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O Ato Médico e suas implicações

EDITORIAL

O Ato Médico e suas implicações

Neste segundo número de 2006, a revista Psicologia em Estudo apresenta um dossiê sobre Saúde constituído de 15 artigos, os quais instigam à reflexão sobre a relação Psicologia e Saúde a partir de diversos contextos e abordagens.

Entendemos que falar de saúde é, necessariamente, falar de saúde pública, o que significa, a um só tempo, o atendimento à população quanto à prevenção da doença e promoção da saúde e atividades e atuações multidisciplinares.

De acordo com a Carta de Otawa (1986), o paradigma que se delineia quanto à promoção da saúde é o de uma perspectiva interacional, envolvendo vários campos de conhecimento concebidos como produção social, determinados pelos aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais.

É exatamente este paradigma que vai nortear as diretrizes e princípios do SUS. O Sistema Único de Saúde visa, assim, ao processo de humanização na área da saúde, buscando superar o enfoque biologicista das práticas em saúde e direcionar essas práticas para uma atuação que inclua os "aspectos sociais que condicionam e determinam a vida, o adoecimento e a morte das pessoas."1 1 http://www.naoaoatomedico.com.br/paginterna/profis_psicologia.cfm

Não obstante, o que temos hoje na área da saúde é um continuado retrocesso quanto às intenções acima mencionadas. Este retrocesso se dá em função da iminência de aprovação, no Senado, do Ato Médico. Desta forma, não há como deixar de mencioná-lo, seja no sentido de esclarecer nossos leitores quanto às suas implicações, seja no sentido de fazer deste editorial um manifesto de repúdio à sua aprovação.

O Ato Médico – Projeto de Lei nº 025/2002, de autoria do ex- senador Geraldo Althoff (PFL- SC – médico pediatra) e atualmente sob a relatoria da Senadora Lúcia Vânia (PSDB- GO) - tem como objetivo regulamentar a Resolução 1627/2001 do CFM, estabelecendo que atividades relacionadas à saúde como diagnósticos ou tratamento passam a ser de exclusiva competência do médico. Ficam assim afetadas ou subordinadas ao médico várias profissões da área da saúde.2 2 http://www.naoaoatomedico.com.br/index/index.cfm

As implicações deste projeto são várias, mas podemos destacar algumas.

Quanto ao SUS, contraria a concepção de saúde como "um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício" (Brasil, 1990)

Considerando-se que a ideologia neoliberal pressupõe o Estado Mínimo e que isto significa acabar com o bem-estar social, isto é, privatizar o que é público, o Ato Médico fere mais uma vez a legislação vigente relativa à saúde, a qual dispõe como dever do Estado garantir a saúde "formulando e executando políticas econômicas e sociais que visem a redução de risco de doenças e de outros agravos, e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para sua promoção, proteção e recuperação" (Brasil, 1990). O Ato Médico priva o cidadão de ter outros atendimentos que não o do médico. Além disso, pressupõe uma reserva de mercado, ao excluir da área da saúde outras profissões que, numa atuação multidisciplinar, podem contribuir para a cura, prevenção de doenças e promoção da saúde.

A Organização Mundial de Saúde lembra que "A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas em ausência de doença ou enfermidade"3 3 http://www.saudemental.med.br/OMS.htm . A saúde mental é um aspecto fundamental da saúde, que permite ao ser humano aproveitar plenamente suas aptidões cognitivas, afetivas e relacionais. Uma boa disposição mental possibilita enfrentar as dificuldades da vida, trabalhar de forma produtiva e contribuir para as ações da sociedade.

Desta forma, o Ato Médico contraria o conceito de que saúde significa bem-estar geral, e não só ausência de doença. O modelo médico embasa-se numa visão de homem enquanto ser natural que se explica pela suas condições biológicas, e a saúde é entendida como contrária a doenças, sendo aquela a condição de adaptação à sociedade, o que equivale à consagração do binômio normal - anormal. Atualmente, com a complexidade e dinamicidade da sociedade, o conceito de saúde vem se modificando, não se estabelecendo somente na condição biológica do homem, mas também na sua constituição e interação social. Sendo assim, a saúde passa a ser conceituada como a condição de enfrentamento do homem diante das diversidades atuais.

Com o Ato Médico parece haver um engessamento do conceito de saúde que nos lembra as atividades de higienismo do século XIX, como forma de normatizar, padronizar e adaptar os indivíduos ao modelo socioeconômico vigente. O modelo curativo deveria ser superado pelo modelo preventivo.

O deputado Dr. Rosinha (2006), ao afirmar que "o avanço de um sistema de promoção à saúde e construção da cidadania depende muito mais de atuação coletiva (atos pela cidadania) dos profissionais do que do individualismo do ato médico"(online), explicita uma das condições fundamentais do neoliberalismo, que é o individualismo. A afirmação do CFM é que o campo das doenças e da saúde é ato privativo do médico. Isto pode significar um olhar dirigido somente para o sintoma da doença, e não para sua causa.

Vamos ao considerado pai do neoliberalismo, Hayek (1987/1944), em sua obra O caminho da servidão. "(...) o sistema de objetivos do indivíduo deve ser soberano, não estando sujeito aos ditames alheios. É esse reconhecimento do indivíduo como juiz supremo dos próprios objetivos, é a convicção de que suas idéias deveriam governar-lhe tanto quanto possível a conduta, que constitui a essência da visão individualista" (p.76) . Hayek considera ainda importante uma sociedade concorrencial, por ela permitir a competitividade; assim o corporativismo é permitido, traduzido, por exemplo, numa classe de profissionais que protege seus interesses através de normas estabelecidas pelo Estado.

A idéia de que o indivíduo ou determinada classe de profissionais se bastem significa abolir qualquer trabalho coletivo. O caráter individual pressupõe a um só tempo a eficiência e a autogestão, que podem se converter em sucesso ou fracasso, pois dependem do indivíduo ou classe.

Neste sentido, acreditamos que boa parte da classe médica ainda não se deu conta de que a autonomia estabelecida pelo Ato Médico também tem um preço. Eles, os médicos, passam a ser os únicos responsáveis pela doença/cura do cidadão, não podendo partilhar dúvidas com outros profissionais. É a afirmação de que uma única classe de profissionais da saúde é capaz de dar conta de toda a complexidade atual. Como será que ela responderá ao momento em que vivemos?

Cremos que devemos ouvir atentamente a proposta do deputado Dr. Rosinha, segundo a qual, ao invés de discutir a definição do que seja o Ato Médico, deveríamos pensar na construção de um código onde a responsabilidade ética seja de toda a equipe profissional que atua sobre o ser humano, e não apenas de uma categoria.4 4 http://www.amigasdoparto.org.br/mid_2005_02_11_ato.asp

REFERÊNCIAS

Brasil (1990) Lei 8080 de 19/09/1990 – que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde. Disponível em http://www.saude.inf.br/legisl/lei8080.htm (Acesso em 29/09/2006).

Dr. Rosinha (Florisvaldo Fier) (2006) Atos pela cidadania. Disponível em http://www.fonosp.org.br/publicar/arquivos/ imprensa/Atos520pela520cidadania.doc. (Acesso em 29/08/2006)

Hayek, F. A. (1987) O caminho da servidão. (A. M. Capovilla, J. I. Stelle & L. de M. Ribeito). Rio de Janeiro: Expressão e Cultura: Instituto Liberal. (Original publicado em 1944)

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Dez 2006
    • Data do Fascículo
      Ago 2006
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