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"É preciso sonhar"

EDITORIAL

"É preciso sonhar"

Maria Lucia Boarini

"Eu não era um militante. Eu era um

visionário. Fantasiava verdade". Apolônio

de Carvalho (1912-2005)1 1 Apolônio de Carvalho, oficial da artilharia brasileira, sempre esteve envolvido em movimentos contra as barbáries do século passado. Combateu a ditadura getulista em 1930 e por esta razão foi expulso do Exercito. Em 1935 foi preso. Neste período foi lembrado por Graciliano Ramos na obra intitulado "Memórias do Cárcere". Participou da luta pela Republica na Guerra Civil Espanhola e na Resistência francesa à ocupação nazista. De volta ao Brasil, durante o regime militar foi preso, torturado e exilado para a Argélia, onde viveu durante dois anos. Retorna ao Brasil em 1979, com a anistia. Em 1980 é o primeiro signatário da fundação do Partido dos Trabalhadores.

Grosso modo, esta foi a auto-avaliação que Apolônio de Carvalho deixou registrada no documentário intitulado "É preciso sonhar - A Trajetória de um Libertário". Produzido sob a direção de Stela Grisotti e Rudi Böhm, este documentário retrata a exemplar dedicação às causas coletivas que marcou indelevelmente a trajetória de vida desse valoroso brasileiro. Com esta lembrança, a ele deixo aqui a minha singela homenagem. Diante deste exemplo de vida que nos deixou Apolônio de Carvalho parece que se reafirma a utopia como o ponto comum entre as pessoas destemidas que lutam por uma sociedade igualitária. Alias, sem a pretensão de adentrar o terreno da Filosofia, arrisco afirmar que "fantasiar verdades" é, talvez, um dos mais importantes galvanizadores da vida de qualquer ser humano. Tenho por hipótese que há um Dom Quixote em cada um de nós.

Aproveitando este mote e delimitando minhas reflexões ao campo da editoração científica, em minha avaliação, esta é uma empreitada quixotesca. Aqui tomo como referência minha trajetória profissional nestes últimos 10 anos, quando criei e estive à frente da Psicologia em Estudo, cuja editoria ora estou deixando. Evidentemente, toda generalização pode nos remeter a equívocos, e a esta regra eu não fujo. Com estes cuidados na interpretação e a título de despedida, seguirei com alguns breves comentários sobre minha experiência como editora científica de um periódico que atualmente ocupa uma das mais importantes classificações no ranking Qualis - Classificação de periódicos, anais, jornais e revistas da Capes. Experiência enriquecedora, gratificante, desafiadora e - reconheçamo-lo - deveras extenuante e quase invisível aos olhos da comunidade científica. Com isto estou querendo dizer que há um verdadeiro contraste entre a valorização desta tarefa e a responsabilidade exigida para levá-la adiante. O que, em outras palavras, significa não-reconhecimento (ou desvalorização?) por parte das instituições em geral. A título de ilustração cito a não-pontuação desta atividade pelo Comitê Cientifico que seleciona projetos para bolsas Iniciação Cientifica – Pibic, como ocorreu recentemente na Universidade Estadual de Maringá. Ora, se o comitê científico de uma universidade não considera a tarefa de editor, conclui-se que dificilmente ela será considerada em qualquer outra instância da sociedade. Este é apenas um simples exemplo. Outro descompasso visível a olho nu, que já tenho discutido em outros editoriais, é a significativa diferença de valorização entre o trabalho do editor e o do autor que publica. De um lado, tem-se o autor, que garante significativa pontuação em seu currículo quando tem reflexões publicadas em um periódico científico indexado internacionalmente e muito bem classificado pela Comissão da Anpepp/Capes, como é o caso do nosso e de outros periódicos. Do outro lado tem-se a completa ausência de valorização (como exemplifiquei anteriormente) do trabalho e responsabilidade dos editores e consultores, que, além de todas as tarefas rotineiras a eles atribuídas, ocupam-se também de todo o processo estafante representado pela avaliação, normalização e publicação de um artigo em um periódico desta natureza. Como diria há um século o velho mestre Karl Marx, "seria cômico se não fosse trágico".

De fato já passou da hora de termos uma política nacional que reconheça a importância dos envolvidos com a editoração científica, principalmente os editores, o conselho editorial e os anônimos e imprescindíveis consultores ad hoc. Já passou da hora de consolidarmos uma cultura acadêmica que reconheça a editoração científica como uma necessidade que deve ser de responsabilidade das instituições e da comunidade científica, e não simplesmente do voluntarismo de um professor em particular, a quem, neste processo, só resta uma total identificação com o nosso célebre Dom Quixote de La Mancha.

Não obstante, por paradoxal que possa parecer, a editoração científica é também uma tarefa fascinante. Sob o impulso deste fascínio, empenhei-me por muitas das conquistas alcançadas pela Psicologia em Estudo durante esta década, das quais me orgulho e pelas quais sou imensamente gratificada. Nesta perspectiva, consegui, nesta década transcorrida, trazer este periódico a público com regularidade e imprimir a maior brevidade possível entre o recebimento do texto e sua aceitação, ou não. Introduzi a exigência da aprovação do Comitê de Ética quando se trata de resultados de pesquisa com seres humanos, apesar de toda a polêmica que este tipo de exigência vem gerando no campo da Psicologia. Consegui reunir um grupo de consultores ad hoc, do Oiapoque ao Chuí, cuja pluralidade de conhecimentos permitiu a consolidação de um silencioso e altamente qualificado processo pedagógico, e desta forma promovi a capilaridade de um saber dificilmente mensurável em sua importância. Socializei informações científicas qualificadas de diversos prismas teóricos, produzidas no campo da Psicologia e áreas afins, de autoria de pesquisadores de diferentes pontos do Brasil e do Exterior. Numa tentativa de mapear de alguma forma esta trajetória de Psicologia em Estudo, apresento como anexo o Relatório de Gestão (Silva,K.S.S. e Dias, A.P. p. 549-552). Enfim, estas são algumas das razões que justificam a indexação de Psicologia em Estudo em bases nacionais e internacionais e sua inserção na mais importante biblioteca virtual do Brasil, a Scientific Eletronic Library Online – SciELO, o que a faz alinhar-se com as tendências mais atuais da sociedade da informação. Porém tudo isto não significa ponto de chegada. Aliás, ainda considero que estamos muito longe dele. O que este percurso assinala é que estamos no rumo correto, ou, melhor dizendo, de acordo com os padrões exigidos pela editoração científica de nossa época. Nestes termos Psicologia em Estudo já está inscrita neste campo da comunicação que, diga-se de passagem, ainda bastante carente na área da Psicologia.

Em que pese a isso e por mais que meu dia-a-dia tenha sido solitário, reconheço que esta empreitada, em seu conjunto, não teria esta dimensão não fosse a participação de algumas instituições e muitas pessoas, a cuja nomeação e agradecimento reservo este espaço. Agradeço inicialmente ao CNPq e à Fundação Araucária, que nestes últimos anos me pouparam de uma das mais angustiantes preocupações do editor: financiamento. Não tenho a menor saudade da época em que, para cobrir as despesas da produção gráfica da revista, tal qual um caixeiro-viajante, vendia as revistas em todos os congressos dos quais participava. Não há como negar, era um total descompasso profissional da minha parte que estes financiamentos vieram eliminar. Ao Conselho Editorial e aos Consultores ad hoc devo e agradeço a qualidade do conteúdo da Psicologia em Estudo. Impossível atingir tais patamares de qualidade sem nossos anônimos avaliadores e revisores de texto. E aqui incluo os competentes revisores de linguagem Prof. Raul Pimenta, de português, e Profª. Maria Dolores Dalpasquale, de inglês. Agradeço ao Gustavo Ramos Mello Neto, que lá atrás, em 1994, ao me convidar para auxiliá-lo na elaboração do Suplemento Cadernos de Metodologia do Departamento de Educação, fez renascer o gosto que sempre tive pela editoração. Ao Marcos Cipriano da Silva, diagramador da revista, que há dez anos tem se revelado um grande parceiro nesta empreitada, conseguindo dar à Psicologia em Estudo um visual tão bonito e elogiado. À Alice Dias Paulino, que muito me auxiliou no intenso ir-e-vir de pareceres. À Karen Silvia Salles Silva, que nestes últimos anos responsabilizou-se pela parte das finanças, assinaturas, relatórios, elaboração de projetos para angariar recursos, atribuições que, em minha avaliação, constituem uma parte tão necessária quanto árida deste projeto. Finalmente, um agradecimento muito especial à Silvia Helena Koller e ao Oswaldo Hajime Yamamoto. Muito aprendi com estes dedicados profissionais, que sempre estiveram disponíveis para me orientar nesta complexa e tão importante tarefa. Além de parceiros neste "caminho das pedras" enquanto editores científicos, serviram-me de exemplo; e - mais que isso - sempre me estimularam a sonhar.

Com estes agradecimentos vou-me aproximando dos limites de minha linguagem. Realmente as palavras são insuficientes para dar conta dos meus agradecimentos, do enriquecimento que esta experiência me proporcionou.

Com este "ainda por dizer" passo a responsabilidade desta editoria à nova equipe, que seguramente dará continuidade à Psicologia em Estudo de todos nós.

Como despedida, parafraseio nosso singular compatriota Apolônio de Carvalho e o inesquecível poeta português Fernando Pessoa, que nos ensinaram que "Fantasiar verdades é preciso".

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    Apolônio de Carvalho, oficial da artilharia brasileira, sempre esteve envolvido em movimentos contra as barbáries do século passado. Combateu a ditadura getulista em 1930 e por esta razão foi expulso do Exercito. Em 1935 foi preso. Neste período foi lembrado por Graciliano Ramos na obra intitulado "Memórias do Cárcere". Participou da luta pela Republica na Guerra Civil Espanhola e na Resistência francesa à ocupação nazista. De volta ao Brasil, durante o regime militar foi preso, torturado e exilado para a Argélia, onde viveu durante dois anos. Retorna ao Brasil em 1979, com a anistia. Em 1980 é o primeiro signatário da fundação do Partido dos Trabalhadores.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Jan 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005
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