudo. Tenta-se demonstrá-la através de exemplos de experiências implicativas de uma pesquisadora iniciante inserida num sistema terapêutico-investigativo, no contexto de uma pesquisa participante em clínica psicossocial.1 1 Incluem-se no conceito de pesquisa participante tanto a observação participante quanto a pesquisa-ação. O que vai distinguir uma da outra é essencialmente a posição do observador. O que existe em comum, em ambas as posições, é o caráter participativo e de envolvimento com a realidade na qual se atua. No primeiro caso não há intenção de intervir na realidade em que se atua, mas no segundo, sim. Em nosso sistema investigativo a pesquisadora iniciante está mais próxima do observador participante.

O observador implicado2 2 Limita-se aqui a autores mais relevantes em clínica psicossocial. Vale ressaltar que se consideram como termos equivalentes ao de “implicação”: contra-transferência do pesquisador (Ben Slama, 1989), auto-referência do observador (Foerster, 2000), subjetividade do observador (Merleau-Ponty, 1969). observador implicado” partindo do princípio que a realidade observada não é estranha ao sujeito que a observa. As “perturbações” advindas deste processo são incontornáveis, visto que o objeto estudado é co-produzido pela subjetividade do pesquisador. A observação implicada não colocaria então entre parênteses a noção de complexidade, ao contrário, considera também seus princípios básicos (Morin, 1994).

Num dispositivo de pesquisa, “... a simples presença do observador introduz uma nova variável na situação que ele observa. O observador perturba (grifo nosso) o desenvolvimento normal dos fatos e a estrutura habitual das relações...” ( Devereux, 1980, p.78). Conseqüentemente, todo conhecimento científico está sujeito a deformações e situações ansiogênicas relativas à chamada “equação pessoal” do investigador, o qual é suscetível de provocar erros sistemáticos em experimentos e falhas interpretativas em investigação clínica. Devereux propõe ainda não se eliminem nem se evitem as dificuldades nas interações entre o observador e o sujeito/objeto em observação. Ao invés disto, sugere que estas sejam abordadas numa perspectiva construtiva, tentando descobrir quais os insights positivos emergentes no processo investigativo e tirando proveito deles.

Loureau (1993, 1995) destaca que as ciências consideradas positivas estão baseadas no pressuposto da desimplicação do observador, o qual se caracteriza, essencialmente, como a tentativa de eliminar o papel da subjetividade na elaboração do conhecimento científico, recorrendo assim a noções como “objetividade” e “neutralidade”. O desvio das emoções e valores pessoais vinculados ao processo investigativo ocorre por considerá-los como algo “não científico”, e uma das formas mais comuns deste desvio é o apego às idéias universais. O cientista tende então a atribuir à ciência o que pode estar relacionado a sua subjetividade e representações psicossociais.

Para Loureau (1993), a libido é tão importante no trabalho implicativo quanto o dinheiro, o poder e a política. Porém, se alguns efeitos libidinais podem ser extremamente produtivos ao trabalho de pesquisa, outros podem bloquear provisória ou definitivamente estes espaços. O autor reconhece a importância de se ter um diário de pesquisa (concomitantemente às observações) para o registro do trabalho implicativo. Este diário permitiria reconstituir a história subjetiva do pesquisador por intermédio de sua cotidiana experiência de campo. O pesquisador registra particularmente os acontecimentos que lhe parecem especiais e mais o sensibilizam durante sua atividade científica. Ele analisa não somente os colegas, mas a si próprio, a todo momento, inclusive no da própria intervenção. Acrescente-se que a restituição ou socialização do conhecimento co-produzido numa pesquisa-ação também faz parte da análise da implicação.

Para Barus-Michel (1987, 1998), o conhecimento científico que se origina da prática clínica surge, de fato, de uma co-construção entre os autores envolvidos na situação: pesquisadores e pesquisados. Estes últimos não estão aí como simples objeto de estudo, mas sobretudo como sujeitos, sendo compreendidos a partir do olhar, da escuta e de suas posições participativas. A subjetividade que os pesquisadores trazem consigo influencia a compreensão que eles têm dos pesquisados, bem como a forma de relacionar-se com eles. Sendo assim, a relação entre ambos ocorre com implicação, envolvendo então investimento afetivo, transferência e representações. Por isto os pesquisadores devem ser capazes de percebê-la e analisá-la através de uma metodologia apropriada. Na análise implicativa, realizada através de auto-análise e/ou com a ajuda de colegas, eles procuram desvendar os apriorismos desta relação, as defesas emergentes e o porquê de certos recuos, por exemplo. Deste modo, eles podem compreender melhor suas subjetividades ( angústias, ansiedades, neuroses etc.) e a escolha de seus objetos de estudo ( o que focalizam, o que fazem sobressair), o que lhes permite aprender esta situação enquanto sujeitos sociais.

Para Vieira Filho (1997a,1999), a análise da implicação é indispensável nos diferentes momentos de elaboração do conhecimento de uma pesquisa participante clínica. Adquire um peso importante no estudo do material de campo, situação na qual o pesquisador reelabora seu saber/fazer cotidiano, distanciando-se da prática. Ao analisar seu trabalho implicativo, o pesquisador assume uma postura reflexiva diante de seu envolvimento clínico, numa tensão dialética entre proximidade e distanciamento, entre sujeito social/cliente e seu objeto de estudo. Este estudo pode contribuir para se reelaborar as hipóteses de trabalho e trabalhar dialogicamente a problemática trazida pelo cliente, pesquisador, estagiário, podendo assim melhorar o dispositivo clínico e o atendimento.

Referindo-se ao analista institucional, Barbier (1985) coloca em evidência que o nível psicoafetivo de análise está articulado tanto ao histórico-existencial quanto ao estrutural-profissional. O primeiro nível questiona a personalidade do pesquisador, principalmente “os mecanismos transferenciais decorrentes da elucidação psicanalítica” (Barbier, p.109), os quais podem dar origem a inibições e bloqueios ou, ao contrário, facilitar suas atividades. O segundo nível indica que, enquanto sujeito-social, o investigador depende de “constelações de hábitos adquiridos, de esquemas de pensamento e de percepção sistemáticos”, os quais estão ligados a sua socialização e à classe social de origem. Mas na ação institucional entra em jogo a noção de práxis e de projeto, a qual permite interligar a prática profissional e a estrutura social em que ele está inserido, num projeto individual e coletivo.

O nível estrutural- profissional é essencialmente o da mediação interinstitucional e do princípio de realidade instituída. Consiste essencialmente

na procura dos elementos que têm sentido com referência ao trabalho social do pesquisador e ao seu enraizamento sócio-econômico na sociedade contemporânea (Barbier, 1985, p. 117).

A IMPLICAÇÃO PSICOAFETIVA: HIPÓTESE DE TRABALHO

Entende-se por implicação psicoafetiva do pesquisador o estudo da construção do conhecimento, considerando-se e trabalhando-se a experiência subjetiva, afetiva e social do observador referente ao seu sujeito/objeto de estudo. De um lado, o pesquisador vivencia a investigação com seus valores, com as emoções, sentimentos e desejos que lhe são suscitados no contato com a realidade estudada e no interior de uma rede de relações e instituições que nada tem de “neutra”. De outro lado, ele necessita de um espaço reflexivo para a prática investigativa, sem que este espaço elimine o papel da subjetividade.

O “aqui-e-agora” da pesquisa faz emergir a transversalidade dos afetos através de imagens, representações, valores, sentimentos e desejos que lhe são suscitados ao contato com a realidade estudada. As informações biográficas do pesquisador permitem, muitas vezes, perceber as suas temáticas e seus percursos teóricos, mas a experiência na rede de interações profissionais mostra-se como lugar onde a práxis e o projeto de pesquisa assumem determinadas configurações contextuais.

Neste sentido, prefere-se utilizar o termo observador implicado. Trata-se então do observador que inclui, na sua prática dialógica de pesquisa, trabalhar seu envolvimento psicoafetivo, na tensão dialética das interações humanas, tentando elucidar subentendidos emergentes que se manifestam entrelaçados na dinâmica da investigação clínica. Neste artigo, foram escolhidos como temática, ligada a estes subentendidos, conflitos advindos da relação entre pesquisadores iniciantes e o coordenador da pesquisa.

O OBSERVADOR CLÍNICO: O SISTEMA TERAPÊUTICO E A PESQUISA PARTICIPANTE

Trata-se aqui de um dispositivo de pesquisa participante em clínica psicossocial (Vieira Filho, 1997a, 1998, 1999), situado numa clínica psicológica universitária federal que pratica atendimento público à comunidade e, naquele período, tinha pouca interação com outras clínicas universitárias e serviços de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS.).

O sistema terapêutico investigativo inclui, de forma integrada, pesquisa participante, atendimento terapêutico psicossocial e supervisão de estágio (Vieira Filho, 1999). Funciona como um sistema, visto que os sujeitos aí comprometidos interagem em conjunto, de modo articulado, havendo influências recíprocas entre eles, num contexto de relações de poder instituídas. Tem-se aqui a pesquisadora iniciante escolhida, outra pesquisadora começando sua formação, um acompanhante terapêutico, os estagiários/pesquisadores e o professor/pesquisador. A equipe se reúne semanalmente para supervisão de estágio e para discussões teóricas e metodológicas relacionadas à pesquisa. A pesquisadora escolhida freqüentava, de início, estas reuniões unicamente nas horas de discussão da pesquisa. Meses depois, após este trabalho implicativo, integrou-se ao horário completo do grupo como “observadora clínica”, participando da supervisão, embora não do atendimento psicológico.

Entre dezenas de transcrições, o material utilizado para exemplificar as experiências implicativas da pesquisadora iniciante concerne a duas transcrições, realizadas por ela, de sessões terapêuticas praticadas pelo estagiário, da abordagem psicoterápica psicossocial, a notas de observação e a levantamento bibliográfico. Entre uma e outra transcrição existe um intervalo de cerca de um ano. Na primeira transcrição (sessão familiar) a pesquisadora não participava da supervisão, enquanto na segunda transcrição (sessão individual) já estava nela incluída. Deste modo foi possível observar mais intensamente o contraste entre os dois momentos diferentes.

As transcrições referem-se a um único cliente em sofrimento esquizofrênico, na faixa dos 30 anos, que morava na casa dos pais, de classe média (baixa), numa importante região metropolitana do Nordeste. Para transcrever as fitas foi necessário: 1) assegurar o aspecto ético e confidencial das sessões; 2) identificar as falas dos participantes da sessão e compreender bem o seu conteúdo; 3) atentar para as variações do clima emocional das sessões e do estado de ânimo do cliente. Durante as transcrições era prevista uma atenção dirigida e escuta repetida para diferenciar e identificar as vozes e o conteúdo das falas dos participantes da sessão terapêutica. Enquanto transcrevia, a pesquisadora iniciante procurava também perceber os sentidos, os sentimentos e atitudes que lhe eram despertados na escuta do cliente. Estes registros eram feitos geralmente no final de cada transcrição. Para este artigo foi solicitado que ela expressasse ainda opinião sobre sua vivência cotidiana de equipe, enquanto participante e enqquanto não participante da supervisão de estágio.

A EXPERIÊNCIA IMPLICATIVA ANTES DE PARTICIPAR DA SUPERVISÃO DE ESTÁGIO

Nesse primeiro momento, a pesquisadora se sensibilizou com o cliente de modo simpático, durante a escuta da gravação da sessão de família. Acompanhava emocionalmente, mas de forma acrítica, os sentimentos daquele, quando ele dizia que piorava ou que estava se sentindo mal; quando falava de contentamento ou satisfação com a vida; quando dizia se sentir melhor. As transcrições nas quais o cliente se apresentava pior e em “crise psicótica” levavam mais tempo para serem realizadas, por serem percebidas como bastante angustiantes, sendo necessárias interrupções ou pausas mais freqüentes, para ele se sentir mais “aliviado” nestes intervalos. Já aquelas em que o cliente dizia “estar melhor” eram percebidas de forma positiva, sendo mais rapidamente transcritas. Observa-se, então, certo “contágio” da pesquisadora pelos sentimentos e emoções expressos pelo cliente, apresentando ela uma certa fusão afetiva com estes sentimentos.

Obviamente, a pesquisadora ainda não conseguia fazer o duplo movimento de envolver-se e, ao mesmo tempo, distanciar-se, o que lhe dificultava assumir uma atitude mais reflexiva. Limitava-se, naquele período, a comentar com o estagiário e o acompanhante terapêutico, de modo informal, sua percepção sobre o estado de saúde do cliente no atendimento, não mencionando sua vivência com esta problemática no registro das transcrições.

A pesquisadora ficou emocionalmente envolvida com esta primeira transcrição, sobretudo num período em que não tinha tido nenhuma experiência clínica ou de atendimento. Entristeceu-se bastante diante das manifestações de desespero do cliente em sessão familiar. Interrompeu várias vezes a transcrição ao escutar frases como: Eu tô doido, cada vez mais doido! (...) Tá bom de me suicidar já!(..) Socorro! (...) Socorro!

Interpretava estas cenas como sofrimento intenso do paciente e queria ajudá-lo, contribuir para que ele se sentisse melhor, mas nada podia fazer como observadora/transcritora de fita naquele momento. Notou que a presença da mãe do cliente na sessão familiar era motivo de grande incômodo para ele, e isso a deixou surpresa. Ficou horrorizada com seu desrespeito por ela, porquanto a mãe só queria ajudá-lo:

“A gente junto só faz arengar, porra! Tu só faz me trazer doença! Eu não gosto da senhora não – diz gritando- é a perdida da minha mãe que me faz ficar assim. Só pode ser! Quando ela chega, eu me aperreio!”

Diante disto pensa: Meu Deus, com deve ser triste para uma mãe ser tratada desta forma! Em outro momento ele diz: A senhora vai comigo. Bora comigo, bora comigo(...) Depois volta a ser rude com ela: Não fale não, não fale não, vai me perturbar, vai me perturbar!(...) Diante disto, pensou: Wue relação confusa e ambivalente!(...) Como isso pode acontecer ? Como é que alguém se sente mal estando com sua mãe e acha que ela quer prejudicá-lo?

Relata a pesquisadora que essa transcrição a deixou muito incomodada, o que se tornou mais difícil por não ter um supervisor com quem comentar tudo isso, porquanto as discussões com o orientador eram mais sobre a racionalização da pesquisa. Considerava bastante injusto o fato de não poder participar das supervisões. Percebia isso como uma forma de exclusão da equipe, uma segregação promovida pelos “participantes mais ativos” do atendimento terapêutico contra os que participavam de forma indireta, como ela e um colega.

Achava que tudo isso estava criando uma situação de rivalidade entre os participantes do atendimento e os não-participantes. Oficialmente, os primeiros não comentavam esta situação de insatisfação com o supervisor, mas eles pareciam percebê-la como injusta e informalmente chegavam a expressar que achavam indispensável a participação destes últimos na supervisão.

Mesmo tendo um contato amistoso com os supervisionandos, a pesquisadora iniciante se sentia revoltada e recalcada. Procurava encontrar justificativas para sua exclusão, porém nenhuma a satisfazia. Por exemplo, a segregação estava acontecendo, por gênero, pois só as mulheres não participavam da supervisão. Esta situação de aparente satisfação foi suportada por elas até quando se conscientizaram da possibilidade de questionar e expor tudo que estavam passando numa reunião da equipe, contexto no qual esta questão foi finalmente resolvida.

EXPERIÊNCIA IMPLICATIVA PARTICIPANDO DA SUPERVISÃO DE ESTÁGIO

A inserção efetiva da pesquisadora iniciante na equipe terapêutico-investigativa, propiciada por sua participação na supervisão, contribuiu para motivá-la para o trabalho de transcrição de fitas, melhorando seu desempenho. A escuta das gravações das sessões individuais lhe despertou maior interesse e teve como efeito a atenuação das dificuldades técnicas relativas ao material gravado.

Notavam-se diferenças na escuta da gravação. Ela se surpreendeu com a mudança radical do cliente em relação à religião. Nas últimas transcrições ele recitava passagens bíblicas, parecendo até comportar-se como um pastor; mas, desta vez, mostrava decepção com o sagrado e chegava a blasfemar:

“Eu louvava a Deus com alegria, era contente na igreja, agora estou doente, doido, a santa ceia pra mim é uma coisa nojenta. Sou um escravo, Deus não me ama, é um cabra safado, não creio em Jesus!”

Ela sentiu um pouco de compaixão pelo descontentamento do cliente em relação ao sagrado e, ao mesmo tempo, certa revolta e indignação diante de sua insistência em permanecer numa posição passiva Só esperava receber, colocando-se sempre como vítima das situações.

Como em outras transcrições, o cliente se sentiu perseguido. Ela interpreta isto como bem característico de sua problemática relacionada “ao sentimento de esquizofrenia paranóide”, que o levava a projetar nos outros o que acontecia com ele. Paradoxalmente, o cliente demonstrava capacidade de reflexão quando se referia à qualidade de seus pensamentos.

“Eu sempre tive pensamento negativo, como se tivessem feito uma macumba pra mim. (...) Agora que eu vim perceber que ela (ex-namorada) tava interessada em mim. Eu era muito ingênuo, nem sabia o que era sexo. (...) O médico não conversa comigo. Se eu digo pra ele meus problemas ele passa 40 comprimidos.”

Quando o cliente falou de sua solidão, a pesquisadora iniciante julgou ser esta problemática fruto principalmente da pressão social e da exclusão que sofre o doente mental em nossa sociedade, da dificuldade das pessoas em aceitar o “diferente”. Sentiu um pouco de compaixão por ele.Ficou pensando quão difícil deve ser para sua família compreendê-lo, ajudá-lo e aceitá-lo. Sensibilizou-se também com seu desejo de ser amado. Mesmo tendo vivenciado um sentimento de compaixão, este não foi tão intenso a ponto de fazê-la sentir necessidade de interromper a transcrição.

A insistência do cliente em desconsiderar qualquer possibilidade de ser ajudado, até mesmo pela equipe terapêutica que o acompanhava, pareceu-lhe um pouco injusta:

“Quero ter uma namorada, uma pessoa que me ame. Ninguém nunca me amou. Se eu proclamo que estou salvo por Jesus e sou barrado (na igreja protestante), ninguém gosta de mim, então eu tô mentindo. (...) Não tenho mãe, nem pai, nem irmão, nem amigo, nem mulher. Fico indefeso, né?”

Logo depois, ele se coloca pedindo ajuda a outras pessoas, ao pastor que o apascente e ao barbeiro que ore por ele. Para a pesquisadora, isto não parecia “novidade”, mas tornava-se compreensível, porque já em outras transcrições ele se mostrara bastante contraditório e ambíguo.

Ela achou engraçada e muito interessante, sem que isso representasse um desrespeito pela situação do cliente, a comparação que ele fez entre si e uma mulher grávida: Eu tô com um feto aqui na barriga, eu tô grávido, mas não é de um bebê, é de um demônio.

Ligada a um pensamento do senso comum, ela ficou surpresa e curiosa quando ele referiu que sua ex-namorada lhe fizera um feitiço para que ele “ficasse doido” e para ele “ser frango”. Esta possibilidade de homossexualidade a surpreendeu, porque, nas transcrições anteriores, ele sempre falara que queria muito uma namorada.

Ela se surpreendeu também quando o cliente admitiu que o que estava falando podia não ser a verdade, mas era o que se passava em sua mente. Aqui, ela não chega a perceber que isto seria mais conseqüência do manejo terapêutico do estagiário do que uma atitude crítica do cliente. Tanto é que, posteriormente, este demonstrava discordar do estagiário, pois repetia muitas vezes que seu problema maior tinha sido sobretudo causado por um feitiço (“trabalho de macumba”, como referia). O cliente dizia, a seu modo, não ter força para superá-lo, nem para pagar um “desmanche de trabalho”, e ainda não ter apoio da família, de religião protestante, para fazê-lo. Seus pais não concordavam que ele fizesse tratamento de “desobsessão” num centro espírita (kardecista) ou desenvolvesse sua mediunidade num terreiro de umbanda.

Para a pesquisadora, a transcrição foi longa, por isso cansativa. Porém, pôde tomar consciência de seus sentimentos despertados na escuta: surpresa, compaixão, chateação e indignação. Nesta nova situação não sentiu necessidade de interromper a transcrição para se sentir mais aliviada, porquanto não estava mais sentindo o incômodo produzido pelo “contágio afetivo” típico das primeiras transcrições, no período em que não participava da supervisão.

COMPARANDO AS EXPERIÊNCIAS IMPLICATIVAS

Pôde-se observar que a pesquisadora iniciante, apesar de experienciar dois momentos implicativos diferentes (antes e depois de sua participação na supervisão), apresentou sentimentos comuns em ambos os momentos durante as transcrições, isto é, alegria, surpresa, entristecimento e compaixão em relação ao cliente. Entretanto, houve clara diferenciação quanto ao modo e intensidade com que tais sentimentos foram vivenciados, antes simpaticamente, depois empaticamente3 3 Os termos simpaticamente e empaticamente são utilizados para situar o envolvimento emocional do observador em relação ao sujeito/objeto de pesquisa. No primeiro, o observador estaria incluído nesta relação quase sem distanciamento reflexivo. No segundo, a reflexividade é possível numa posição dialógica, na qual o observador tenta se colocar na situação da pessoa que sofre para melhor compreendê-la. ; e também quanto à performance técnica das transcrições: interrupções freqüentes das transcrições na primeira situação e interrupções realizadas apenas para aliviar o cansaço físico na segunda fase.

A possibilidade de trabalhar efetivamente na equipe, junto com outros pesquisadores, concorreu para uma melhor reflexão sobre a vivência de campo (dificuldades, resistências) e sobre a situação clínica do cliente, contribuindo assim para superar o “contágio afetivo” (simpático) experienciado no primeiro momento da pesquisa. Deixou então de se sentir como “fora do texto”, algo secundário, à parte, como diz Loureau (1993) quando se refere ao escanteamento da implicação na pesquisa tradicional, numa tentativa de desvincular da ciência sua dimensão socioafetiva.

Com sua participação na supervisão tanto sentiu reconhecido seu papel na equipe de pesquisa quanto mudou o seu olhar em relação ao cliente, pois pôde compreendê-lo melhor e dar assim uma colaboração positiva à supervisão de estágio.

REDEFININDO O DISPOSITIVO DE PESQUISA CLÍNICA

O trabalho implicativo “deve primeiramente passar pela fala; ser explicitado num dispositivo de escuta que o repercute; além disso, deve ser formalizado” (Barus-Michel, 1987, p.79). Assim, este trabalho crítico pode possibilitar a emergência de alternativas à lógica institucional identitária, a fusão emocional com o objeto de pesquisa e a imersão acrítica no cotidiano.

Em nosso caso, o coordenador da pesquisa adotou um procedimento de praxe na clínica psicológica onde trabalha: a idéia de que participam da supervisão de estágio unicamente os sujeitos ligados diretamente ao atendimento. Conseqüentemente, a presença na supervisão de um “observador clínico” (não participante da ação terapêutica) era vista como uma “perturbação” no trabalho da equipe. Os pesquisadores iniciantes, por sua vez, não protestaram abertamente contra essa situação e escolheram os contatos informais entre eles para explicitar um certo mal-estar, que estavam sentindo, sobretudo, em relação à hierarquia da equipe.

A falta de hábito dos estudantes em explicitar abertamente suas reivindicações (efeito ainda do autoritarismo interiorizado?) prorrogou essa situação por vários meses, até que, informalmente, os participantes da supervisão informaram o coordenador deste fato e pediram uma reunião com todos os participantes. Foi neste encontro relativamente conflituoso, mas amistoso, que se decidiu que as atividades da pesquisa clínica seriam daí por diante compartilhadas. Era o caráter participativo da pesquisa que estava sendo questionado e deveria ser revisto. Esta decisão não só modificou significativamente o modo de trabalhar da equipe, mas também melhorou muito a convivência entre pesquisadores. A qualidade dos comentários sobre a pesquisa das “observadoras clínicas”, nas reuniões, era notável, sobretudo no que diz respeito à escuta das fitas gravadas, demonstrando uma melhor compreensão do caso clínico, como também uma maior motivação para o trabalho de transcrição.

CONCLUSÃO

Se na pesquisa experimental a variável “equação do pesquisador” faz parte da análise dos experimentos, na investigação clínica é importante ela ser estudada através da análise da implicação psicoafetiva do observador. Este trabalho permite uma aproximação do que se passa atrás da “cena” investigativa, possibilitando entendê-la numa dialética circular entre o “dentro” (subjetividade do pesquisador) e o “fora” (concretude da pesquisa). Tal construção do conhecimento opta por aceitar a lógica do “terceiro incluído”, isto é, entre o sujeito-que-observa e o sujeito-em-observação, na qual a implicação tende a funcionar como âncora do processo dialógico, possibilitando a emergência da unidade dos contrários.

/pesquisadores. Depois da decisão de realizar o trabalho compartilhado esta formação passou a funcionar em espaço e horário únicos, num “enquadre” denominado sistema terapêutico-investigativo (Vieira Filho, 1999).

A exemplificação apresentada, a partir do material escolhido de uma pesquisa participante, colocou em evidência a necessidade de se fazer com maior freqüência este tipo de estudo, pois ajuda a melhorar a convivência entre os membros da equipe e a eficácia da dinâmica investigativa (emergência de informações complementares, revisão de hipóteses etc.), e pode ainda contribuir na pré-formação de estágio em psicologia clínica.

Enfatiza-se que, para Loureau (1997), a análise da implicação não pode se limitar ao trabalho da pesquisa, pois tal trabalho faz parte do cotidiano do pesquisador. Propõe então a “implicação-transdução”. O termo transdução não remete a um estado infantil como em Piaget. Ao contrário, aparece como dando origem à invenção, à criação, à conceitualização. Neste sentido, o diário do pesquisador se mostra material excelente para se entender, através de uma leitura crítica do cotidiano, a complexidade da relação entre teoria, implicação e transdução.

Recebido em 20/10/2002

Revisado em 25/02/2003

Aceito em 30/05/2003

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  • Endereço para correspondência

    Av. Boa Viagem, 4364, B. 5
    CEP 51021-000, Recife-PE
    E-mail:
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    Incluem-se no conceito de pesquisa participante tanto a observação participante quanto a pesquisa-ação. O que vai distinguir uma da outra é essencialmente a posição do observador. O que existe em comum, em ambas as posições, é o caráter participativo e de envolvimento com a realidade na qual se atua. No primeiro caso não há intenção de intervir na realidade em que se atua, mas no segundo, sim. Em nosso sistema investigativo a pesquisadora iniciante está mais próxima do observador participante.
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    Limita-se aqui a autores mais relevantes em clínica psicossocial. Vale ressaltar que se consideram como termos equivalentes ao de “implicação”: contra-transferência do pesquisador (Ben Slama, 1989), auto-referência do observador (Foerster, 2000), subjetividade do observador (Merleau-Ponty, 1969).
  • 3
    Os termos simpaticamente e empaticamente são utilizados para situar o envolvimento emocional do observador em relação ao sujeito/objeto de pesquisa. No primeiro, o observador estaria incluído nesta relação quase sem distanciamento reflexivo. No segundo, a reflexividade é possível numa posição dialógica, na qual o observador tenta se colocar na situação da pessoa que sofre para melhor compreendê-la.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jan 2004
    • Data do Fascículo
      Jun 2003

    Histórico

    • Aceito
      30 Maio 2003
    • Revisado
      25 Fev 2003
    • Recebido
      20 Out 2002
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