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Práticas de educação: relato de mães usuárias de um serviço público de saúde

Mother's childrearing practices: maternal perceptions users of the public health service

Prácticas de educación: relato de madres usuarias del servicio público de salud

Resumos

Este estudo investigou as práticas educativas maternas a partir do relato oral de mães de crianças até 12 anos, obtido por meio de entrevistas individuais semi-estruturadas. Objetivou-se identificar as dificuldades enfrentadas na educação dos filhos e as práticas educativas maternas. Os relatos maternos foram submetidos à análise de conteúdo temática categorial, e revelaram que as dificuldades apontadas foram o ciúme e os conflitos relacionados às regras familiares. As práticas educativas maternas observadas foram as estratégias indutivas; de distração; de evitação dos conflitos e as de força coercitiva. Os parâmetros para o uso dessas estratégias foram as influências familiares, as experiências com o primeiro filho e a busca pela melhor maneira de agir. Constatou-se a atribuição de importância a estes parâmetros para a qualificação do cuidado parental, contudo as mães relataram fazer uso de estratégias de força coercitiva, caracterizando situações de violência física e/ou psicológica nas relações com os filhos.

práticas educativas maternas; infância; desenvolvimento infantil


This study investigated mother's parental practices, having as starting point the oral self-report of mothers of children aged up to 12 years old, obtained through semi-structured individual interviews. Its aim was to identify the difficulties faced during the rearing of children, as well as mother's parental practices. Mother's self-reports were submitted to content analysis, considering thematic categories, and revealed that the difficulties pointed out during the rearing of children were jealousy, and conflicts related to family rules. The mother's parental practices observed in this study were inductive strategies, of entertainment, of conflict avoidance and of coercive tone. The parameters regarding the use of those strategies were family influences, experiences concerning the rearing of the first child and effort to find the best way of proceeding. The importance attributed to those parameters related to the qualification of parental care was noted. However, the mothers reported use of strategies of coercive tone, which implies physical and/or psychological violence on their relashionships with child.

Mother's parental practices; childhood; children development


Este estudio investigó las prácticas educativas maternas a partir del relato oral de madres de niños até 12 años, obtenido por medio de entrevistas individuales semiestructuradas. Fue objetivo el identificar las dificultades enfrentadas en la educación de los hijos y las prácticas educativas maternas. Los relatos maternos fueron sometidos al análisis de contenido temática categorial y revelaron que las dificultades señaladas fueron los celos y los conflictos relacionados a las reglas familiares. Las prácticas educativas maternas observadas fueron las estrategias inductivas, de distracción y de evitación de los conflictos y las de fuerza coercitiva. Los parámetros para el uso de esas estrategias fueron las influencias familiares, las experiencias con el primer hijo y la búsqueda por la mejor manera de accionar. Se constató la atribuición de importancia a estos parámetros para la calificación del cuidado parental. Sin embargo, las madres relataron hacer uso de estrategias de fuerza coercitiva, caracterizando situaciones de violencia física y/o psicológica en las relaciones con los hijos.

prácticas educativas maternas; infancia; desarrollo infantil


ARTIGOS

Práticas de educação: relato de mães usuárias de um serviço público de saúde

Mother's childrearing practices: maternal perceptions users of the public health service

Prácticas de educación: relato de madres usuarias del servicio público de salud

Débora Silva de OliveiraI; Michelli Moroni RabuskeII; Dorian Mônica ArpiniIII

IDoutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

IIDoutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina

IIIDoutora. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria/RS

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Débora Silva de Oliveira R. Freitas e Castro, 260, ap. 205 Bairro: Azenha, CEP: 90040-4000 Porto Alegre–RS. E-mail: debora_deoli@yahoo.com.br

RESUMO

Este estudo investigou as práticas educativas maternas a partir do relato oral de mães de crianças até 12 anos, obtido por meio de entrevistas individuais semi-estruturadas. Objetivou-se identificar as dificuldades enfrentadas na educação dos filhos e as práticas educativas maternas. Os relatos maternos foram submetidos à análise de conteúdo temática categorial, e revelaram que as dificuldades apontadas foram o ciúme e os conflitos relacionados às regras familiares. As práticas educativas maternas observadas foram as estratégias indutivas; de distração; de evitação dos conflitos e as de força coercitiva. Os parâmetros para o uso dessas estratégias foram as influências familiares, as experiências com o primeiro filho e a busca pela melhor maneira de agir. Constatou-se a atribuição de importância a estes parâmetros para a qualificação do cuidado parental, contudo as mães relataram fazer uso de estratégias de força coercitiva, caracterizando situações de violência física e/ou psicológica nas relações com os filhos.

Palavras-chave: práticas educativas maternas, infância, desenvolvimento infantil.

ABSTRACT

This study investigated mother's parental practices, having as starting point the oral self-report of mothers of children aged up to 12 years old, obtained through semi-structured individual interviews. Its aim was to identify the difficulties faced during the rearing of children, as well as mother's parental practices. Mother's self-reports were submitted to content analysis, considering thematic categories, and revealed that the difficulties pointed out during the rearing of children were jealousy, and conflicts related to family rules. The mother's parental practices observed in this study were inductive strategies, of entertainment, of conflict avoidance and of coercive tone. The parameters regarding the use of those strategies were family influences, experiences concerning the rearing of the first child and effort to find the best way of proceeding. The importance attributed to those parameters related to the qualification of parental care was noted. However, the mothers reported use of strategies of coercive tone, which implies physical and/or psychological violence on their relashionships with child.

Key words: Mother's parental practices, childhood, children development.

RESUMEN

Este estudio investigó las prácticas educativas maternas a partir del relato oral de madres de niños até 12 años, obtenido por medio de entrevistas individuales semiestructuradas. Fue objetivo el identificar las dificultades enfrentadas en la educación de los hijos y las prácticas educativas maternas. Los relatos maternos fueron sometidos al análisis de contenido temática categorial y revelaron que las dificultades señaladas fueron los celos y los conflictos relacionados a las reglas familiares. Las prácticas educativas maternas observadas fueron las estrategias inductivas, de distracción y de evitación de los conflictos y las de fuerza coercitiva. Los parámetros para el uso de esas estrategias fueron las influencias familiares, las experiencias con el primer hijo y la búsqueda por la mejor manera de accionar. Se constató la atribuición de importancia a estos parámetros para la calificación del cuidado parental. Sin embargo, las madres relataron hacer uso de estrategias de fuerza coercitiva, caracterizando situaciones de violencia física y/o psicológica en las relaciones con los hijos.

Palabras-clave: prácticas educativas maternas; infancia; desarrollo infantil.

O processo de educar um filho envolve valores e crenças dos pais, que por sua vez influenciam suas ações e práticas de socialização, as quais podem ser facilitadoras ou dificultadoras do desenvolvimento infantil (Biasoli-Alves, 1997; Dessen & Junior, 2005). Tendo em vista que a família constitui um sistema complexo e integrado, em que há reciprocidade de influências entre seus membros, estudos sobre crenças e valores familiares têm sido apontados como relevantes para a compreensão das práticas educativas no contexto familiar. Assim, o presente estudo visa contribuir para a discussão sobre o desenvolvimento infantil e sobre as práticas educativas maternas frente às dificuldades na educação com os filhos.

Este artigo utiliza a perspectiva teórica de Hoffman (1975; 1994) para compreender as práticas maternas de educação usadas no processo de socialização da criança. Este modelo associa tipos de práticas educativas ao desenvolvimento infantil e as caracteriza como conjunto de estratégias e técnicas utilizadas pelos pais como forma de orientar os filhos, no sentido de fazer com que estes adquiram certos comportamentos considerados socialmente favoráveis ou adequados (Hoffman, 1975; 1994). Os pais desempenham o papel de agentes de socialização dos filhos utilizando-se dessas estratégias para orientá-los, de modo com que estes se desenvolvam no sentido da independência e de responsabilidades (Alvarenga & Piccinini, 2001).

As práticas educativas podem ser agrupadas em duas categorias: as indutivas e as de força coercitiva (Hoffman, 1975; 1994). As práticas indutivas objetivam disciplinar, indicar e explicar para a criança as conseqüências de seu comportamento, utilizando-se dos aspectos lógicos da situação. Essa estratégia possibilita a compreensão das implicações das ações e justifica a necessidade de mudança de comportamento. A criança torna-se capaz de utilizar a informação e controlar sua própria conduta, desenvolvendo certa autonomia para suas ações e internalizando padrões morais (Hoffman, 1975, 1994; Hart, Ladd & Burleson, 1990). Esta estratégia foi associada ao desenvolvimento de padrões de comportamentos de competência social e de cooperação por parte da criança (Baumrind, 1966; Robinson, Mandleco, Olsen & Hart, 1995).

Por outro lado, as práticas de força coercitiva caracterizam-se pela aplicação direta da força, abarcando tanto o uso de punição física, castigo, privação de privilégios e afeto, quanto à ameaça da realização dessas ações. O uso destas práticas na educação infantil pode gerar medo, ansiedade e raiva, e não oferece possibilidades de que a criança compreenda as implicações de suas ações e os motivos pelos quais os pais não as aceitam. A criança busca controlar seu comportamento em função de intervenções externas pelo medo da punição ou da perda de afeto, o que não favorece a internalização das regras e padrões morais e sociais (Hoffman, 1975, 1994). As estratégias de força coercitiva, por sua vez, foram relacionadas a problemas de comportamento, especialmente aos de externalização (Rothbaum & Weisz, 1994).

O uso da violência, tanto física, quanto psicológica, constitui um fator de risco para o desenvolvimento infantil, sendo alvo de discussões em âmbito social e acadêmico (Sapienza & Pedromônico, 2005). A produção de conhecimento científico em relação a essas práticas educativas contribui para essas discussões, por evidenciar seu uso e suas implicações para o desenvolvimento infantil. Oferece, ainda, subsídios para a elaboração de políticas públicas de prevenção à violência e à promoção do desenvolvimento da criança e da família. Pesquisas brasileiras têm buscado caracterizar as práticas educativas e estilos parentais à medida que apresentaram sua relevância no contexto familiar, propondo a compreensão da ocorrência de problemas de comportamento (Alvarenga & Piccinini, 2001, Oliveira & cols. 2002) e do desenvolvimento de competências psicossociais (Reppold, Pacheco, Bardagi & Hutz, 2002). Além disso, apontaram os fatores de risco ou de proteção em relação ao abuso físico (Cecconello, Antoni & Koller, 2003), a influência do adoecimento crônico na infância em relação aos tipos de práticas educativas utilizadas pelas mães (Piccinini, Castro, Alvarenga & Oliveira, 2003), enfatizaram a moralidade e a socialização (Camino, Camino & Moraes, 2003), bem como contemplaram a perspectiva de crianças e adolescentes sobre o uso de práticas coercitivas pelos pais (Weber, Viezzer & Brandenburg, 2004).

Outras pesquisas buscaram apontar a influência do sistema de crenças parentais sobre o comportamento e as práticas de educação, na medida em que identificaram os determinantes das estratégias parentais. Estes estudos enfocaram as idéias (Bastos, 1991) e as práticas de educação da criança na família (Biasoli-Alves, Caldanha & Silva, 1997), as crenças e práticas como sistema cultural de criação dos filhos e a influência das condições sócio-econômicas e do contexto para essas práticas (Lordelo, Fonseca & Araújo, 2000), bem como o processo de socialização (Bonamigo & Rasche, 1988).

Como contribuição para a temática, encontram-se ainda três dimensões para auxiliar na compreensão da influência das práticas educativas para o desenvolvimento – a reciprocidade, as relações de poder e de afeto na família (Bronfenbrenner, 1996). As inúmeras possibilidades de interação nos diferentes subsistemas familiares são consideradas primordiais para a compreensão do desenvolvimento humano, uma vez que constituem locus de experiências de aprendizado sobre regras, valores e relações de poder (Bronfenbrenner, 1996; Minuchin, 1982). Nesse sentido, as transições no ciclo de vida da família podem constituir eventos estressores que exigem mudanças nas relações familiares, bem como adaptações no processo de desenvolvimento de cada indivíduo. A inclusão e a perda de membros na família, especialmente nascimento e morte, são apontados como alguns dos eventos que implicam mudança no sistema familiar e em cada um de seus subsistemas (Baydar, Hyle & Brooks-Gunn, 1997; Carter & McGoldrick, 2001; Cerveny & Berthoud, 1997; Dessen, 1997; Dunn & Kendrick, 1980; Gottlieb & Mendelson, 1990; Kowaleski-Jones & Dunifon, 2004, Oliveira & Lopes, no prelo). As implicações dessas transições devem ser observadas a partir dos sistemas de valores e crenças do grupo sócio-cultural ao qual a família pertence (Lo Bianco, 1981).

Perspectivas contemporâneas no âmbito da psicologia do desenvolvimento também têm indicado o papel das influências históricas, sociais e culturais sobre o desenvolvimento infantil. O modelo ecológico de nichos de desenvolvimento pressupõe que o desenvolvimento infantil é concebido a partir de três subsistemas que se relacionam dinamicamente (Harkness & Super, 1994; Harkness & cols. 2001). O primeiro é o ambiente físico e social onde vive a criança – tipo de moradia e tipo de organização social da família. O segundo constitui os costumes culturais e historicamente relacionados aos cuidados da criança – noções de infância, formas de educar as crianças e de cuidados básicos; e, por fim, a psicologia dos que cuidam a criança, abarcando crenças e expectativas dos cuidadores.

Tendo em vista que as famílias estabelecem relações de convivência, que o processo de desenvolvimento depende da reciprocidade entre crianças e adultos (Bronfenbrenner, 1996; Oliveira & Bastos, 2000), e que o significado de um comportamento ou de um padrão da prática de criação dos filhos só pode ser compreendido no conjunto de valores em que pais e filhos estão inseridos (Bastos, 1991), o objetivo deste artigo foi o de identificar as dificuldades maternas enfrentadas na educação dos filhos, as estratégias utilizadas e os parâmetros implicados na construção de suas práticas educativas.

MÉTODO

Este estudo qualitativo, de caráter exploratório e de delineamento transversal, foi realizado junto aos usuários de um Centro de Saúde em Santa Maria/RS, que presta atendimento ao Sistema Único de Saúde. Participaram oito mães, que foram convidadas a fazer parte do estudo enquanto aguardavam atendimento pediátrico para os filhos. As participantes tinham entre dezessete e trinta e três anos, renda familiar média de um salário mínimo e meio, e escolaridade relativa ao ensino fundamental incompleto.

Quanto às configurações familiares, as famílias caracterizaram-se como nuclear, recasada e monoparental. Apenas uma das participantes não apresentava relação conjugal, sendo que para cinco delas o companheiro era o pai biológico de todos os filhos e duas delas o pai biológico do filho mais novo desempenhava a função paterna também para os demais. Em metade das famílias a coabitação incluía membros da família extensa, como avós e tios. A composição do subsistema fraterno foi de duas crianças para metade das famílias. Havia uma família com quatro filhos e uma com filho único. Das oito mães, duas estavam no último trimestre de gestação do segundo e do terceiro filho e duas encontravam-se com bebês recém nascidos de até três meses. Os filhos tinham até doze anos de idade, sendo sete meninos e nove meninas, nas faixas etárias de zero a três anos (oito crianças), de quatro a seis (seis crianças) e de sete a doze anos de idade (duas crianças). A não delimitação de uma faixa etária específica das crianças permitiu identificar peculiaridades e generalidades nas práticas educativas.

A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas individuais semi-estruturadas de duração aproximada de 30 minutos, gravadas e transcritas na íntegra, para registro e posterior análise. As entrevistas abarcaram questões sobre as concepções maternas acerca da infância e do desenvolvimento infantil, as dificuldades existentes na relação mãe-filhos, os motivos atribuídos a essas dificuldades, as estratégias maternas para resolução das situações difíceis, os parâmetros e as fontes de auxílio para a educação dos filhos. A análise qualitativa foi realizada de acordo com a metodologia de análise de conteúdo temática categorial (Bardin, 1977; Laville & Dione, 1999). Afora os dados sóciodemográficos coletados, o presente artigo explorou apenas os dados obtidos a respeito das dificuldades existentes na relação mãe-filhos, os parâmetros e as estratégias maternas para a resolução das situações difíceis na educação dos filhos.

No que se refere à interação entre pesquisadoras e participantes, cabe destacar ainda que a entrevistadora seguia os eixos norteadores das entrevistas semi-estruturadas, buscando explorar as respostas das participantes, proporcionando que o curso da entrevista fosse construído pelo viés das próprias entrevistadas. Este aspecto caracteriza a flexibilidade necessária para a obtenção dos dados na realização de pesquisas qualitativas, que pretendam aprofundar o discurso dos entrevistados (Bleger, 1981; Chizzotti, 1998). De acordo com esses autores, o entrevistador deve ter a habilidade de motivar o entrevistado, clareando as questões e evitando a imposição direta da problemática investigada, facilitando assim a interação entrevistador-entrevistado.

RESULTADOS

A análise de conteúdo permitiu evidenciar dois eixos temáticos e quatro categorias definidos e ilustrados por meio de trechos dos relatos das participantes:

1. Dificuldades na educação dos filhos: eixo temático que caracteriza os problemas e situações difíceis encontradas no cotidiano das relações com os filhos, nas relações intra e extrafamiliares relacionadas à educação das crianças e às regras familiares. As categorias que compõe esse eixo temático são: 1.1. Ciúme; 1.2. Conflitos relacionados às regras familiares.

2. Práticas educativas maternas: eixo temático que evidencia os valores e crenças familiares relacionados à educação das crianças, e os comportamentos referidos pelas mães como estratégias para resolução das situações difíceis. As categorias que o compõe são: 2.1. Estratégias utilizadas na educação dos filhos; 2.2 Parâmetros para as práticas educativas.

Dificuldades na educação dos filhos

Ciúme

O ciúme foi identificado como dificuldade na educação infantil. Destacaram-se os relatos das mães de crianças menores de três anos, nos quais foi possível evidenciar comportamentos de ciúme da criança com relação à mãe, no seu contato com outras crianças ou adultos da família. "Este aqui é ciumento, não me deixa chegar perto de outra criança, do pai dele, tem ciúmes da vó, não deixa chegar perto de mim, diz ‘sai, sai, mamãe é minha'" (P., 17 anos – menino/2 anos). O ciúme também foi referido como uma dificuldade na educação das crianças maiores de três anos, sendo avaliado como sentimento negativo por significar revolta e perda, e foi associado às desconfianças sobre a intensidade do amor dos pais por cada filho. Os comportamentos relatados como evidência do ciúme foram rivalidade entre os irmãos, disputas pela atenção dos adultos e exigência por igualdade no cuidado destinado aos filhos. As reclamações das crianças ocorriam quando não se sentiam tratadas igualmente na dimensão afetiva e material.

"Elas tão sempre na disputa, se eu comprar meia bala pra uma, a outra quer exatamente do mesmo tamanho, se possível o mesmo peso. Senão já dá: "tu gosta mais dela, de mim tu não gosta". O ciúme não é um sentimento bom, é um sentimento de revolta, de perca"1 1 No decorrer desse trabalho, as falas maternas serão identificadas pela inicial do nome das mães, seguida da sua idade e do sexo e idade de seus filhos. (J., 29 anos – meninas/ 9 anos e 6 anos).

As mães relataram observar a intensificação dos comportamentos relacionados ao ciúme no período da gestação e do nascimento de um novo filho. Mencionaram ainda que as crianças apresentaram reações, como enurese, manha, choro e pedido de atenção, e maior comportamento de dependência. Estas reações foram nomeadas como recaídas, indicando uma regressão emocional de seus filhos.

"Acho que ela ficou com um pouco de ciúmes. Quando eu fiquei grávida deu uma recaída, voltou a fazer coisas de criancinha, nenê, a fazer xixi na calça, na cama. Ficou manhosa, muito choroninha" (L., 25 anos – menina/4 anos e menino/3 meses).

Conflitos relacionados às regras familiares

Esta categoria inclui comportamentos das crianças que foram avaliados pelas mães como não correspondentes as suas expectativas sobre o que era adequado para as relações pais-filhos, entre irmãos, entre adultos e crianças ou entre pares no contexto intra e extrafamiliar. De acordo com os relatos, as fontes de conflitos relacionadas às regras familiares foram brigas, teimosia, desobediência e mentira. As brigas se caracterizaram por comportamentos de agressão física entre irmãos ou pares, como tapas, empurrões e pegar objetos à força das mãos do outro. Eles brigam por qualquer coisa, se um tem um brinquedo que o outro quer o outro vai lá e pega, daí o outro não quer deixar, aí já começa a brigar (A., 21 anos – menino/3 anos).

As mães das crianças menores de cinco anos relacionaram desobediência e teimosia à falta de paciência das crianças, as quais queriam ter suas vontades satisfeitas imediatamente, e não aceitavam pedidos, orientações e ordens dos adultos. Relataram ainda que as crianças pareceram não ouvir ou não entender o que era ordenado pelos adultos. Ele é bem teimoso, eu tenho enfrentado problemas com isso, querer e querer na hora que ele quer (A., 21 anos - menino, 3 anos). Eles são um pouco teimosos, desobediente. A gente fala e às vezes não entende o que a gente fala (M., 33 anos – menino/5 anos e meninas/4 anos, 2 anos, 10 dias). A teimosia e a desobediência foram consideradas como comportamentos intencionais de rebeldia para chamar a atenção da mãe, para contrariar a vontade dos adultos e testar suas reações diante da oposição aos limites.

"Só pra me chamar a atenção, faz por gosto, não obedece. Eu digo, "não mexe", aí está me ouvindo falar e está teimando (E., 32 anos – menino/9 anos e menina/3 anos). A gente diz "isso aqui é o rádio", "não mexe", mas é meio rebelde, ele vai e mexe" (R., 30 anos – menina/12 anos e menino/11 meses).

Práticas educativas maternas

Estratégias utilizadas na educação das crianças

As estratégias utilizadas na educação das crianças foram agrupadas em quatro subcategorias: estratégias indutivas; estratégias de distração; estratégias de evitação dos conflitos; estratégias de força coercitiva. As mães relataram que essas estratégias foram combinadas e utilizadas concomitantemente.

As estratégias indutivas incluíram explicações oferecidas às crianças sobre as conseqüências de seus comportamentos e os motivos das ordens dos adultos. Estas estratégias podem ser caracterizadas por uma descrição por parte da mãe das implicações do comportamento da criança, bem como por uma explicação com o objetivo de tranqüilizá-la. Eles pegam a faca pra brincar, digo que a faca não porque com a faca eles se cortam (N., 19 anos – menina/4 anos e menino/ 1 ano e 7 meses). As explicações baseadas na desejabilidade social e no respeito à autoridade parental também podem ser caracterizadas como estratégias indutivas.

"Eu converso, filha, não, tem que ser assim, não pode fazer isso", falo as coisas pra ela, se ela faz alguma coisa que é feia. Ele que já entende mais, digo que não deveria fazer, deveria obedecer quando vou falar, porque se estou falando não é pro mal dele (E., 32 anos – menino/9 anos e menina/3 anos). A gente tenta conversar com ele, explicar que não é assim, que não é o que ele quer, mas o que a gente quer ensinar" (A., 21 anos – menino/3 anos).

As estratégias de distração são definidas a partir dos comportamentos maternos que objetivaram controlar a atenção da criança, direcionando-a para outros estímulos. As mães de crianças menores de três anos utilizaram este tipo de estratégia frente à teimosia e à desobediência dos filhos.

"Ele faz tudo ao contrário do que eu mando (...) mas daí a gente diverte com outra coisa (...) daí eu vou acalmando, dou outra coisa pra ele brincar, vou falando que é caca, que faz mal, eu digo que vou levar ele pra passear (...) Sempre que eu não posso dar alguma coisa que ele pede, eu tenho que dar qualquer outra coisa que eu posso dar" (P., 17 anos – menino/2 anos).

É necessário destacar, a partir dos relatos, o uso concomitante da estratégia de distração e da descrição das implicações do comportamento da criança, recurso típico da estratégia indutiva.

As estratégias de evitação do conflito são definidas por privar ou proibir a criança de participar de situações nas quais anteriormente ocorreram problemas. As mães relataram evitar que as crianças brincassem com quem haviam brigado e intervir retirando brinquedos em situações de disputa entre as crianças.

"A gente leva ele lá [na casa do primo] aí qualquer coisinha estão brigando, pede pra ir e digo que não, que vai lá pra brigar e que não é pra ir (A., 21 anos – menino/3 anos). Os outros têm que brincar com as coisas que ela quer brinque (...) aí dá umas confusão, por isso que não deixo ela brincar muito com outras crianças (L., 25 anos – menina/4 anos e menino/3 meses). Elas brigam porque uma está com uma boneca e a outra quer (...) aí chega um ponto que o que eu tenho que fazer é tirar" (J., 29 anos- meninas/9 anos e 6 anos).

As estratégias de força coercitiva são definidas pelo uso de punição física e por ameaças verbais, como assustar ou amedrontar a criança. Ela sempre quer ir com as outras crianças e a gente diz que não e ela quer porque quer. Daí a gente mente que vão roubar ela, daí ela não quer mais saber de bagunçar (N., 19 anos – menina/4 anos e menino/1 ano e 7 meses). O uso da punição física foi caracterizado como necessário para educar. Eu só dou laço quando precisa, quando não precisa, eu não dou tem que dá de vez em quando até para educar! (N., 19 anos – menina/4 anos e menino/ 1 ano e 7 meses). A punição também foi relatada como recurso utilizado depois das ameaças, sendo considerado uma forma de acalmar a criança.

"Eu para dar neles só se eu for avisando, falando, botar de castigo até nem boto, de vez em quando dou uns tapa nele, porque parece que quando dou umas cintadas, parece que ele muda, fica calmo, melhora" (E., 32 anos – menino/9 anos e menina/3 anos).

As mães relataram ainda o uso desta estratégia em situações nas quais julgaram ter perdido o autocontrole. Eu não gosto de bater, eu bato, mas em último caso, naquela hora que não tem, que eu perco o controle (J., 29 anos – meninas/ 9 anos e 6 anos). A utilização de estratégias de força coercitiva caracterizou comportamentos maternos de violência física e psicológica em relação às crianças. Além disso, foi observado ambivalência nos relatos das mães quanto ao uso de estratégias indutivas (explicar) e coercitivas (bater). Se, por um lado, houve a consciência de que estas eram utilizadas na prática, por outro, aquelas seriam as mais adequadas para o cuidado e carinho.

"Só na base do grito não adianta, é melhor explicar o que é certo e o que é errado, dá carinho. Mas também quando tem que apanhar tem que apanhar, quando tão gritão, brabo, desobediente, fala não adianta, tu te obriga a dar uns tapinhas" (M., 33 anos- menino/5 anos, meninas/4 anos, 2 anos, 10 dias).

Parâmetros para as práticas educativas

Os relatados das mães evidenciaram que os parâmetros para suas práticas educativas foram os padrões familiares – educação recebida dos próprios pais; experiências prévias na educação de cada um dos filhos; e reflexão sobre a melhor forma de agir diante das dificuldades no cotidiano com os filhos.

Um dos fatores que serviu como parâmetro para as práticas educativas foi a educação recebida dos pais. Minha mãe sempre criou a gente assim, de ter liberdade, mas não ultrapassar a barreira, um respeitar o outro (J., 29 anos – meninas/9anos e 6 anos). O pai, a mãe, sempre procurou dizer o que era certo, errado, o que a gente podia fazer, até o limite que a gente podia ir. Então ela sabe, xingo, ela chora, mas não é de responder (R., 30 anos, menina/12 anos e menino/11 meses). Contudo, mesmo que a própria educação tenha sido utilizada como referência, as mães avaliaram ter dificuldades em fazer com os filhos o que não aprenderam com ou não receberam de seus pais. O carinho manifestado por meio de contato corporal não caracterizou as relações dessas mães com seus pais, e relacionaram esse fato à dificuldade de dar carinho aos filhos. A gente foi criada não tinha esses carinhos. Talvez seja por isso que eu nunca tive, não dou. Eu penso que falta um pouco de carinho da minha parte (E., 32 anos – menino/9 anos e menina/3 anos).

Outro aspecto utilizado como parâmetro para as práticas educativas maternas foi a experiência com os demais filhos. As mães decidiram continuar fazendo da mesma maneira por avaliarem ser a forma mais adequada, ou ainda encontraram estratégias diferenciadas, por identificarem falhas em suas ações. Dela eu tive que trabalhar, ficou em creche, então não acompanhei direito o crescimento dela. E dele, vou ficar mais (R., 30 anos – menina/12 anos e menino/11 meses). A experiência com o primeiro filho possibilitou a busca por estratégias mais eficazes, inclusive em relação a rever o uso de práticas coercitivas e a respeitar o ritmo da criança no processo de desenvolvimento.

"A gente não tem paciência pra ensinar os filhos, quer que eles aprendam tudo correndo. E não é assim, tudo tem seu tempo. Então eu não gosto de bater, que eu me sinto provalecida, covarde, uma única vez que me excedi. Mas agora eu tenho paciência, eu acho que não vou cometer o mesmo erro" (J., 29 anos – meninas/9anos e 6 anos).

Por fim, os relatos maternos também indicaram que preocupação e dúvida sobre qual a melhor forma de agir com os filhos influenciaram as práticas de educação. Eu acho que a gente que é mãe tem que procurar sempre o melhor. Eu faço assim, não sei se está certo, a gente procura ajudar, entender mais eles. Porque a gente também já foi criança (M., 33 anos - menino/5 anos, meninas/4 anos, 2 anos, 10 dias). A gente não tem certeza de nada, porque a gente está fazendo uma coisa, como também amanhã pode ser que não dê certo (A., 21 anos, menino/ 3 anos). As mães também mencionaram ter preocupação quanto a apresentar o mundo à criança como ele realmente é, e pareceram considerar esse valor como parâmetro para suas práticas educativas.

"O que elas quiserem olhar elas olham [programas de TV], não sei se é certo, se é errado, mas eu acho que não tem que está escondendo o mundo, acho que eles têm que ir aprendendo que não adianta a gente querer ficar criando um mundo cor-de-rosa" (J., 29 anos – meninas/9anos e 6 anos).

DISCUSSÃO

No que se refere às dificuldades na educação dos filhos, as mães destacaram as brigas e situações que envolveram disputas entre irmãos pela atenção dos pais e por igualdade de tratamento. De acordo com os relatos, tais situações exigiram da mãe uma reflexão sobre a melhor maneira de agir, de forma a demonstrar-se sensível às necessidades afetivas de cada filho, dividindo-se para atender a todos adequadamente. Este achado aponta para o fato de que a mulher ainda toma para si a maioria dos encargos de cuidados dos filhos (Biasoli-Alves, 2000; Biasoli-Alves e cols. 1997).

As mães apontaram ainda que comportamentos como ciúme, teimosia e desobediência foram considerados os mais difíceis de lidar na relação com seus filhos. Este dado foi semelhante aos achados de Graminha e Martins (1994), que investigando a problemática que havia motivado os pais a procurarem atendimento psicológico para os filhos, verificaram, entre outros, a incidência de comportamentos como rebeldia e desobediência, irritabilidade e nervosismo da criança. Da mesma forma, Bonin (1987) apontou que as principais dificuldades ou problemas relatados pelas mães nas relações com seus filhos seriam a preocupação com a desobediência e a teimosia das crianças, bem como a falta de tempo para dar e dividir a atenção.

Ainda sobre teimosia e desobediência, pode-se apontar que as mães deste estudo acreditaram que a criança queria confrontar a autoridade parental quando fazia tudo ao contrário do que a mãe dizia. A contestação foi encarada como algo que a criança fazia propositadamente para provocar, chamar a atenção da mãe e testar sua reação. As mães pareceram esperar que a criança, desde cedo, apresentasse noções de limites e regras bastante claros. Assim, os discursos maternos sugeriram uma compreensão idealizada da capacidade que crianças muito pequenas teriam para adaptar-se às regras e seguí-las adequadamente.

Em relação ao ciúme, pôde-se observar que este sentimento foi percebido pelas mães como evidência da rivalidade entre os irmãos, da disputa pela atenção dos adultos e da exigência por igualdade no cuidado destinado aos filhos (Dunn & Kendrick, 1986). Embora o ciúme possa se constituir uma experiência normal e até diária entre os irmãos (Volling, McElwain & Miller, 2002), as mães o avaliaram como negativo por significar revolta e perda, e por estar associado às desconfianças sobre a intensidade do amor dos pais por cada filho. Em situação de ciúme, os indivíduos expressam uma gama de emoções, incluindo raiva, ansiedade e tristeza (Miller, Volling & McElwain, 2000). Estas manifestações diferem conforme a idade, sendo que crianças pré-escolares parecem utilizar-se de habilidades verbais mais desenvolvidas para distrair os pais (Miller & cols. 2000), enquanto crianças menores parecem reagir com raiva, expressando seus sentimentos de maneira não-verbal (Volling & cols. 2002). Os achados do presente estudo corroboram com estas pesquisas, na medida em que também foi observado a partir dos relatos das mães que as manifestações de ciúmes estavam relacionadas à rivalidade fraterna (Miller & cols. 2000) e às disputas pela atenção dos adultos (Dunn & Kendrick, 1986). Embora o ciúme seja manifestado de maneira diferente conforme a faixa etária ocorre independentemente da idade da criança (Volling & cols. 2002).

Outro aspecto importante a ser considerado diz respeito ao contexto de gestação e ao nascimento de irmãos. Houve mães grávidas e com bebês recém nascidos, este dado constituiu fator relevante para a incidência do ciúme como comportamento difícil de lidar no cotidiano com a criança. De fato, a chegada de um irmão é apontada como evento marcante do ciclo de vida familiar, uma vez que consiste em um dos pontos de transição que afeta mutuamente os diferentes subsistemas familiares (Baydar & cols.1997; Brazelton, 2002; Dessen, 1994, 1997; Dessen & Mettel, 1984; Dunn & Kendrick, 1980; Gottlieb & Mendelson, 1990; Oliveira & Lopes, no prelo). As alterações decorrentes desse período estão associadas às mudanças mais amplas nas relações familiares, envolvendo modificações estruturais nas circunstâncias sociais e econômicas, nas tarefas e papéis desempenhados pelos membros da família, no número de participantes dessa, entre outros aspectos (Kowaleski-Jones & Dunifon, 2004; Kreppner, Paulsen & Schuetze, 1982; Minuchin, 1982).

No que se refere às práticas de educação, as mães mencionaram práticas indutivas, de distração, de evitação do conflito e de força coercitiva. As explicações oferecidas às crianças sobre as conseqüências de seus comportamentos e os motivos das ordens maternas caracterizaram as práticas indutivas. De acordo com Bonamigo e Rasche (1988), o bom relacionamento afetivo entre criança e seus pais, caracterizado por relações prazerosas no convívio, por disponibilidade mútua, e por respeito aos direitos de ambas as partes, é apontado como indispensável para que o processo de socialização da criança, uma vez que propicia o desenvolvimento da personalidade.

A estratégia de evitação do conflito utilizada pelas mães, por um lado, teve como objetivo proteger a criança de situações de briga com irmãos ou pares, e com a própria mãe, por outro evitou que a criança tivesse contatos sociais com outras crianças ou familiares. Contudo, esta ultima estratégia pode privar a criança experienciar relacionamentos entre pares, uma vez que não enfrenta as situações de conflito. As relações com pai, mãe, tio, avós, cuidadores, amigos, entre outros, contribuem para o desenvolvimento emocional e comportamental e para o processo de aquisição da autonomia (Brazelton, 2002) e da socialização da criança (Bonamigo & Rasche, 1988).

É possível afirmar, a partir dos relatos maternos, o uso de práticas educativas de força coercitiva com os filhos. As mães revelaram o uso da punição física e ameaças verbais, assustar e amedrontar a criança por meio de mentiras, como recursos para a resolução de dificuldades no cotidiano com os filhos. O uso dessas estratégias envolvendo punição física foi apontado como recorrente e necessário, consistindo em ponto final de um processo gradual, do conversar e explicar ao bater. Da mesma forma, pesquisas também apontaram que na maioria dos casos os pais utilizam-se deste recurso em suas práticas disciplinares, sobretudo quando avaliam que outros métodos como esclarecimentos e conselhos, não funcionam (Biasoli-Alves, 2000; Bonamigo & Rasche, 1988; Bonin, 1987; Weber & cols. 2004). Estes estudos também indicaram que o uso da força física foi considerado pelos cuidadores como uma forma eficaz de garantir a autoridade e o controle dos adultos sobre as crianças.

Houve ainda mães que sugeriram ambivalência na decisão quanto a utilizar a punição física. É relevante a atribuição do significado ao seu uso como forma de garantir as diferenças hierárquicas entre adultos e crianças na família. Contudo, essas diferenças podem e devem ser garantidas sem o uso da violência física ou psicológica. Em relação a ameaçar e amedrontar, que foram comportamentos maternos que evidenciaram o uso de violência psicológica, não houve menção por parte das mães às implicações negativas dessas estratégias para o desenvolvimento da criança.

Os fatores que servem como parâmetros para as práticas educativas maternas foram, principalmente, a educação recebida de seus pais; a experiência com o primeiro filho e a busca pela melhor forma de agir. No que se refere às influências intergeracionais, as mães buscaram as referências do cuidado que receberam como parâmetros para suas práticas educativas. Este dado corrobora pesquisas que também apontaram que os valores que os mais velhos cultivaram e buscaram transmitir ainda estavam presentes nas práticas de educação, uma vez que as mães faziam o movimento de buscar o apoio emocional e instrumental de sua própria mãe e/ou avó (Araújo & Dias, 2002; Biasoli-Alves, 2000; Harkness & cols. 2001; Oliveira; 1998).

A busca da própria família como referência para suas práticas de cuidado não ocorreu somente no sentido de fazer da mesma forma, mas também funcionou como parâmetro para contestação de vários aspectos do sistema simbólico das gerações anteriores (Biasoli-Alves & cols. 1997). De acordo com Benincá e Gomes (1998), os pais parecem viver numa fase de transição, refletem sobre o que não devem fazer e consideram o "conhecimento vivencial" em suas práticas de cuidado. As mães do presente estudo refletiram sobre suas formas de cuidado e apresentaram preocupação em acertar, buscando a melhor forma de agir com os filhos. Foi percebido também que as mães sentiram-se responsáveis pelo desenvolvimento da moralidade da criança e pelo ensinamento do certo e do errado. Além disso, foi notado que as mães utilizaram concomitantemente os saberes familiares e científicos na educação e no cuidado de seus filhos, corroborando os achados de Oliveira, Siqueira e Alvarenga (2000).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados do presente estudo indicaram que as práticas educativas maternas foram influenciadas e norteadas pelo contexto cultural e pelas influências dos padrões familiares, valores e crenças dos pais. Ainda foram associadas à avaliação das vivências cotidianas com o objetivo de qualificar o cuidado destinado aos filhos. Os dados também apontaram o uso de práticas coercitivas por mães que participaram dessa pesquisa. A naturalização do uso desse tipo de prática evidencia a ocorrência de violência física e psicológica contra a criança no contexto familiar. As mães atribuíram como significado para o uso dessas práticas a necessidade de educar. As implicações do uso da punição física para o desenvolvimento infantil não foram relatadas, embora as mães tenham manifestado sentimento de culpa e mal-estar por terem batido em seus filhos.

As práticas que caracterizam a violência psicológica não foram mencionadas como prejudiciais, tal fato demonstra a necessidade de maior divulgação do conhecimento científico produzido a esse respito e da criação de espaços de discussão e reflexão sobre práticas educativas familiares nos diversos contextos sociais, como comunidades, escolas, creches, unidades de saúde e hospitais, entre outros. Nesse sentido, faz-se importante no contexto de trabalho em saúde mental e em ações de intervenção identificar quais os parâmetros dos pais para a educação dos filhos.

Torna-se, portanto, necessário conhecer a maneira como os pais interpretam as intenções e sentimentos das crianças, bem como sua compreensão sobre o desenvolvimento infantil e sobre os relacionamentos familiares, uma vez que são as crenças e os valores acerca dessas questões que influenciarão as ações e práticas parentais. Estudos acerca dessa temática podem auxiliar psicólogos e demais profissionais de saúde na construção de propostas de intervenção e de caráter preventivo em relação à violência contra a criança. Refletir sobre padrões familiares e sócio-culturais relacionados às práticas educativas e disponibilizar informações sobre as implicações dessas práticas para o desenvolvimento auxilia os cuidadores na promoção do desenvolvimento físico, cognitivo, psicológico e social das crianças. Além disso, auxilia-os na compreensão dos aspectos envolvidos nas diversas fases do ciclo vital da família, bem como as relações intergeracionais. Por fim, é importante assinalar que o presente estudo foi realizado com mães de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, de um grupo social específico. Por isso, devem-se considerar as particularidades da amostra, pois os resultados não pretendem, de forma alguma, ser conclusivos ou passíveis de generalização.

Recebido em 14/12/2005

Aceito em 27/04/2006

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  • Endereço para correspondência:

    Débora Silva de Oliveira
    R. Freitas e Castro, 260, ap. 205
    Bairro: Azenha, CEP: 90040-4000
    Porto Alegre–RS.
    E-mail:
  • 1
    No decorrer desse trabalho, as falas maternas serão identificadas pela inicial do nome das mães, seguida da sua idade e do sexo e idade de seus filhos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Ago 2007

    Histórico

    • Aceito
      27 Abr 2006
    • Recebido
      14 Dez 2005
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