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Mulheres indigenas: poder e tradição

Indigenous women: power and tradition

Resumos

Este trabalho contém relatos e reflexões sobre gênero nas suas interfaces com trabalho, poder e participação política da mulher nas comunidades indígenas Bororo de Mato Grosso, Guarani/Kaiowá e Kadiwéu, de Mato Grosso do Sul. No estudo com os Bororo a valorização de uma mulher da comunidade se devia ao fato de ser ela guardiã da cultura e dos conhecimentos tradicionais e ao mesmo tempo uma importante interlocutora com o mundo do não índio. No caso dos Guarani/Kaiowá, os elementos mais importantes dizem respeito à saída dos homens da reserva e ao seu desejo se tornar homens da cidade, ao contrário das mulheres, que desejam ou necessitam manter a identidade Guarani e residir na reserva. Entre os Kadiwéu, o fato mais relevante é a questão do poder político das mulheres e uma divisão de papéis entre homens e mulheres, sem que seja atribuído mais valor a um papel do que a outro.

mulheres indígenas; gênero; cultura


This study contemplates reports and reflections about gender and the interfaces with work, power and woman's political participation within the Bororo indigenous communities in Mato Grosso, Guarani/Kaiowá and Kadiwéu ones, in Mato Grosso do Sul. In the study with the Bororo community, the woman valorization occurred because she represents the guardian of the culture and of the traditional knowledge, and at the same time, she is an important speaker for the Bororo and the non indigenous society. In the case of Guarani/Kaiowá community, the most important facts are, on one side, the departure of the men and their wish to become city men, and on the other, the women who wish or need to keep the Guarani identity and live in the reserve. In the Kadiwéu community, the most important fact is the women political power and a role division between men and women, without the attribution of more value to one role or the other.

indigenous women; gender; culture


ARTIGOS

Mulheres indigenas: poder e tradição

Indigenous women: power and tradition

Sonia GrubitsI; Ivan Darrault-HarrisII; Maíra PedrosoIII

IPHd em Semiótica pela Sorbonne, Paris 8. Doutora em Saúde Mental pela UNICAMP. Docente do Programa de Mestrado em Psicologia da UCDB

IIPHd pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris (E.H.E.S.S./Paris), membro do grupo de pesquisas em Semiótica de E.H.E.S.S./Paris

IIIMestre em Psicologia Social pela PUC/SP). Doutoranda no Programa de Psicologia Social da PUC/SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Sonia Grubits, Av. Mato Grosso, n. 759, Centro CEP 79002-231, Campo Grande-MS. E-mail: sgrubits@uol.com.br

RESUMO

Este trabalho contém relatos e reflexões sobre gênero nas suas interfaces com trabalho, poder e participação política da mulher nas comunidades indígenas Bororo de Mato Grosso, Guarani/Kaiowá e Kadiwéu, de Mato Grosso do Sul. No estudo com os Bororo a valorização de uma mulher da comunidade se devia ao fato de ser ela guardiã da cultura e dos conhecimentos tradicionais e ao mesmo tempo uma importante interlocutora com o mundo do não índio. No caso dos Guarani/Kaiowá, os elementos mais importantes dizem respeito à saída dos homens da reserva e ao seu desejo se tornar homens da cidade, ao contrário das mulheres, que desejam ou necessitam manter a identidade Guarani e residir na reserva. Entre os Kadiwéu, o fato mais relevante é a questão do poder político das mulheres e uma divisão de papéis entre homens e mulheres, sem que seja atribuído mais valor a um papel do que a outro.

Palavras-chave: mulheres indígenas, gênero, cultura.

ABSTRACT

This study contemplates reports and reflections about gender and the interfaces with work, power and woman's political participation within the Bororo indigenous communities in Mato Grosso, Guarani/Kaiowá and Kadiwéu ones, in Mato Grosso do Sul. In the study with the Bororo community, the woman valorization occurred because she represents the guardian of the culture and of the traditional knowledge, and at the same time, she is an important speaker for the Bororo and the non indigenous society. In the case of Guarani/Kaiowá community, the most important facts are, on one side, the departure of the men and their wish to become city men, and on the other, the women who wish or need to keep the Guarani identity and live in the reserve. In the Kadiwéu community, the most important fact is the women political power and a role division between men and women, without the attribution of more value to one role or the other.

Key words: indigenous women, gender, culture.

Desde a década de 1990 temos trabalhado com grupos indígenas de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, realizando investigações que envolvem questões sociais, comunitárias e identitárias. Em todas as situações de trabalho de campo, realizadas dentro da perspectiva da pesquisa-ação, tivemos oportunidade de relacionamento social com as pessoas da comunidade, usando o termo comumente empregado pelos não-índios. Ultimamente, estas relações têm-se intensificado e tornado mais freqüentes, pois desde 1996 temos pesquisado a construção da identidade infantil e relações familiares propriamente ditas, com ênfase na linguagem das emoções presentes nestas. As comunidades com as quais temos trabalhado são os Bororo, em Mato Grosso, cujos trabalhos duraram quatro anos (de 1990 a 1994), com os Guarani/Kaiowá, de 1996 a 2001 e com os Kadiwéu (trabalho iniciado em 1999), sendo as últimas do Mato Grosso do Sul.

Contrariando idéias que circulam entre os não-índios, começamos a perceber que o papel feminino e sua influência na comunidade indígena, apesar de manterem algumas semelhanças com situações observadas nas comunidades rurais da região e mesmo da cidade, revelavam algumas especificidades importantes que indicavam diferenças significativas em relação à sociedade nacional envolvente e mesmo entre os diferentes grupos étnicos estudados, incluindo a questão de gênero nas suas interfaces com trabalho, poder e participação política.

A propósito das observações sobre mulheres indígenas1 1 É importante ressaltar que aqui nos referimos a mulheres indígenas em geral, lembrando que há uma diversidade enorme de etnias bastante heterogêneas entre si, que só não são devidamente denominadas quando nos referimos às populações indígenas de forma generalizada, o que merece ressalva devido às grandes diferenças entre as etnias, inclusive quanto à forma e importância do papel da mulher na comunidade, como veremos adiante. encontramos informações importantes nos relatórios das visitas de parlamentares a terras indígenas e audiências públicas realizadas nos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Roraima, Pernambuco e Santa Catarina de 07 a 17 de outubro de 2003, devido a "Conflitos em Terras Indígenas" (Relatório das visitas..., 2003):

"Pôde-se perceber que as mulheres indígenas, ao mesmo tempo em que possuem poder no interior das comunidades, em geral não são reconhecidas como representantes destas perante os não-índios. Entretanto, é importante ouvir sua voz. Não que se proponha trazê-las para frente da roda, pois isso poderia implicar um desrespeito à cultura dos índios, o que provavelmente seria rechaçado pelas próprias mulheres indígenas. O que se faz necessário é que a política indigenista também possua um corte de gênero, ou seja, que os problemas das comunidades indígenas sejam vistos também da perspectiva feminina. Tal atitude será benéfica não somente para as mulheres, mas para a política indigenista como um todo".

As comissões foram compostas por deputados federais e/ou estaduais, procuradores federais ou promotores estaduais, representantes da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e outros participantes, variando de acordo com a reserva e região visitadas.

O referido texto relata ainda que na ocasião da visita para elaboração do documento citado, em muitas comunidades, índios e deputados formaram uma roda de discussão, enquanto as mulheres assistiam de longe. As exceções, ainda conforme o relato, verificaram-se entre os Pataxó HãHãHã (BA) e as comunidades da Raposa/Serra do Sol (RR), em que as mulheres participaram da roda principal. Cita ainda os Cinta Larga (RO), onde se observou que as mulheres quase não falaram, "mas exerceram papel fundamental no processo de conscientização dos índios para retomar suas terras e expulsar os garimpeiros ilegais" (Relatório das visitas..., 2003).

Entre as índias Terena de Mato Grosso do Sul houve uma única participação feminina, quando uma mulher idosa falou aos deputados em língua Terena. Também numa visita aos Xavante (MT), uma mulher interrompeu e repreendeu as palavras do cacique, em língua Xavante, enquanto ele falava sobre uma parceria agrícola entre índios e fazendeiros de soja. Finalmente, os parlamentares citam a Organização das Mulheres Indígenas de Roraima (OMIR), uma organização que teve sua primeira assembléia em 1999, tendo nascido da necessidade de representatividade da mulher indígena frente aos tuxauas (líderes das comunidades) e frente à política indigenista nacional.

Quando as comunidades resolveram bloquear estradas para impedir o acesso de garimpeiros à região dos rios Quinô, Cotingo e Mau, na Raposa Serra do Sol em 1993, foram as mulheres indígenas que tomaram a frente e enfrentaram a polícia que ameaçava desobstruir o caminho e prender os manifestantes. Além disso, a atual coordenadora da organização, Iranir Barbosa dos Santos, representa as mulheres indígenas de todo o Brasil no Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Mulher, órgão do Ministério da Justiça2 2 Informações extraídas da página do Conselho Indígena de Roraima (CIR): www.cir.org.br .

Lendo o referido relatório, percebemos que tais observações vêm ao encontro da nossa experiência de muitos anos nas comunidades indígenas citadas e que juntamente com uma demanda cada vez maior de revisão de leis e das políticas públicas voltadas às populações indígenas, provavelmente surgirá a necessidade de atentar para a situação e o papel desempenhado pela mulher indígena. Entre as diversas sugestões apresentadas pela referida comissão, encontramos inclusive, no capítulo segundo, dirigido à FUNAI, o item 2.4, que diz respeito à elaboração de programas permanentes de ações afirmativas para as mulheres indígenas. Além disso, os relatórios indicam um crescimento da presença ou talvez a visualização maior da mulher nos movimentos sociais e políticos.

Pretendemos aqui relatar algumas observações e reflexões em relação a gênero e ao papel da mulher nas comunidades indígenas estudadas, sem, no entanto, abranger uma discussão maior sobre mulheres indígenas, pois como dissemos anteriormente, temos percebido grandes diferenças tanto no interior dos grupos quanto fora, entre as diferentes etnias brasileiras. Vamos por isso, nos deter na exposição de algumas experiências com os três grupos estudados.

Desta forma, o presente artigo está subdividido em três partes. Na primeira parte procuramos passar pela questão mais ampla que envolve gênero, refletindo sobre como tal conceito tem sido discutido nas ciências humanas e sociais e em seguida mais especificamente na Psicologia Social. Na segunda parte, adentramos nas questões relativas às pesquisas com os índios Bororo, Guarani/Kaiowá e Kadiwéu, e efetuamos uma contextualização de aspectos específicos da cultura de cada uma destas etnias. Por fim, na terceira parte do artigo, apresentamos as reflexões finais, que, a despeito do nome que atribuímos, representam mais uma finalização do artigo, que se abre para a possibilidade e necessidade de futuras investigações e reflexões acerca do tema.

GÊNERO

Não é nossa intenção aqui nos estendermos às múltiplas visões, teorias e reflexões realizadas pelas ciências humanas e sociais a respeito do tema, pois é bastante ampla a literatura que tem sido produzida envolvendo a discussão homem/ mulher, suas oposições e relações. Não obstante, consideramos interessante apontar para alguns autores e autoras recentes que têm contribuído para transformar a visão dualista entre homem e mulher e têm revolucionado a discussão acerca de gênero.

O Núcleo de Estudo de Gênero, PAGU, criado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp em 1993, com o propósito de funcionar como espaço acadêmico de discussões e pesquisas interdisciplinares, tem trazido importantes contribuições por meio de publicações (Cadernos PAGU) e pesquisas envolvendo a questão de gênero em interseção com outras questões relevantes, tais como sexualidade, educação, corporalidade, cidadania, política, raça e etnia etc.

Uma revisão dos textos, artigos e resenhas publicados nos Cadernos PAGU desde seu primeiro exemplar, em 1993, traz elementos interessantes para serem pensados. Em relação à discussão envolvendo gênero, raça e etnia, encontramos uma série de textos e artigos refletindo sobre a questão de gênero e a raça negra. Há inclusive um volume inteiro dedicado à questão Raça e Gênero (1996), mas nem neste nem em outros volumes aparece uma discussão relacionando gênero e etnias indígenas ou mulheres indígenas. Há uma única referência que parece vinculada à questão: o artigo intitulado "Gênero Feminino mebengokre (kayapó): desvelando representações desgastadas" de autoria de Vanessa Lea, presente no volume 3, de 1994.

Apesar da ausência de uma discussão extensa relacionando gênero e etnias indígenas, os Cadernos PAGU trazem contribuições relevantes que contemplam outras questões (corporalidade, política, educação, etc.), produzidas por importantes autoras e estudiosas da questão, tais como Mariza Corrêa, Maria Margareth Lopes, Suely Kofes, Margareth Rago, Adriana Piscitelli e outras.

Atualmente, uma autora que tem contribuído essencialmente para este debate, revolucionando novamente as discussões a respeito de gênero, é Donna Haraway, professora de História da Consciência na Universidade da Califórnia. Seus trabalhos têm influenciado os chamados Estudos Culturais e Estudos de Mulheres, assim como a Primatologia, a Teoria Literária e a Filosofia. Em seu livro "Simians, Cyborgs and Women – The Reivention of Nature" (1991) está contido o "Manifesto para Ciborgues: Ciência, Tecnologia e Feminismo Socialista no Final do Século XX", no qual ela utiliza a figura do "ciborgue", recorrente na ficção científica, como metáfora para a crítica da identidade em favor das diferenças e para reivindicar uma apropriação politicamente responsável da ciência e da tecnologia.

A autora vai propor um rompimento com o marxismo, o feminismo radical e outros movimento sociais que acredita terem fracassado ao se utilizarem de categorias como classe, raça e gênero. Ela vai fazer a crítica ao movimento feminista e à forma naturalizada com que ele tem operado com a categoria "mulher", afirmando contrariamente que não existe nada no fato de ser mulher que una de maneira natural as mulheres. Ela reivindica o rompimento com a política da identidade e subseqüentemente sua substituição pelas diferenças e por uma coalizão política que se baseie na afinidade, e não numa identificação que não é problematizada e passa a ser tida como natural. O ciborgue seria, assim, o modelo dessa nova política de identificação a partir da afinidade, que se distancia da lógica da apropriação de uma identidade única e natural (Haraway, 1991).

A discussão feminista no seio das ciências sociais e humanas é bastante ampla e complexa, não havendo possibilidade de ser contemplada em profundidade no presente artigo. A questão é, entretanto, também bastante discutida na psicologia e especificamente na Psicologia Social, como veremos agora.

Entender o conceito e o impacto da pesquisa sobre diferenças sexuais no âmbito da psicologia é essencial para nossas reflexões, pois assim como ocorreu na ciência moderna, assiste-se na psicologia, desde 1910, a uma afirmação das diferenças sexuais para sustentar a inferioridade feminina, limitando a sua esfera de ação e restringindo sua autonomia e liberdade. Os primeiros trabalhos relacionados ao tema das diferenças sexuais acabaram criando as condições para o aparecimento de teorias e pesquisas acerca dos temperamentos masculinos e femininos, que reforçam a imagem de uma mulher que difere do homem pela sua emocionalidade mais rica e o seu comportamento mais tímido, dócil, vaidoso e sem espírito de aventura. Ao assumir essas disposições individuais e a existência de traços estáveis relacionados ao gênero, as personalidades femininas e masculinas vão servir para justificar, por exemplo, a desigualdade no acesso a posições de chefia (Nogueira, 2001).

Este estado de coisas vai sofrer algum abalo a partir das críticas advindas do movimento feminista, em seu segundo momento (por volta dos anos 1960 até meados dos anos 1980). As críticas das feministas no âmbito da psicologia dirigem-se a esta idéia de traços associados ao gênero e ao sexo biológico como determinante destes traços. Além disso, o questionamento feminista origina novas questões e a introdução de novos conceitos, modelos e problemas, dando ênfase ao significado do gênero em termos de seu valor como estímulo, como prescrição de papel e relação de poder. No entanto, essas críticas foram de tipo empirista: desafiaram essencialmente o método cientifico, considerando-o incompleto, mas não as normas da própria ciência (Nogueira, 2001).

Apenas com as movimentações que começaram a surgir por volta dos anos 1980 é que se começou a questionar a ciência em si, negando a procura da verdade universal e absoluta, numa perspectiva que passou a ser chamada de feminismo pós-modernista. Este feminismo pós-modernista passa a fornecer algumas propostas alternativas a essa concepção da "verdade" absoluta, assim como alternativas à produção do conhecimento. Segundo Burr (1995 citado por Nogueira, 2001), estas alternativas voltam-se ao reconhecimento da identidade como fragmentada, plural, em conflito, e de que os modelos de conhecimento e verdade dependem de relações sociais estabelecidas num determinado contexto histórico e dos interesses individuais.

A partir destes questionamentos o conceito de gênero passa a ser compreendido de forma diferente, englobando as relações entre poder, conhecimento e práticas sociais. Surgem, então, novas e alternativas formas de se compreender este conceito. Nos trabalhos das feministas pós-modernistas, a linguagem e as relações sociais tornam-se centrais e vão influenciar uma série de outros trabalhos.

O construcionismo social, por exemplo, vai assumir o gênero como uma construção social, um sistema de significados que se constrói e se organiza nas interações e que governa o acesso ao poder e aos recursos (Crawford & Denzin, 1995 citado por Nogueira, 2001). Não é, assim, um atributo individual, mas uma forma de dar sentido às transações: ele não existe nas pessoas, mas sim, nas relações sociais.

Segundo Meyer (2003), Michel Foucault e Jaques Derrida discutem gênero baseados em abordagens que enfocam a centralidade da "linguagem (entendida aqui em sentido amplo) como lócus de produção das relações que a cultura estabelece entre corpo, sujei­to, conhecimento e poder". Para a autora, o conceito de gênero engloba todas as formas de construção social, cultural e lingüística implicadas "[...] com os processos que diferenciam mulheres de homens, incluindo aqueles processos que produzem seus corpos, distinguindo-os e separando-os como corpos dotados de sexo, gênero e sexualidade." (2003, p. 16) Desta forma, conceituar gênero exige o entendimento das diferenças biológicas, psicológicas e sociais, que vão além do papel masculino e feminino, buscando formas de análise e contextualização mais amplas e complexas. Família, escola e meios de comunicação promovem uma articulação intrínseca entre gênero e educação, envolvendo estratégias "[...] sutis e refinadas de naturalização que precisam ser reconhecidas e problematizadas" (Meyer, 2003, p. 17). Assim também, tempo e espaço determinam formas de vivenciar e entender o feminino e o masculino. A cultura constrói e distingue o feminino e o masculino, articulando gênero com outras "marcas" sociais, tais como classe, raça/etnia, sexualidade, geração, religião e nacionalidade. A feminilidade e a masculinidade são vivenciadas por grupos diversos, dentro do mesmo grupo ou pelo mesmo indivíduo, em diferentes momentos de sua vida. Nesse contexto, as análises e as intervenções educacionais, sociais, legais e políticas devem considerar os múltiplos fatores sociais e culturais acima mencionados, além de tomar como referência as relações ­de poder entre mulheres e homens geradas por tais fatores.

A propósito da questão gênero e cultura, corroborando as posições dos autores acima citados, Héritier (1996), que tem estudado o relacionamento familiar e de casal, reflete sobre as representações de gênero, de pessoa, de procriação e de partes do corpo na biologia e na psicologia identificadas e reconhecidas em todos os tempos e lugares. Afirma que estas unidades são ajustadas e recompostas segundo diversas fórmulas lógicas possíveis, mas possíveis também porque pensadas segundo as culturas.

Assim também, temos percebido que é importante, em nossos estudos, considerar aspectos relevantes como tempo, espaço e as diversas ou diferentes lógicas possíveis. Para realizar uma pesquisa em comunidades indígenas torna-se essencial entender tais lógicas, sua história, a evolução dos deus costumes, o espaço ocupado, entre outras questões. Como exemplo estaremos discutindo no relato de nossa experiência o afastamento do homem do grupo familiar Guarani/Kaiowá pela restrição do espaço e a conseqüente necessidade de buscar trabalho em fazendas e usinas de álcool e açúcar da região. A referida situação, que implica fatores como território e economia, tem determinado mudanças no papel feminino na organização familiar destas comunidades indígenas.

MULHERES BORORO, GUARANI/KAIOWÁ E KADIWÉU

Em nossas pesquisas de campo, tivemos oportunidade de refletir sobre as mulheres indígenas das etnias Bororo, Guarani/Kaiowá e Kadiwéu.

Nossa primeira experiência com populações indígenas se deu na comunidade Bororo de Meruri, Mato Grosso, onde realizamos um estudo com uma mulher de 70 anos que residia com dois de seus sete filhos (um deles separado da esposa) e com seus netos, numa casa que não fazia parte do conjunto de casas Bororo. Esta mulher, ao nos falar de sua história de vida, demonstrou que conseguia reconstruir, em situações de conflito, novos personagens, superando identidades pressupostas tanto pelo seu grupo étnico quanto pelo não-índio, negando-os e repondo-os, como se habitasse os dois mundos e fosse reconhecida em ambos como liderança.

Torna-se importante esclarecer as especificidades da cultura Bororo, Guarani/Kaiowá e Kadiwéu no que se refere ao papel da mulher, as quais, independentemente dos movimentos indígenas atuais, apontam para situações antigas envolvendo poder e tradição.

A residência na cultura Bororo é tradicionalmente matrilocal para a mulher e avunculocal para o homem, que vai residir na choupana de sua esposa após ter morado no bai mana gejewu, a casa dos homens. O bai mana gejewu - casa dos homens - é o lugar onde ocorrem certas danças e cantos relacionados com espécies clânicas, para a fabricação de enfeites e para distribuição de cerimonial de alimentos. As mulheres têm autorização para entrar no bai mana gejewu em ocasiões especiais, nos funerais ou festas.

Segundo Novaes (1983), as aldeias Bororo são tradicionalmente circulares. Um número variável de casas se dispõe ao redor de um círculo que tem no centro a casa dos homens e o pátio, chamado bororo. Como em várias aldeias do grupo lingüístico Gê, a periferia constituída pelas casas corresponde à esfera doméstica e feminina da sociedade Bororo, enquanto o bai mana gejewu e o bororo correspondem à esfera jurídica, política e ritual da sociedade, que, embora possa ser ocasionalmente freqüentada pelas mulheres, caracteriza-se por ser uma esfera tipicamente masculina.

A autora destaca, não obstante, que a aldeia circular, formada por casas que mantêm a mesma distância entre si e a mesma distância do centro da aldeia, aponta claramente que esta é uma sociedade igualitária e que os diversos grupos que a compõem (clãs, grupos domésticos, linhagens) mantêm entre si uma relação de complementaridade nas suas diferenças, ao invés de uma relação do tipo dominação/subordinação (Novaes, 1983), reflexão que podemos estender à questão de gênero, por exemplo.

É importante ressaltar, por outro lado, que atualmente nem todas as aldeias Bororo conseguem manter essa mesma disposição circular. Segundo Novaes (1983), só para que se tenha uma idéia, as áreas ocupadas pelos Bororo na época de seus estudos correspondiam a apenas 0,1% de seu território tradicional de ocupação. Além disso, muitas das novas aldeias foram construídas por funcionários da Funai, que não respeitaram a tradição da disposição circular. Apesar disso, segundo a autora, continuaram se mantendo como uma sociedade igualitária e complementar. Nas visitas feitas a Meruri e Graça, duas comunidades Bororo estudadas, encontramos a casa do homem onde os índios tentam manter as tradições.

Lévi Strauss (1996) relata que as mulheres habitam e herdam as casas em que nasceram. Por ocasião do casamento, o indígena masculino atravessa, pois, a clareira, transpõe o diâmetro ideal que separa as metades e vai residir do outro lado. Mais adiante, falando ainda dessa relação, diz que os membros de um clã, com exceção dos homens casados, habitam todos na mesma cabana ou em cabanas adjacentes.

A índia Bororo com a qual nos relacionamos tinha prestígio e era bem aceita entre os Bororo, porque além de possuir melhores estratégias de sobrevivência, representava o grupo por meio de seus conhecimentos, prestando serviços como parteira, praticando a medicina natural e sendo considerada assim uma guardiã das tradições. Na sociedade nacional envolvente, o prestígio de que esta mulher desfrutava se devia aos seus conhecimentos sobre costumes indígenas e ao fato der ser ela uma representante do Bororo tradicional, e não do índio proletarizado, alcoolista e dependente do paternalismo do não-índio. Seu prestígio se devia também ao fato de assumir responsabilidades na luta pela dignidade do índio. Em sua forma de agir, sentir e pensar, esta mulher ora demonstrava certo grau de influência da educação salesiana e cristã, ora demonstrava sua marca étnica, seus conhecimentos dos costumes e tradições Bororo. Ou seja, revelava sempre uma identidade construída em meio aos conflitos entre sentimentos, pensamentos e ações de Bororo e não-índio.

Passando agora aos Guarani/Kaiowá de Caarapó, talvez o fato mais notável e ao mesmo tempo grave e preocupante nas conclusões de nossas pesquisas com este grupo seja a constatação de que a mulher constrói e adquire uma identidade feminina Guarani/Kaiowá, enquanto o homem adquire uma identidade masculina de homem da cidade. Entendemos que esse fato não ocorreu como fenômeno isolado, específico para os dois estudos de caso da pesquisa que desenvolvemos, mas reproduziu uma realidade vivida atualmente em toda a reserva. Aspectos peculiares à família e organização social dos Guarani, as conclusões sobre um estudo num grupo de crianças, assim como nossas observações em Caarapó, ajuda-nos a entender as influências da tradição cultural no papel feminino.

De acordo com relatos sobre o complexo guerreiro-antropofágico nos estudos sobre a cultura tradicional Guarani, o líder guerreiro era geralmente um sogro com muitas esposas. O guerreiro só poderia escapar ao domínio do sogro ou dando uma filha ao irmão da mulher, num casamento avuncular da sobrinha com o tio materno, que não era considerado incestuoso, ou oferecendo um inimigo cativo, geralmente ao irmão da esposa. Assim dava uma filha em troca de sua mulher ou um prisioneiro em troca de si mesmo. De qualquer maneira, não havia estabilidade no modelo social e as lutas e crises pela posse das mulheres eram constantes.

No tocante ao tema casamento do tio materno com a sobrinha, segundo Schaden (1974), as informações acerca de suas possibilidades são contraditórias, o que pode indicar um padrão outrora existente e hoje extinto ou quase extinto. Os relatos sobre o tema são feitos, em geral, com pouca segurança, e o autor afirma que não encontrou nenhum caso concreto de tal casamento. As mesmas dúvidas ocorrem em relação a casamento entre primos. Parece que entre os Ñandeva e os Kaiowá, o homem manifesta, muitas vezes, com relação aos sobrinhos, tanto filhos da irmã quanto do irmão, maior vínculo afetivo e tendência para auxílio do que em relação aos próprios filhos, o que poderia ser um indício da antiga instituição avuncular.

Por sua própria natureza, a família-grande requer estabilidade das ligações matrimoniais; ao contrário, não há sequer número para a sua constituição, ainda mais porque, em caso de divórcio; os filhos - especialmente entre os Kaiowá - ficam de preferência com a mãe, baseando-se de outro lado, a família-grande no exercício da autoridade paterna (Schaden, 1974, 70 - 71).

Por essa razão o filho, quando se casa, afasta-se de sua própria família e passa para a influência do sogro, com quem vai morar. A filha casada fica perto da mãe. Esses fenômenos indicam a persistência da antiga matrilocalidade com a perda da autoridade paterna. Por outro lado, só em circunstâncias excepcionalmente favoráveis subsiste a organização da família-grande, pois muitos homens passam a maior parte do tempo nos contratos, fora da reserva.

De acordo com a dinâmica social Guarani, a solidariedade do grupo parental é um dado relevante, ao passo que os liames sociais na aldeia são fracos e instáveis, levando a freqüentes modificações na organização da comunidade. Cabe ressaltar, porém, que as relações econômicas, ao contrário, ligam entre si todos os indivíduos de determinada aldeia do grupo local.

No trabalho com as famílias Guarani/Kaiowá acompanhadas durante o estudo de cinco crianças, realizado em 1998, apenas uma família tinha a presença constante do homem, um senhor idoso, aposentado, acompanhado o tempo todo pela mulher nas atividades de agricultura, que complementava a renda e a alimentação familiar. Nas quatro famílias restantes, os pais estavam fora em atividades nas fazendas da região ou nas usinas de álcool, dependendo da época do ano.

Como veremos posteriormente, essa situação se repete com os Kadiwéu. Das cinco mulheres com as quais tivemos mais proximidade, apenas uma contava com a presença constante do marido na reserva. Uma delas possuía um marido que trabalhava numa fazenda vizinha, outro que era diretor da escola e por isso tinha que ir sempre à cidade resolver assuntos burocráticos e políticos, outro que tinha fazendas próprias para administrar e cuidar; e a outra tinha duas filhas com um homem não-índio do qual se encontrava separada (Corrêa da Silva, 2004).

Da mesma forma, todas as mulheres Guarani/Kaiowá, com exceção de uma, assumiam os trabalhos com animais domésticos e roça familiar e já tinham casamentos anteriores. Todos os filhos dessas relações anteriores e atuais, de modo geral, viviam com elas. Por coincidência, quiçá pelo fato de que já começava a existir uma situação diferente na reserva (cumpre lembrar que as questões de gênero estão relacionadas a um contexto mais amplo que envolve todas as formas de construção social, cultural e lingüística), a única mulher que não se apresentava nessa situação mais comum na reserva era empregada doméstica, ou seja, não passava todo o dia em casa cuidando dos filhos, dos animais e da roça familiar, vivendo sozinha após a separação de sua única união. Aqui vamos notando a possível influência de aspectos econômicos, sociais, questões do trabalho etc. a provocar mudanças na vida cotidiana das mulheres indígenas deste grupo (Grubits & Darrault-Harris, 2001).

Refletindo ainda sobre as questões familiares e de gênero no grupo Guarani, em relação à saída do homem da aldeia, retomamos as informações de Shaden (1974) quanto a um fenômeno antigo, desde a época em que a economia, deixando de ser auto-suficiente, obrigava o homem a sair da aldeia ou reserva e trabalhar nos ervais (cultura de erva-mate), hoje substituídos pelas usinas de álcool e novas culturas como milho e arroz das fazendas da região. Ribeiro (1987) se refere às coerções socioeconômicas, que já na década de 1980 geravam o engajamento dos índios em um sistema produtivo de caráter capitalista mercantil, possibilitando a apropriação privada de suas terras e a conscrição dos indivíduos na força de trabalho regional, anulando a autonomia cultural e provocando um profundo desequilíbrio na vida social dos indígenas. Grubits (1994) aponta para a delimitação territorial das reservas - implicando na interdição de mudança para novas áreas para a prática da agricultura e conseqüentemente – e para a poluição do meio ambiente onde estão localizados, que muitas vezes provoca doenças e mesmo os leva à morte.

Lembramos que Schaden (1974) e Viveiros de Castro (1992) afirmam que, do ponto de vista da infra-estrutura, é a agricultura do milho que causa, produz o agregado aldeão. Todos os autores e pesquisadores da cultura Guarani identificam, até hoje, a importância cultural da festa da chicha, bebida de milho. No mesmo tempo e espaço uma antiga tradição retoma uma situação de grande família e comunidade do passado, apontando para o dinamismo e complexidade nos estudos de gênero em comunidades indígenas.

Voltando às famílias Guarani estudadas, o que notamos não é mais uma situação de ida e volta do homem e permanência da mulher na reserva, mas sim, a situação do homem que quer ser um homem da cidade e lá permanece, enquanto a mulher quer ou necessita permanecer na reserva como Guarani/Kaiowá, mas não tem o homem de volta para a continuidade familiar e comunitária. Podemos levantar a possibilidade, também, de que esta situação vivida por homens e mulheres adultos tenha como causa principal a necessidade de sobrevivência, tendo em vista que atualmente, ao viverem confinados nas reservas, os Guarani perderam os recursos para seu deslocamento e construção das aldeias em novas áreas, mas evidentemente ainda com resquícios de um passado em que o homem ia caçar ou ia para a guerra e voltava. Desta forma, até hoje, na maioria das vezes, a saída do homem está relacionada à luta pela sobrevivência.

Atualmente, quando o homem não retorna, a mulher permanece com a responsabilidade pela manutenção do grupo familiar e muitas vezes, como no caso da índia Bororo, assume o papel de guardiã da cultura. De qualquer maneira, podemos levantar a hipótese de que a próxima geração de adultos, que será constituída pelas crianças de hoje, poderá chegar à fase adulta com uma identidade construída de maneira divergente e paradoxal, principalmente para a continuidade da nação Guarani/Kaiowá, mesmo que os órgãos governamentais consigam manter as aldeias e reservas atualmente ocupadas ou em litígio com os fazendeiros da região.

As mulheres, como aquelas que residem na aldeia reafirmando a identidade e a cultura Guarani/Kaiowá, podem e devem ter um papel fundamental neste processo junto aos jovens, assim como no processo mais amplo de luta pelos direitos da etnia. É preciso pensar no problema da demarcação das terras, no problema econômico (pois de nada adianta que eles tenham a terra, mas já não tenham como tirar dela sua sobrevivência), no problema da educação indígena, no problema da saúde, enfim, em tudo que envolve a questão mais ampla da qualidade de vida, levando em conta o que é qualidade de vida na perspectiva e visão dos próprios Guarani/Kaiowá, sendo as mulheres, como as principais guardiãs da cultura atualmente, fundamentais neste processo.

Com as mulheres Kadiwéu há elementos comuns e também divergentes da situação dos Guarani/Kaiowá e Bororo, mas igualmente interessantes de serem discutidos. Enquanto as mulheres Bororo e Guarani/Kaiowá se destacaram pela condição de guardiãs das tradições e costumes de suas etnias, as mulheres Kadiwéu se destacaram por sua habilidade como artesãs e ceramistas. Não que não representassem também um papel importante na manutenção dos costumes e valorização da própria cultura, mas o fazem essencialmente por meio da cerâmica. Lévi Strauss, (1996) descreve como traço extraordinário uma arte gráfica dos Kadiwéu, cujo estilo "é incomparável diante de quase tudo o que a América pré-colobiana nos legou e que só lembra, talvez, a decoração de nossas cartas de baralho."

Os homens modelavam na madeira dura e azulada do guáiaco, decoravam em relevo os chifres de zebu, que lhes serviam de xícaras, com figuras de homens, emas e cavalos; ou eventualmente desenhavam para representar folhagens, seres humanos ou animais. As mulheres decoravam a cerâmica, as peles e as pinturas corporais de seus rostos ou de seus corpos inteiros com trançados de arabescos assimétricos, que alternavam com motivos de geometria.

Aparentemente mulheres mais velhas conservavam estas habilidades, segundo o autor, mas uma publicação ilustrada de uma coleção feita quinze anos depois por um seu colega brasileiro cujo nome não citou, indicou que durante todo esse tempo o estilo e a técnica tinham se mantido, como fora o caso durante os quarenta anos decorridos entre a visita de Boggiani (1975) e a do próprio Lévi Strauss (1996). O autor ainda aponta para uma decadência das cerâmicas, alegando que seria uma prova da importância que as pinturas corporais, e em especial as do rosto, possuem na cultura indígena. Somente os motivos pintados subsistem, porém os homens abandonam mais rápido o costume.

Observou que a arte Kadiwéu era marcada por um dualismo: o dos homens e das mulheres, aqueles escultores, estas pintoras; os primeiros eram relacionados a um estilo representativo e naturalista, apesar das estilizações, enquanto as segundas dedicam-se a uma arte não representativa. Quanto à arte feminina, salientou que aí o dualismo se prolonga em vários planos.

O contato com a economia capitalista e a sedentarização dos Kadiwéu em fins do século passado geraram mudanças na vida social, cultura e econômica do Kadiwéu. Tornou-se importante a agricultura, a produção de artesanato destinado ao mercado externo, a criação de gado bovino e o arrendamento dos pastos da reserva. Apenas o artesanato é uma atividade essencialmente feminina. Segundo Siqueira Jr. (1993), a renda gerada pelo artesanato feminino Kadiwéu tem razoável importância econômica para o grupo familiar, que só não é maior devido à insuficiência do mercado para absorver a oferta de produção das artesãs, aliada às dificuldades de transporte, à falta de organização comunitária para comercialização do produto e aos baixos preços pagos.

Algumas artesãs são reconhecidas pelo próprio grupo Kadiwéu como as melhores produtoras de cerâmica. Algumas delas têm maior facilidade na comercialização de seu trabalho, levando suas peças para Campo Grande, Corumbá e Bonito, onde as Casas do Artesão compram as referidas peças. Diferentemente das mulheres dos demais grupos étnicos de MS, as mulheres Kadiwéu possuem autonomia em relação aos homens para viajar para comercializar sua cerâmica, ficando muitas vezes vários dias ausentes, às vezes acompanhadas apenas por suas filhas ou irmãs. (Grubits & Darrault-Harris, 2003) Um grupo selecionado de ceramistas Kadiwéu chegou inclusive a viajar para Berlim, duas vezes, para expor suas cerâmicas e receber prêmios pela qualidade e criatividade do traçado e colorido de suas peças. Os referidos traçados foram escolhidos para decorar fachadas de conjuntos residenciais em Berlim.

REFLEXÕES FINAIS

A partir dos casos e situações expostos sobre as diferentes realidades que encontramos dentro dos referidos grupos indígenas, podemos realizar algumas reflexões, relacionando as situações à discussão de gênero. De forma geral, pode-se dizer que está ocorrendo um processo amplo de mudança interna nas comunidades indígenas, resguardando porém tradições e características sociais e culturais relacionadas com as estruturas familiares e sociais de cada grupo estudado e de sua identidade. Podemos afirmar que, embora estas comunidades representem etnias que diferem muito entre si, em todos os aspectos, embora vivenciem isso de forma diferenciada, há um processo de mudança imposto pelo que vem de fora destas comunidades e diz respeito à sociedade nacional envolvente e à política nacional voltada aos povos indígenas realizada pelo Estado.

Neste processo de transformação interna na organização social destes grupos, assim como em sua cultura, em suas relações, estruturas de poder etc., há pontos que se assemelham e pontos que divergem extremamente entre si, provavelmente relacionados a uma multiplicidade de fatores, os quais podemos apenas supor (como a questão do grau e qualidade do contato que cada etnia possui com a sociedade não indígena, o grau de preservação cultural, a questão da posse da terra, entre tantos outros).

Entre os Bororo, por exemplo, o caso exposto aponta para a valorização de uma mulher da comunidade por dois aspectos principais: ser ela guardiã da cultura e dos conhecimentos tradicionais e ao mesmo tempo uma importante interlocutora com o mundo do não-índio. Este é um aspecto relativamente recente dentro da comunidade, o qual confere à mulher um papel político provavelmente diferente do que ela exercia anteriormente.

Desta forma, pode-se notar, a partir desta situação, a presença atual de elementos que elevam o "status" de um membro da comunidade os quais provavelmente não existiam antes – por exemplo, no caso da mulher Bororo, o fato de falar fluentemente o português e de estar mais próxima à situação de interface entre a cultura Bororo e a cultura não índia. Este fator, estar mais próximo a essa situação de interface sem perder sua identidade Bororo, é algo que tem sido bastante valorizado entre os grupos indígenas, cada vez mais cientes da inevitável necessidade de se relacionar (até para lutar por seus direitos) com a sociedade nacional envolvente. Este fator certamente produz alterações também nas questões relacionadas a gênero, sendo de grande interesse estudos futuros que focalizem a questão.

No caso dos Guarani/Kaiowá, os elementos mais importantes dizem respeito à saída dos homens da reserva e ao desejo de se tornarem homens da cidade, ao contrário das mulheres, que desejam ou necessitam manter a identidade Guarani e residir na reserva. Isso certamente produz transformações nas relações de gênero, na medida em que as mulheres se tornam as principais responsáveis pela preservação da cultura e identidade Guarani. Tornam-se elas as verdadeiras "guerreiras" da cultura Guarani. Além disso, passam a enfrentar problemas quanto à própria continuidade da etnia, na medida em que os homens vão abandonando a reserva e o interesse pelas questões relativas ao seu povo. Aqui, a questão do gênero opera estruturando o social e é estruturada por ele de uma forma diferente da que ocorria no passado, algo que afeta profundamente as relações sociais.

No caso dos Kadiwéu, o que mais chama a atenção é a questão do poder político das mulheres. Em nossa convivência com este grupo indígena, aprendemos que não se pode olhar para a cultura de um povo a partir apenas de nossos valores (tomando como "certo" ou "errado" aquilo que é considerado "certo" ou "errado" no seio de nossa sociedade ocidental moderna). Assim, notamos que circula muitas vezes uma idéia errônea de que os índios seriam "machistas", conferindo à mulher um papel inferior. Isso não é necessariamente real, mas algo que pode ser compreendido com clareza a partir das relações sociais Kadiwéu.

Na organização social desta etnia há também uma divisão de papéis entre homens e mulheres, sem, no entanto, que um seja superior ao outro, sem que seja atribuído mais valor a um papel do que a outro. Ambos têm seu valor, inegável e irrestrito, e há uma consciência clara de que o todo necessita igualmente das atividades desenvolvidas tanto por homens quanto por mulheres. A comunidade, para funcionar, necessita que homens e mulheres desempenhem suas diversas atividades, sendo todas elas igualmente importantes.

Isso talvez venha sofrendo também algumas modificações, na medida em que aspectos econômicos começam a entrar e interferir na cultura. Assim, atividades com valor econômico passam lentamente a ser mais valorizadas, como a cerâmica, por exemplo. Disso resulta que as mulheres Kadiwéu, desde o passado com grande poder político, passam a ser também importantes provedoras do sustento da família.

É interessante chamar a atenção para o fato de que, ao falarmos no poder político das mulheres Kadiwéu, estamos falando de um poder que é exercido de forma indireta, mas aparentemente com a mesma força do poder político dos homens. As decisões e problemas da comunidade são resolvidos por um grupo de conselheiros, composto apenas por homens. O capitão da aldeia (como é chamado o "cacique") é também sempre um homem. Mas isso não impede que as mulheres exerçam um papel político influente nas decisões; ele se exerce nos "bastidores" da comunidade, nas conversas cotidianas, nos encontros casuais, mas possui aparentemente a mesma força e o mesmo poder de decisão. As mulheres Kadiwéu são fortemente envolvidas nas questões da comunidade, como a escola, a distribuição da água, etc.

De forma geral, este é um aspecto que, em relação às culturas indígenas como um todo, nos permite levantar hipóteses de que está ocorrendo uma participação cada vez maior das mulheres indígenas na luta pelos direitos de seus povos e na política nacional desenvolvida pelo Estado brasileiro. Elas tornam-se assim, cada vez mais, importantes interlocutoras entre seus grupos e a sociedade não indígena; importantes peças da situação de interface e guerreiras fundamentais de sua cultura.

Recebido em 03/06/2005

Aceito em 30/08/2005

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  • Endereço para correspondência

    Sonia Grubits, Av. Mato Grosso, n. 759, Centro
    CEP 79002-231, Campo Grande-MS.
    E-mail:
  • 1
    É importante ressaltar que aqui nos referimos a mulheres indígenas em geral, lembrando que há uma diversidade enorme de etnias bastante heterogêneas entre si, que só não são devidamente denominadas quando nos referimos às populações indígenas de forma generalizada, o que merece ressalva devido às grandes diferenças entre as etnias, inclusive quanto à forma e importância do papel da mulher na comunidade, como veremos adiante.
  • 2
    Informações extraídas da página do Conselho Indígena de Roraima (CIR):
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Jan 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005

    Histórico

    • Aceito
      30 Ago 2005
    • Recebido
      03 Jun 2005
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