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O ingresso da psicanálise no sistema de saúde pública na Argentina

El ingreso del psicoanálisis en el sistema de salud pública de la Argentina

The arrival of psychoanalysis in the Argentine public health system

Resumos

Na Argentina, a renovação cultural ocorrida a partir de 1955 possibilitou à psicanálise deixar de ser uma prática privada reservada às elites da capital. A ampliação dessa clínica foi favorecida tanto pela abertura de novos espaços institucionais públicos como por transformações ocorridas nos já existentes, onde alguns passaram a adotar técnicas de "inspiração psicanalítica". É o caso, por exemplo, da psicoterapia de grupo. Ainda que derivada da psicanálise e exercida por médicos e psicólogos, constituiu-se como uma alternativa, ao mesmo tempo, de atendimento e formação, o que fez com que essa prática deixasse de ser patrimônio exclusivo dos membros da Associação Psicanalítica Argentina (APA). Assim, a instituição oficial perdia o monopólio do "uso legítimo" da psicanálise. Neste trabalho é analisado particularmente o caso do Serviço de Psicopatologia do Hospital Lanús, dirigido por Mauricio Goldenberg entre 1956 e 1972, já que exemplifica muito bem este fenômeno de expansão e transformação da psicanálise. Foi adotada uma metodologia clássica no campo da história, baseada na análise de textos e documentos da época.

Historia; psicanálise; saúde


Después de 1955 se produjo en Argentina una renovación socio-cultural en el seno de la cual el psicoanálisis dejó de ser una práctica privada reservada a las élites de la capital. Accedió entonces a nuevos espacios institucionales, en los que sufrió varias transformaciones que le permitieron ampliar su público. Por ejemplo, la utilización que se hizo en algunas instituciones públicas de técnicas "de inspiración analítica", como la psicoterapia de grupos, implicó una notable multiplicación de la cantidad de pacientes en tratamiento. Al mismo tiempo, esa práctica derivada del psicoanálisis ya no era patrimonio exclusivo de los miembros de la Asociación Psicoanalítica Argentina, al ser ejercida por médicos y psicólogos que no pertenecían a sus filas. Se creó así una alternativa de formación y de atención psicoanalítica más allá de la asociación oficial, que comenzó a perder el monopolio de los "usos legítimos" del psicoanálisis. En este trabajo se estudia particularmente el caso del servicio de psicopatología del Hospital Lanús, dirigido por Mauricio Goldenberg entre 1956 y 1972, ya que ilustra muy bien este proceso de expansión y transformación del psicoanálisis. Se ha utilizado una metodología clásica en el campo de la historia, basada en el análisis de textos y documentos referentes a la época estudiada.

Historia; psicoanálisis; salud


After 1955, there was in Argentina a social and cultural renewal, in which psychoanalysis ceased to be a private practice, limited to the wealthy residents of Buenos Aires. Freudian ideas arrived to new institutional settings, where they suffered several transformations allowing them to enlarge its public. For example, the use that was made, in certain public institutions, of some techniques based on psychoanalysis, such as group psychotherapy, involved a remarkable multiplication of the number of patients that were treated. At the same time, this practice stemming from psychoanalysis was no longer an exclusive right of the members of the Argentine Psychoanalytic Association, for it could be carried out by physicians and psychologists beyond its ranks. Thus, an alternative space for analytic training and treatment was created, and the official association begun to lose its monopole over the "legitimate uses" of psychoanalysis. In this paper we focus in the case of the Psychopathology Service of Lanús Hospital, directed by Mauricio Goldenberg Between 1956 and 1972. It is a good example of this process of expansion and transformation of a "plebeian" psychoanalysis. The methodology that has been used is a classical one in the field of history, which is based on the analysis of texts and documents referring to the period of study.

History; psychoanalysis; health


ARTIGOS

O ingresso da psicanálise no sistema de saúde pública na Argentina

The arrival of psychoanalysis in the Argentine public health system

El ingreso del psicoanálisis en el sistema de salud pública de la Argentina

Alejandro Antonio Dagfal

Doutor e Magister em História. Professor Adjunto da matéria História da Psicologia, Universidad de Buenos Aires, Argentina. Professor Titular da matéria Correntes atuais em psicologia, Universidad Nacional de La Plata , Argentina, Pesquisador, Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas-CONICET, Argentina

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Alejandro Antonio Dagfal Instituto de Investigaciones - Facultad de Psicología de la UBA Calle Independencia 3065 3º piso Ciudad de Buenos Aires (1225), Argentina E-mail: adagfal@isis.unlp.edu.ar

RESUMO

Na Argentina, a renovação cultural ocorrida a partir de 1955 possibilitou à psicanálise deixar de ser uma prática privada reservada às elites da capital. A ampliação dessa clínica foi favorecida tanto pela abertura de novos espaços institucionais públicos como por transformações ocorridas nos já existentes, onde alguns passaram a adotar técnicas de "inspiração psicanalítica". É o caso, por exemplo, da psicoterapia de grupo. Ainda que derivada da psicanálise e exercida por médicos e psicólogos, constituiu-se como uma alternativa, ao mesmo tempo, de atendimento e formação, o que fez com que essa prática deixasse de ser patrimônio exclusivo dos membros da Associação Psicanalítica Argentina (APA). Assim, a instituição oficial perdia o monopólio do "uso legítimo" da psicanálise. Neste trabalho é analisado particularmente o caso do Serviço de Psicopatologia do Hospital Lanús, dirigido por Mauricio Goldenberg entre 1956 e 1972, já que exemplifica muito bem este fenômeno de expansão e transformação da psicanálise. Foi adotada uma metodologia clássica no campo da história, baseada na análise de textos e documentos da época.

Palavras-chave: Historia; psicanálise; saúde.

ABSTRACT

After 1955, there was in Argentina a social and cultural renewal, in which psychoanalysis ceased to be a private practice, limited to the wealthy residents of Buenos Aires. Freudian ideas arrived to new institutional settings, where they suffered several transformations allowing them to enlarge its public. For example, the use that was made, in certain public institutions, of some techniques based on psychoanalysis, such as group psychotherapy, involved a remarkable multiplication of the number of patients that were treated. At the same time, this practice stemming from psychoanalysis was no longer an exclusive right of the members of the Argentine Psychoanalytic Association, for it could be carried out by physicians and psychologists beyond its ranks. Thus, an alternative space for analytic training and treatment was created, and the official association begun to lose its monopole over the "legitimate uses" of psychoanalysis. In this paper we focus in the case of the Psychopathology Service of Lanús Hospital, directed by Mauricio Goldenberg Between 1956 and 1972. It is a good example of this process of expansion and transformation of a "plebeian" psychoanalysis. The methodology that has been used is a classical one in the field of history, which is based on the analysis of texts and documents referring to the period of study.

Key words: History, psychoanalysis, health.

RESUMEN

Después de 1955 se produjo en Argentina una renovación socio-cultural en el seno de la cual el psicoanálisis dejó de ser una práctica privada reservada a las élites de la capital. Accedió entonces a nuevos espacios institucionales, en los que sufrió varias transformaciones que le permitieron ampliar su público. Por ejemplo, la utilización que se hizo en algunas instituciones públicas de técnicas "de inspiración analítica", como la psicoterapia de grupos, implicó una notable multiplicación de la cantidad de pacientes en tratamiento. Al mismo tiempo, esa práctica derivada del psicoanálisis ya no era patrimonio exclusivo de los miembros de la Asociación Psicoanalítica Argentina, al ser ejercida por médicos y psicólogos que no pertenecían a sus filas. Se creó así una alternativa de formación y de atención psicoanalítica más allá de la asociación oficial, que comenzó a perder el monopolio de los "usos legítimos" del psicoanálisis. En este trabajo se estudia particularmente el caso del servicio de psicopatología del Hospital Lanús, dirigido por Mauricio Goldenberg entre 1956 y 1972, ya que ilustra muy bien este proceso de expansión y transformación del psicoanálisis. Se ha utilizado una metodología clásica en el campo de la historia, basada en el análisis de textos y documentos referentes a la época estudiada.

Palabras-clave: Historia, psicoanálisis, salud.

A PSICANÁLISE PROJETA-SE ALÉM DA ASSOCIAÇÃO OFICIAL

Durante os seus primeiros anos de existência, a Associação Psicanalítica Argentina (APA), criada em 1942, permaneceu relativamente à margem da Saúde Pública. Muitos de seus membros, embora exercessem funções públicas em diversas instituições, faziam-no enquanto psiquiatras, pediatras, etc., raramente como analistas.

Este panorama mudou rapidamente após x1955. A renovação política e sociocultural que o país vivenciou após a queda de Perón repercutiu no campo da Saúde Publica, permitindo a inserção dos psicanalistas em diversos espaços. Ocorreu então um "movimento centrífugo", no qual muitos membros da APA passaram a atuar em esferas institucionais impensadas até aquele momento, tais como a Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires (UBA) e as faculdades de Psicologia de Rosario, Buenos Aires e La Plata.

Por outro lado, foram criadas instituições - como a Associação Argentina de Psicologia e Psicoterapia de Grupos (AAPPG) - que, apesar da estreita relação com a APA, favoreciam práticas que se afastavam da ortodoxia, incorporando de maneira bastante eclética os aportes vindos da Psicologia e das Ciências Sociais1 1 A AAPPG foi criada em 1954, mais as suas atividades só começaram em 1955. .

Assim, a reflexão teórica e a clínica de grupos foram rapidamente reconhecidas como um campo legítimo de aplicação da psicanálise.

Nessa realidade, os psicanalistas da APA também começaram a ser convocados pelas instituições do sistema de saúde. Foi o caso do Instituto de Neuroses, localizado no bairro "Caballito", que solicitou a colaboração de León Grinberg para desenvolver um plano de psicoterapia de grupos "para abordar o problema das neuroses sob bases reais e com projeções sociais." (Basombrío & Paz, 1958).2 2 Este instituto tinha sido criado em 1948 por Ramón Carrillo, que era "Secretario de Salud Pública de la Nación". A partir de 1967, iria se chamar "Centro de Salud Mental Arturo Ameghino" (Calvo, 1993).

Em 1957 já existiam oito grupos, com um total de 54 pacientes, e uma lista de espera de mais de 80 pessoas. Todas as atividades eram supervisionadas por Grinberg, Jorge Mom, Juan José Morgan, Emilio Rodrigué, Raúl Usandivaras y Marie Langer, muitos deles fundadores da AAPPG.

Cabe notar que essa experiência de ação coletiva, envolvendo toda uma equipe de psicanalistas atuando em uma instituição pública, não foi a única forma de inserção desse profissional, havendo também aquelas em que analistas integraram individualmente equipes mais amplas. Foi o caso, por exemplo, daqueles que ingressaram nos serviços externos dos hospitais públicos.

Neste sentido, caso paradigmático foi o do Serviço de Psicopatología e Neurologia do "Hospital General de Lanús", criado em 1956. Dentre todos os espaços públicos destinados às práticas psicoterápicas que contratavam psicanalistas, nenhum outro chegou a ter a magnitude que alcançou o Hospital General de Lanús3 3 Esta experiência chegou a ser tão importante no imaginário da comunidade psi argentina que o antropólogo Sergio Visacovsky dedicou-lhe todo um livro, fruto de uma tese de doutorado defendida na Universidade de Utrecht (Visacovsky, 2002). .

MAURICIO GOLDENBERG E A CRIAÇÃO DO SERVIÇO DE PSICOPATOLOGIA E NEUROLOGIA DO HOSPITAL GERAL DE LANÚS

O Hospital de Lanús (chamado vulgarmente "o Hospital Lanús") foi um dos três grandes estabelecimentos construídos em 1952 nos bairros industriais da periferia de Buenos Aires. Os três foram concebidos por Ramón Carrillo, o célebre ministro de saúde de Perón, visando melhorar sensivelmente o atendimento à classe operária suburbana, que até então era obrigada a deslocar-se até a capital para ser atendida.

Após 1955, as ideias liberais do novo regime fizeram com que o Ministério se desvinculasse da gestão de vários hospitais nacionais, outorgando-lhes autonomia administrativa.

Assim, o Hospital de Lanús não só abandonou a sua denominação original (até então denominava-se Eva Perón, morta no ano da sua criação), mas também passou a ser dirigido por um conselho de administração, composto pelos chefes dos diferentes serviços. Entre os seus membros estava Mauricio Goldenberg (1916-2006), encarregado de organizar o recém-criado Serviço de Psicopatología e Neurologia, em outubro de 1956.

Essa estrutura estava em concordância com as novas políticas de saúde, inspiradas nos ideais da Saúde Mental. De fato, dois meses mais tarde seria criada, pela primeira vez na Argentina, uma direção nacional de saúde mental (Visacovsky, 2002: 96).

Goldenberg era um psiquiatra de formação tradicional. Apadrinhado por Gonzalo Bosch4 4 Gonzalo Bosch Bosch (1885-1967) foi uma figura-chave para a psiquiatria argentina nos anos '30 e '40. Em 1921 viajou aos Estados Unidos, onde familiarizou-se com as instituiçües criadas pelo movimento da higiene mental. Um ano depois, foi nomeado Professor Titular da materia de Psiquiatria, que acabava de ser criada na cidade de Rosario. Em 1931 retornou a Buenos Aires como diretor do Hospicio de las Mercedes, o enorme hospital neuropsiquiátrico que dirigirá até 1947. , fez carreira no Hospital Psiquiátrico de Buenos Aires, onde se interessou pelas terapias biológicas da época, entrando em contato com psiquiatras como Enrique Pichon-Rivière5 5 Enrique Pichon-Rivière (1907-1977) foi um dos protagonistas mais importantes na "história psi" do Rio de La Plata. Psiquiatra e psicanalista, convertido em psicólogo social, foi também esportista, jornalista e crítico de arte. Em 1942 foi um dos membros fundadores da APA, da qual se afastaria - e seria afastado - nos anos 60. Assim mesmo, graças a um trajeto pouco ortodoxo, acabaria por transformar-se no representante de uma psicologia "de base psicanalítica", profundamente arraigada na sociedade argentina. e Eduardo Krapf. Krapf teve uma grande influência na trajetória de Goldenberg. Assim como Pichon-Rivière e o próprio Goldenberg, Krapf, que pertencia também à Liga Argentina de Higiene Mental, chegou ao hospital através de Bosch (Carofile, 2001; Klappenbach, 2004). Membro da APA desde 1947 e pioneiro da psicoterapia de grupos na Argentina, Krapf foi um dos poucos médicos locais a participar dos primeiros congressos mundiais de saúde mental - o de Londres em 1948 e o do México em 51. Neste último foi criada a Sociedade Interamericana de Psicologia (SIP) e Krapf foi eleito seu primeiro presidente6 6 É curioso que esta instituição, desde a sua origem vinculada ao desenvolvimento das correntes comportamentais na América Latina, tenha escolhido um psicanalista como seu primeiro presidente. .

Assim, ao mesmo tempo em que Goldenberg assumia o serviço do hospital, em 1956, seu amigo Krapf, que continuava em ascensão na sua atividade internacional, preparava-se para deixar a presidência da Federação Mundial de Saúde Mental (FMSM), assumida em 1954, para ser responsável da Seção de Saúde Mental da OMS, em Genebra.

Goldenberg não seguiu os passos de Krapf na sua carreira de psicanalista, embora tenha sido analisado secretamente por Celes Cárcamo durante dois anos na década de 40; mas foi profundamente marcado pelos ideais da Saúde Mental. Em 1950 esteve em Paris, onde, além de trabalhar no hospital Sainte-Anne, participou do Primeiro Congresso Mundial de Psiquiatria. Na ocasião, também visitou a Inglaterra da Pós-Guerra e conheceu os Northfield experiments, desenvolvidos no hospital militar de Northfield, próximo a Birmingham, durante a Segunda Guerra Mundial (Harrison, 2000).

Vale lembrar que a primeira experiência ocorreu durante o inverno de 1942-1943, sob a direção de Wilfred Bion e John Rickman. Já a segunda, mais longa, estendeu-se até 1946, incluindo a Foulkes, Tom Main e Harold Bridger. Com variações, essas duas experiências inspiradas na psicanálise eram focadas na psicoterapia de grupo e nas virtudes terapêuticas da vida comunitária. Além do tratamento dos neuróticos de guerra do exército inglês, o que estava em questão era uma nova abordagem das doenças mentais e das instituições destinadas a tratá-las, abordagem que Goldenberg adotaria em breve.

A PSICOTERAPIA DE GRUPOS CHEGA AO "HOSPITAL GERAL"

Seu ambicioso plano foi apresentado no Primeiro Congresso Latino-Americano de Psicoterapia de Grupos, em 1957 (Goldenberg, Pérez, Kizer, Sor & Ricón, 1958). Os 1.500 novos pacientes tratados durante o primeiro ano de vida do serviço, na sua maioria "psiconeuróticos no sentido amplo", estimularam Goldenberg a implementar um "plano de assistência psicoterapêutica", visando atender a essa demanda massiva com recursos humanos muito limitados.

A norma adotada foi formar grupos reduzidos e reservar a psicoterapia individual para casos especiais. A terapia em grandes grupos devia ser utilizada em pacientes com patologias comuns (alcoólicos, epilépticos, etc.) ou para a terapia ocupacional (fabricação de brinquedos, jardinagem, encadernação, etc.). Para compreender melhor a abordagem eclética de Goldenberg, é preciso citá-lo:

Com respeito aos grupos, o psicoterapeuta trabalha com ampla liberdade, de acordo com a sua formação e com o que considera prudente no desenvolvimento da sessão, mas em geral a orientação "psicagógica" ou "diretivo-inspiradora" leva em consideração as seguintes normas e finalidades:

1) tratar a situação de conflito que se cria pela ação do hospital sobre o paciente, ao separá-lo do seu meio e interromper a sua capacidade produtiva;

2) eliminar a ansiedade diante da doença, com o esclarecimento necessário do seu caráter;

3) preparar o cliente para tratamentos diversos, como choque elétrico, insulina, operações cruentas, partos e psicoterapia individual ou de pequenos grupos;

4) conseguir nos grupos a cooperação de pacientes que irão agir como assistentes e conselheiros, para adequar os novos doentes a todos estes problemas (...);

5) preparar a reinserção do paciente no meio (...). (Goldenberg, Pérez, Kizer, Sor & Ricón, 1958, pp. 313 e 314).

É claro que esta orientação "psicagógica" ou "diretivo-inspiradora", combinada a choques elétricos e à terapia ocupacional, a priori, não parecia muito próxima da psicanálise; contudo, pela "ampla liberdade" que possuíam os terapeutas, seria a orientação freudiana a que iria guiar os passos da maior parte dos profissionais contratados. Goldenberg não favoreceu essa eleição de maneira explícita, mas no mínimo a acolheu generosamente, o que não deixa de ser muito importante, sobretudo porque este serviço foi um dos primeiros lugares onde os estudantes de psicologia realizaram as suas primeiras práticas. Deste modo, o tipo de trabalho desenvolvido no Hospital Lanús serviu de modelo para a profissão nascente. Já em 1957 Goldenberg se orgulhava de contar com 12 estudantes de psicologia (que chamava de "psicólogas"), estagiando em seu serviço.

Outra característica importante deste programa era o seu aspecto preventivo. Segundo o projeto de saúde do conselho de administração, esse estabelecimento deveria privilegiar um "perfil psicossomático", tendo igualmente a obrigação de estender os seus serviços à sua zona de influência. Com essa finalidade, o serviço social e o serviço educativo tinham sido absorvidos pelo serviço dirigido por Goldenberg, dentro do qual estava prevista a organização de atividades de divulgação e palestras. Para completar o conjunto, foi implementado um hospital-dia, destinado a evitar a superlotação da sala de internação. Neste sentido, apesar de o Serviço de Psicopatologia do Hospital Lanús não ter sido o primeiro do seu gênero, foi o primeiro a implementar quase todos os meios terapêuticos disponíveis na época.

No congresso de psicoterapia de grupos, a acolhida a esse projeto, que começava a ser implementado, foi fria. Pichon-Rivière, por exemplo, além de se opor à terapia pelo trabalho, acreditava que os recursos humanos necessários seriam ainda maiores (entre 50 e 100 profissionais). Raúl Usandivaras, por sua vez, advertia sobre as eventuais resistências do pessoal auxiliar. Em geral, existia certo consenso sobre a distância existente entre os objetivos de um programa tão ambicioso e as possibilidades de colocá-lo em prática.

O RECONHECIMENTO DA PSICANÁLISE

Este serviço, que tinha começado modestamente em 1956, com três psiquiatras (um neurologista, um eletroencefalografista e um consultor externo), já contava em 1960 com cerca de 50 médicos, recebendo quase 7.000 pacientes por ano7 7 Em 1972, quando Goldenberg deixou o serviço, já tinha cerca de 150 profissionais, repartidos em 12 seções diferentes. . No percurso, muitas mudanças concorreram para fazer desse serviço um paradigma para o trabalho interdisciplinar de psiquiatras, psicólogos e trabalhadores sociais.

Em 1962, durante as "Primeiras Jornadas Argentinas de Psicoterapia", organizadas por Gregorio Bermann em Córdoba, Goldenberg apresentava o seu trabalho com outra abordagem:

A psicoterapia individual é a que oferece maiores dificuldades, por ser a que ocupa mais tempo médico-paciente, devido à grande quantidade de doentes que comparecem à consulta. Realizamos terapias de corte psicanalítico, com todas as dificuldades que foram apontadas, com uma frequência de duas vezes por semana e sessões de 30 minutos de duração (...).

Os grupos funcionam com a técnica psicanalítica habitual, com ligeiras modificações; são mistos, com 6 a 8 pacientes cada um, a cargo de um terapeuta e um monitor, ou eventualmente dois (...).

Por último, com os integrantes dos diferentes departamentos do serviço (Consultório Externo, Internação, Crianças, Adolescentes, Consultores e Grupos) estamos tentando elaborar técnicas, mesmo que de origem principalmente psicanalítica, que se tornem operativas e adequadas à instituição (Goldenberg, 1964, pp. 123 e 125).

Se em 1957 a psicanálise não fazia parte dos planos de Goldenberg, ao menos de forma explícita, cinco anos mais tarde a situação parecia muito diferente. Diante de outros referentes da psiquiatria nacional, como Bermann e Jorge Thénon, ele poderia agora admitir abertamente a inspiração analítica do seu serviço. É bem possível que este tenha sido um processo de transformação no qual Goldenberg apenas acompanhou a implementação crescente das ideias freudianas no campo psiquiátrico. Se nos anos 40 ele teve que manter em segredo a sua própria análise com Celes Cárcamo, por medo de ser punido pelo establishment, já no início da década de 60 podia orgulhar-se de ter estabelecido as bases de um movimento renovador das práticas de saúde mental, no qual a psicanálise ocupava um lugar privilegiado.

Seria muita simplificação dizer que Goldenberg era um propagador das ideias freudianas. Na verdade, tudo indica que teve que aceitar a psicanálise por necessidade instrumental, por pressão de um meio profissional que exigia dele cada vez mais. No tocante a Pichon-Rivière, teve que mudar o seu "esquema referencial" para se adaptar a uma nova realidade. Seja como for, é de destacar que esta transformação na consideração da psicanálise produziu-se na Argentina no fim dos anos 50. No começo dos 60 ainda houve debates teóricos, mas a psicanálise os enfrentou em uma posição de força, a ser consolidada com o passar do tempo.

Não termos feito de Goldenberg um herói da implantação da psicanálise na Argentina (erro em que se cai frequentemente) não significa que o seu Serviço de Psicopatologia não tenha sido uma instituição fundamental deste processo. Realmente, a experiência do Hospital Lanús foi muito importante em diversos pontos. Primeiramente, no que diz respeito aos profissionais, foi, provavelmente, a primeira instituição não afiliada à APA a oferecer uma formação clínica integral, na perspectiva psicanalítica, incluindo supervisões, cursos teóricos e pesquisa. Desta maneira, o "Lanús" tornou-se uma alternativa importante para a formação de elite proposta pela APA, acessível para poucos médicos. Em 1958 a APA contava com apenas 12 psicanalistas didatas, o que, além do fator econômico, limitava muito a quantidade de formandos. Por consequência, o trabalho no hospital, apesar de mal-remunerado, tornava-se um bom lugar de formação, que podia ser complementado com grupos de estudos particulares. Ante as intermináveis listas de espera das celebridades da APA, o "Lanús" se permitia iniciar-se em psicanálise com membros associados, candidatos ou "analistas selvagens" (aqueles que não se haviam formado no seio da instituição oficial) de boa reputação. Tudo isto era um atalho muito atrativo, que estava disponível para os jovens psiquiatras com menos recursos e para os primeiros psicólogos.

Na verdade, foi o começo de uma nova tradição na formação "psi" na Argentina. À falta de práticas remuneradas ("residências") - que seriam estabelecidas mais tarde, com poucas vagas - , a melhor percurso de especialização profissional para a maior parte dos que se interessavam pela clínica implicava na aceitação de um trabalho no âmbito público, geralmente mal-remunerado ou sem remuneração. Em 1962, entre os cinquenta e dois médicos que trabalhavam no serviço dirigido por Goldenberg, apenas cinco (menos de 10%) recebiam um salário. Não obstante, trinta e dois haviam recebido uma formação psicanalítica ou estavam em formação (isso sem contar os partidários do que Goldenberg chamava de "neoanálise8 8 Ao utilizar o termo neoanálise, Goldenberg referia-se provavelmente aos discípulos de Erik Fromm e Karen Horney, embora esse termo também haja sido utilizado por Hencke Harald Schultz, um psicanalista alemão que colaborou com o regime nazista. ").

O trabalho ad honorem era então o preço a pagar para ter a possibilidade de começar a atender pacientes em espaço institucional, sob a supervisão de psicanalistas renomados - como José Bleger ou Fernando Ulloa - , ou seja, aqueles que aceitavam com prazer as demandas de estabelecimentos como as do Hospital Lanús.

Destarte, do trabalho num serviço hospitalar à prática clínica privada era só um passo, que muitos deram muito rapidamente. Deste modo foi-se formando um "mercado psicanalítico paralelo", o qual incluía grupos de estudo, supervisões e psicanálise terapêutica que funcionavam como "didáticos". O monopólio autoproclamado da APA em relação ao uso legítimo da psicanálise começava a ser questionado - no início, de uma forma tão tímida quanto progressiva, depois, de maneira aberta e desordenada.

COMENTÁRIOS FINAIS

Neste ponto, devemos afirmar que o processo de expansão da psicanálise estudado parece não ter respondido à vontade manifesta de personagens certamente renovadores, como Goldenberg e Bleger, e sim, a uma tendência sociocultural, intelectual e profissional que superava até os seus planos mais ambiciosos.

Goldenberg, por exemplo, acreditava no início que os psicólogos não deviam fazer psicoterapia, exceto quando integrados a uma equipe dirigida por um médico; porém os testemunhos dos psicólogos que passaram pelo seu serviço mostram ter sido nesse espaço que aprenderam a exercer a prática, se não da psicanálise, pelo menos de uma psicologia clínica de filiação psicanalítica.

Tudo indica que, dentro da instituição, no calor da ação, as fronteiras entre as competências profissionais - "nos papéis", nos projetos e congressos, claramente definidas em termos de atribuições - começavam a ficar cada vez mais difusas. Com frequência acontecia que os psicólogos - e também os estudantes de psicologia - que trabalhavam no serviço tinham uma formação psicoterapêutica mais aprimorada do que a dos jovens psiquiatras, cuja formação universitária tinha pouco a ver com a cura pela palavra. Nessas circunstâncias, deve ter sido difícil para Goldenberg seguir suas primeiras ideias sobre as atribuições de cada um. Era obrigado então a ignorar a "falta" dos psicólogos, que, sem nenhum respaldo legal - porquanto somente os médicos estavam habilitados juridicamente para exercer a clínica - a partir de seus conhecimentos na aplicação de "testes de personalidade", orientavam-se progressivamente para funções terapêuticas e psicanalíticas.

Com respeito ao público atendido no serviço, é interessante destacar a existência de dois grupos bem diferenciados. De um lado, Goldenberg assinalava a presença dos vizinhos de bairro, de classe operária, com ingressos diversos, mas com um nível cultural homogêneo. Neste grupo, detectava a taxa mais elevada de desistência, a qual ele atribuía a "preconceitos errados sobre a assistência hospitalar, especialmente no que diz respeito à psicoterapia" (Goldenberg, 1964, pp. 121 e 122). Segundo ele, provavelmente tiveram experiências negativas em outros serviços, onde haveriam "negado ou subestimado a sua conduta emocional". Além disso, os psiquiatras eram vistos pelos pacientes como "médicos de loucos", com poderes sobrenaturais. De outro lado, descrevia um grupo no qual incluía pacientes de classe média, frequentemente jovens profissionais e estudantes de medicina e psicologia que moravam na capital cujos recursos não permitiam o acesso a um tratamento particular. Mesmo mostrando menos preconceito, sentiam mais vergonha, por certa dificuldade em assumir o papel de pacientes.

Tratava-se de um público que iria crescer de maneira vertiginosa, exigindo a atenção de uma quantidade cada vez maior de profissionais e fazendo das instituições públicas uma das vias mais importantes para a difusão de práticas clínicas inspiradas na psicanálise.

Recebido em 11/09/2008

Aceito em 23/07/2009

  • Basombrío, L. & Paz, C. A. (1958). El plan de psicoterapia de grupos del Instituto de Neurosis. Primer Congreso Latinoamericano de Psicoterapia de Grupo Buenos Aires: Americalee Editora, pp. 320-327.
  • Calvo, M. E. (1993). La creación del Instituto de Psicopatología Aplicada. In: Centro de Salud Mental, Dr. Arturo Ameghino. Nº 3, Buenos Aires: CONICET.
  • Carofile, A. (2001). Un psiquiatra alemán en la Argentina: Eduardo Enrique Krapf (1901-1963). Vertex, Revista Argentina de Psiquiatría, 42, (11).
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  • Goldenberg, M. (1964). La psicoterapia en el hospital general. In: Bermann, G. (ed.). >Las psicoterapias y el psicoterapeuta Buenos Aires: Paidós, pp. 123-125.
  • Harrison, T. (2000). Bion, Rickman, Foulkes and the Northfield Experiments. Advancing on a different front Londres: Jessica Kingsley Publishers.
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  • Visacovsky, S. (2002). El Lanús. Memoria y política en la construcción de una tradición psiquiátrica y psicoanalítica argentina Buenos Aires: Alianza.
  • Endereço para correspondência:

    Alejandro Antonio Dagfal
    Instituto de Investigaciones - Facultad de Psicología de la UBA
    Calle Independencia 3065 3º piso
    Ciudad de Buenos Aires (1225), Argentina
    E-mail:
  • 1
    A AAPPG foi criada em 1954, mais as suas atividades só começaram em 1955.
  • 2
    Este instituto tinha sido criado em 1948 por Ramón Carrillo, que era "Secretario de Salud Pública de la Nación". A partir de 1967, iria se chamar "Centro de Salud Mental Arturo Ameghino" (Calvo, 1993).
  • 3
    Esta experiência chegou a ser tão importante no imaginário da comunidade psi argentina que o antropólogo Sergio Visacovsky dedicou-lhe todo um livro, fruto de uma tese de doutorado defendida na Universidade de Utrecht (Visacovsky, 2002).
  • 4
    Gonzalo Bosch Bosch (1885-1967) foi uma figura-chave para a psiquiatria argentina nos anos '30 e '40. Em 1921 viajou aos Estados Unidos, onde familiarizou-se com as instituiçües criadas pelo movimento da higiene mental. Um ano depois, foi nomeado Professor Titular da materia de Psiquiatria, que acabava de ser criada na cidade de Rosario. Em 1931 retornou a Buenos Aires como diretor do Hospicio de las Mercedes, o enorme hospital neuropsiquiátrico que dirigirá até 1947.
  • 5
    Enrique Pichon-Rivière (1907-1977) foi um dos protagonistas mais importantes na "história psi" do Rio de La Plata. Psiquiatra e psicanalista, convertido em psicólogo social, foi também esportista, jornalista e crítico de arte. Em 1942 foi um dos membros fundadores da APA, da qual se afastaria - e seria afastado - nos anos 60. Assim mesmo, graças a um trajeto pouco ortodoxo, acabaria por transformar-se no representante de uma psicologia "de base psicanalítica", profundamente arraigada na sociedade argentina.
  • 6
    É curioso que esta instituição, desde a sua origem vinculada ao desenvolvimento das correntes comportamentais na América Latina, tenha escolhido um psicanalista como seu primeiro presidente.
  • 7
    Em 1972, quando Goldenberg deixou o serviço, já tinha cerca de 150 profissionais, repartidos em 12 seções diferentes.
  • 8
    Ao utilizar o termo neoanálise, Goldenberg referia-se provavelmente aos discípulos de Erik Fromm e Karen Horney, embora esse termo também haja sido utilizado por Hencke Harald Schultz, um psicanalista alemão que colaborou com o regime nazista.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jan 2010
    • Data do Fascículo
      Set 2009

    Histórico

    • Aceito
      23 Jul 2009
    • Recebido
      11 Set 2008
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