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Trabalho precoce e processo de escolarização de crianças e adolescentes

Trabajo precoz y proceso de escolarizacion de niños y adolescentes

Early work and children's and adolescents' schooling process

Resumos

Este estudo enfocou a relação do trabalho precoce com o processo de escolarização de crianças e adolescentes, analisando a subjetividade forjada com o trabalho e o estudo no processo de escolarização. A amostra compreendeu vinte e um estudantes trabalhadores precoces nas atividades informais em condição de rua, de 10 a 14 anos de idade, dos gêneros masculino e feminino. Observou-se prevalência de sujeitos do sexo masculino nas atividades do setor de serviços. Necessidade, satisfação pessoal e ocupação do tempo constituíram os principais motivos do ingresso precoce no trabalho. Em trabalhar e estudar há implicações psicossociais, tais como: participação restrita nas atividades sociais, de estudo e de lazer; vivências subjetivas de responsabilidades prematuras; incertezas sobre as perspectivas de futuro e, sobretudo, danos ao processo de escolarização, uma vez que contribui para reprovações, repetências, defasagens, e não raro, para a evasão escolar.

trabalho precoce; escolarização; crianças e adolescentes


Este estudio enfocó la relación del trabajo precoz con el proceso de escolarización de niños y adolescentes, analizando la subjetividad fragada sobre el trabajo y el estudio en proceso de escolarización. La muestra comprendió veintiún estudiantes trabajadores precoces en las actividades informales en condición de calle, de 10 hasta 14 años y ambos los sexos. Se ha observado la prevalencia de sujetos del sexo masculino en las actividades del sector de servicios. Necesidad, satisfacción personal y ocupación del tempo constituíran los principales motivos del ingreso precoz en el trabajo. Trabajar y estudiar presenta implicaciones psicosociales, tales como: participación restricta en las actividades sociales de estudio y de ocio; experiencias subjetivas de responsabilidades prematuras; incertidumbre sobre las perspectivas de futuro y, sobretodo, daños al proceso de escolarización, una vez que aporta para reprobaciones, repetencias, desfase, y no raro, para la evasión escolar.

Trabajo infantil; escolarización; niños y adolescentes


The relationship between children and adolescents schooling process and their early work is focused. It analyzes the formation of subjectivity molded by work and schooling. Twenty-one students, aged 10 to 14 years old, males and females, undertaking informal work activities on the street, were investigated. Predominance of male workers in the service sector was reported, coupled to the fact that the needs, personal satisfaction and time employment were the main reasons for their early introduction to labor. Simultaneously working and studying have some psychosocial implications, such as restricted participation in social activities involving studies and leisure; subjective experiences of prematurely borne responsibilities; uncertainty about the future, and, in a special way, damage to the educational process comprising failure, repetition, backwardness and school quitting.

Early work; schooling; children and adolescents


ARTIGOS

Trabalho precoce e processo de escolarização de crianças e adolescentes

Early work and children's and adolescents' schooling process

Trabajo precoz y proceso de escolarizacion de niños y adolescentes

Olívia Maria Costa Grangeiro de SousaI; Maria de Fátima Pereira AlbertoII

IMestre em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), pesquisadora integrante do Grupo de Estudos sobre Trabalho Precoce da UFPB. Professora Substituta do Centro de Educação, Departamento de Fundamentação da Educação-UFPB

IIDoutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco, Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UFPB, pesquisadora integrante do Grupo Pesquisa Subjetividade e Trabalho (GPST) da UFPB, coordenadora do Grupo de Estudos sobre Trabalho Precoce da UFPB

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Olívia Maria Costa Grangeiro de Sousa R. Dr. Arnaldo Gomes, 13 CEP 58037-410,. João Pessoa-PB E-mail: oliviamariasousa@hotmail.com

RESUMO

Este estudo enfocou a relação do trabalho precoce com o processo de escolarização de crianças e adolescentes, analisando a subjetividade forjada com o trabalho e o estudo no processo de escolarização. A amostra compreendeu vinte e um estudantes trabalhadores precoces nas atividades informais em condição de rua, de 10 a 14 anos de idade, dos gêneros masculino e feminino. Observou-se prevalência de sujeitos do sexo masculino nas atividades do setor de serviços. Necessidade, satisfação pessoal e ocupação do tempo constituíram os principais motivos do ingresso precoce no trabalho. Em trabalhar e estudar há implicações psicossociais, tais como: participação restrita nas atividades sociais, de estudo e de lazer; vivências subjetivas de responsabilidades prematuras; incertezas sobre as perspectivas de futuro e, sobretudo, danos ao processo de escolarização, uma vez que contribui para reprovações, repetências, defasagens, e não raro, para a evasão escolar.

Palavras-chave: trabalho precoce, escolarização, crianças e adolescentes.

ABSTRACT

The relationship between children and adolescents schooling process and their early work is focused. It analyzes the formation of subjectivity molded by work and schooling. Twenty-one students, aged 10 to 14 years old, males and females, undertaking informal work activities on the street, were investigated. Predominance of male workers in the service sector was reported, coupled to the fact that the needs, personal satisfaction and time employment were the main reasons for their early introduction to labor. Simultaneously working and studying have some psychosocial implications, such as restricted participation in social activities involving studies and leisure; subjective experiences of prematurely borne responsibilities; uncertainty about the future, and, in a special way, damage to the educational process comprising failure, repetition, backwardness and school quitting.

Key words: Early work, schooling, children and adolescents.

RESUMEN

Este estudio enfocó la relación del trabajo precoz con el proceso de escolarización de niños y adolescentes, analizando la subjetividad fragada sobre el trabajo y el estudio en proceso de escolarización. La muestra comprendió veintiún estudiantes trabajadores precoces en las actividades informales en condición de calle, de 10 hasta 14 años y ambos los sexos. Se ha observado la prevalencia de sujetos del sexo masculino en las actividades del sector de servicios. Necesidad, satisfacción personal y ocupación del tempo constituíran los principales motivos del ingreso precoz en el trabajo. Trabajar y estudiar presenta implicaciones psicosociales, tales como: participación restricta en las actividades sociales de estudio y de ocio; experiencias subjetivas de responsabilidades prematuras; incertidumbre sobre las perspectivas de futuro y, sobretodo, daños al proceso de escolarización, una vez que aporta para reprobaciones, repetencias, desfase, y no raro, para la evasión escolar

Palabras-clave: Trabajo infantil, escolarización, niños y adolescentes.

Historicamente, o trabalho em idade precoce é um fato que remonta às civilizações antigas. Na sociedade contemporânea, apesar de toda a legislação que protege crianças e adolescentes, a exploração destes como mão-de-obra reflete uma situação que alcança números significativos. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2001), no mundo são aproximadamente 250 milhões.

No Brasil, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD, 2003), do total de 43,1 milhões de crianças e adolescentes na faixa etária de 5 a 17 anos, 5,4 milhões trabalham. Entretanto, conforme panorama recente da Síntese dos Indicadores Sociais (IBGE, 2005), esse número apresentou aumento. Na faixa de 5 a 17 anos de idade passou de 11,8% para 12,2% entre 2004 e 2005.

Na Paraíba, das 992.820 crianças e adolescentes na faixa etária de 5 a 17 anos, 129.571 trabalham, o que corresponde a 13, 04%. Dentre esses, 60% estavam no ramo de atividades agrícolas; 15,8%, em atividades do setor serviços; e 15,8%, em atividades de comércio (Kassouf, 2002).

Em João Pessoa, são 5.204 crianças e adolescentes inseridos em situação de trabalho precoce, fato que confere à cidade o 1º lugar no ranking do Estado em número de crianças e adolescentes trabalhando (Alberto, Gomes, Souza & Wanderley, 2006).

Estudos mostram que, atualmente, a principal causa de exploração da mão-de-obra infantil e adolescente é a pobreza (Minharro, 2003). Todavia, a inserção precoce de crianças e adolescentes no mundo do trabalho chama a atenção para uma situação complexa, em que determinantes sociais, econômicos e culturais encontram-se intimamente relacionados.

Para Alberto (2002), as causas do trabalho precoce estão relacionadas a múltiplas causas, entre as quais fatores sociais, políticos e econômicos. No contexto urbano esses fatores referem-se: ao avanço da tecnologia e à flexibilização do mercado de trabalho, que promovem o desemprego estrutural; ao acirramento das forças produtivas, que gera a concentração de renda; ao estabelecimento de políticas públicas recessivas, que contribuem para o fechamento de postos de trabalho e a desvalorização salarial; e ainda, às crescentes transformações nas relações e condições de trabalho.

De acordo com Cervini e Burger (1991), o ingresso precoce no trabalho decorre de duas ordens de macrofatores, quais sejam: a pobreza, em que as famílias são impelidas a tomar determinadas decisões, como a de mandar seus filhos para trabalhar; e a estrutura do mercado de trabalho, cuja configuração oferece condições apropriadas para a absorção desse tipo de mão-de-obra.

Segundo Moreira e Targino (1997), o processo de modernização e as mudanças nas relações de trabalho no campo, bem como a inserção de mulheres, crianças e jovens na agricultura em substituição à figura masculina que migra para as cidades, também devem ser considerados como fatores que contribuem para o crescimento do trabalho precoce no espaço urbano. Entretanto, além dos fatores citados, o fator ideológico, presente no sistema geral de valores dominantes na sociedade, configura-se como uma instância formadora de opinião e, como tal, fundamenta preferências e comportamentos, define as condições de oferta de determinados bens e serviços sociais e influencia a regulamentação e o controle por parte do Estado e da sociedade civil. No tocante ao trabalho precoce, a ideologia que fundamenta esse sistema contribui para a aceitação social e a conseqüente naturalização e disseminação deste através da perpetuação de uma cultura pró-trabalho infantil. Tal cultura encontra-se relacionada, principalmente, ao significado da infância ao longo do processo histórico, cultural e econômico da sociedade, cuja dinâmica cria necessidades de modo a fortalecer as concepções mais adequadas para sua manutenção.

Para a criança e o adolescente das classes populares, determinados privilégios desfrutados no seio familiar são perdidos à medida que esses sujeitos crescem e passam a ter condições de fazer certas tarefas. Esse fato vem ratificar a cultura do trabalhador, segundo a qual, para os filhos das classes populares, trabalhar, mesmo em idade precoce, é uma forma de ocupar o tempo e aprender um ofício. Nesse sentido, o trabalho é entendido não só como uma necessidade, mas também como uma virtude (Vogel & Mello, 1991). Assim, a infância acaba mais cedo em função da inserção da criança no trabalho (Alberto et al., 2006; Dauster, 1992; Sarti, 1996; Stengel & Moreira, 2003).

Diante do exposto, abordar a problemática sobre o trabalho precoce leva a questionar a garantia dos direitos básicos do cidadão criança e do cidadão adolescente, os quais, na condição de sujeitos de direitos, dispõem de um aparato legal que estabelece medidas de proteção específicas em reconhecimento às peculiaridades da fase evolutiva em que se encontram. Em termos legais, a situação de trabalho precoce, neste estudo utilizada em referência às atividades de trabalho desempenhadas por crianças ou por adolescentes até os dezesseis anos de idade (Alberto, 2002), infringe tanto a legislação internacional quanto a nacional.

Na esfera internacional, a criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1919, instituiu um expressivo volume de determinações para lidar com a questão da inserção de crianças e adolescentes no trabalho, como as Convenções nº 138 (1973) e nº 182 (1997) e as Recomendações nº 146 (1973) e nº 190 (1999). Posteriormente, a Declaração de Genebra consubstanciada na Declaração dos Direitos da Criança e adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1959, passou a constituir a base para a subscrição da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança. Esse documento, adotada pela comunidade internacional em 1989 e ratificado pelo Brasil através do Decreto Legislativo nº 28 de 14.09.90, determinou proteção contra a exploração econômica e o desempenho de atividades de trabalho infantil e adolescente (Art. 32).

Na esfera nacional, conforme a Constituição Federal (Brasil, 1988) - Artigos 5º, 205, 206, 208 e 227 - e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1991) - Art. 60 (alterado pela Emenda Constitucional n.º 20, de 1998), é proibido qualquer trabalho aos menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos.

Destarte, urge ser aprofundada a questão do trabalho precoce na sociedade brasileira, não só pelas proporções que assume (cerca de 5,1 milhões de crianças e adolescentes, conforme o PNAD, 2003), mas também pelas conseqüências que acarreta, como implicações físicas, vulnerabilidade às doenças e aos acidentes de trabalho (Forastieri, 1997); implicações psicossociais, como baixa auto-estima, socialização desviante, adultização precoce, (Alberto, 2002); e, sobretudo, educacionais, como defasagem no nível de escolaridade, reprovação, repetência e abandono escolar (Cervini & Burger, 1991; Kassouf, 2002; Rizzini, 1996; Tavares, 2002). Nessa perspectiva, chama-se a atenção para o comprometimento que o trabalho implica com a formação integral desses sujeitos, cuja inserção precoce lhes restringe a participação em atividades indispensáveis ao desenvolvimento físico, intelectual, emocional e social, consubstanciadas, entre outras, nas situações vivenciadas através do processo de escolarização.

Por outro lado, visto que o trabalho precoce constitui-se no imaginário social brasileiro como um fato natural, pois surge no bojo da dinâmica das relações socioeconômicas e de classe, só é possível compreendê-lo situando-o na totalidade de uma perspectiva sócio-histórica, em que a realidade objetiva é ativamente reconstruída pela subjetividade dos homens ao longo da história. Estes se apropriam dos conhecimentos provenientes da prática social internalizando concepções, valores e significados e produzindo ideologias (Bock, Gonçalves & Furtado, 2002; Palangana, 1994).

Com base nesse fluxo de inter-relações, este estudo buscou compreender as condições sócio-históricas e culturais subjacentes à relação do trabalho precoce com o processo de escolarização das crianças e dos adolescentes, apropriando-se de algumas das proposições da Psicologia Histórico-Cultural de Vygotsky no que se refere às relações entre o paradigma da historicidade/ contextualidade e o fenômeno pedagógico, este, concretizado no processo de escolarização e forjado numa dimensão em que convergem a história social e a história pessoal dos sujeitos envolvidos.

A partir dos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural de Vygotsky, os quais caracterizam uma concepção contextual da constituição da consciência do sujeito, ressaltou-se a interação dialética entre o social e o individual como dimensões interdependentes, as quais se integram e se influenciam mutuamente. Sob essa concepção, a construção da subjetividade das crianças e dos adolescentes trabalhadores precoces decorre das experiências sociais vivenciadas por eles, cujas condições materiais, em que signos e significados culturais são produzidos e compartilhados, tornam-se seus elementos formadores, definindo sua identidade perante o contexto social e influenciando seu comportamento. Diante disso, as vivências como trabalhadores precoces passam a se tornar o quadro de referência sobre o qual os conhecimentos, os sentimentos e as ações compõem a subjetividade a respeito da escola e do trabalho.

Outrossim, ressalta-se ainda que o conteúdo da consciência dos trabalhadores precoces é construído a partir da apreensão do contexto sócio-histórico e cultural em que estão inseridos, configurando uma interação dialética e recíproca, em que o significado social sobre o trabalho e a escola adquire um sentido pessoal, idiossincrático, forjando a subjetividade ante esses dois segmentos. Nessa interação, o processo de escolarização de crianças e adolescentes trabalhadores precoces reflete quanto o trabalho lhes é pungente, visto que lhes restringe o envolvimento nas atividades escolares e os afasta gradativamente do processo de escolarização.

Sobre a referida questão, Vygotsky (citado por Castorina, 2000; Oliveira, 2005; Van Der Veer & Valsiner, 1991) aponta a importância da educação formal através das situações sistematizadas e previamente planejadas do ensino escolar, em que o sujeito vivencia novas situações de aprendizagem, e o conhecimento, antes veiculado no plano da espontaneidade, passa a ser estruturado sob a forma de modalidades de pensamento particulares, que dependem de intervenção deliberada numa determinada direção. Além disso, a educação escolar oferece ao sujeito a apropriação de um conjunto de signos culturais - como palavras, sistemas de escrita, números, símbolos algébricos, mapas, entre outros - que se constituem em elementos essenciais à construção de sua subjetividade e contribuem para importantes aquisições cognitivas e psicológicas (Castorina, 2000; Oliveira, 2005; Van Der Veer & Valsiner, 1991).

Ao postular que o ser humano transforma-se de biológico em histórico, substrato sobre o qual se desenvolvem as funções psicológicas superiores tipicamente humanas (capacidade de pensamento, linguagem, planejamento arbitrário, memória voluntária, imaginação), cujo funcionamento é cultural e histórico, Vygotsky (1934/2000) atribuiu um papel relevante à escola enquanto uma instituição que repassa modos culturalmente construídos de estruturar e compreender a realidade material.

Nessa perspectiva, enfatizou a relevância da educação escolar, uma vez que esta, concomitantemente às vivências socioculturais, desempenha igual importância para o desenvolvimento, sobretudo para o desenvolvimento intelectual, que, entre outros meios, acontece através da evolução das funções psicológicas inferiores para funções psicológicas superiores. Além disso, considerou o processo de escolarização qualitativamente diferente do processo de educação em sentido amplo, pois na escola o sujeito passa a compreender a base dos conceitos científicos através da instrução sistemática e deliberada, a qual viabiliza a aprendizagem de conceitos mais elaborados e resulta em desenvolvimento mental (Vygotsky, 1998).

Conforme Vygotsky (1934/2000), a idade escolar é o período optimal de aprendizagem, pois corresponde à fase sensível em relação às disciplinas que se apóiam ao máximo nas funções intelectualizadas, ou seja, que são mediadas pela tomada de consciência e pela arbitrariedade do pensamento, as quais, por sua vez, constituem momentos de um mesmo processo de transição para as funções psicológicas superiores.

O aprendizado advindo do ensino formal organiza o processo sucessivo do desenvolvimento e determina seu destino, interferindo no seu curso e exercendo um papel determinante, pois proporciona a evolução das funções psicológicas que ainda não se encontram maduras até o início da escolaridade. Nessa perspectiva, o aprendizado das disciplinas escolares assegura as melhores condições para o desenvolvimento das funções psíquicas superiores que se encontram na zona de desenvolvimento proximal, ou seja, com o potencial de realização a partir da ajuda do outro - seja um companheiro mais experiente, seja um professor - nas vivências escolares (Vygotsky, 1934/2000).

Segundo Vygotsky (1934/2000), um dos aspectos relevantes do processo escolar, particularmente para o desenvolvimento intelectual do sujeito, refere-se à colaboração sistemática entre o aluno e o professor, na qual ocorre o amadurecimento das funções psicológicas superiores do primeiro sob a condução e orientação do segundo. Esse amadurecimento manifesta-se na crescente relatividade do pensamento causal e na evolução de um determinado nível de arbitrariedade do pensamento científico, cujo nível é criado pelas condições de ensino, passando a fazer parte da zona das possibilidades imediatas em relação aos conceitos espontâneos.

Diante do exposto, tomando-se por base a concepção de Vygotsky (1934/2000) sobre o papel essencial que a educação formal desempenha no desenvolvimento intelectual e cognitivo do sujeito, pode-se vislumbrar quanto a o trabalho no tempo a ser dedicado à escola traz implicações a esse desenvolvimento.

No caso dos trabalhadores precoces, a rotina de trabalho, que lhes causa cansaço físico (dores no corpo, na cabeça), sobrecarga de responsabilidades e desânimo, priva-os da brincadeira, e não raro, de estudar, passando a se tornar a referência primeira em termos de conhecimentos, ao invés das vivências escolares. Enquanto alunos, eles se atêm prevalentemente ao conhecimento do senso comum e das experiências cotidianas, o que contribui para que se tornem leigos no domínio dos conhecimentos científicos e no capital cultural requerido nas sociedades escolarizadas. Assim, tendem a fracassar na escola, pois nesta são exigidas habilidades pautadas em parâmetros que somente a educação formal poderá oferecer, entre as quais: raciocínio lógico, pensamento abstrato, linguagem conceitual, conceitos aritméticos e algébricos, entre outros.

Além disso, tendo-se em vista que na situação de trabalho precoce as interações sociais não apresentam a sistematização e a intencionalidade direcionada à aquisição do conhecimento científico, o desenvolvimento das habilidades cognitivas do sujeito torna-se limitado, podendo vir a comprometer o aprimoramento de uma série de funções intelectuais superiores, como a atenção arbitrária, a memória lógica, a abstração, a comparação, a discriminação e a generalização, funções que são estimuladas no ensino formal através do processo de escolarização e viabilizam aspectos essenciais ao desenvolvimento intelectual e cognitivo.

Chama-se a atenção, ainda, para o fato de que a situação de trabalho precoce traz implicações que se refletem não só na dimensão mais visível do aspecto físico (fadiga, enfermidades, acidentes de trabalho) e escolar (baixo nível de escolaridade, reprovação, repetência e abandono escolar), mas principalmente na dimensão latente da subjetividade, enquanto uma categoria de trabalho que imprime exclusão e sofrimento, no anonimato da informalidade.

MÉTODO

Participantes

A amostra deste estudo foi constituída por 21 sujeitos na faixa etária de 10 a 14 anos, dos gêneros masculino e feminino. Sua definição baseou-se nos seguintes critérios: serem crianças e adolescentes trabalhadores precoces nas atividades informais em condição de rua: vendedores em feiras livres, engraxates, olheiros (olha veículos em estacionamentos), fretistas (carregadores de frete em feiras livres); serem estudantes do ensino fundamental I e II da rede pública do município de João Pessoa e, principalmente, aceitarem participar voluntariamente da pesquisa.

Instrumentos

Os instrumentos utilizados na realização desta pesquisa foram: análise documental, referente a arquivos do IBGE (2005), dados do mapeamento sobre o trabalho precoce na Paraíba1 1 Este mapeamento foi feito pelo Grupo de Estudos sobre o Trabalho Precoce (ligado ao Mestrado em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba) em parceria com o Fórum de Erradicação do Trabalho Infantil e Defesa do Adolescente Trabalhador (FEPETI) do Estado da Paraíba, Delegacia Regional do Trabalho, 13ª Região (DRT/MTE) e Procuradoria Regional do Trabalho, 13ª Região (MPT). ; territorialização, técnica específica de aproximação entre o pesquisador e os sujeitos contatados no espaço da rua (Graciani, 1997); e entrevistas individuais semi-estruturadas, direcionadas por questões norteadoras para enfocar as implicações da relação trabalho/ processo de escolarização, no tocante à subjetividade forjada a partir dessa situação. O número de entrevistas realizadas foi definido com base no critério de saturação, segundo o qual o número-limite das entrevistas se dá quando da repetição dos temas suscitados, cuja ocorrência pouco acrescenta ao conteúdo significativo das entrevistas (Sá, 1998).

Procedimentos

Inicialmente foi realizada a análise documental, para levantamento dos dados numéricos referentes ao trabalho precoce no Brasil, no Nordeste e na Paraíba, e a análise a partir de relatórios do mapeamento sobre trabalho precoce no Estado da Paraíba, especialmente na cidade de João Pessoa. Em seguida, foi realizada a territorialização nos locais em que os trabalhadores precoces comumente se concentram para exercer as atividades de trabalho, como estacionamentos de supermercados, calçadão da orla marítima e, principalmente, feiras livres, onde se verifica uma intensa concentração deles. Por último, realizaram-se as entrevistas, nos mesmos locais da territorialização, Estas foram feitas individualmente, gravadas em fitas cassete, transcritas e analisadas a partir da análise de conteúdo de Bardin (1977/1994), perspectiva da técnica de análise de conteúdo temático com ênfase na ausência ou na presença do tema, a despeito da freqüência, constando das seguintes etapas: leitura flutuante (contato com todo o conteúdo transcrito); tabulação das falas transcritas (recorte das unidades temáticas); codificação (agrupamento dos recortes das unidades temáticas); categorização (representação simplificada do conteúdo emergido no discurso do sujeito); inferência (explicação dos resultados encontrados); e, por último, interpretação (relações entre os fundamentos teóricos adotados e os dados empíricos encontrados).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Gênero

Entre os 21 participantes identificou-se a prevalência do gênero masculino (19 do gênero masculino e 2 do feminino), corroborando com estudos anteriores, segundo os quais o índice de participação dos meninos no setor informal de rua é maior do que o das meninas, fato universalmente observado (Alberto et al., 2006; Barros, Mendonça & Santos, 1991). Esse fato se deve, dentre outros, aos fatores de caráter cultural (os meninos estão mais nas atividades de rua enquanto as meninas mais inseridas nas atividades domésticas), familiar (permissão da família para certas ocupações, locais ou horários de trabalho) e financeiros, em que os baixos salários oferecidos pelo trabalho na rua não atraem as meninas (Barros et al., 1991; Cervini & Burger, 1991). Todavia, as meninas encontram-se inseridas na exploração sexual comercial, tendo como agravante o fato de não serem consideradas trabalhadoras precoces (Alberto, 2002).

Idade

Em relação à faixa etária, a idade mínima dos participantes foi de 10 anos, e a máxima, de 14 anos, sendo esta última a predominante. Os achados corroboram dados dos demais municípios da Paraíba, onde a faixa etária de 10 a 14 anos é apontada como a mais significativa para a inserção no trabalho precoce (Alberto et al., 2006). Por outro lado, essa faixa etária abrange a fase escolar do ensino fundamental, que, de acordo com a estrutura do sistema de ensino nacional, faz parte da educação básica, e, em termos cognitivos, corresponde ao período em que a aprendizagem de conteúdos escolares básicos - como leitura, escrita, aritmética, noções de ciências sociais e naturais - constitui requisito importante para o desenvolvimento de habilidades e competências intelectuais futuras, pois os elementos citados são imprescindíveis para a aquisição de conhecimentos mais complexos (Vygotsky, 1934/2000, 1998).

Escolaridade

A escolaridade dos participantes deste estudo esboça uma situação em que a questão da defasagem escolar está presente de forma significativa. Mais de 50% dos sujeitos que participaram da pesquisa encontravam-se cursando séries do ensino fundamental I: 3ª e 4ª séries, esta última, a série prevalente. Além disso, a maioria apresentava defasagem escolar, pois, tendo em vista o predomínio da idade de 14 anos, em tese, esses sujeitos deveriam estar freqüentando a 8ª série do ensino fundamental, contudo, dentre os dez sujeitos com essa idade, oito estavam cursando séries anteriores. Desses oito, cinco ainda cursavam a 4ª série, implicando dizer que mais da metade deles apresentava defasagem de quatro anos na escolaridade. Nesse sentido, constata-se que o trabalho precoce acarreta adversidades e dificuldades em acompanhar a escola, contribuindo para o atraso e evasão do processo de escolarização desses alunos.

Trabalho

Os participantes desta pesquisa são trabalhadores precoces nas atividades informais urbanas em condição de rua: quatorze são fretistas, cinco são vendedores, um é olheiro e um é engraxate. Em termos ocupacionais e econômicos, as referidas atividades abrangem o setor do comércio (vendedor) e o de serviços (olheiro, engraxate, fretista). A faixa etária de ingresso no trabalho variou de 5 a 14 anos, sendo a idade de 12 anos a prevalente. Em termos de jornada de trabalho, a média observada foi de 5 a 6 horas por dia; mas foram identificadas, também, jornadas que ultrapassavam oito horas, carga horária determinada por lei para um trabalhador adulto. Diante dos dados observados, chama-se a atenção para a rotina desses trabalhadores, em que o cansaço físico (dores no corpo, dor de cabeça), o cansaço mental (sobrecarga de responsabilidades, falta de coragem "... cansado, morto") e, sobretudo, privações em termos de brincar, de estudar, progressivamente os distanciam da própria condição de criança e de adolescente: "Não tenho hora de brincar não, só no domingo mesmo".

Ademais, tendo em vista a contaminação do estudo pelo trabalho, observa-se, no âmbito nacional, o não-cumprimento de princípios estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente, Artigos 53 a 59, e no internacional, a violação à Convenção Internacional dos Direitos da Criança (Convenção Internacional dos Direitos da Criança, 1989). Essa violação denuncia o mau funcionamento do organismo estatal brasileiro, pois, dentre outras falhas, não adota medidas que estimulem a freqüência escolar e a redução do índice de evasão escolar, especialmente em relação às crianças e adolescentes que trabalham (Art. 28); não cria as oportunidades adequadas e condições de igualdade para a inserção e participação desses sujeitos na vida cultural da sociedade (Art. 31); não resguarda as crianças e os adolescentes da exploração econômica, que interfere na educação, no desenvolvimento físico, mental e social (Art. 32).

O entendimento sobre o trabalho precoce, o estudo e as perspectivas de futuro

Conforme os dados, a situação de trabalho é entendida a partir da interação entre duas instâncias: a pessoal e a familiar. De forma significativa, trabalhar constitui uma questão de necessidade diante da situação compulsória de contribuir com o orçamento familiar. Por outro lado, também representa satisfação pessoal, tendo em vista a oportunidade de ganhar dinheiro para comprar as próprias coisas, ocupar o tempo e, conseqüentemente, sentir-se útil. Entretanto, a despeito de o trabalho constituir uma forma de ocupação, de afastamento da "vagabundagem", e, principalmente, ser um meio de ter dinheiro no bolso, há uma valorização explícita do estudo em relação ao trabalho, "A pessoa tem que estudar primeiro para depois trabalhar".

Nesse sentido, freqüentar a escola, assistir às aulas e realizar as tarefas escolares foram apontados como fatores decisivos para conseguir um trabalho melhor no futuro e alcançar condições de vida mais dignas. Sob essa premissa, o estudo constituiu a aspiração maior, denotando em que grau o ingresso precoce no trabalho é uma questão de precisão mais do que de opção2 2 O ingresso precoce no trabalho não é uma escolha de livre vontade, mas compulsória, tendo em vista as circunstâncias vivenciadas. .

Por outro lado, a despeito do reconhecimento do estudo como um meio relevante para se conseguir "uma vida melhor", as perspectivas de futuro dos trabalhadores precoces denotam a lacuna entre o real e o ideal, diante das condições materiais em que estão inseridos. No que se refere ao exercício profissional, prevaleceu a escolha de profissões cujo exercício prescinde de um nível de escolaridade decorrente da formação acadêmica, como jogador de futebol, policial e "bom trabalhador", expressão que emergiu das falas dos sujeitos para referir-se ao trabalhador que tem um emprego formal, com carteira assinada e cumpridor de suas obrigações.

Sob essa concepção, embora o estudo seja identificado como um elemento de mobilidade social, a realidade sociocultural e econômica onde os trabalhadores precoces estão inseridos condiciona suas perspectivas de futuro em termos de aspirações profissionais, as quais são, predominantemente, relativas às profissões oriundas da cultura do trabalhador, ou até mesmo de atividades pouco qualificadas e de baixa remuneração. Assim, observou-se que as experiências mal-sucedidas no processo de escolarização desses adolescentes (fracassos, defasagens e abandonos escolares) constroem conhecimentos, subjetividades e aspirações, de modo que esses sujeitos se vêem impotentes diante das condições materiais de que dispõem e descrentes de conseguir alcançar um nível de escolaridade mais aprimorado, que no futuro lhes assegure participar do mercado profissional de forma mais qualificada e socialmente valorizada.

Essa situação reitera-se à luz do modelo histórico-cultural, segundo o qual a constituição do sujeito encontra-se intimamente relacionada com a multiplicidade de influências a que é submetido no curso de seu desenvolvimento, as quais são internalizadas de modo ativo e conforme o repertório do grupo social a que pertence (Rego, 2005). Em termos do desenvolvimento cognitivo, conforme Vygotsky (citado por Van Der Ver & Valsiner, 1991), este também ocorre em função da capacidade do contexto social em oferecer experiências significativas na relação com o ambiente. Assim, o meio tanto contribui para o prosseguimento do processo de desenvolvimento, oferecendo as condições para tal, como para o recuo deste, quando da ausência daquelas (Van Der Ver & Valsiner, 1991). No caso dos trabalhadores precoces, as condições materiais, ao mesmo tempo em que os impelem para o trabalho, também os afastam do processo de escolarização e, com isso, de oportunidades mais concretas de desenvolver-se intelectualmente numa sociedade letrada e, conseqüentemente, de exercer uma profissão de respaldo social e financeiro.

Processo de escolarização dos trabalhadores precoces

No que se refere à amostra desta pesquisa, a despeito de todos se dizerem estar estudando, para a maioria o "estudar" era restrito aos poucos momentos em que estavam na escola. O mesmo foi observado em relação aos "deveres escolares", os quais não eram vivenciados como uma atividade diária, mas esporádica, na maioria das vezes realizada à noite, nos finais de semana, ou, ainda, entre o intervalo da escola e do trabalho.

Constatou-se uma defasagem escolar significativa entre as crianças e os adolescentes trabalhadores precoces que participaram deste estudo, tendo-se em vista o número significativo dos sujeitos mais velhos nas primeiras séries do ensino fundamental I e a ausência, quase que diretamente proporcional, nas séries mais adiantadas do ensino fundamental II. Dos 21 sujeitos, 14 se encontravam em séries inferiores à sua faixa de idade, chamando a atenção, ainda, o tempo dessa defasagem, que era prevalentemente de três anos.

Os dados dão conta ainda de que, das 21 crianças e adolescentes desse estudo, 15 já foram reprovados e, igualmente, 15 já repetiram a série pelo menos uma vez. De acordo com os sujeitos, a série em que ocorreu o maior número de reprovação e repetência foi a 2ª série do ensino fundamental I. Este fato pode estar relacionado com uma maior demanda do próprio processo de ensino-aprendizagem em termos de leitura, de interpretação textual e de escrita, habilidades comumente requeridas de forma mais efetiva nas séries que se sucedem ao processo de alfabetização propriamente dito; todavia, um maior aprofundamento dessa questão extrapola os objetivos do presente estudo.

Não obstante, apesar da precariedade que permeia o processo de escolarização dos referidos sujeitos, eles ainda preservam a valorização dos estudos "... estudo tem futuro" e persistem em estudar, mesmo que isso implique abandonar a escola no ano letivo corrente e voltar a se matricular no ano seguinte. Em relação a esse aspecto, dois dos vinte e um participantes, quando contatados um mês depois, informaram ter abandonado os estudos.

O fato de as crianças e dos adolescentes trabalhadores precoces tentarem continuar estudando, alternando o abandono e o retorno à escola, traz à tona uma questão ambígua. Se por um lado a referida situação denota a valorização do estudo, também implica um gradativo distanciamento do processo escolar, pois, à medida que os trabalhadores precoces tornam-se adolescentes, também se tornam mais propensos a abandonar as atividades escolares e o retorno aos estudos tende a cessar (Cervini & Burger, 1991; Rizzini, 1996, 2002). Segundo esses autores, entre os fatores que impelem o adolescente a optar pelo trabalho em detrimento do estudo são muito pertinentes aqueles relacionados ao processo de escolarização. Acontecimentos como a entrada tardia na escola, os freqüentes abandonos temporários, a repetência, a reprovação, o atraso etário com relação à série, constituem motivos contundentes para uma crescente preferência por trabalhar. Nesse sentido, o trabalho passa a ser visto como uma aspiração mais concreta e imediata, ao passo que completar a escolaridade torna-se cada vez mais distante e difícil, o que contribui para que estudar seja uma atividade relegada a segundo plano, geralmente realizada à noite e, com o decorrer do tempo, abandonada.

Corroborando esse último aspecto, conforme os dados empíricos dos 10 sujeitos que tinham 14 anos de idade, 5 já estudavam à noite. Para estes, a tentativa de conseguir um rendimento financeiro melhor, trabalhando nos turnos da manhã e da tarde, rendialhes um aproveitamento escolar medíocre, decorrente do cansaço do corpo e da falta de disposição que a jornada de trabalho impunha. Tal jornada inoportunamente os afasta do tempo que deveria ser dedicado ao estudo, à brincadeira, à interação social com os pares e a tantas outras atividades igualmente relevantes nessa fase de desenvolvimento.

Tomando por base a concepção de Vygotsky (1934/2000) sobre o papel essencial que a educação formal desempenha no desenvolvimento intelectual e cognitivo do sujeito, pode-se vislumbrar quanto a realidade do trabalho no tempo a ser dedicado à escola traz implicações a esse desenvolvimento. Para Vygotsky (1934/2000), a importância da escola relaciona-se à questão do aprendizado gerado pelo ensino escolar, o qual prepara e impulsiona o processo de desenvolvimento mental e cognitivo. Nesse processo se configuram situações particularmente relevantes, como: o contato com os conceitos científicos - os quais proporcionam um tipo novo e superior de pensamento: o pensamento verbal e a ampliação da função básica de intercâmbio social da linguagem, a aquisição da linguagem racional; o treinamento de habilidades metacognitivas - relacionadas ao controle consciente dos conceitos, ao uso deliberado das operações mentais bem como ao desenvolvimento da arbitrariedade; os procedimentos de instrução deliberada - cuja transmissão integra conceitos em sistemas de conhecimento articulados pelas diversas disciplinas científicas; a intervenção pedagógica - a qual provoca avanços na aprendizagem que não ocorreriam espontaneamente; e por fim, o convívio com os pares, em que a interação entre os alunos estimula a troca de conhecimentos e estratégias que são legítimas promotoras de aprendizado na escola.

Sob essa perspectiva, o trabalho em idade precoce reproduz um conjunto de circunstâncias que só vem a tornar cada vez mais difícil a escolarização de crianças e adolescentes, pois em termos de implicações biopsicossociais, trabalhar e ao mesmo tempo estudar acarreta cansaço e exaustão do corpo, responsabilidades prematuras, baixa auto-estima, adultização precoce, contaminação do tempo a ser dedicado ao estudo e ao lazer, e, sobretudo, violação dos direitos fundamentais de cidadania (Alberto et al., 2006).

Em termos de implicações intelectuais, o processo de escolarização, concomitantemente à condição de trabalho, impõe significativas restrições no desenvolvimento cognitivo dos alunos trabalhadores precoces, uma vez que estes assistem às aulas cansados, sonolentos, precisam faltar às aulas, e, às vezes, até interrompem os estudos. Diante disso, perdem oportunidades significativas advindas das vivências escolares, tais como a interação social e o contato com o saber científico produzido através da instrução formal, cuja importância compreende o aprimoramento das capacidades psicológicas superiores (memória, pensamento, linguagem, atenção). Perdem também o domínio de aprendizagens específicas advindas da prática educativa, como falar, apresentar idéias, entender, argumentar, organizar planos de ação, as quais ampliam o conhecimento do ponto de vista pessoal, cultural e contextual (Oliveira, 2005; Rego, 2005).

CONCLUSÃO

No plano pessoal, as crianças e os adolescentes trabalhadores precoces são privados de condições essenciais a um pleno desenvolvimento nessa fase da vida, como, por exemplo, aquelas relacionadas: ao aspecto educativo, através da oportunidade de freqüentar a escola e estudar regularmente; ao aspecto lúdico, traduzido nos momentos de lazer e de brincadeira; ao aspecto físico, uma vez que o trabalho os deixa mais vulneráveis a acidentes, doenças, desgastes; e ao aspecto psicológico, dadas as limitações das aquisições cognitivas no que refere à aprendizagem escolar.

No plano social, o trabalho precoce implica danos à escolaridade e à condição de cidadania, pois representa uma violação aos direitos sociais humanos determinados na legislação, conforme a Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989); a Constituição Federal (Brasil, 1988) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1991).

Diante disso, a relação entre trabalho precoce e processo de escolarização, forjada na subjetividade que emerge da realidade material vivenciada pelos trabalhadores crianças e adolescentes, configura-se sob as demandas do contexto social, cultural e econômico em que estão inseridos, tornando-se o referencial de suas concepções pessoais, subjetivas e idiossincráticas sobre o trabalho e a escola. A complexidade dessa relação, concomitantemente com descontinuidade e as restrições impostas ao processo de escolarização e ao desenvolvimento integral desses sujeitos, suscita antagonismos e vivências subjetivas traumáticas. Se, por um lado, trabalhar representa satisfação pessoal, dado o ganho do dinheiro e a ocupação do tempo, por outro também o é uma questão de necessidade, em que se encontram implicados sofrimento (traduzido pela situação compulsória de ingressar precocemente no trabalho e assumir todas as responsabilidades que daí decorrentes)e marginalização, pois as atribuições do trabalho interferem no processo de escolarização e os trabalhadores precoces se vêem à margem do nível escolar e intelectual exigido nas sociedades letradas.

Além disso, a despeito do modesto ganho financeiro - na maioria das vezes até irrisório - que o trabalho traz no presente, ele é apontado como um dos fatores que contribui para perdas de oportunidades futuras, principalmente em relação aos estudos. Para os trabalhadores precoces, trabalhar restringe as chances de aprender, de estudar, e com isso, de ter uma formação melhor, a qual lhes permitiria não apenas inserir-se em atividades profissionais socialmente valorizadas e bem-remuneradas no futuro, mas sobretudo lhes asseguraria uma condição cidadã mais digna e socialmente participativa.

Recebido em 05/07/2007

Aceito em 10/01/2008

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  • Endereço para correspondência:

    Olívia Maria Costa Grangeiro de Sousa
    R. Dr. Arnaldo Gomes, 13
    CEP 58037-410,. João Pessoa-PB
    E-mail:
  • 1
    Este mapeamento foi feito pelo Grupo de Estudos sobre o Trabalho Precoce (ligado ao Mestrado em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba) em parceria com o Fórum de Erradicação do Trabalho Infantil e Defesa do Adolescente Trabalhador (FEPETI) do Estado da Paraíba, Delegacia Regional do Trabalho, 13ª Região (DRT/MTE) e Procuradoria Regional do Trabalho, 13ª Região (MPT).
  • 2
    O ingresso precoce no trabalho não é uma escolha de livre vontade, mas compulsória, tendo em vista as circunstâncias vivenciadas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Mar 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008

    Histórico

    • Aceito
      10 Jan 2008
    • Recebido
      05 Jul 2007
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