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A felicidade paradoxal: ensaios sobre a sociedade de hiperconsumo

RESENHA

A felicidade paradoxal: ensaios sobre a sociedade de hiperconsumo1

Fabio Scorsolini-Comin

Psicólogo. Especialista em Administração Escolar. Mestrando em Psicologia pela Universidade de São Paulo-USP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Fabio Scorsolini-Comin. Rodovia Rua Cavalheiro Torquato Rizzi, 1484, apto 31, Jardim Irajá, CEP 14020-300, Ribeirão Preto-SP, Brasil. E-mail: scorsolini_usp@yahoo.com.br

O termo felicidade pode ser associado a muitos conceitos e noções, tornando o objetivo de especificá-lo de forma consistente e abrangente uma tarefa muito difícil de ser levada a cabo. Desde os antigos gregos, o ser humano vive em busca do grande segredo da felicidade, na eterna procura do que o fará feliz e satisfeito com a sua vida. Esta busca não é exclusiva de um grupo de pessoas, mas é compartilhada por diversos estudiosos, entre eles filósofos, teólogos, psicólogos e cientistas sociais.

Neste sentido, Gilles Lipovetsky (2007), em um ensaio filosófico sobre a felicidade na contemporaneidade, denominada por ele de era do hiperconsumo, resgata a herança da mitologia e do deus Dionísio, distribuidor de alegrias em abundância, que incitava os homens ao gozo pleno. Segundo o autor, esse ethos de alegria foi redescoberto pelo homem atual, insistindo na nova cultura cotidiana, que presta culto às sensações imediatas, aos prazeres do corpo e dos sentidos, às volúpias do presente. Isto se traduz em um retorno e aprofundamento do carpe diem, o que seria um engano, haja vista que quanto mais a felicidade hedonista é exibida, mais ela é acompanhada por temores e tremores. O que se propaga é menos o carpe diem do que o sentimento de insegurança. Na verdade, o culto do instante não estaria à nossa frente, mas regrediria.

O livro é divido em duas partes. Na primeira, intitulada “A Sociedade de Hiperconsumo”, Lipovetsky resgata a importância do capitalismo no que se refere aos mercados de massa, abordando a economia fordista, o fetichismo das marcas e a organização pós-fordista. Segundo o pensador, a sociedade do hiperconsumo estaria organizada em nome de uma felicidade (chamada de paradoxal). A produção dos bens, os serviços, as mídias, os lazeres, a educação, a ordenação urbana, tudo seria pensado e organizado, em princípio, com vista à nossa maior felicidade. Quanto mais uma sociedade se enriquecesse, maior seria o consumo e as necessidades de consumir, promovendo-se uma “mercantilização” dessas necessidades (p.24). As receitas de felicidade espalhar-se-iam nas áreas da alimentação, do amor, da comunicação, da educação dos filhos e da produção de sentidos em torno da felicidade. Na visão trazida pelo autor, o ser humano passaria do modo fechado ao universo infinito das chaves da felicidade, gerando a tese de que vivenciamos o tempo do treinamento generalizado e da felicidade “modo de usar para todos” (p. 337). O autor cunha a expressão “turboconsumidor” para se referir às rápidas mudanças sociais e econômicas que levaram o ser humano não apenas a um consumo em massa, mas a uma situação de individualização e hiperindividualização do consumo, como se este fosse o direcionador dos sentimentos em torno do ser feliz, o que atingiria todas as esferas sociais (os que querem e podem consumir, excluindo-se o oposto a este quadro) e idades (adultos e crianças ansiosos por consumir).

Na segunda parte do livro, intitulada “Prazeres privados, felicidade ferida”, o autor aborda, entre outras questões, os desejos e as frustrações provocados pela sociedade de hiperconsumo a partir da influência da publicidade, do individualismo selvagem e da exclusão produzida por situações de miséria tanto material quanto interior. A sociedade contemporânea seria definida dentro do paradigma hedonista versus o antidionisíaco, gerando a criação do chamado “super-homem”, perfil preocupado com o desempenho e com os prazeres dos sentidos. Isso geraria situações complexas, em que o homem se veria diante da pressão por superar a si mesmo e sentir-se bem ao mesmo tempo, o que culminaria no advento da medicalização não apenas do corpo, mas também das sensações.

O homem contemporâneo viveria em um estado de desamparo, tornando-se o único responsável por atingir seu êxito. Estaria suscetível a medos, frustrações, ansiedades e à produção de novas e efêmeras necessidades de consumo - consumo que perpassa as aquisições materiais e chega ao domínio das subjetividades. De acordo com as reflexões de Lipovetsky, a nova ordem cultural na contemporaneidade valoriza os laços emocionais e sentimentais, as trocas íntimas entre as pessoas e a proximidade comunicacional com o outro. O autor, discorrendo sobre a felicidade associada ao amor, afirma que em uma sociedade que não cessa de prestar culto ao ideal amoroso e na qual a verdadeira vida está associada ao que se saboreia a dois, a relação estável e exclusiva constitui ainda um fim ideal. Segundo esse filósofo, o valor reconhecido no amor e no sentimento, a busca de uma intimidade relacional, a necessidade de sentido intenso na vida e na relação com o outro trabalham, fora de todo princípio moral, para privilegiar o laço estável. A família e as relações afetivas não são valorizadas apenas porque as identificamos a uma vida rica em emoções e sentido, mas também porque nos permite realizar uma das aspirações mais profundas dos seres: ser reconhecido como uma “subjetividade insubstituível” (p. 247).

Trazendo à tona a barbárie da ética e da estética, Lipovetsky conclui que a atual sociedade do hiperconsumo deve criar formas de sustentabilidade, não sendo apenas destrutiva, como se vem observando, mas também responsável. Em termos históricos, do mesmo modo como a opção consumista seria uma invenção datada, a sua exaustão deve ocorrer não apenas a partir de uma revolução do modo de produção mercantil e de valores, mas por uma inversão hierárquica na qual o hedonismo não seria um princípio estruturante da vida. O destino da sociedade seria a era do pós-hiperconsumo, na qual o ecletismo da felicidade levaria a uma contínua produção de dilemas e à necessidade de reinvenção da felicidade e da busca pela alegria de viver, o que nem sempre poderá ser dado ao homem como conseqüência de suas buscas. O livro é uma contribuição recente para estudos que investiguem não apenas a felicidade e o bem-estar, mas também a produção de sentidos, idéias e necessidades em torno da contemporaneidade do hiperconsumo, da hiperindividualização e do hiperdesejo.

Recebido em 04/09/2008

Aceito em 05/09/2008

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    1 Lipovetsky, Gilles (2007). A felicidade paradoxal: ensaios sobre a sociedade de hiperconsumo. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras.
  • Endereço para correspondência:

    Fabio Scorsolini-Comin. Rodovia Rua Cavalheiro Torquato Rizzi, 1484, apto 31, Jardim Irajá, CEP 14020-300, Ribeirão Preto-SP, Brasil.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Mar 2009
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