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A trofolaxes grupal: transtornos narcísicos e reconstruções vinculares

La trofolaxis grupal: perturbaciones narcisistas y reconstrucciones vinculares

Trophallaxis group: narcissistic disturbances and linking reconstructions

Resumos

O presente trabalho apresenta um conceito derivado da Biologia do Conhecimento aplicado metaforicamente aos grupos humanos. Trofolaxes denomina o processo de comunicação química utilizado por determinados animais, os insetos sociais, para comunicar uns aos outros as necessidades de sua comunidade, seja em termos de defesa, seja de alimentação ou de reprodução. Aplicada aos grupos, a noção de trofolaxes permite entender determinados mecanismos de regulação grupal pelos quais, através principalmente da linguagem, os indivíduos conseguem produzir a identidade grupal, as fronteiras delimitadoras do grupo e os elementos da dinâmica que possibilitam as interações interindividuais. Se aos insetos, a trofolaxes permite a comunicação, as alterações ontogenéticas e a adaptação filogenética, para os grupos humanos, a trofolaxes simbólica implica na possibilidade da geração da ontogênese específica das distintas psiques, necessárias ao convívio humano.

Psicanálise; grupos; vínculos


El presente trabajo presenta un concepto derivado de la Biología del Conocimiento aplicado metafóricamente a los grupos humanos. Trofolaxis denomina el proceso de comunicación química utilizado por determinados animales, los insectos sociales, para comunicar unos a los otros las necesidades de su comunidad, sea en términos de defensa, de alimentación o de reproducción. Aplicada a los grupos la noción de trofolaxis permite entender determinados mecanismos de regulación grupal, por los cuales, a través principalmente del lenguaje, los individuos consiguen producir la identidad grupal, las fronteras delimitadoras del grupo, y los elementos de la dinámica que posibilitan las interacciones inter-individuales. Si a los insectos, la trofolaxis permite la comunicación, las alteraciones ontogenéticas y la adaptación filogenética, para los grupos humanos, la trofolaxis simbólica implica en la posibilidad de la geración de la ontogênesis específica de las distintas psiques, necesarias a la convivencia humana.

Psicoanalisis; grupos; vinculo


Current essay discusses a concept from Biology of Knowledge and metaphorically applied to human groups. Trophallaxis refers to the chemical communicational process used by certain animals, such as social insects, to communicate the needs of their communities in terms of defense, feeding or reproduction. When applied to groups, trophallaxis explains certain mechanisms of group regulations in which, mainly through language, individuals may produce the group identity, the group’s restricting borders and the dynamic elements that permit inter-individual interactions. If trophallaxis permits communication, ontogenetic alterations and phylogenetic adaptation in insects, symbolic trophallaxis in human groups makes possible the generating of specific ontogenesis of distinct psyches, required for human relationships.

Psychoanalysis; groups; links


ARTIGOS

A trofolaxes grupal: transtornos narcísicos e reconstruções vinculares

Trophallaxis group: narcissistic disturbances and linking reconstructions

La trofolaxis grupal: perturbaciones narcisistas y reconstrucciones vinculares

Lazslo Antonio Ávila

Doutor pela Universidade de São Paulo. Professor adjunto da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto-SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Lazslo Antonio Ávila. R Rua Saldanha Marinho, 3564, CEP 15014-300, São José do Rio Preto-SP. E-mail: lazslo@terra.com.br

RESUMO

O presente trabalho apresenta um conceito derivado da Biologia do Conhecimento aplicado metaforicamente aos grupos humanos. Trofolaxes denomina o processo de comunicação química utilizado por determinados animais, os insetos sociais, para comunicar uns aos outros as necessidades de sua comunidade, seja em termos de defesa, seja de alimentação ou de reprodução. Aplicada aos grupos, a noção de trofolaxes permite entender determinados mecanismos de regulação grupal pelos quais, através principalmente da linguagem, os indivíduos conseguem produzir a identidade grupal, as fronteiras delimitadoras do grupo e os elementos da dinâmica que possibilitam as interações interindividuais. Se aos insetos, a trofolaxes permite a comunicação, as alterações ontogenéticas e a adaptação filogenética, para os grupos humanos, a trofolaxes simbólica implica na possibilidade da geração da ontogênese específica das distintas psiques, necessárias ao convívio humano.

Palavras-chave: Psicanálise, grupos, vínculos.

ABSTRACT

Current essay discusses a concept from Biology of Knowledge and metaphorically applied to human groups. Trophallaxis refers to the chemical communicational process used by certain animals, such as social insects, to communicate the needs of their communities in terms of defense, feeding or reproduction. When applied to groups, trophallaxis explains certain mechanisms of group regulations in which, mainly through language, individuals may produce the group identity, the group’s restricting borders and the dynamic elements that permit inter-individual interactions. If trophallaxis permits communication, ontogenetic alterations and phylogenetic adaptation in insects, symbolic trophallaxis in human groups makes possible the generating of specific ontogenesis of distinct psyches, required for human relationships.

Key words: Psychoanalysis, groups, links.

RESUMEN

El presente trabajo presenta un concepto derivado de la Biología del Conocimiento aplicado metafóricamente a los grupos humanos. Trofolaxis denomina el proceso de comunicación química utilizado por determinados animales, los insectos sociales, para comunicar unos a los otros las necesidades de su comunidad, sea en términos de defensa, de alimentación o de reproducción. Aplicada a los grupos la noción de trofolaxis permite entender determinados mecanismos de regulación grupal, por los cuales, a través principalmente del lenguaje, los individuos consiguen producir la identidad grupal, las fronteras delimitadoras del grupo, y los elementos de la dinámica que posibilitan las interacciones inter-individuales. Si a los insectos, la trofolaxis permite la comunicación, las alteraciones ontogenéticas y la adaptación filogenética, para los grupos humanos, la trofolaxis simbólica implica en la posibilidad de la geración de la ontogênesis específica de las distintas psiques, necesarias a la convivencia humana.

Palabras-clave: Psicoanalisis, grupos, vinculo.

A TROFOLAXES GRUPAL

Transtornos narcísicos e reconstruções vinculares

A vida emocional dos grupos é um dos temas relevantes nos estudos atuais que buscam dar conta das diversas dimensões do funcionamento humano. A interação dos homens entre si constitui-se em sua própria essência, aquilo mesmo que distingue e caracteriza o ser humano. Antes de ser individualidade, o sujeito constitui-se em seus vínculos. Para aqueles que trabalham com grupos esses enunciados não constituem nenhuma novidade, mas sabemos quanto são necessários para estabelecer as delimitações e especificidade desse campo de investigação. O enfoque aqui adotado é o da Psicanálise das Configurações Vinculares, cuja concepção teórica e metodológica visa dar conta da multiplicidade de situações humanas nas quais a psicanálise pode ser aplicada. O "habitat" natural do ser humano é o grupo, a intersubjetividade onde o sujeito humano se produz.

Neste trabalho quero apresentar um conceito extraído da Biologia, mais particularmente, da Biologia do Conhecimento, ramo introduzido pelo biólogo chileno Humberto Maturana e seus colaboradores. Utilizarei algumas de suas concepções, situando-as em seu contexto de produção, e depois as trarei para o campo específico da teoria dos grupos. Tais "importações" de conceitos sempre implicam riscos, e devo esclarecer que não estou tentando produzir nesse ramo de saber e, muito menos, articular essas duas áreas de conhecimento. Busco apenas a utilização de uma noção, dando-lhe um caráter de metáfora, de instrumento habilitado para uma certa correlação e útil para o entendimento de fenômenos delimitados à esfera dos processos grupais.

Trofolaxes vem do grego, e quer dizer literalmente, fluxo de alimentos. Em Biologia descreve o intercâmbio contínuo de alimentos que os insetos sociais trocam entre si. Observamos facilmente isso: as formigas às vezes nos parecem "conversar", mexendo ativamente suas antenas, ficando muito próximas, principalmente quando se "encontram" em seu caminho. Maturana esclarece que elas não estão "conversando":

O mecanismo de acoplamento entre a maior parte dos insetos sociais se dá por meio do intercâmbio de substâncias, sendo assim um acoplamento químico. Estabelece-se um fluxo contínuo de secreções entre os membros de uma colônia - trocam seus conteúdos estomacais todas as vezes que se encontram, o que podemos notar apenas observando uma fileira de formigas na cozinha. (Maturana & Varela, 2001, p. 211)

A trofolaxes é, então, um fluxo contínuo de substâncias, tanto alimentares como hormonais, que tem importantíssimas funções biológicas. É através desse intercâmbio que se processa o aspecto fundamental da sobrevivência. Por ele a filogenia desses insetos assegura sua continuidade, ao mesmo tempo em que se define a ontogenia dos diferentes membros da comunidade desses insetos sociais. Em um formigueiro são necessários diferentes "papéis" para a sobrevivência: rainha, operárias, soldados, membros estéreis e membros reprodutivos, etc.. A diferenciação destes diferentes "indivíduos" - que têm, aliás, aspectos bastante distintos entre si, com conformação anatômica especializada - se dá através desse mecanismo:

Esse intercâmbio químico contínuo, chamado trofolaxes, resulta na distribuição, por toda a população, de uma certa quantidade de substâncias, entre elas os hormônios, responsáveis pela diferenciação e especialização de papéis. Assim, a rainha torna-se o que é pelo modo como é alimentada, e não hereditariamente. Basta tirar a rainha de seu lugar para que imediatamente o desequilíbrio hormonal causado por sua ausência produza uma mudança na alimentação diferencial de algumas larvas, que se desenvolvem como rainhas. (Maturana & Varela, 2001, p. 211)

Já podemos ver a verossimilhança deste mecanismo, característico dessas espécies animais, com os intensos intercâmbios que ocorrem nos outros grupos de animais ditos superiores. Tal fato é reconhecido por Maturana e Varela, que vão generalizá-lo para a esfera humana: "No caso dos seres humanos, a ‘trofolaxe’ social é a linguagem, que faz com que existamos num mundo sempre aberto de interações lingüísticas recorrentes. A partir da existência da linguagem, não há limites para o que podemos descrever, imaginar, relacionar. Ela permeia de modo absoluto toda a nossa ontogenia como indivíduos, desde o caminhar e a postura até a política". (Maturana & Varela, 2001, p. 234).

Antes, porém, de explorarmos estas possibilidades assinaladas por Maturana, vamos confrontá-las com uma obra provocativamente denominada de "O Gene Egoísta", de Richard Dawkins (1976), um biólogo que tem se especializado em divulgação científica e em polêmicas:

Em certas formigas há uma casta de operárias com abdomens grotescamente inchados, cheios de alimento, cuja única função na vida é dependurarem-se do teto como lâmpadas inchadas, sendo usadas como reservas de alimento pelas outras operárias. Do ponto de vista humano elas absolutamente não vivem como indivíduos; sua individualidade é subjugada, aparentemente para o bem-estar da comunidade. A sociedade de formigas, abelhas ou térmitas alcança um tipo de individualidade a um nível mais alto. O alimento é compartilhado a tal ponto que pode-se falar num estômago comunal. As informações são compartilhadas tão eficientemente por sinais químicos e pela famosa "dança" das abelhas que a comunidade comporta-se quase como se fosse uma unidade com um sistema nervoso e órgãos dos sentidos próprios. Invasores são reconhecidos e repelidos quase com a mesma seletividade do sistema de reação imunológica do corpo. A temperatura bastante alta dentro de uma colmeia é regulada quase tão precisamente quanto a temperatura do corpo humano, embora a abelha individualmente não seja um animal de "sangue quente". Finalmente, e o mais importante, a analogia aplica-se à reprodução (Dawkins, 1976, p. 194).

Este longo trecho apresenta três importantes pontos que devemos destacar: (1) a questão das diferenças "individuais"; (2) a subordinação dos "indivíduos" à comunidade ou coletividade, e (3) a função integradora, "totalizadora", que faz com que a comunidade ganhe uma condição semelhante à de um "organismo" individual.

A vida apresenta uma infinita variedade, e tem sido importantíssima tarefa dos biólogos caracterizar, descrever e buscar entender essa multiplicação infinita de possibilidades que é a vida. O próprio Dawkins (1976) nos alerta de que, da totalidade das espécies existentes no mundo, os insetos representam mais da metade do número global; e - fato importante - as variação de suas características não se dá apenas no âmbito da diferença entre as espécies (filogenética), mas também no interior da mesma espécie, caracterizando variação ontogenética.

O primeiro item que assinalamos diz respeito a isso. Os insetos sociais, como as formigas, abelhas e térmitas, apresentam enorme variação morfológica individual. Assim como há esses indivíduos-armazém, há as rainhas, cujo corpo "distendeu-se numa enorme fábrica de ovos, dificilmente identificável como um inseto, centenas de vezes maior do que uma operária e praticamente incapaz de se locomover" (Dawkins, 1976, p. 195). Existem insetos-soldados, cujo corpo sustenta uma cabeça com enorme mandíbula; existem insetos-babás, que só cuidam das larvas, e assim por diante. Cada indivíduo é uma história ontogenética particular, mas esta ontogenia é produzida e regulada pelos hormônios circulantes na coletividade, em intima harmonia, portanto, com as necessidades da coletividade.

Assim, a pretensa subordinação do indivíduo à coletividade é, na verdade, mais do que extremamente íntima, é constitutiva da filogenia desta espécie. Não existe uma história individual, não existe destino individual. Os insetos sociais não poderiam nunca viver o conflito que Freud (1905 / 1980) assinalou como a dualidade da Conservação do Indivíduo versus Conservação da Espécie, ou o instinto sexual como a origem da necessidade da repressão, motivada por um ego que teme por sua existência individual. Os insetos sociais resolvem filogeneticamente esse assunto: a coletividade é quase toda composta por indivíduos estéreis, voltados para a vida do conjunto.

O terceiro item que pontuamos diz respeito a isso: o verdadeiro indivíduo, quando falamos dessas espécies animais, é o grupo inteiro, a coletividade de cada colméia ou formigueiro. São estes os "organismos" a serem alimentados, desenvolvidos e reproduzidos pelos indivíduos membros dessa comunidade. O coletivo é a finalidade. O coletivo dirige os esforços individuais em prol apenas de si mesmo. Cada membro individual "realiza" o coletivo, contribuindo com sua parte, sem poder formular nunca qualquer propósito "individual". Se houver algo semelhante a uma "intencionalidade" (o que, sem dúvida, é antropomorfismo), essas intenções, nos insetos sociais, serão sempre a da vida do "organismo" coletivo, e jamais a da vida individual. Desse ponto de vista, a formiga ou abelha individual é uma mera abstração.

Os grupos humanos

Passemos agora à descrição de algumas das características estruturais que definem os grupos humanos, após o que buscaremos aplicar a noção biológica da trofolaxes para este contexto.

Qualquer grupo humano que haja conquistado certa permanência no tempo, a ponto de ter podido gerar uma história, apresenta certos traços distintivos: a) a emergência de uma "identidade"; b) o surgimento de uma específica dinâmica grupal, com padrões interativos próprios àquele grupo; c) uma particular forma de redes comunicacionais; d) o aparecimento de uma "ideologia" grupal própria; e) o estabelecimento de normas, regras, modos de operação e de procedimento que configuram, em seu conjunto, uma "cultura grupal" própria; f) uma rede de "papéis", passível de ser descrita tanto em suas propriedades individuais como na sua articulação em um "script" grupal; g) objetivos, finalidades e projetos grupais modelando uma "locomoção" própria a este grupo específico e h) conformação de um "destino", com nascimento, vida e morte do grupo (Ávila, 1999; Lapassade, 1977).

O dado fenomenológico mais imediato para apreendermos um grupo é verificar com os próprios membros do grupo o "que" ou "quem" eles consideram o grupo. Em todo grupo psicológico há a emergência de um sentimento de identidade, forma-se a figura lingüística de um "nós", que caracteriza, para os membros do grupo, uma idéia de totalidade, de distintividade entre aqueles membros e quaisquer outras pessoas ou processos. Assim o grupo gera como que uma "membrana" que envolve seus membros e cria para eles um ambiente "intragrupo", que se distingue do ambiente externo "extragrupal". O que dá esta distintividade é um fator puramente psicológico: os membros do grupo se "reconhecem". Uma identidade individual nasce conjuntamente com a identidade grupal. O grupo dá a seus participantes um "pertencimento". Podemos então comparar a identidade grupal com a figura de uma célula, envolta, protegida, delimitada e configurada por sua "membrana".

Definido o "interior" do grupo, passam a se dar acontecimentos interativos, o que pode ocorrer também de forma inversa: as interações é que podem desenhar os limites do grupo. Ambos os processos se complementam. Os diferentes membros buscam-se entre si, e estabelecem um conjunto de trocas significativas. Idéias, sentimentos, projetos, expectativas, sensações, percepções, fantasias e ações são emitidos, recebidos e respondidos em uma sucessão que vai ganhando história. Os padrões bem-sucedidos vão se fixando e correlações exitosas de pensamentos, sentimentos e ações mútuas "desenham" a dinâmica grupal. É como se fossem trilhas em uma floresta: uma vez criadas, por ali circularão mais e esse processo aprofundará as trilhas. Algumas serão abandonadas, outras consagradas. A dinâmica grupal é a resultante observável da história das interações.

A mais importante das interações humanas é a linguagem (Paz, 1993). Observamos nos grupos a conformação de redes comunicacionais, que serão aquelas formações de pares, díades, trios, quartetos, etc. que comunicarão entre si os aspectos acima referidos, mas em estrutura comunicacional complexa. Serão linhas, nódulos, figuras geométricas abertas e fechadas, onde os membros do grupo expressarão sua possibilidade de comunicação elegendo seus pares e montando uma estrutura de vinculações. Podemos compará-las a "canais" de comunicação, que podem ser abertos, fechados, múltiplos, etc..

Com as redes comunicacionais e a dinâmica interativa em ação, elaboram-se determinados produtos. Um deles é a ideologia grupal: conjunto das crenças, expectativas e modelos de ação de cada membro, quando atua no grupo. Pichon-Rivière (1977a) a denomina E.C.R.O, ou seja, Esquema Conceptual, Referencial e Operativo, que cada membro possui e que emerge da dinâmica grupal. A ideologia é elaborada pela interação grupal e, por sua vez, modela a ação de seus membros.

Mais geral que a ideologia é a "cultura grupal", que a engloba e que representa a totalidade dos "compartilhados" grupais: as experiências trazidas pelos membros e trabalhadas pelo convívio grupal, as seqüências interativas, com todos os fatos, situações e produtos do relacionamento interpessoal, tudo isso se sedimentando em um fundo comum de experiências, de onde emergirão para serem retrabalhadas no aqui-e-agora do grupo. Utiliza-se o termo "cultura" no sentido antropológico e etnológico, para significar a totalidade simbólica que organiza a vida mental de um grupo humano em particular, dando-lhe os instrumentos conceituais e atitudinais para a ação em sua realidade social.

No âmbito dos grupos a cultura grupal costuma estabelecer para cada um de seus participantes um determinado "papel", caracterizado como um conjunto definido de traços e expectativas de comportamento que confere um perfil próprio a cada membro. Tais papéis dependem de inúmeros fatores, como a história prévia do indivíduo, a história do grupo, a tarefa a que o grupo está voltado, etc.. Regulando os papéis grupais, pode-se deduzir um esquema de referências comum, um roteiro que combina as posições individuais e dá um sentido de conjunto para os papéis. Trata-se do "script" grupal, e ele possui uma dimensão consciente e uma estrutural, inconsciente.

As tarefas, objetivos e projetos grupais também se realizam nos planos consciente e inconsciente. Os grupos comportam-se como organismos em relação à temporalidade: nascem no momento em que se delineia a sua identidade, crescem configurando sua rede de papéis, sua circulação comunicacional, desenvolvem sua ideologia e sua cultura, realizam seus projetos e fins e também morrem, finalizam e desfazem-se. Sua existência simbólica perdura como a memória dos membros individuais, e nas marcas deixadas no ambiente extragrupal.

A Trofolaxes grupal

Todos os elementos acima referidos fazem parte do acervo da teoria dos grupos, tal como desenvolvida pelos diferentes autores grupanalistas. Como este novo conceito, ou melhor, metáfora, pode contribuir para o esclarecimento dos fenômenos grupais?

Penso que a contribuição que podemos esperar dessa noção diz respeito à própria essência do processo grupal, principalmente no que se refere ao entendimento das formas de que se reveste a interação, que é a base última dos grupos.

O que trocam os seres humanos? O que corresponde, na nossa espécie, à saliva, aos hormônios e aos conteúdos estomacais dos insetos sociais, que Maturana e Varela (2001) acreditam circular através da linguagem? Pensamos que a intuição de Maturana e dos outros biólogos do conhecimento é correta, e que a linguagem seja o nosso principal traço distintivo, possibilitador da cultura e origem dos processos que fizeram essa espécie caracterizar-se de forma tão especial. Mas o que circula com a linguagem? Por que querem os humanos se comunicar? A resposta da Biologia é que se trata da nossa forma filogenética particular de nos adaptarmos e evoluirmos, dentro da teoria da evolução das espécies.

Com a Psicanálise das Configurações Vinculares podemos tentar ampliar esta resposta. Embora Freud nunca tivesse proposto uma intervenção terapêutica em grupo, de fato ele ampliou o escopo da psicanálise ao pesquisar diferentes produções culturais e as instituições sociais, como em seu importantíssimo trabalho denominado "Psicologia das Massas e Análise do Ego" (mal traduzido em português como "Psicologia de Grupo e Análise do Ego" (1921/1980). Após Freud, os grupos foram uma nova fronteira de expansão da psicanálise, com importantes autores desbravando os territórios da inter e da transubjetividade.

Na América do Sul este processo foi iniciado por Enrique Pichon-Rivière, o criador da teoria dos grupos operativos, instrumento de larga utilização em diferentes contextos institucionais. Pichon-Rivière denominou sua principal obra de "Da Psicanálise à Psicologia Social", dividindo-a em três volumes: "El proceso grupal" (1977a), "Psiquiatria: una nueva problemática" (1977b) e "El proceso creador" (1977c). Foi também Pichon quem introduziu o termo "vínculo" na literatura psicanalítica, que ele definia como uma estrutura complexa formada por sujeito e objeto e sua inter-relação no contexto da comunicação e da aprendizagem.

A Escola de Pichon-Rivière foi muito influente na Argentina e deixou inúmeros descendentes. A partir da década de 1980, um grupo de psicanalistas (M. Bernard, J. Puget, I. Berenstein, M. C. Rojas, D. Maldavski, A. Quiroga e outros) propôs a expressão Psicanálise das Configurações Vinculares para abarcar o estudo dos grupos, das famílias e das instituições. Entre suas produções, destacam-se a coletânea "Desarrollos sobre Grupalidade" (Bernard & cols., 1995) e "Psicanálise do Casal" (Puget & Berenstein, 1994), entre outras. A Psicanálise das Configurações Vinculares se expandiu para o Brasil e aqui vem sendo desenvolvida em duas instituições formadoras de coordenadores e psicoterapeutas de grupo, o NESME (Núcleo de Estudos em Saúde Mental), e a SPAGESP (Sociedade de Psicoterapias Grupais do Estado de São Paulo). Os grupanalistas vinculados a estas instituições produziram os textos da coletânea "Grupos e Configurações Vinculares" (Fernandes, Svartman & Fernandes, 2003). Desta obra destacamos a seguinte definição:

A característica principal da PCV (Psicanálise das Configurações Vinculares) é o destaque da reciprocidade da relação do homem com o meio. Mais especificamente, a perene influência modificadora, em todas as direções, dos planos intra, inter e transubjetivo (Fernandes & Svartman, 2003, p. 68).

Retomando nosso argumento, confrontaremos esta concepção da Biologia do Conhecimento, de Maturana, com a particular forma de "conhecimento da biologia" que a psicanálise implica.

No humano, como Freud (1905, 1914, 1920, 1923/1980) bem apontou, não existem instintos, mas pulsões. A vida sexual dos humanos permite uma plasticidade e modificabilidade de uma amplitude única entre as espécies animais. Somos seres tão precoces, com necessidades tão amplas de cuidados familiares, que geramos uma vida psíquica inédita na natureza. Essa vida psíquica constrói-se com base nessas pulsões, fronteiras do somático com o psíquico, que organizam um corpo "erógeno" e uma "mente" preenchida com representações e afetos.

Seres de relação, somos, desde o nascimento, modelados pelos vínculos familiares. A família é o grupo humano por excelência. Nela nasce o sujeito psicológico, marcado desde o início pela psique de seus pais e por toda a história dos grupos, instituições e ambiente cultural mais amplo onde está inserida a família. Desde antes de nascer o indivíduo humano já é vislumbrado como "sujeito", como "pessoa". Já nasce com papéis: já é filho, irmão. Já é brasileiro, ou chinês, homem ou mulher, rico ou pobre, cidadão ou excluído. Nasce para vir a ser. Mas já é. Humaniza-se nos vínculos. Os vínculos são o verdadeiro berço do sujeito humano. Somos para o outro, somos com o outro.

A Ontogenia humana faz-se assim de uma maneira original, não apenas para desempenhar papéis de sobrevivência em sua comunidade, mas para receber a totalidade das possibilidades de sua filogenia e vir a ser, vir a realizar uma nova forma do humano. Nós, diferentemente dos insetos sociais, não alteramos grandemente nossa morfologia. O que alteramos, profundamente, é o destino individual para cada ser humano, através das mudanças psíquicas e dos diferentes caminhos de suas pulsões. Construímos continuamente novas possibilidades psíquicas, novas formas culturais, novos padrões de interação, novas coletividades, novas formas de humanização.

Essa é a riqueza do conceito da Trofolaxes. Trocamos algo profundamente íntimo: nossa "química" psíquica. Fazemos reações químicas contínuas, produzimos novos compostos, novas reações: são os pensamentos humanos. Bion (1980, 1982) já nos alertava de que os pensamentos não são produzidos pelo pensador, existem previamente. Na verdade os pensamentos são produtos químicos de interações humanas. Pensar é captar e transformar. Pensar é dar nossa mente para receptáculo, receber influxos das outras mentes humanas, e então, com os nossos elementos mentais, produzir as reações químicas e alquímicas que produzem as novas representações. Fazemos circular a nossa libido. Investimos os nossos pensamentos e os alheios com a energia libidinal, e assim carregados, tornamo-los capazes das mais amplas composições e conexões. Alimentados de libido, fazemos de nossos pensamentos seres alados, circulantes, incansáveis.

Determinados átomos são conhecidos por sua altíssima valência, ou capacidade de se combinar com outros átomos. O mesmo vale para moléculas. A trofolaxes grupal faz com que os indivíduos tenham alta valência combinatória, que tenham muitos elementos para intercambiar. As contínuas interações tornam os indivíduos seres plásticos para o convívio com os outros indivíduos, interessados em trocas incessantes. Alimentamo-nos do humano.

Nossa época, porém, vem sofrendo as conseqüências de um processo histórico complexo, que ao mesmo tempo que dotou as sociedades do máximo recurso material, com seus desenvolvimentos científicos e tecnológicos, expôs os seres humanos individuais a uma forma muito severa de decomposição dos laços comunitários e, assim, ao isolamento e à desarticulação. A ruptura dos laços se expressa em inúmeros registros: no fim das famílias extensas, na urbanização caótica e desenfreada, nas diferenças econômicas, sociais e políticas, na marginalização, no desamparo frente a governos que não assumem os cuidados da nação, e etc.

Vivemos um tempo narcísico. Desde que Freud introduziu o narcisismo como conceito (Freud, 1914/1980), temos visto sua ampla utilização para buscar compreender as diferentes manifestações clínicas, em que o indivíduo se demonstra insuficiente e precário demais para sustentar sua própria vida psíquica. As assim chamadas novas psicopatologias, como os transtornos alimentares severos, a drogadição, os estados limítrofes e outras, parecem relacionar-se ao desenfreado individualismo e narcisismo em que vivemos. Diversos autores contemporâneos, como Costa (2004), Rouanet (2001), Roudinesco (2003), Sennett (2001), têm buscado compreender esse tempo, denominado por Lipovetski e Charles (2004) como "hipermoderno". Os indivíduos valorizam ao máximo sua própria condição enquanto seres singulares e buscam de forma ávida os benefícios da civilização de mercadorias em que vivemos. Consome-se tudo, até a própria vida. Sabemos, contudo, das conseqüências que a nossa época vem acarretando. A violência social, a indiferença e o cinismo se tornaram suas marcas registradas. Em nível individual, as patologias a cada dia são mais severas. Lipovetski e Charles (2004, p. 83-84) afirmam:

Assim, o individuo se mostra cada vez mais aberto e cambiante, fluido e socialmente independente. Mas essa volatilidade significa muito mais a desestabilização do eu do que a afirmação triunfante de um indivíduo que é senhor de si mesmo. Testemunho disso é a maré montante de sintomas psicossomáticos, de distúrbios compulsivos, de depressões, de ansiedades, de tentativas de suicídio, para nem falar do crescente sentimento de insuficiência e autodepreciação. [...] Quanto menos as normas coletivas nos regem nos detalhes, mais o indivíduo se mostra tendencialmente fraco e desestabilizado. Quanto mais o indivíduo é socialmente cambiante, mais surgem manifestações de esgotamento e ‘panes’ subjetivas.

Em nível coletivo, em que pese a todos os recursos disponíveis, não se consegue evitar sem guerra todos os conflitos de interesse. É como se tivéssemos desaprendido de como dialogar. É como se tivéssemos nos tornado seres tão ciosos de nossa individualidade, que o outro sempre comparecesse diante de nós ou como um objeto de consumo ou como um rival pela posse de alguma coisa. Perdemos a perspectiva do outro como fonte de nossa dignidade, de nosso prazer, de nosso crescimento, de nosso enriquecimento. Assim, ao invés da trofolaxes grupal, troca permanente de humanização, caímos no individualismo, que não pode reconhecer humanidade no outro, e interrompe o fluxo das trocas humanizadoras. Narciso morre, se não for resgatado por uma fonte de amor, que é interna e externa, está em si e está no outro.

O vínculo gera o humano, é ele também quem dá o vir-a-ser do humano. Por isso, dizemos que as reconstruções vinculares são uma possibilidade de resgate quando a interação humana se expressa de forma violenta. Dawkins nos lembra: "Guerra verdadeira, na qual exércitos rivais grandes lutam até a morte, só é conhecida no homem e nos insetos sociais" (1976, p. 200). A violência é a nossa mais completa negação, muito embora também seja "demasiado humana."

Recebido em 16/12/2005

Aceito em 09/03/2006

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Mar 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Aceito
      09 Mar 2006
    • Recebido
      16 Dez 2005
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