Acessibilidade / Reportar erro

Estranhos interiores: a loucura em triste fim de Policarpo Quaresma

Los extraños interiores: la locura en triste fin de Policarpo Quaresma

Strange inside: madness in Lima Barreto's triste fim de Policarpo Quaresma

Resumos

Escritor fervoroso, suburbano, negro, aguerrido, irônico, combativo, maldito e incompreendido por seus contemporâneos. Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) desceu ao inferno, conhecendo o desprezo de críticos e a indiferença familiar pela sua vocação literária. Inquieto na dor, ríspido com os hipócritas, teve diante de si a tragédia da loucura, do alcoolismo e do preconceito. O artigo investe nas relações entre a trágica loucura de João Henriques, pai de Lima Barreto, e o personagem Major Quaresma, do romance "Triste Fim de Policarpo Quaresma". Mescla de fantasia e realidade, literatura e confissão, explora-se um fato doméstico citado pelo seu biógrafo: a alienação mental de seu pai e a família esquartejada por longas e intermináveis crises neurastênicas. Tais temas orientam-se pela construção de uma estética da existência em que a vida em questão é analisada como uma obra de arte.

Lima Barreto; Policarpo Quaresma; loucura


Escritor apasionado, suburbano, negro, aguerrido, irónico, combativo, maldito y incomprendido por sus contemporáneos. Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) bajó al infierno, mientras sabiendo el desprecio de los críticos y la indiferencia familiar para su vocación literaria. Inquieto en el dolor, áspero con los hipócritas, él tenía ante si mismo la tragedia de la locura, del alcoholismo y del prejuicio. El artículo invierte en las relaciones entre la locura trágica de João Henriques, padre de Lima Barreto, y el personaje Comandante Quaresma, del romance "Triste Fim de Policarpo Quaresma". Mezcla fantasía y realidad, literatura y confesión, un hecho doméstico se explora mencionado por su biógrafo: la alienación mental de su padre y la familia descuartizadas por las crisis del neurasthenic largas e interminables. Los tales temas son guiados por la construcción de un estética de la existencia cuya la vida en cuestión se analiza como una obra de arte.

Lima Barreto; Policarpo Quaresma; locura


Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) was not only a suburban, courageous, ironic and combative writer, but also a Black man who was ostracized and misunderstood by many of his contemporaries. He experienced the critics' contempt and his family's indifference towards his vocation as a literary man. Restless in pain and harsh with hypocrites, he had to face madness, alcoholism and racial bias. The article reports the relationships between the madness of his father, João Henriques, and Major Quaresma, the protagonist of Lima Barreto's novel Triste Fim de Policarpo Quaresma. The novel is a mélange involving fantasy and reality, literature and confession. It involves a domestic fact mentioned by his biographer: his father's mental alienation and the family's tragic condition brought about by long and endless neurasthenic crises. Themes are foregrounded by the aesthetics of existence through which life is analyzed as a work of art.

Lima Barreto; Policarpo Quaresma; madness


ARTIGOS

Estranhos interiores: a loucura em triste fim de Policarpo Quaresma1 1 Apoio: Capes.

Strange inside: madness in Lima Barreto's triste fim de Policarpo Quaresma

Los extraños interiores: la locura en triste fin de Policarpo Quaresma

Marco Antonio Arantes

Doutor em Ciências Política

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Marco Antonio Arantes Rua André Veloni, n. 300, Parque Bandeirantes CEP 14090-450, Parque Bandeirantes, Ribeirão Preto-SP E-mail: marcoarantes@hotmail.com

RESUMO

Escritor fervoroso, suburbano, negro, aguerrido, irônico, combativo, maldito e incompreendido por seus contemporâneos. Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) desceu ao inferno, conhecendo o desprezo de críticos e a indiferença familiar pela sua vocação literária. Inquieto na dor, ríspido com os hipócritas, teve diante de si a tragédia da loucura, do alcoolismo e do preconceito. O artigo investe nas relações entre a trágica loucura de João Henriques, pai de Lima Barreto, e o personagem Major Quaresma, do romance "Triste Fim de Policarpo Quaresma". Mescla de fantasia e realidade, literatura e confissão, explora-se um fato doméstico citado pelo seu biógrafo: a alienação mental de seu pai e a família esquartejada por longas e intermináveis crises neurastênicas. Tais temas orientam-se pela construção de uma estética da existência em que a vida em questão é analisada como uma obra de arte.

Palavras-chave: Lima Barreto, Policarpo Quaresma, loucura.

ABSTRACT

Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) was not only a suburban, courageous, ironic and combative writer, but also a Black man who was ostracized and misunderstood by many of his contemporaries. He experienced the critics' contempt and his family's indifference towards his vocation as a literary man. Restless in pain and harsh with hypocrites, he had to face madness, alcoholism and racial bias. The article reports the relationships between the madness of his father, João Henriques, and Major Quaresma, the protagonist of Lima Barreto's novel Triste Fim de Policarpo Quaresma. The novel is a mélange involving fantasy and reality, literature and confession. It involves a domestic fact mentioned by his biographer: his father's mental alienation and the family's tragic condition brought about by long and endless neurasthenic crises. Themes are foregrounded by the aesthetics of existence through which life is analyzed as a work of art.

Key words: Lima Barreto, Policarpo Quaresma, madness.

RESUMEN

Escritor apasionado, suburbano, negro, aguerrido, irónico, combativo, maldito y incomprendido por sus contemporáneos. Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) bajó al infierno, mientras sabiendo el desprecio de los críticos y la indiferencia familiar para su vocación literaria. Inquieto en el dolor, áspero con los hipócritas, él tenía ante si mismo la tragedia de la locura, del alcoholismo y del prejuicio. El artículo invierte en las relaciones entre la locura trágica de João Henriques, padre de Lima Barreto, y el personaje Comandante Quaresma, del romance "Triste Fim de Policarpo Quaresma". Mezcla fantasía y realidad, literatura y confesión, un hecho doméstico se explora mencionado por su biógrafo: la alienación mental de su padre y la familia descuartizadas por las crisis del neurasthenic largas e interminables. Los tales temas son guiados por la construcción de un estética de la existencia cuya la vida en cuestión se analiza como una obra de arte.

Palabras-clave: Lima Barreto, Policarpo Quaresma, locura.

Perdi a esperança de curar meu pai, coitado, não lhe afrouxa a mania que, cada vez mais, é uma só, não varia: vai ser preso; a polícia vai matá-lo; se ele sair à rua, trucidam-no. Coitado, o seu delírio cristalizou-se, tomou forma.

Lima Barreto, Diário Íntimo (1956a)

Nove anos após terem se manifestado os primeiros sintomas da loucura paterna, o romancista carioca Lima Barreto se inspiraria em uma tragédia familiar para definir os contornos literários da loucura de seu personagem Major Quaresma, funcionário do Arsenal de Guerra, o qual acabaria sendo internado como louco no Hospício da Praia da Saudade. A correspondência entre a loucura de João Henriques - pai de Lima Barreto - e Major Quaresma remonta a uma série de fatos que marcariam a infância do escritor na Ilha do Governador, onde estavam localizadas as colônias de alienados Conde de Mesquita e São Bento, instituições psiquiátricas onde seu pai exerceu, de 1889 a 1902, as funções de escriturário, almoxarife e administrador, após uma carreira de vinte anos na Imprensa Nacional.

Esse período de sua vida é recordado no artigo "Da Minha Cela", escrito em 1918, em que se ocupa em descrever sua passagem pelo Hospital Central do Exército, onde esteve internado para tratamento da clavícula quebrada. No mesmo artigo, volta-se para os acontecimentos políticos e relata suas primeiras incursões no ambiente da loucura, que remonta à sua infância com a família no Sítio do Carico, mais tarde chamado de Sítio do Sossego em "Triste Fim de Policarpo Quaresma". Escrito por Barreto (1995) no próprio quarto do hospital, o autor anuncia seu contato mais remoto com a loucura, que ocorreria na Colônia de Alienados da Ilha do Governador, local de trabalho de seu pai: "Tenho, desde os nove anos, vivido no meio de loucos. Já mesmo passei três meses mergulhado no meio deles" (Barreto, 1956b, p. 99).

O encontro precoce com a loucura ocorre após a Proclamação da República, com João Henriques perdendo o cargo que ocupava na Imprensa Nacional, devido às suas simpatias com políticos monarquistas. Meses depois, João Henriques encontraria nova ocupação com a ajuda do ministro do interior Cesário Alvim, na Colônia Conde de Mesquita, na Ilha do Governador, um asilo de loucos voltado, exclusivamente, para indigentes "que não suportavam mais as exigências da civilização". Lá ficava o sítio onde Lima Barreto viria a conhecer Manuel de Oliveira, um preto cabinda que, apesar dos problemas passados que o atormentavam, superintendia na Colônia a seção dos porcos, "resmungando e balbuciando a sua dor eterna" (Barreto, 1956c, p. 226).

Essa estranha e simpática figura realizava seu trabalho nas horas vagas, porque sua principal ocupação era cuidar dos filhos de João Henriques. Inicialmente hóspede, Manuel de Oliveira tornou-se depois agregado dos Barreto, tornando-se assim o primeiro "amigo louco" do escritor, que o tratava respeitosamente de "Seu Lifonço".

Além da convivência com o velho Manuel, a loucura se apresentaria de forma definitiva e concreta ao escritor em 1902, aos vinte e um anos de idade, quando seu pai surpreende os filhos com uma crise delirante na madrugada da véspera da festa de Nossa Senhora da Glória. Esta subitaneidade da loucura de João Henriques desestabilizaria por completo a família, muito embora não fosse a primeira vez que uma crise nervosa acometia o ex-tipógrafo.2 2 Ocasionalmente, encontram-se referências ao episódio da loucura paterna em crônicas como "Quem Será Afinal" e "Henrique Rocha", ambas do livro "Bagatelas". Enuncia-se ainda a crônica "O Estrela", incluída em "Feiras e Mafuás", em que o romancista revela aspectos de sua infância no Sítio de Carico. Estas crônicas foram escritas e publicadas nos últimos anos de vida do escritor, período em que se dedicou mais ao tema da loucura, após o internamento no Hospício Nacional por três meses, de novembro de 1919 a fevereiro de 1920. A primeira crise ocorreu quando ainda era noivo de Amália Augusta Pereira de Carvalho, e foi motivada pelo desespero do noivo, que não acreditava cumprir todos os compromissos impostos pelo casamento. A crise nervosa exigiu tratamento por um período de seis meses como pensionista na Casa de Saúde e Convalescença de São Sebastião, por conta do padrinho de casamento, Afonso Celso, futuro Visconde de Ouro Preto.

Um fato trágico mudaria novamente os rumos da família, com problemas de saúde da Sra. Amália, que se complicaram quando esperava seu quinto filho. Ela faleceu em dezembro de 1887, vítima de uma tuberculose galopante, quando Lima Barreto mal completara seis anos de idade.

Se na primeira internação de João Henriques a crise de nervos limitou-se a uma tensão passageira, o mesmo não ocorreria na segunda e derradeira crise nervosa, que o levou a interromper compulsoriamente suas atividades na Colônia, por força da inesperada loucura que o levaria até a morte em 1922, depois de vinte anos prostrado numa cama.

Os dias que se seguiram ao enlouquecimento de João Henriques foram de intensa penúria, fazendo-se de tudo para economizar o pouco dinheiro que ainda restava. A intenção inicial da família era permanecer na Ilha do Governador, mas como não havia melhoras em seu estado clínico, decidiram se transferir para o Engenho Novo, bairro do subúrbio carioca, movidos pela crença, então aceita, de que a qualidade do ar seria capaz de curar a loucura, da mesma forma que curava os tuberculosos. Se existe um momento em que Lima Barreto introduz o universo suburbano em sua ficção, este ocorre no período de mudança da família para o Engenho Novo.

Por ser o filho mais velho, Lima Barreto teve a incumbência de tratar do processo de aposentadoria do pai, episódio que elucidará a sua repugnância pela burocracia estatal, motivada pela lentidão do funcionalismo público carioca, que só expediria o título de aposentadoria de João Henriques em 12 de julho de 1904, dois anos após o afastamento por invalidez.3 3 No início do processo de aposentadoria, pai e filho trocaram várias correspondências discutindo o encaminhamento dos papéis ao governo. Estas cartas revelam que, apesar da alteração mental de João Henriques, ela ainda não tinha se estendido nas operações mais comuns de seu juízo, e por isso, respondia com acerto e lucidez sobre aquilo que impedia sua aposentadoria. Isso explica em parte as críticas de Barreto à burocracia, tão presentes em sua obra. O que ela implica é a idéia de permanência, de ininterrupção, de continuidade, na qual o processo parece não avançar além de sua primeira fase; e por este motivo, é sempre necessário acompanhar, com intervalos regulares, seu andamento, antes que ele se perca no papelório burocrático. Isso não era uma tarefa fácil no limiar da República, em que possuir um cargo público significava geri-lo como patrimônio, ou mesmo como um modo de aumentar o prestígio e a riqueza pessoal.

Acentua-se nesse período sua ojeriza por Pelino Guedes, Diretor-Geral da Diretoria da Justiça. Pelino foi um funcionário público determinante no processo de aposentadoria, pois devido ao seu excessivo rigor burocrático, retardou os vencimentos da aposentadoria de seu pai, ao exigir uma lista infindável de documentos e certidões4 4 Ver "As Letras na Primeira República", publicado em História Geral da Civilização Brasileira/1977, Alfredo Bosi esclarece que o ponto alto da crítica barretiana à burocracia encontra-se presente no conto "O Número da Sepultura" (Contos Reunidos/1990), uma pequena obra-prima, em suas próprias palavras. . Por diversas vezes Lima Barreto irá lembrar-se com freqüência de Pelino em seus livros. A figura de Pelino Guedes na literatura de Lima Barreto se associa à mediocridade literária, à bajulação política, à burrice, ao niilismo intelectual, ao pedantismo beletrista e à picaretagem política. Ela também aparece como canal ou motivo para extravasar o rancor deixado com o interminável processo de aposentadoria do pai, que, mesmo afetado pelos delírios, acompanhou de perto o filho no árduo processo de encaminhamento dos papéis para o Tribunal de Contas. Este foi, provavelmente, o último resquício de sanidade de João Henriques, que viveria enfurnado por vinte anos em sua residência na Rua Boa Vista, a mesma que fora apelidada pelos moradores do bairro como "A Casa do Louco".

Uma análise mais atenta da loucura de João Henriques revela-nos que as razões eram as mais banais possíveis. Passou a sentir-se culpado pela diferença no livro-caixa da Colônia, por isso começou a acreditar que a polícia o perseguia para prendê-lo. Desde então passou a gritar constantemente e a ter delírios persecutórios. É interessante observar que, nesse mesmo ano, um almoxarife do Hospício Nacional seria acusado de desvio de verbas, e a repercussão na imprensa por incompetência administrativa culminou com a substituição do diretor Pedro Dias Carneiro por Antônio Dias de Barros (ver Barbosa, 1981).

Analisando com mais vagar a trajetória de João Henriques, percebemos as etapas do processo de construção social de sua loucura, mediante uma sucessão de acontecimentos trágicos na sua carreira de funcionário público, nos primeiros anos da República. Vale ressaltar que muitos psiquiatras associavam os delírios persecutórios a uma espécie de fuga, derrota ou mesmo um resguardo pessoal, de indivíduos que já tinham a vida como algo insuportável. Neste sentido, a loucura de João Henriques vincula-se sobretudo a um sentimento de derrota social, de fracasso diante da ascensão social, numa sociedade em que a competitividade era extremamente difícil e dolorosa, sobretudo para os negros. Significativa parcela dessas idéias se associava às teorias do darwinismo social, cujas etapas e estágios de evolução racial reforçavam a tese de que o hospício deveria abrigar os "perdedores da sociedade", os que tivessem sucumbido na competição social.

A presença dos delírios de perseguição, apontado pelo escritor como vindos de um fato aparentemente banal, assume uma dimensão catastrófica para um negro que vivia numa sociedade em que as pessoas dessa raça ainda davam seus primeiros passos como homens livres. Vale ressaltar as dificuldades relacionadas à inserção do negro no trabalho livre, pois ele ainda continuava sendo visto pelas elites como parte de um grupo subordinado, uma categoria distinta e problemática, um marginal, um ser dispensável, um sujeito irresponsável, incapaz de autodisciplina e despreparado profissionalmente, ao ponto de ser preterido pela política imigrantista em regiões onde o desenvolvimento econômico era maior.

Em João Henriques o delírio manifesta-se como um questionamento do racismo que o ajuda a compreender a questão da produtividade individual como um elemento fincado na base da construção social da loucura, visto que grande parte da população interna do hospício era formada pelas camadas mais pobres da população. Trata-se da loucura construída pelo medo, o medo de não poder mais trabalhar e de não mais poder desempenhar o papel de chefe e provedor da família. Não causa estranheza o fato de Lima Barreto dimensionar estes acontecimentos como uma tragédia doméstica ou vergonha doméstica, podendo eles ser ampliados para outras denominações não menos tristes e mórbidas, como "uma dolorosa geena para minha alma", "tristonha moléstia de meu pai", "grave dor doméstica que me ensombra a existência" e "meu pai, meu grande e infeliz pai". Essa maneira pessimista de falar sobre a tragédia paterna demonstra o desencanto e a descrença em relação à sua recuperação, fato abordado com certa constância em diversas confissões de seu diário e em várias crônicas, entre elas, "Quem Será Afinal?", do volume "Bagatelas".

Este pessimismo, que mais tarde seria compartilhado por toda a família, contrasta com a esperança de uma cura nos primeiros anos de sua doença, quando os filhos se recusam a interná-lo no hospício, optando pelo acompanhamento psiquiátrico doméstico. Com essa escolha, a família livrava-se dos gastos com a estadia no hospício, muito comum aos pensionistas, e, principalmente, preservava-o de uma promiscuidade constrangedora. O tratamento domiciliar destinado a João Henriques ocorria com o consentimento da Comissão de Saúde Pública da Capital, que, em 22 de dezembro de 1903, apresentou um projeto médico ao Senado, conhecido como "Decreto 1132", que entraria para a história como a primeira "Lei Federal de Assistência aos Alienados", lei que foi fundamental no reconhecimento jurídico e na consolidação dos mecanismos institucionais da psiquiatria, impulsionando o desenvolvimento de pesquisas e formação de psiquiatras. "ART. 3 - O enfermo de alienação mental poderá ser tratado em domicílio, sempre que lhe forem subministrados os cuidados necessários" (Coleção Leis da República, 1907, p. 184).

Dentro de um contexto histórico, o "Decreto 1132" compõe um quadro em que a psiquiatria começa a expandir seu alcance sobre a esfera doméstica, impondo sua reflexão teórico-científica. Com isso, cresceu a influência e o prestígio de muitos psiquiatras, que passaram a se apresentar como pessoas úteis, necessárias e indispensáveis nos cuidados da loucura. No entanto, o tratamento doméstico não era considerado pela classe médica o mais adequado para chegar-se à cura da loucura. Esta defendia o isolamento nos hospícios como condição essencial para a "cura medicalizada", pois para alguns médicos, o ambiente familiar poderia agravar a loucura dos pacientes e desestruturar radicalmente a hierarquia da família, principalmente quando o enfermo fosse o seu chefe. Isso não era um obstáculo para as famílias mais abastadas, pois estas tinham melhores condições materiais de oferecer segurança e garantias para o "louco" da família. Evidentemente, a família Barreto não se encaixava nesta categoria, mas ficava claro que a internação poderia ocorrer toda vez que a família se sentisse incomodada, ou "salvo o caso de perigo iminente para a ordem pública ou para o próprio enfermo", conforme determinava o "artigo 6 do Decreto 1132, de 1903".

O primeiro diagnóstico médico do estado mental de João Henriques acusava neurastenia cerebral e foi feito pelo então diretor do Hospício Nacional, Dr. João Carlos Teixeira Brandão. Antes dele, porém, o Dr. Braule Pinto, médico amigo da família, encarregava-se do tratamento do pai do romancista. Foi Braule Pinto que presenteou Lima Barreto com a obra "Le Crime Et La Folie", de Maudsley, provocando o futuro interesse do jovem escritor pelo apavorante espetáculo da loucura.

O padecimento paterno que acompanhou a juventude do escritor seria registrado posteriormente em páginas significativas da obra de Lima Barreto, que o dispersou nas anotações breves de "Diário Íntimo" (1956a), "Correspondências" (1956i) e, sobretudo no capítulo "O Bibelot", do romance "Triste Fim de Policarpo Quaresma" - obra publicada inicialmente em folhetins, em 1911, no "Jornal do Comércio".

Em "Triste Fim de Policarpo Quaresma", o autor transporta o personagem Major Quaresma para dentro do hospício, sem dar detalhes clínicos de seu enlouquecimento. Apenas informa que a transcrição de um requerimento para um idioma indígena determinou sua internação (Houaiss, 1956). O requerimento, escrito num momento de distração do major, marca o drama vivido pelo personagem no cotidiano da repartição burocrática na capital.

Em "Triste Fim de Policarpo Quaresma", especificamente no capítulo "O Bibelot", Lima Barreto não refletiu apenas suas angústias, mas deslocou sua atenção também para a experiência da loucura do pai, "aquele homem pautado, regrado, honesto, com emprego seguro (...) entretanto, bastou um grãozinho de sandice..." (Barreto, 1995, p. 64) Há aqui, uma mistura de ficção e realidade, como na passagem do trabalho agrícola no Sítio do Sossego e nas descrições das crises delirantes de Major Quaresma. A loucura paterna é uma fonte inspiradora para Barreto na caracterização de Quaresma, no seu jeito "seco e desconfiado", o que coincide com o depoimento de seu irmão sobre seu pai, relatado a Francisco de Assis Barbosa: "Olhava desconfiado para todos, como envergonhado, sem dirigir palavra nem aos filhos, nem a Prisciliana (...) Depois de lamuriar-se, ficava quieto coçando as mãos, sem falar nem ouvir ninguém, com os olhos perdidos num ponto qualquer" (Barbosa, 1981, p. 105).

Entre as causas que levaram o entusiasta republicano Major Quaresma à loucura estavam, sobretudo, a paixão arrebatadora pelo país, as meditações profundas, o amor exagerado às ciências, o excesso de estudos e a leitura de romances que atiçavam a sua fértil imaginação. Segundo Magali Gouveia Engel, ao considerar as leituras excessivas como uma das causas da loucura o autor apreende criticamente uma percepção, expressa tanto pelos saberes leigos quanto pelo alienismo, que atribui certas manifestações de loucura ao uso abusivo e/ou inadequado da capacidade intelectual, variável de indivíduo para indivíduo (Engel, 2004, p. 70).

O próprio escritor acreditava nesta asserção, como se constata no seguinte comentário: "A arte e literatura são coisas sérias, pelas quais podemos enlouquecer. Não há dúvida, mas em primeiro lugar, precisamos fazê-la com todo o ardor e sinceridade" (Barreto, 1956d, p. 221).

Outro aspecto interessante do romance diz respeito às visões do personagem sobre o hospício. Em "Triste Fim de Policarpo Quaresma", ele é retratado a partir de seus aspectos mórbidos e de sua proximidade com a morte. Nele se antecipa a morte de cada indivíduo que esteja sob suas paredes, como um "sepultamento vivo" das pessoas excluídas dentro daquele espaço.

De maneira similar, é importante observar como Fiódor M. Dostoiévski retrata, em "Recordações da Casa dos Mortos", os campos de concentração na Sibéria, local onde cumpriu pena de quatro anos, acusado de subversão política contra o regime de Nicolau I. Toma vulto aqui a completa desumanização dos indivíduos, como vítimas de um desterro genocida aplicado pelo autoritário governo russo. O campo de concentração na Rússia de Dostoiévski corresponde a um lugar "morto-vivo", onde os homens são forçados a trabalhar porque não possuem mais nenhuma importância para o regime, por isso são ocupados como escravos em qualquer trabalho que exija força física. "É um mundo bem outro, regido por estatutos, disciplinas, horários específicos; uma casa para cadáveres vivos; uma vida à margem; e homens de vivência muito outra" (Dostoievski, 1988, p. 9).

Lima Barreto aproxima-se do mundo de Dostoievski através de uma descrição muito próxima, destacando-o como um local sombrio, mórbido, uma "sepultura em vida, um semi-enterramento; enterramento do espírito, da razão condutora, de cuja ausência os corpos raramente se ressentem" (Barreto, 1995, p. 62). Em "Cemitério dos Vivos" (Barreto, 1956e), romance que teve um trecho publicado em 1921, inicialmente intitulado "As Origens", Lima Barreto alude a uma região do Cantão, na China, para onde os excluídos, inválidos e indigentes se dirigiam quando sentiam que chegava o momento da morte, uma prática mencionada no livro "A China e os Chins" (1888), de Henrique C. R. Lisboa, entendida como um tipo de exclusão geográfica, social e política. O hospício é também visto como um local onde os internos seriam preparados para o momento da morte, que se anuncia como inevitável.

Outro dado interessante remete às comparações entre o fictício Hospício da Praia da Saudade, versão ficcional do Hospício Nacional, e a prisão, apesar da aparência de lugar da ciência. Nesse aspecto, Barreto anteviu que hospitais, tais como as prisões, também se inserem na pirâmide dos panoptismos sociais, tal como sublinharia posteriormente Michel Foucault no ensaio "O Olho do Poder", mostrando que os presidiários são mantidos permanentemente sob olhares cuja finalidade é fixar, classificar, observar e registrar ações individuais, assim como codificar comportamentos e treinar corpos por meio de uma aparelhagem que os tornava dóceis e úteis. Há um questionamento sobre a necessidade de proteger a sociedade dos chamados loucos. Por isso o hospício é "uma casa imensa, severa e grave, meio hospital, meio prisão, com seu alto gradil..." (Barreto, 1995, p. 62); um espaço de visibilidade, uma prisão mal-disfarçada, destinada ao regime correcional e com a função extrínseca de enquadrar e isolar. O hospício era "como uma prisão qualquer", noção esta que é semelhante à de Antonin Artaud, que o comparava ao cárcere penal: "O hospício de alienados, sob o manto da ciência e da justiça, é comparável à caserna, à prisão, à masmorra" (Artaud, 1983, p. 30).

Se em "Cemitério dos Vivos" (Barreto, 1956e) a descrição objetiva dos delírios foi certamente o aspecto que exigiu maior atenção do escritor, no romance "Triste Fim de Policarpo Quaresma" o autor condensou suas impressões na interpretação onírica e social da loucura, enfatizando os erros do espírito (ou alucinações) em frases de extrema lucidez e elegância estilística.

Major Quaresma passava os dias no hospício "(...) triste e absorvido no seu sonho e na sua mania" (Barreto, 1995, p. 62), enquanto outros alienados também "(...) viviam mergulhados em um sonho íntimo sem fim" (Barreto, 1995, p. 62). Passava a maior parte das horas imerso em uma "(...) inexplicável fuga do espírito daquilo que se supõe o real, para se apossar e viver das aparências das mesmas" (Barreto,1995, p. 63); um solapamento do espírito que

(...) nos tira a nossa alma e põe uma outra, que nos rebaixa...enfim, a loucura declarada, a exaltação do eu, a mania de não sair, de se dizer perseguido, de imaginar como inimigos, os amigos, os melhores. (Barreto, 1995, p. 63).

Num primeiro momento, Lima Barreto concebe a loucura como um fenômeno que não se restringe à materialidade física do corpo. A loucura é uma força misteriosa que usurpa a alma das pessoas sadias, colocando em seu lugar uma outra alma, de origem desconhecida, que "(...) nos toma, nos esmaga e nos sepulta numa desesperadora compreensão inversa e absurda de nós mesmos, dos outros e do mundo" (Barreto, 1995, p. 63). A loucura é a própria materialização do medo, uma força misteriosa que se alimenta de almas humanas, uma "doença de espírito" ou "fuga do espírito", em que corpo e alma são colocados paralelamente numa ordem de causalidade.

Barreto interpreta os delírios centrando-os nos mistérios do sonho, de maneira que o caráter onírico dos delírios do Major Quaresma, representa a passagem do mundo real para o mundo irreal, obscuro e perdido na confusão de imagens fantásticas e seres invisíveis. Como forma ilusória, a loucura poderia enganar e provocar confusões no espírito. Ela está atrelada aos sonhos, como se ambos formassem uma única substância, com os mesmos mecanismos de funcionamento do sono. Os sonhos apresentam-se a Barreto como um elemento desestabilizador do cérebro, desencadeando delírios, crises nervosas e enrijecimento dos músculos. Talvez apenas como mera coincidência, mas o primeiro delírio de seu pai ocorreu durante o sono, o que lhe fez elaborar algo partindo de um acontecimento ocorrido na vida real.

Esse olhar onírico, envolto de vapores e sonhos, ocorre também na reconstrução onírica da loucura. Ela ocorre, por exemplo, na novela "Aurélia" (1991), de Gérard de Nerval, poeta e intelectual francês que passou muito tempo internado num sanatório. Nela o escritor propõe reconstruir a própria personalidade esquizofrênica, analisando exaustivamente os seus sonhos e as coisas que tinha visto em estado de espírito. Ao olhar para a própria loucura, Nerval ironiza os que consideravam a loucura uma doença. No mais, aborrece-se ao constatar que o estado cataléptico em que se encontrava havia vários dias era tido pelos amigos como "aberração do espírito". Mesmo sofrendo de catalepsia, a sua arte não se anula na doença, e ele se distancia da doença e se aproxima da cura. Sua sensibilidade acompanha a doença em todos os seus passos, apresentando-lhe o diagnóstico pessoal, que aponta para as possibilidades de uma nova saúde e o nascimento de um novo homem. Como contraponto à associação esquizofrenia, doença, catalepsia e aberração, Nerval declara-se mais contente com os amigos que o aconselhavam a relatar os sonhos que expressassem o terror da esquizofrenia. Sua loucura existe na medida em que não se sobrepõe à sua obra, pois ela não se resume à mera repetição de sua doença, visto que rompe as amarras da loucura.

A reconstrução feita por Nerval é esclarecedora no sentido de fazer aparecer um discurso comum ao delírio e ao sonho, tal e qual foi pensado por Barreto ao descrever os delírios do patético Major Quaresma. Não obstante, ao interpretá-los em termos de confusão de imagens, Barreto dá a entender que os sonhos dos loucos escondem algo como a verdade do homem, um saber subterrâneo e obscuro, que seria uma espécie de "enigma indecifrável da nossa própria natureza" (Barreto, 1995, p. 63).

Em "Triste Fim de Policarpo Quaresma", a loucura se apresenta como um saber inacessível e impenetrável que tende a escapar de explicações simplistas e unilaterais, distanciando-se de uma sistematização racional. A loucura se lhe apresenta como uma fonte criadora, uma comunicação com os próprios tormentos da alma, algo "palpável" e "visível", o que de certa forma distingue-se da visão organicista da psiquiatria do período republicano, para a qual não existia uma visibilidade imediata.

Num primeiro momento, vê-se em Lima Barreto a valorização do discurso da loucura como um segredo, uma verdade. Nesse sentido, a maneira como "mantinham-se calados, num mutismo feroz e inexplicável" (Barreto, 1995, p. 64), denota uma estratégia de contenção do discurso em que a loucura é colocada como objeto da verdade; ou seja, o escritor, ao associar verdade e loucura, dá a entender que na linguagem delirante dos loucos se manifesta parte da verdade escondida de cada indivíduo. Quanto ao "angustioso mistério que ela encerra", o romancista parece compreender que a loucura é um dos acessos à verdade do indivíduo: a loucura é ao mesmo tempo um saber inacessível e um fenômeno que aloja em seu núcleo a verdade do sujeito humano; uma verdade enredada numa rede de poderes capazes de produzir múltiplos discursos "verdadeiros" sobre a loucura.

A ênfase barretiana é expressa pelo seu descrédito de que a ciência fosse capaz de trazer à tona as verdades escondidas da loucura, ou mesmo de que tivesse a força de comprovar verdades baseadas na crença do progresso do conhecimento científico, isto porque a postura de Lima Barreto perante a ciência "manifesta a inquietação quanto ao risco de leituras lineares de pensamentos filosóficos ou das certezas das razões teóricas" (Figueiredo, 2004, p. 10). Para ele, nenhum médico teria o poder de desencadear as verdades da loucura, porque elas estariam fora do alcance da ciência, porquanto a loucura é um acesso à verdade para o próprio indivíduo. Contrapondo-se à psiquiatria, que se pretende qualificada para a missão de intervir e diagnosticar como doença a loucura, Barreto não disputa este local soberano, capaz de reproduzir seus fenômenos e torná-los acessíveis ao conhecimento. Se existe uma verdade para o escritor, ela é vista como um impulso oculto e inacessível ao próprio homem, ao contrário da ciência, que, ao se exaltar em torno da sua figura, detém o poder de conhecer como ninguém os loucos e a loucura e de produzir a doença em sua verdade. Entretanto, a loucura desconcerta o saber médico, o mesmo saber que se apresenta como uma prova e a transforma em um fenômeno verificável e controlável, pacificada como doença mental.

É importante ressaltar que Lima Barreto tinha adotado uma postura critica à atuação de médicos alienistas, os quais enunciavam discursos científicos para justificar o processo de higienização no início do século XX. Na sua militância jornalística Lima Barreto denunciou a pretensão dos "mediocratas" de ditar à gente comum, aos indivíduos que muitas vezes sobrevivem sob condições miseráveis, regras de comportamento para que se enquadrem num modo de vida "higienicamente correto" - desprezando completamente o dever que o Estado tem de facultar a estes mesmos indivíduos os meios dignos e adequados para que possam se manter e exercer sua cidadania (Botelho, 2002, p. 195).

Ao discurso sistemático sobre a doença mental vêm se opor os gestos desconcertantes da loucura, perceptíveis quando o autor discorre brevemente sobre a linguagem desordenada do Major Quaresma, "aquela fala sem nexo, sem acordo com que se realizava, fora dele e com os atos passados, um falar que não se sabia donde vinha, donde saía, de que ponto de seu ser tomava nascimento" (Barreto, 1995, p. 63), e que inexplicavelmente saía desconexa, quando não se calava num absoluto e irredutível mutismo.

Lima Barreto se fixou principalmente no estranho posicionamento dos loucos diante da linguagem. Neste ponto - o da estranheza da expressão e da linguagem - o louco aparece como um ser ilhado em sua loucura, situado num outro universo social e cultural, num espaço diferente do espaço real, transformando-se assim num estranho morador de um universo despopulado, e não mais de uma realidade social.

Essa visão particular da representação da linguagem, do espaço e da realidade social dos loucos será sintetizada em outro trecho do romance, lembrando o autor que "cada louco traz em si o seu mundo e para ele não há nada mais semelhante, o que foi antes da loucura é outro muito outro do que ele vem ser após" (Barreto, 1995, p. 63). Trata-se de um espaço mítico, opaco, um quase-espaço. Neste ponto - o da teatralidade das alucinações - o espaço parece fluir entre dois mundos que coexistem, de forma que "a consciência da doença revela-se como consciência de uma outra realidade" (Foucault, 1996, p. 60).

Vale ressaltar que o emprego de técnicas de reconstituição dos delírios, através do jogo de ilusão e artimanhas das imagens oníricas, tinha como meta recobrar a liberdade e restaurar a perturbação orgânica dos delirantes. Este processo é exemplificado por Michel Foucault (1995b), no caso do delirante que imaginava ter um animal dentro da barriga. Para livrá-lo desta idéia absurda, simulou-se, com o uso de purgante, o efeito de expulsão do animal de sua barriga sem que o doente percebesse que o animal fora colocado anteriormente em uma bacia.

Compreende-se por que a loucura provoca o rompimento do tempo, "neste tempo fragmentado e sem futuro", seccionando o espaço e encerrando o homem num espaço teatralizado, feito de "sombras, aparências; o real eram os inimigos, os inimigos terríveis, cujos nomes o seu delírio não chegava a criar" (Barreto, 1995, p. 63). Este estranhamento do doente em relação à linguagem, à cultura e à sociedade mantém o indivíduo ilhado numa outra realidade, num outro espaço. Viver em outro espaço significa fazer parte de outra realidade. Delírios e alucinações nada mais seriam do que a criação de um espaço subjetivo, mítico e móvel, um espaço onde fosse possível materializar o invisível através da imaginação do doente.

(...) distâncias desmoronam-se, como no caso de delirantes que reconhecem aqui pessoas que sabem estar em outra parte, ou os alucinados que ouvem vozes, não no espaço objetivo no qual situam-se as fontes sonoras, mas num espaço mítico (Foucault, 1996, p. 63).

O entrelaçamento corpo-delírio-espaço, tão presente nos personagens "loucos" de "Cemitério dos Vivos" (Barreto, 1956e), revela-se na imaterialidade de seus corpos e na aparência do corpo estável. Isso pode ser expresso como o abandono do corpo, um sepultamento vivo do louco, no qual o sujeito acredita ter uma existência imortal, como também supõe que o mundo esteja restrito à anatomia de seu corpo.

Muito se questionava na época a eficiência dos tratamentos que escapavam à tutela do alienista, pois do ponto de vista de alguns psiquiatras, os loucos tratados em residências poderiam perturbar os vizinhos e causar um incômodo social. Mas o fato é que a responsabilidade pela loucura não se restringia à esfera médica, mas ampliava-se num círculo de cumplicidades em instâncias de saber e poder que envolvia famílias, religiosos, juristas e o próprio aparelho policial, muito embora, com o passar dos anos, a psiquiatria tivesse adquirido um controle mais efetivo sobre a loucura.

É importante ressaltar que, embora a medicalização representasse um processo com um amplo poder de intervenção nas diretrizes das políticas de domínio conduzidas pelo Estado, ela não conseguiu homogeneizar toda a complexidade, contradições e intercessões entre saberes leigos e saberes científicos, presentes no próprio campo da medicina acadêmica em meados do século XIX. De fato, veremos que inúmeros caminhos estavam abertos neste campo e que as primeiras medidas de fato expressivas no sentido de oficializar a legitimar a medicina científica seriam conquistadas somente no final do século XIX (sobretudo, após a Proclamação da República), e mesmo assim, jamais seriam consensuais.

O cotidiano de Barreto durante o período em que residiu com a família na Ilha do Governador, as suas recordações da infância e a inesperada loucura paterna constituem fatos que se relacionam, simultaneamente, ao drama real de seu pai e ao seu personagem Major Policarpo Quaresma, do romance "Triste Fim de Policarpo Quaresma". A tragédia paterna fixa-se na mente do romancista como um elemento que servirá para a caracterização da loucura de seu protagonista, sobretudo no que se refere à formação social de uma sensibilidade estritamente relacionada à razão e à desrazão. Da mesma forma que João Henriques se exaure em sua própria loucura, ao comportar-se de forma esquisita e intolerável perante seus amigos e familiares, Policarpo Quaresma também se defronta com uma situação semelhante ao se posicionar de maneira inusitada perante seus colegas de trabalho e familiares. Ambos são transformados em objeto de investigação no domínio da psiquiatria, de maneira que o tratamento doméstico do primeiro e a internação do segundo aparecem como estratégias de controle condicionado para conscientizar o paciente sobre a responsabilidade pelos próprios atos.

O irrompimento da loucura no universo literário barretiano remete a uma época em que vários acontecimentos importantes aparecem igualmente coordenados. Foi - vale lembrar - um período de grandes mudanças políticas, com o fim da Monarquia e a implantação da República, em que o crescimento industrial, colocou a imensa massa de negros e mestiços no redemoinho da nova ordem competitiva. Dá-se também a institucionalização da psiquiatria e a transformação do hospício em um espaço privilegiado de pesquisas e formação de especialistas. Paralelamente, estruturou-se uma multiplicação de mecanismos de controle e intervenção das chamadas condutas anti-sociais, com o surgimento do Manicômio Judicial e o confronto no campo institucional entre juízes, psiquiatras e famílias sobre a exclusividade no tratamento do doente mental.

A fantasmagórica loucura desencadeada em João Henriques e transformada em ficção em "Triste Fim de Policarpo Quaresma" foi o presságio que o trágico desenlace familiar lhe reservou. "Cemitério dos Vivos" (Barreto, 1956e) corresponderia a uma continuidade e confirmação do premonitório medo de Barreto de ser arrebatado pela loucura, o que se concretizaria com a privação de prazeres afetivos, o estigma da hereditariedade da doença paterna, os obstáculos na auto-realização como escritor e o contínuo uso de bebidas alcoólicas como forma de rompimento, ainda que parcial, com o mundo real.

Recebido em 12/03/2007

Aceito em 15/06/2007

  • Artaud, A. (1983). Os escritos de Antonin Artaud Porto Alegre: L&PM.
  • Barbosa, F. de A. (1981). A Vida de Lima Barreto Rio de Janeiro: José Olympio.
  • Barreto, L. (1956a). Diário Íntimo São Paulo: Brasiliense.
  • Barreto, L. (1956b). Da Minha Cela. Em Bagatelas (pp. 97-106). São Paulo: Brasiliense.
  • Barreto, L. (1956c). Manuel de Oliveira. Em Feiras e Mafuás (pp. 224-228). São Paulo: Brasiliense.
  • Barreto, L. (1956d). Estética do "Ferro". Em Impressões de Leitura (pp. 220-221). São Paulo: Brasiliense.
  • Barreto, L. (1956e) Cemitério dos Vivos São Paulo: Brasiliense.
  • Barreto, L. (1956f). O Estrela. Em Feiras e Mafuás (pp. 61-66). São Paulo: Brasiliense.
  • Barreto, L. (1956g). Quem Será Afinal. Em Bagatelas (pp. 134-140). São Paulo: Brasiliense.
  • Barreto, L. (1956h). Henrique Rocha. Em Bagatelas (pp. 195-204). São Paulo: Brasiliense.
  • Barreto, L. (1956i). Correspondências (Vol. I). São Paulo: Brasiliense.
  • Barreto, L. (1990). O Número da Sepultura. Em Contos Reunidos (pp. 23-34). Belo Horizonte: Garnier.
  • Barreto, L. (1995). Triste Fim de Policarpo Quaresma São Paulo: Ática.
  • Bosi, A. (1977). As Letras na Primeira República. Em B. Fausto (Org.), História Geral da Civilização Brasileira: o Brasil Republicano (Vol. 2, pp. 293-319). Rio de Janeiro/São Paulo: DIFEL.
  • Botelho, D. (2002). A Pátria que quisera ter era um mito: o Rio de Janeiro e a militância literária de Lima Barreto Rio de Janeiro: Secretaria Municipal das Culturas.
  • Brandão, J. C. T. (1897). Questões Relativas à Assistência Médica a Alienados Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.
  • Coleção Leis da República dos Estados Unidos do Brasil. (1907). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.
  • Dostoiévski, F. M. (1988). Recordações da Casa dos Mortos Rio de Janeiro: Francisco Alves.
  • Engel, M. G. (2003). A loucura, o hospício e a psiquiatria em Lima Barreto. Em S. Chalhoud (Org.), Artes e Ofícios de Curar no Brasil (pp. 57-98). Campinas: EdUnicamp.
  • Engel, M. G. (1995). Loucura na Cidade do Rio de Janeiro: idéias e vivências (1830-1930) Tese de Doutorado não publicada, Programa de Pós-Graduação em História, UNICAMP, Campinas.
  • Figueiredo, C. L. N. de. (2004). Uma Corda Sobre o Abismo - diálogo entre Lima Barreto e Nietzsche. Alea - Estudos Neolatinos, 1(6), 159-173.
  • Foucault, M. (1996). Doença Mental e Psicologia Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
  • Foucault, M. (1995a). O Olho do Poder. Em Microfísica do Poder (pp. 209-227). Rio de Janeiro: Graal.
  • Foucault, M. (1995b). História da Loucura São Paulo: Perspectiva.
  • Houaiss. A. (1956). Prefácio. Em L. Barreto, Numa e Ninfa (pp. 9-35). São Paulo: Brasiliense.
  • Machado, R., Loureiro, A., Luz, R., & Muricy, K. (1978). Danação da Norma: a Medicina Social e constituição da Psiquiatria no Brasil Rio de Janeiro: Graal.
  • Nerval, G. de. (1991). Aurélia São Paulo: Iluminuras.
  • Endereço para correspondência:
    Marco Antonio Arantes
    Rua André Veloni, n. 300, Parque Bandeirantes
    CEP 14090-450, Parque Bandeirantes, Ribeirão Preto-SP
    E-mail:
  • 1
    Apoio: Capes.
  • 2
    Ocasionalmente, encontram-se referências ao episódio da loucura paterna em crônicas como "Quem Será Afinal" e "Henrique Rocha", ambas do livro "Bagatelas". Enuncia-se ainda a crônica "O Estrela", incluída em "Feiras e Mafuás", em que o romancista revela aspectos de sua infância no Sítio de Carico. Estas crônicas foram escritas e publicadas nos últimos anos de vida do escritor, período em que se dedicou mais ao tema da loucura, após o internamento no Hospício Nacional por três meses, de novembro de 1919 a fevereiro de 1920.
  • 3
    No início do processo de aposentadoria, pai e filho trocaram várias correspondências discutindo o encaminhamento dos papéis ao governo. Estas cartas revelam que, apesar da alteração mental de João Henriques, ela ainda não tinha se estendido nas operações mais comuns de seu juízo, e por isso, respondia com acerto e lucidez sobre aquilo que impedia sua aposentadoria.
  • 4
    Ver "As Letras na Primeira República", publicado em História Geral da Civilização Brasileira/1977, Alfredo Bosi esclarece que o ponto alto da crítica barretiana à burocracia encontra-se presente no conto "O Número da Sepultura" (Contos Reunidos/1990), uma pequena obra-prima, em suas próprias palavras.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Mar 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008

    Histórico

    • Aceito
      15 Jun 2007
    • Recebido
      03 Dez 2007
    Universidade Estadual de Maringá Avenida Colombo, 5790, CEP: 87020-900, Maringá, PR - Brasil., Tel.: 55 (44) 3011-4502; 55 (44) 3224-9202 - Maringá - PR - Brazil
    E-mail: revpsi@uem.br