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Redefinindo o significado da atividade profissional para as mulheres: o caso das pequenas empresárias

Redefinindo la actividad profesional: el caso de las pequeñas empresarias

Women who run small enterprises: redifining the importance of professional activity

Resumos

Este artigo apresenta parte dos resultados de um estudo que investigou como pequenas empresárias do Estado do Rio de Janeiro percebem a atividade profissional, a maternidade e a conciliação trabalho-família. Nossos resultados apontam para o fato de que, se antes a maternidade definia a vida da mulher, agora, apesar de ser vista como essencial para a completa realização da mulher, ela parece já não ser suficiente para sua plena satisfação pessoal. Desenvolver uma atividade profissional é, para elas, não apenas fonte de sustento, mas, em especial, algo extremamente importante em suas vidas, e que se fez presente, inclusive, nos projetos e planos por elas traçados. Assim, estas duas esferas de atuação, a família e o trabalho, que, num primeiro momento, parecem mutuamente excludentes, acabam por ser vividas e assumidas concomitantemente no cotidiano, o que traz conseqüências importantes para a vida da mulher atual.

mulher; pequenas empresárias; atividade profissional


Este texto presenta parte de los resultados de un estudio sobre como pequeñas empresarias de Rio de Janeiro perciben la actividad profesional, la maternidad y la conciliación entre casa y trabajo, entre otras cosas. Los resultados evidenciaron que, aunque la maternidad otrora definía la vida de una mujer, hoy ella ya no parece suficiente para su satisfacción personal. Para estas empresarias, desarrollar una actividad profesional constituye, no apenas fuente de sustento, sino, principalmente, algo de extrema importancia en sus vidas, algo que siempre estuvo presente, incluso, en sus proyectos y planos de vida. No obstante, la maternidad sigue siendo vista por ellas como esencial para la completa realización de una mujer. Así, estas dos esferas de acción, que, en un primer momento parecen mutuamente excluyentes, resultan por ser vividas y asumidas concomitantemente en lo cotidiano, algo que trae consecuencias importantes para la vida de la mujer de hoy.

mujer; pequeñas empresarias; actividad professional


This article presents part of the results of a study that investigated how small entrepreneurs from Rio de Janeiro see professional activity, motherhood, and the conciliation of work and family, among other things. Ours results point to the fact that, although maternity used to define the life of a woman, nowadays it does not seem sufficient for their personal satisfaction. For these entrepreneurs, the development of a professional activity, despite bringing them financial support, is mainly a fundamental part of their lives, something that was always present in life projects and plans. Despite that, maternity continues to be seen as essential for the full realization of a woman. Thus, these two spheres of action, house and work, which, at a first glance, seem mutually excluding, end up by being lived and adopted concomitantly in daily life, something that brings important consequences for the life of women nowadays.

Women; small entrepreneurs; professional activity


DOSSIÊ- PSICOLOGIA E TRABALHO

Redefinindo o significado da atividade profissional para as mulheres: o caso das pequenas empresárias

Women who run small enterprises: redifining the importance of professional activity

Redefinindo la actividad profesional: el caso de las pequeñas empresarias

Beatriz Lucas LosadaI; Maria Lúcia Rocha-CoutinhoII

IMestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

IIDoutora em Psicologia, Professora Associada, Programa EICOS/UFRJ. Professora Titular na Universidade Salgado de Oliveira

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Maria Lúcia Rocha-Coutinho. Rua Engenheiro Cortes Sigaud, 187, apt. 401, Leblon, CEP 22450-150, Rio de Janeiro-RJ. E-mail: mlrochac@imagelink.com.br

RESUMO

Este artigo apresenta parte dos resultados de um estudo que investigou como pequenas empresárias do Estado do Rio de Janeiro percebem a atividade profissional, a maternidade e a conciliação trabalho-família. Nossos resultados apontam para o fato de que, se antes a maternidade definia a vida da mulher, agora, apesar de ser vista como essencial para a completa realização da mulher, ela parece já não ser suficiente para sua plena satisfação pessoal. Desenvolver uma atividade profissional é, para elas, não apenas fonte de sustento, mas, em especial, algo extremamente importante em suas vidas, e que se fez presente, inclusive, nos projetos e planos por elas traçados. Assim, estas duas esferas de atuação, a família e o trabalho, que, num primeiro momento, parecem mutuamente excludentes, acabam por ser vividas e assumidas concomitantemente no cotidiano, o que traz conseqüências importantes para a vida da mulher atual.

Palavras-chave: mulher, pequenas empresárias, atividade profissional.

ABSTRACT

This article presents part of the results of a study that investigated how small entrepreneurs from Rio de Janeiro see professional activity, motherhood, and the conciliation of work and family, among other things. Ours results point to the fact that, although maternity used to define the life of a woman, nowadays it does not seem sufficient for their personal satisfaction. For these entrepreneurs, the development of a professional activity, despite bringing them financial support, is mainly a fundamental part of their lives, something that was always present in life projects and plans. Despite that, maternity continues to be seen as essential for the full realization of a woman. Thus, these two spheres of action, house and work, which, at a first glance, seem mutually excluding, end up by being lived and adopted concomitantly in daily life, something that brings important consequences for the life of women nowadays.

Key words: Women, small entrepreneurs, professional activity

RESUMEN

Este texto presenta parte de los resultados de un estudio sobre como pequeñas empresarias de Rio de Janeiro perciben la actividad profesional, la maternidad y la conciliación entre casa y trabajo, entre otras cosas. Los resultados evidenciaron que, aunque la maternidad otrora definía la vida de una mujer, hoy ella ya no parece suficiente para su satisfacción personal. Para estas empresarias, desarrollar una actividad profesional constituye, no apenas fuente de sustento, sino, principalmente, algo de extrema importancia en sus vidas, algo que siempre estuvo presente, incluso, en sus proyectos y planos de vida. No obstante, la maternidad sigue siendo vista por ellas como esencial para la completa realización de una mujer. Así, estas dos esferas de acción, que, en un primer momento parecen mutuamente excluyentes, resultan por ser vividas y asumidas concomitantemente en lo cotidiano, algo que trae consecuencias importantes para la vida de la mujer de hoy.

Palabras-clave: mujer, pequeñas empresarias, actividad professional.

Nas últimas décadas houve uma grande transformação no papel e na posição das mulheres brasileiras, especialmente nas das camadas médias da população. Desde os anos de 1970, é possível detectar, em nossa sociedade, um aumento da participação de mulheres de nível socioeconômico elevado no mercado de trabalho (Bruschini, 2000). O crescente empobrecimento das camadas médias, aliado ao aumento das despesas com educação dos filhos, saúde e outras necessidades consideradas básicas, impulsionou, especialmente nos anos de 1980, as mulheres casadas a buscar um trabalho fora de casa.

Segundo o PNAD, a taxa de participação das mulheres casadas no mercado de trabalho remunerado passou de 27,4 para 37,7% de 1981 a 1990, e dados do IBGE (Leoni, 1999) apontam que o aumento dessa participação foi maior no caso das mulheres com bom nível de escolarização e provenientes de famílias com um nível de renda não muito baixo.

Os anos de 1990 são marcados por uma continuidade da participação feminina no mundo do trabalho remunerado, desta vez acompanhada de um período de recuperação econômica do país. Como assinala Sorj (2005, p. 79), "ao que tudo indica, o fenômeno da entrada das mulheres no mercado de trabalho é irreversível. Independente de conjunturas recessivas ou expansivas, a participação feminina no mercado de trabalho vem crescendo".

Pode-se dizer que uma marca deste período foi a reestruturação produtiva, que se caracterizou por uma forte queda dos empregos formais na indústria de transformação e na construção civil – redutos masculinos – e o incremento da economia informal. Na época, foram criadas também pequenas empresas direcionadas, em grande parte, para a prestação de serviços, apoio administrativo e comércio de mercadorias. Essas pequenas empresas, em sua maioria, são de propriedade e administração de mulheres (Leoni, 1999).

Neste artigo, apresentamos parte dos resultados de um estudo que desenvolvemos com o objetivo de investigar como as mulheres que seguiram essa tendência de criação de pequenas empresas e se lançaram no mercado de trabalho administrando seu próprio negócio vêem sua atividade profissional, que importância atribuem à família e à maternidade, como conseguem – se é que conseguem – dar conta da histórica dicotomia que as mulheres trabalhadoras têm tido que enfrentar entre a família e o trabalho, esferas de atuação que envolvem discursos distintos e contraditórios, e como percebem sua vida de empresárias, inclusive as dificuldades enfrentadas para lidar com os assuntos burocráticos e administrativos envolvidos na gestão de um negócio próprio. Vamos nos referir aqui apenas aos dados relativos ao primeiro aspecto mencionado acima, ou seja, ao papel e à importância da atividade profissional para as pequenas empresárias por nós estudadas.

NOSSO ESTUDO

Em nossa pesquisa de campo, fizemos uso de histórias de vida de seis mulheres de 34 a 51 anos (com os nomes fictícios de Ana, Sílvia, Karen, Renata, Sara e Ângela), residentes no Estado do Rio de Janeiro, donas de microempreendimentos comerciais1 1 De acordo com o SEBRAE/RJ (2000), considera-se micro-empresa aquela com até dez empregados na indústria e até nove no comércio e no setor de serviços. , pertencentes à classe média e com pelo menos um filho. Apesar de todas serem casadas, este dado não foi considerado relevante para a escolha das mulheres, pois acreditamos que é a existência de filhos que mais põe em evidência "a dupla jornada de trabalho" da mulher e o conflito decorrente da conciliação de casa e trabalho.

As histórias de vida dividiram-se em quatro grandes temas, dos quais fizeram parte também outros assuntos afins, que buscaram responder às questões propostas: o significado da atividade profissional para essas empresárias; sua atuação na família e a importância por elas atribuída à maternidade; como se dá a conciliação trabalho-família; e sua atuação e dificuldades enfrentadas como empresárias.

Tivemos sempre em mente o fato de que nossa proximidade ao grupo – mesma classe social, sexo e escolaridade – poderia, de alguma forma, escamotear pontos importantes não vislumbrados no planejamento inicial da pesquisa. No entanto, como utilizamos histórias de vida, a leitura cuidadosa dos relatos das entrevistadas foi tornando seu universo mais claro e as especificidades contidas em suas falas foram aflorando.

Ouvir o que elas tinham a dizer sem direcionamento de nossa parte, apenas aprofundando, quando necessário, os assuntos mais diretamente ligados ao tema, fez emergir informações que, embora relevantes para os integrantes do grupo estudado, poderiam ter passado despercebidas para o investigador. Isto é, apesar de termos em mente as questões importantes para nossa investigação, o uso de histórias de vida, que têm uma configuração aberta e se assemelham a conversas, permitiu que a entrevistadora tirasse dúvidas, retomasse questões ditas para maiores esclarecimentos, ou até que abordasse pontos não previstos originalmente (ver, a esse respeito, Rocha-Coutinho, 1998b).

Foi uma tentativa de olhar para o que parecia familiar de forma mais aberta e crítica o que norteou nosso trabalho. Mesmo quando estamos acostumados com uma paisagem social e a disposição dos atores nos parece familiar, como aponta Velho (em Preuss, 1995), isto não implica que a lógica de suas relações seja por nós inteiramente compreendida. Há que investigar, assim, os princípios e mecanismos que organizam essa estrutura social.

As histórias de vida foram analisadas segundo categorias estabelecidas a partir da leitura cuidadosa dos textos resultantes da transcrição das entrevistas que ofereceram, em conjunto com a revisão da literatura sobre o tema, a definição dos pontos que mais se mostraram esclarecedores das nossas questões centrais. Foram as seguintes as categorias de análise: Significado da atividade profissional; Atuação na família e importância da maternidade; Conciliação família-trabalho; e Vida de empresárias. Neste artigo, vamos nos referir apenas aos dados relativos à categoria Significado da atividade profissional.

A perspectiva por nós utilizada para dar conta dos dados verbais foi a análise do discurso, em que se acredita que costumes, modos de ser e de fazer são construídos discursivamente, constituindo identidades e subjetividades. Foi com a postura de um analista do discurso que nos propusemos lidar não só com a coleta dos dados, mas também com os textos resultantes da transcrição integral das falas dessas mulheres.

Acreditamos na coexistência de pelo menos dois discursos ideológicos hegemônicos permeando a vida das mulheres na atualidade. Um, tradicional, que as situa na posição de donas de casa e as vê como as principais responsáveis pelo cuidado dos filhos e da família; e o outro, mais atual, que declara que a elas não só é permitido, mas é também essencial, inclusive para seu bem-estar interior e sua independência, o exercício de uma atividade profissional remunerada (ver, a esse respeito, Rocha-Coutinho, 2003).

Nosso interesse foi investigar como esses dois discursos foram incorporados, percebidos e ressignificados pelas mulheres entrevistadas e, por conseguinte, pelo grupo específico do qual elas são parte. Isto é possível porque, como aponta Rocha-Coutinho (1998a, p. 324),

A linguagem é constitutiva da própria realidade, ela reflete, reforça e constitui modos de organizar e interpretar a realidade. Os falantes inscrevem em suas falas, suas ideologias e interesses. A cultura, assim, "fala por si mesma", através da fala individual.

Compreendemos o discurso, então, como produtor e produto da sociedade. Lidar com o discurso como prática social é admitir que ele está integrado no contexto sócio-histórico do qual faz parte e que tem um caráter tanto mantenedor quanto transformador das representações sociais e culturais que se têm, das identidades e das relações que se definem em uma determinada sociedade (Pinto, 1999). Um dos aspectos interessantes desta abordagem é justamente permitir que se olhe para o texto produzido não apenas como reprodutor dos discursos hegemônicos, mas também como possuidor de um caráter transformador, produtor de novos discursos.

Neste caso, pudemos perceber que, além daquilo que é esperado – por ser este um grupo social definido, do qual se tem uma representação discursiva e que está ideologicamente imbricado na perspectiva do pesquisador –, muito de novo pode surgir no decorrer da análise. Ao estarmos atentas a todas as nuanças do discurso – do conteúdo do que é dito, à forma empregada e à sua função –, tivemos muitas surpresas e pudemos perceber coisas que a um olhar menos atento poderiam passar despercebidas. Assim, lidamos com o texto – material lingüístico resultante da transcrição integral das histórias de vida – não como um mero veículo das informações e significados nele contidos, mas como inseridos e em relação com os discursos dominantes em nossa época e contexto histórico-social.

Quando uma pessoa fala, ela está representando sua classe social, seu momento histórico, sua etnia, seu sexo, entre outras coisas. Não há como fazer uma separação entre esses níveis. Desse modo, a fala pessoal pode nos revelar muito do contexto histórico-social no qual se está inserido. Assim, podemos, de certa forma, a partir dos discursos de nossas entrevistadas,"construir" uma definição do que é ser uma mulher empresária, com filhos, se entendermos a constituição desses discursos como histórica e socialmente localizada.

Nesse sentido, esta pesquisa se baseia na história de vida de seis mulheres, mas tem como pano de fundo a história de mulheres brasileiras de classe média, com a qual muitas vezes se entrelaça. Trata-se de seis empresárias casadas e com filhos, cujos relatos nos fazem relembrar o percurso histórico das mulheres dos séculos XIX e XX aos dias atuais.

Escrever sobre a história de mulheres significa, muitas vezes, retomar aspectos já incansavelmente estudados, comparados e analisados por diversos autores. É importante salientar, contudo, que voltar a essa história é uma forma de não nos esquecermos do que se conquistou, do que há para ser conquistado, e de chamar a atenção para antigos costumes e ideologias que, mesmo com nova roupagem e configuração distinta, ainda permanecem.

Sempre se acrescenta algo a uma história que se foi reescrevendo diariamente. A cada vez que se conta essa história, existe a certeza de que algo é adicionado. É de diferentes mulheres que estamos falando; são vários os pontos de vista que evocam suas vidas e, mais ainda, são as vidas muitas vezes reunidas numa só vida que tornam o resgate desse passado recente tão fecundo e diverso de qualquer outro. É com essa perspectiva que empreendemos nosso estudo.

RESULTADOS: O SIGNIFICADO DA ATIVIDADE PROFISSIONAL

A trajetória das mulheres empresárias por nós entrevistadas está marcada por outras expectativas, outros desejos, além do antigo desejo de ter sua própria família. Para Ana, o trabalho apareceu em primeiro lugar, independente, inclusive, de uma necessidade econômica: "eu comecei a trabalhar muito cedo. Comecei a trabalhar com dezesseis anos", diz.

Ter uma profissão não aparece na fala das entrevistadas como mais uma opção de vida adulta, mas, antes, como algo que já estava incorporado à educação recebida – e, portanto, acompanhou desde sempre o seu desenvolvimento como mulheres –, dos projetos traçados ao plano de vida. Mesmo sem saber ao certo com que carreira se identificava mais, Renata fez sua escolha por algo que estava mais próximo das experiências que tinha tido até então como auxiliar do pai, médico, na realização de congressos científicos. A fala a seguir é um exemplo de que, apesar da dúvida sobre a escolha profissional, trabalhar ou não em momento algum se apresenta como uma questão:

"tem até uma certa cobrança minha, acho que ... tem uma coisa de educação, sabe? De ter o seu trabalho, de fazer... Mas, ..., eu acho muito cruel você ser forçado a saber o que quer e fazer a escolha da sua vida, entendeu? E aí assim, acho que talvez por uma certa falta de perspectiva do que fazer e gostar até, tem certas coisas disso, desse ramo [hotelaria] que eu acho legal, entendeu?"

Assumir uma profissão configura-se, para elas, não apenas como fonte de sustento, mas, principalmente, como fonte de satisfação, algo que deveria ser assumido não só pelo retorno material, mas principalmente pelo prazer que proporciona. Renata percebeu, com o passar do tempo, que a profissão que havia escolhido quando tinha dezoito anos não a deixava feliz, realizada, e que não era aquilo que gostaria de fazer pelo resto da vida:

"Não achava graça, perspectiva de futuro, eu achava péssima, não me via morando num hotel como diretora de hotel,..., não via graça no meio, entendeu? Os caras eram um amor, o salário era legal, ..., mas, eu fui, fiquei o quê? - uma semana, aí eu fiquei resfriada um dos dias e nunca apareci. Liguei: ‘olha, eu tô péssima, não vou voltar’ e aí: ‘quer saber? Não volto mais pra nenhum desses [hotéis]’."

Podemos observar que a trajetória de vida das mulheres entrevistadas é bastante flexível. Ela acompanha tanto as novas fontes de identificação e necessidades de satisfação pessoal que vão surgindo ao longo de suas vidas como a necessidade material de mudar para ganhar mais dinheiro.

Karen teve sua vida modificada a partir do momento em que o marido perdeu o emprego e o que ela ganhava no emprego anterior não era suficiente para garantir o sustento da família. Com o dinheiro recebido do fundo de garantia do marido, abriu sua própria empresa. Assim, ela continuou a trabalhar com o que trabalhou a vida inteira (cabeleireira), só que agora passou para o outro lado, o de patroa, como ela esclarece:

"Meu marido foi demitido... e..., eu já trabalhava em outro lugar,..., ele não conseguia emprego dentro da área dele..., aí ele me fez a proposta de montar o salão e..., eu deixaria de trabalhar para outra pessoa, que eu ganhava porcentagem... pra cuidar do meu próprio negócio."

Em contrapartida, as outras mulheres entrevistadas tiveram como principal motivação para mudar de vida a busca de satisfação, isto é, a escolha por um tipo de trabalho que lhes desse algum prazer, como se pode observar na fala de Ana, a seguir:

"eu tava terminando a faculdade de Direito, dois amigos me chamaram pra fazer parte de uma sociedade de uma agência de viagem... Achei interessante, aquela época de aventura, de tentar novos espaços... e me propus a vir e quando eu comecei, me apaixonei pelo turismo."

A contemporaneidade parece inaugurar essa nova forma de subjetividade. O sujeito não mais se constitui a partir da idéia moderna de uma identidade fixa que, uma vez determinada, acompanha o sujeito por toda a sua existência como uma marca perene. Atualmente nos deparamos com múltiplos sistemas de significação e representação cultural, que nos apresentam também uma multiplicidade de identidades com as quais podemos nos identificar em diferentes momentos da vida (Hall, 2000).

Até bem pouco tempo atrás – e, por vezes, ainda em nossos dias –, a existência feminina se ordenava em função de caminhos socialmente pré-traçados, circunscritos ao mundo doméstico: casar, ter filhos, exercer determinadas tarefas a ela atribuídas pela sociedade. A identificação da mulher deveria se fazer em torno de um eixo fixo e uno, que estava associado a seu papel de mãe e esposa. Se antes falávamos de escolhas fundamentais que definiam de forma rígida quem eram os sujeitos femininos e quem eram os masculinos, hoje as fronteiras entre os papéis atribuídos a homens e mulheres estão mais flexíveis, abrindo sua identidade a mudanças (Vaitsman, 2001).

Karen é um exemplo significativo da flexibilidade presente na vida de homens e mulheres na sociedade atual. De colaboradora do marido em relação ao sustento da família, passou a ser, por bastante tempo, a única e, mais tarde, a principal mantenedora do lar, devido ao inesperado desemprego deste e ao investimento em sua atividade como dona de salão de beleza. A necessidade financeira, portanto, levou o casal a redefinir os papéis dentro e fora de casa:

"Todo o dinheiro que ele tinha..., de rescisão do contrato, essas coisas, foi empregado, né? Então você fica com medo do negócio não dar certo... mas como eu já trabalhava, já tinha meus clientes, eu ousei mesmo e falei: ‘vamos tentar, sim’."

Segundo Lipovetsky (2000), o que vislumbramos agora é que, em consonância com os paradigmas atuais, o destino feminino entrou na era da imprevisibilidade e da abertura estrutural. Não vislumbramos mais um único modelo, um caminho certo e determinado a ser seguido hoje pelas mulheres. Novas questões se apresentam a elas agora, definindo o que alguns autores denominam uma identidade "pós-moderna": O que estudar? Que profissão seguir? Que plano de carreira adotar? Casar ou viver em concubinato? Ter ou não filhos e, em caso afirmativo, quantos e em que momento da vida? Tê-los fora ou dentro do casamento? Trabalhar em tempo integral ou parcial? Como conciliar vida profissional e maternidade? Enfim, não podemos mais falar em nada que fixe imperativamente o lugar de mulheres e homens na ordem social.

Assim, uma vez definidos os planos, isto não significa que eles devam durar por toda a vida. Vemos que, atualmente, em momentos de crise, a possibilidade de mudança é recebida com alívio. No caso de Renata, quando a situação do marido melhorou financeiramente, ela aceitou sua sugestão de parar para pensar no que realmente gostaria de fazer:

"chegou um momento em que as coisas pro lado dele foram ficando melhores e ele falou: "então pára de fazer esse negócio. Pára e vai pensar no que você quer fazer de vez, assim". Então a primeira coisa, ...foi falar, assumir que realmente não era nessa área. Não seria nessa área a minha realização, a minha felicidade."

O trabalho remunerado parece ser um dos pontos que mais sofreram modificação no que diz respeito ao lugar que ocupa na vida das mulheres. Esta atividade, que era vista como de importância secundária quando comparada à dedicação da mulher ao lar e à família, parece ter sido substituída hoje pela idéia de que se a mulher não sair de casa para ganhar seu próprio dinheiro, terá pouco valor. Parece haver uma força ideológica que "empurra" a mulher para o mercado de trabalho a qualquer custo, o que se dá lado a lado com a desvalorização da imagem da dona-de-casa.

Ao incorporarem o trabalho remunerado às suas fontes de identificação, as mulheres incorporaram também, em grande parte, a visão moderna mecanicista de divisão das esferas pública (da produção) e privada (da reprodução) e passaram a considerar o trabalho doméstico e a vida dedicada ao lar como uma não-produção e, portanto, como um desperdício de talento e uma perda de tempo. Assim, não é em casa que a mulher encontra prazer, como afirma Karen, na fala a seguir, mas sim, no exercício de uma atividade profissional:

"acho que toda mulher...tem necessidade de se sentir útil... Você ficar dentro de casa, só dentro de casa, você pode até..., se valorizar..., assim, se sentir feliz, mas...eu converso com muitas clientes que são só donas de casa, e, tem uma frustração, de não ter realizado esse lado profissional. Todo mundo tem...um talento..., todo mundo tem alguma coisa pra criar, alguma coisa pra fazer, que isso dá prazer pra gente. Você saber que você tá fazendo alguma coisa, isso dá prazer."

É interessante notar ainda que, embora nunca tenha se dedicado exclusivamente ao lar, tendo sempre exercido uma atividade remunerada, Ângela tem uma imagem formada de como é a vida de uma dona de casa e rejeita esta condição para si, baseada nessa "pré-concepção". Não é levada em conta a personalidade ou o modo de encarar a vida de cada mulher. Antes, é como se "ser dona de casa" já fosse dotado de características e valores próprios que estão acima da vontade individual e se aplicam indiscriminadamente a todas que ocupam o papel. Podemos ver isso no discurso de Ângela, quando ela se refere à importância do seu trabalho em contraposição à "situação" da dona de casa:

"se for só dona de casa, você fica muito... é... Você não consegue acompanhar... você não sabe, assim, as coisas que estão acontecendo, porque muitas vezes você fica dentro de casa, você vive só aquilo ali, entendeu? Você não consegue, assim, ver mais além, almejar mais coisas... é, querer crescer, sabe?...e... dona de casa depende muito do marido... tudo que o marido falar, aquilo acabou. Ela não tem perspectiva de vida, de melhorar, de crescer..."

Lipovetsky (2000) assinala que as transformações ocorridas com a maior participação da mulher de classe média no mercado de trabalho assalariado e a maior aceitação, por parte da sociedade, de sua inserção no espaço público não foram resultado apenas das modificações na estrutura das atividades econômicas que passaram a empregar mais mulheres. Segundo este autor, a expansão do setor terciário favoreceu a entrada da mulher de classe média no mundo do trabalho, uma vez que oferecia participação em atividades que causavam "menos constrangimentos" do que as oferecidas pelas indústrias. Quanto mais este setor da economia crescia, oferecendo novos empregos na área de escritório, comércio, saúde e educação, mais aumentava a participação feminina em uma atividade remunerada fora do lar (Lipovetsky 2000).A passagem de uma cultura hostil a uma cultura favorável ao assalariamento feminino pode ser entendida a partir de uma série de fenômenos capazes de dar um novo sentido à independência feminina através do trabalho remunerado.

Por volta da segunda metade do século XX, uma economia baseada na criação incessante de novas necessidades favoreceu a aceitação do assalariamento feminino como fonte de renda suplementar, necessária à participação da família na sociedade de consumo, que se configurava com mais força. Vemos que os maridos das nossas entrevistadas, por exemplo, não constituíram barreiras a ser vencidas para que elas ocupassem seu lugar no mercado de trabalho. A única exceção parece encontrar-se no relato de Karen, que esclarece que, por um tempo, se viu "obrigada" a fazer o curso de cabeleireiro escondida do marido, pois ele não aceitava de modo algum que "sua mulher" trabalhasse fora. Coincidência ou não, hoje ele pensa de forma completamente diversa. Se não fosse a profissão de Karen, inclusive, eles não teriam condições de manter o filho na faculdade, como se pode ver no relato a seguir:

"aí eu fui fazer..., até escondido do meu marido, um curso de cabeleireiro. Porque ele não queria também: "Mulher trabalhar? Trabalhar fora, não". Ele pensava dessa maneira. Entendeu? "Trabalhar fora, ah não é bom, não sei o quê, não tem necessidade". É aquele lado machista que fala: "ah, mulher minha não precisa trabalhar fora, não". Mas graças a Deus, o marido que eu casei tinha uma mentalidade, hoje é completamente diferente."

Antigamente, os homens se mostravam hostis ao trabalho assalariado feminino, em parte, por ele estar associado à licenciosidade sexual. À medida que a liberdade sexual feminina foi deixando de ser sinônimo de imoralidade, suas atividades laborais foram beneficiadas com julgamentos mais brandos e menos preconceito.

Paralelamente a isso, a sociedade de consumo generalizou uma série de valores que rivalizavam com os que sustentavam a mulher dentro do lar - como bem-estar, lazer e felicidade individual -, os quais são característicos da era do consumo atual. A ideologia sacrifical, que reforçava, em relação à mulher, um modelo de vida em que esta se dedicava mais à família do que a si mesma, foi sendo desqualificada, legitimando-se o direito da mulher de viver para si e por si mesma. O reconhecimento social do trabalho feminino traduz o reconhecimento de que a mulher tem direito a uma "vida própria".

Neste sentido, é interessante notar, no relato das entrevistadas, o quanto "viver para o lar" está associado a "viver para e na sombra do outro" e a esquecer-se de si e de seus desejos e talentos:

"Acho que toda mulher deveria ter um trabalho, deveria... ir em busca de ter uma profissão... sabe? Não ficar... na sombra do outro, na sombra do marido... Aí chega..., chega na velhice, fica aquelas pessoas assim que..., infelizes. Ah, aí começam a entrar em depressão. Por quê? Elas ficaram muito ligadas no outro..., só, só ali na família... Você ter uma profissão é você pensar em você mesmo... é você estar se realizando... e você ficar muito ligado ali, só à família, só à família... os filhos vão casar..., a vida vai mudando..., e você não viveu" (Karen).

O cuidado exclusivo com a casa e os filhos, principalmente quando estes são pequenos, gera, segundo o relato dessas mulheres, a sensação de vazio quando eles crescem e vão para a escola. É um momento de se repensar a vida, de buscar outros caminhos, como nos relata a própria Karen, que faz questão de frisar, no entanto, que nem todas as mulheres pensam assim:

"Aí depois quando eu tive o meu filho..., com três anos meu filhofoi pro maternal. Aí ficou um espaço vazio na minha vida, que tive que preencher. Aí eu fui fazer um curso de cabeleireiro. Eu acho é... que não é nem estar satisfazendo ser só mãe, não... é porque você tá acostumada com um ritmo, de muita coisa, então, quando o filho começa a estudar..., fica mesmo um vazio. Naquele momento você fica sozinha, assim. Têm muitas pessoas que adoram. Tenho uma amiga que fala comigo assim: "A hora que as crianças não estão em casa? Ah, é uma hora só minha..., deu ficar sozinha". Mas eu não queria..."

No caso das entrevistadas que ainda têm filhos pequenos, como Ana e Renata, a expectativa desse vazio existe e, de acordo com seus planos, ele será preenchido com o trabalho. Se, atualmente, trabalhar fora de casa representa para essas mulheres uma dupla carga, no futuro, quando os filhos não precisarem tanto de sua atenção, significa ter outra atividade que lhes dê satisfação e preencha seus dias, como se pode ver na fala de Ana:

"Eu acho que eu tô muito nova... E depois que as minhas filhas estiverem grande? ... como é que eu vou recomeçar? Como que eu vou tá? Porque esse mundo globalizado é muito difícil, né, você acompanhar... a gente tem uma agência no interior,... eu tenho que sempre estar procurando me atualizar... se eu... parar..., é muito difícil...Eu acho... praticamente impossível o retorno depois... A B. tá com oito meses... daqui a quinze anos eu vou estar com cinqüenta, tá parada de tudo?"

De sinônimo de uma condição economicamente desfavorecida e incapacidade do marido de manter o lar sozinho (o que caracterizaria seu fracasso como homem), o trabalho da mulher das camadas médias fora de casa tornou-se, com o impulso da ideologia que enfatiza o cuidado consigo mesma, uma abertura para a vida social, um enriquecimento da personalidade e, acima de tudo, um direito à livre disposição de si (Lipovetsky, 2000).

Renata e Ana retratam o enriquecimento trazido pelo trabalho para sua vida social, pessoal e familiar. Estar no mercado de trabalho significa, entre outras coisas, estar aprendendo, entrar em contato com o mundo e com coisas novas, ter um assunto para conversas, desenvolver a capacidade de lidar com as pessoas e com a própria vida:

"Tenho medo também de parar no tempo..., sabe? ... Se eu não estivesse na agência [de viagens], será que eu teria aprendido a mexer na internet? ..., no computador? ... Eu acho que parar é muito sério..., eu acho que não sei... não sei se eu não enlouqueceria" (Ana).

Renata assinala que, também para o marido, é importante que ela tenha uma ocupação que enriqueça sua vida social, que a coloque em contato com o mundo e a torne uma pessoa interessante e com "conteúdo", o que melhoraria, inclusive, a relação a dois:

"pra ele a questão do dinheiro não incomodava, incomodava a questão ... , de eu ser alguém, de eu ter alguma coisa..., ter um assunto, ter uma atividade..., enfim, uma certa preocupação de eu não ficar em casa o dia inteiro, entendeu? De eu não ser uma pessoa vazia, de eu cultivar alguma coisa, ter um círculo de amigos. Porque o trabalho traz isso, né?... Assunto.... conhecimento... uma pessoa que ele possa conviver e possa trocar e possa... entendeu? Com alguém que seja interessante também e não..., uma mulher que fique em casa sem fazer nada."

Com a maioria das mulheres casadas exercendo um trabalho remunerado nos dias atuais, menos homens podem apoiar a própria identidade no fato de ser o único provedor da família. As mulheres, ao experimentarem uma nova realidade que as situa em um novo lugar na sociedade e ao questionarem seu papel sexual, levam os homens, segundo Friedan (1983), a repensarem também o seu papel na família e no trabalho.

Homens e mulheres ocupam não só um lugar diferente na sociedade hoje, mas também diversos lugares antes jamais pensados. Esses lugares acompanham as necessidades que estão continuamente mudando em um mundo que, no mínimo, perdeu o "status" de estável. Não se trata apenas da incorporação de outros papéis sociais, mas de um abalo estrutural das bases ideológicas que sustentavam esses mesmos papéis.

Quando a mulher de classe média brasileira ingressou definitivamente no mercado de trabalho, nos anos de 1980, surgiram novos questionamentos sobre a condição feminina, que agora contabilizam os ganhos e perdas dessa escolha. Atualmente, podemos perceber certa reticência em relação à aclamada panacéia da independência, que seria conquistada quando a mulher fizesse parte definitivamente do mercado de trabalho. Susan Falludi (2001), em seu livro, questiona pesquisadores, estudiosos e até feministas que apontam a entrada da mulher no mercado de trabalho como a melhor alternativa para a conquista da independência feminina, pois, segundo ela, essa entrada no mercado de trabalho e a luta da mulher por respeito e igualdade não constituíram um processo linear.

Concordando, pelo menos em parte, com Falludi (2001), acreditamos que o trabalho feminino não representa, em todos os casos, necessariamente, a independência da mulher, sua liberdade e o reconhecimento de sua individualidade. Os deveres incorporados ao longo do tempo ao antigo papel da mulher como dona de casa podem tornar-se agora um empecilho, ou uma dificuldade extra, quando o trabalho remunerado fora do lar passa também a fazer parte da sua identidade. No momento, estamos diante de um novo panorama. Antes, as mulheres tinham sua fonte de segurança e status na família e no casamento; agora, as mulheres voltam-se também para outra fonte, a profissão. Assim, elas têm que se deparar com o acúmulo de trabalho e com suas conseqüências, decorrentes do fato de terem que dar conta de dois mundos, o da casa e o do trabalho.

Não obstante, não se pode deixar de levar em conta o fato de que as mudanças culturais no que tange aos papéis de gênero valorizaram a independência e a autonomia das mulheres, como apontam Bruschini e Lombardi (2003). O trabalho remunerado, para as mulheres da classe média, adquiriu uma importância tal, que representa não só uma conquista pessoal e financeira, mas também a sensação de estar se realizando como pessoa independente, de estar fazendo algo por si mesma. Não trabalhar parece significar agora perder seu valor pessoal, seus talentos.

O trabalho fora de casa parece, portanto, ter-se tornado um suporte importante para a identidade social das mulheres. O investimento feminino no trabalho profissional parece envolver mais do que um mero escape do "gueto" doméstico. Ele está ligado a uma nova exigência da mulher de afirmar sua identidade enquanto sujeito. A isso se acrescenta a recusa da dependência financeira em relação ao marido, a reivindicação de uma autonomia dentro do casamento e a construção de uma segurança para o futuro (Bruschini & Lombardi, 2003; Sorj, 2005). O trabalho feminino passa, assim, a ser um valor e uma aspiração legítima e, como tal, faz parte de uma exigência individual, representa uma condição para realizar-se na existência, um meio de alcançar autonomia e auto-afirmação (Lipovetsky, 2000). Podemos concluir nossa análise com a seguinte afirmação de Renata sobre essa questão:

"Minha mãe sempre trabalhou. Ficou separada desde muito cedo, teve três filhos..., e... bancava sozinha, ... foi muito independente. E, eu admiro isso ... Sei lá, acho que qualquer situação de eu me ver... se por alguma razão eu não estivesse bem com o meu marido, e falar assim: "ah, porque eu tenho que ficar com ele, que eu dependo dele financeiramente", eu ia me sentir muito mal. Entendeu?"

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se concluir afirmando que, se antes a maternidade definia toda a vida da mulher, agora ela parece já não ser mais suficiente para a sua realização pessoal. Novas identificações estão sendo agenciadas, a fim de dar conta dos seus objetivos pessoais de sucesso e vitória na vida. Ser mãe, no momento, não parece necessariamente confinar a mulher em casa. Além disso, de destino passivo, a maternidade passa, cada vez mais, a se tornar uma escolha consciente para grande parte das mulheres de classe média (Zulato-Barbosa, 2004).

Por outro lado, como aponta Friedan (1983), ao invés de encontrarmos duas espécies de mulheres – as que acreditam na família tradicional e as que acreditam na igualdade entre os sexos –, parece que as mulheres, na vida real, conseguem transcender essa polarização, que a autora julga ser mais política do que real, abarcando as duas possibilidades. Isto é, deparamo-nos com mulheres que se identificam com a família e o trabalho simultaneamente. Assim, estas duas esferas de atuação, que, num primeiro momento, parecem mutuamente excludentes, acabam por ser vividas e assumidas concomitantemente no cotidiano, o que traz conseqüências importantes para a vida da mulher (Rocha-Coutinho, 2003).

As mulheres que têm mais anos de estudo, nos dias de hoje, conseguem empregos que as satisfazem e representam grande fonte de realização pessoal. Contudo, a maternidade continua compondo sua identidade e a preocupação com o bem-estar da família e a satisfação de suas necessidades materiais, inclusive, se apresenta como uma razão e/ou explicação importante para a procura e permanência da mulher nestes empregos.

Parece que estamos vivendo um movimento de evolução das raízes tradicionais da identidade feminina, baseada na família e na suposta "necessidade biológica" de ter filhos, para uma abertura a novas necessidades individuais, que podem incluir um trabalho fora de casa compensador e/ou outras possibilidades pessoais de escolha.

Ainda nos deparamos, no entanto, com a força de décadas e séculos de investimento cultural, social e ideológico na maternidade. O resultado é que a maternidade permanece como quase essencial para a completa realização da mulher. Ao mesmo tempo, a força da busca pela liberdade individual e crescimento pessoal através do investimento em um trabalho fora de casa não pode mais ser escamoteada. Assim, essas duas forças, que a princípio parecem antagônicas, de alguma forma, buscam um nicho de convivência.

O que percebemos agora é que a identidade da mulher não se baseia mais apenas nos velhos papéis de mãe e esposa, como também ainda não está totalmente voltada para os novos papéis que envolvem uma atividade profissional, mas, antes, esses dois modelos coexistem. Podemos dizer que estamos vivendo um momento de transição, uma vez que as mudanças que estão ocorrendo na vida das mulheres não se estenderam de forma ampla a todos os seus espaços. A casa ainda continua seguindo predominantemente os antigos padrões de divisão de tarefas e responsabilidades.

Acreditamos que existe a ilusão de que à mulher cabe escolher trabalhar fora ou não e de que está em suas mãos decidir se prefere continuar a buscar sua segurança, status e satisfação apenas no casamento e na maternidade. No entanto, o que pudemos perceber é a existência de uma força que impele nossas entrevistadas a trabalhar a qualquer custo: não há uma escolha simples, uma vez que ficar em casa é percebido como fracasso pessoal de alguém que não conseguiu vencer por seus próprios meios, como vimos na fala de nossas empresárias. Parece, assim, que encontrar sua identidade separada do homem tornou-se a ordem do dia para essas mulheres.

Não obstante, é interessante notar a presença marcante e a força que a vida familiar ainda tem nas escolhas femininas. O que observamos neste estudo talvez seja um sinal de rejeição das mulheres a ter suas vidas definidas somente em termos de trabalho, do mesmo modo que rejeitam ser definidas apenas por suas funções familiares. Parece existir certa dificuldade por parte delas em concentrar toda a sua vida, quer na família, quer na profissão; nada que lembre incapacidade ou fracasso, mas sim, algo que é fruto da coexistência de necessidades diversas e, muitas vezes, contraditórias.

Friedan (1983) afirma que as mulheres atuais, "filhas" do feminismo, não estão "contra a parede" como suas mães. Elas agora conquistaram a independência pela qual suas mães tanto ansiaram e lutaram, através da proficiência no trabalho que a sociedade tanto aplaude e valoriza. Entretanto, acreditamos que existe, nessa afirmação, um otimismo demasiado, ao presumir que não há mais confusões de identidade e que as barreiras sociais se romperam. Somos levados a afirmar que ainda não chegamos lá. A nosso ver, estamos apenas a caminho.

Recebido em 23/05/2007

Aceito em 11/07/2006

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  • Endereço para correspondência

    Maria Lúcia Rocha-Coutinho.
    Rua Engenheiro Cortes Sigaud, 187, apt. 401,
    Leblon, CEP 22450-150, Rio de Janeiro-RJ.
    E-mail:
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    De acordo com o SEBRAE/RJ (2000), considera-se micro-empresa aquela com até dez empregados na indústria e até nove no comércio e no setor de serviços.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Mar 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Aceito
      11 Jul 2006
    • Recebido
      23 Maio 2007
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