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Sobre corpos e monstros: algumas reflexões contemporâneas a partir da filosofia da diferença

About bodies and monsters: some contemporary reflections

Sobre cuerpos y monstruos: algunas reflexiones contemporáneas

Resumos

Este artigo tem como objetivo geral discutir algumas relações entre o corpo e o fenômeno do monstro - teratológico ou ficcional -, procurando avaliar os abalos que a figura monstruosa provoca nos modelos de apreensão da subjetividade construídos prioritariamente a partir dos referenciais da representação e da identidade. Em termos mais específicos, partindo principalmente de autores alinhados à filosofia da diferença, são discutidas algumas possibilidades de subversão suscitadas pela monstruosidade em suas relações com o corpo, tais como as que ocorrem nos campos da ciência, da cultura, dos estudos de gênero e de uma política de subjetivação. O que se procura ressaltar em todas essas vertentes é que, ao afirmar sua diferença radical, a figura do monstro abre novas vias de acesso ao devir e à singularidade.

Corpo; monstro; singularidade


This work has as its general aim to argue about some relations between the body and the phenomenon of the monster - teratological or fictional -, trying to evaluate the shocks that the monstrous figure provokes in the models of apprehension of subjectivity mainly constructed on the references of representation and identity. In more specific terms, starting mainly from authors aligned with the philosophy of difference, the paper discusses different possibilities of subversion raised by monstrosity in its relations with the body, such as the ones that occur in the fields of science, culture, gender studies and the politics of subjectivation. In all these versants it tries to emphasize that, when affirming its radical difference, the figure of the monster opens new ways of access to becoming and singularity.

Body; monster; singularity


Este artículo tiene como objetivo general discutir algunas relaciones entre el cuerpo y el fenómeno del monstruo - teratologico o ficcional -, buscando evaluar las conmociones que la figura monstruosa provoca en los modelos de aprehensión de la subjetividad construidos principalmente desde los referenciales de la representación y de la identidad. En términos más específicos, partiendo prioritariamente de autores alineados con la filosofía de la diferencia, si discuten diversas posibilidades de subversión suscitadas por la monstruosidad en sus relaciones con el cuerpo, tal como los que ocurren en los campos de la ciencia, de la cultura, de los estudios de género y de una política de subjetivación. El que si busca resaltar en todas estas vertientes es que, al afirmar su diferencia radical, la figura del monstruo abre nuevas maneras de acceso al devenir y a la singularidad.

Cuerpo; monstruo; singularidad


ARTIGOS

Sobre corpos e monstros: algumas reflexões contemporâneas a partir da filosofia da diferença

About bodies and monsters: some contemporary reflections

Sobre cuerpos y monstruos: algunas reflexiones contemporáneas

Carlos Augusto Peixoto Junior

Psicólogo, Psicanalista, Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Carlos Augusto Peixoto Junior Rua Belisario Távora, 521 / 102, Laranjeiras, CEP 22245-070, Rio de Janeiro-RJ, Brasil E-mail: cpeixotojr@terra.com.br

RESUMO

Este artigo tem como objetivo geral discutir algumas relações entre o corpo e o fenômeno do monstro - teratológico ou ficcional -, procurando avaliar os abalos que a figura monstruosa provoca nos modelos de apreensão da subjetividade construídos prioritariamente a partir dos referenciais da representação e da identidade. Em termos mais específicos, partindo principalmente de autores alinhados à filosofia da diferença, são discutidas algumas possibilidades de subversão suscitadas pela monstruosidade em suas relações com o corpo, tais como as que ocorrem nos campos da ciência, da cultura, dos estudos de gênero e de uma política de subjetivação. O que se procura ressaltar em todas essas vertentes é que, ao afirmar sua diferença radical, a figura do monstro abre novas vias de acesso ao devir e à singularidade.

Palavras-chave: Corpo; monstro; singularidade.

ABSTRACT

This work has as its general aim to argue about some relations between the body and the phenomenon of the monster - teratological or fictional -, trying to evaluate the shocks that the monstrous figure provokes in the models of apprehension of subjectivity mainly constructed on the references of representation and identity. In more specific terms, starting mainly from authors aligned with the philosophy of difference, the paper discusses different possibilities of subversion raised by monstrosity in its relations with the body, such as the ones that occur in the fields of science, culture, gender studies and the politics of subjectivation. In all these versants it tries to emphasize that, when affirming its radical difference, the figure of the monster opens new ways of access to becoming and singularity.

Key words: Body; monster; singularity.

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo general discutir algunas relaciones entre el cuerpo y el fenómeno del monstruo - teratologico o ficcional -, buscando evaluar las conmociones que la figura monstruosa provoca en los modelos de aprehensión de la subjetividad construidos principalmente desde los referenciales de la representación y de la identidad. En términos más específicos, partiendo prioritariamente de autores alineados con la filosofía de la diferencia, si discuten diversas posibilidades de subversión suscitadas por la monstruosidad en sus relaciones con el cuerpo, tal como los que ocurren en los campos de la ciencia, de la cultura, de los estudios de género y de una política de subjetivación. El que si busca resaltar en todas estas vertientes es que, al afirmar su diferencia radical, la figura del monstruo abre nuevas maneras de acceso al devenir y a la singularidad.

Palabras-clave: Cuerpo; monstruo; singularidad.

De acordo com Merleau-Ponty, o século XX foi responsável por um apagamento da linha divisória entre corpo e espírito, pois nele passou-se a encarar a vida humana como espiritual e corpórea de ponta a ponta, sempre apoiada sobre o corpo. Se para muitos pensadores do século XIX o corpo era um feixe de mecanismos ou um pedaço de matéria, o século passado teria restaurado e aprofundado a questão da carne, ou seja, o corpo animado. Para Jean-Jacques Courtine, o século passado também foi aquele que inventou teoricamente esse corpo. Essa invenção teria surgido, em primeiro lugar, com a psicanálise, desde que Freud, ao observar os corpos das histéricas de Charcot, teria decifrado a histeria de conversão e compreendido o que iria constituir um enunciado fundamental de muitas investigações posteriores: "o inconsciente fala através do corpo" (Courtine, 2008, p. 7). Com isso, o corpo acabou sendo ligado ao inconsciente e ao sujeito, mas também inserido nas formas sociais da cultura.

Não obstante, desde Freud, restaria ainda um obstáculo a transpor: a obsessão linguística do estruturalismo, a qual, desde o Final da Segunda Guerra mundial até os anos 1960, iria, efetivamente, tentar silenciar o corpo e seus devires. Ao final daquela mesma década as coisas começariam a mudar. O corpo passou a desempenhar papéis importantes nos movimentos individualistas e igualitaristas, que protestavam contra o peso das hierarquias culturais, políticas e sociais herdadas do passado. Nestas condições, o discurso e as estruturas se mostravam mais próximos do poder, ao passo que o corpo parecia se oferecer como instrumento de luta ao qual recorreriam algumas categorias oprimidas e marginalizadas: as minorias de raça, de classe ou de gênero pensavam ter apenas o próprio corpo para opor ao discurso do poder e para se contrapor à linguagem como instrumento que buscava impor o silêncio aos corpos. Vale lembrar que, ao situarmos o corpo como instrumento de questionamento do poder, ao qual se alinhavam as teses estruturais sobre o discurso e a linguagem, estamos apenas tentando destacar certos aspectos subversivos da corporeidade. Isso de modo algum significa uma análise reducionista, porquanto sabemos que várias posturas críticas quanto ao modelo estruturalista de linguagem também estavam sendo elaboradas no decorrer da década de sessenta do século passado.

Se, por outro lado, apenas em linhas muito gerais podemos considerar que o quadro acima permite retratar a resistência do corpo às forças reativas que buscaram enterrá-lo nos últimos tempos, no decorrer de toda a história da humanidade até os dias atuais, uma figura, também sempre marginalizada, fez com que a questão do corpo viesse com frequência à tona, despertando ao mesmo tempo horror e admiração. Trata-se da figura do monstro, que aqui buscaremos analisar a partir de questões como o corpo monstruoso, a monstruosidade como fenômeno, o devir-monstro e seus reflexos no âmbito de uma política de subjetivação. Em todas estas vertentes, partindo prioritariamente das teses de alguns autores alinhados com a filosofia da diferença, os quais, na esteira de pensadores como Nietzsche e Espinosa, questionaram o valor da verdade tal como proposto pela metafísica ocidental, o que poderemos notar é que o monstro sempre desestabiliza a representação e a identidade em suas diversas formas de expressão.

O monstro e o corpo

Segundo José Gil (2006), há uma tendência muito difundida nos autores que tratam da etimologia da palavra monstro a associá-la com monstrare e a traduzir esse verbo por "mostrar", e até mesmo pela ideia de "indicar com o olhar". Contudo, recorrendo ao linguista Émile Benveniste, Gil afirma que, etimologicamente, monstrare significa muito menos mostrar do que "ensinar um determinado comportamento, prescrever a via a seguir" (Benveniste, citado por Gil, 2006, p. 74). Só que, apesar dessa etimologia, o monstro mostra mais do que tudo o que é visto, pois mostra o irreal verdadeiro. O transbordamento que ele veicula ultrapassa o conteúdo representado, e está para além de sua origem e de sua causa. O monstro é, ao mesmo tempo, absolutamente transparente e totalmente opaco. Quando o encaramos, nosso olhar fica paralisado e absorto em um fascínio sem fim. Ao exibir a sua deformidade, a sua anormalidade – que normalmente se esconde – o monstro oferece ao olhar a sua aberração para que todos a vejam.

Seu corpo difere do corpo normal na medida em que revela o oculto, algo de disforme, de visceral, de "interior", uma espécie de obscenidade orgânica. Tal obscenidade ele não apenas a exibe, mas também a desdobra, virando a pele pelo avesso e desfraldando-a, sem se preocupar com o olhar do outro, para fasciná-lo. Na realidade, porém, o olhar nada vê, dado que fica suspenso nessa revelação-ocultamento que é a própria imagem do corpo monstruoso. Para Gil (2006), o que fascina é que o interior do monstro se corporifique e que não seja realmente um corpo, porque não é dotado de alma. Mostrando o avesso de sua pele, é sua alma abortada que o monstro exibe: seu corpo é o reverso de um corpo com alma.

Ao revelar o que deve permanecer oculto, o corpo monstruoso subverte a mais sagrada das relações entre a alma e o corpo: a alma revelada deixa de ser uma alma, torna-se, no sentido próprio, o reverso do corpo, um outro corpo, mas amorfo e horrível, um não-corpo (Gil, 2006, p. 79).

Nestes termos, estamos na presença de um corpo não codificado, que prolifera num processo de absorção dos signos e assim se transforma em uma espécie de signo delirante, parasitando todos os outros signos da linguagem. Trata-se, portanto, da irrupção no espaço social de um corpo individual assignificante que, devorando os signos, amedronta e provoca angústia em nosso ser cultural. Ainda de acordo com Gil, o monstro "mostra a natureza – o corpo – tentando significar por ela própria, sem a ajuda de (e contra) a cultura: significa, ao mesmo tempo, demasiadas coisas e nada" (Gil, 1997, p. 49). Seguindo essa mesma linha de argumentação, Fernando Pinto da Silva considera que o monstro é como um corpo significante caótico que, ao contrário de nos representar apenas de um modo deformado, esta aí "para indicar não só os nossos limites, mas as possibilidades em potência dos nossos corpos, do Corpo" (Pinto da Silva, 2007, p. 6).

Monstruosidade e anormalidade

Abordando o tema da monstruosidade no âmbito da vida, Georges Canguilhem - pensador que, apesar de não estar propriamente incluído entre aqueles que compõem o chamado pensamento da diferença, inspira-se com frequência na filosofia de Nietzsche - recorria a Gabriel Tarde para afirmar que o tipo normal era apenas o grau zero da monstruosidade (Canguilhem, 1965/1992, p. 25). Do seu ponto de vista, a vida não transgrediria as suas leis nem os seus planos, portanto seus acidentes não constituiriam exceções, nem haveria nada de propriamente monstruoso nas monstruosidades.

Aproximando-se do seu mestre à época de As palavras e as coisas, Michel Foucault também considerava que os monstros não seriam "de uma natureza distinta da das próprias espécies" (Foucault, 1981, p. 170), e constituiriam apenas o ruído de fundo ou o murmúrio ininterrupto do mundo natural. Desta forma, a partir do poder contínuo que a natureza detém, o monstro promoveria a diferença ao estatuto de princípio fundamental, colocando em questão, no âmbito do saber científico, o primado da identidade e da representação.

Se no período dedicado à arqueologia do saber as referências foucaultianas aos monstros se restringiam a esses aspectos da história natural – o que, aliás, é notado por Gil quando menciona a ausência de referencias ao anão na análise do Las meninas de Velásquez feita por Foucault (Gil, 2006, p. 61-63) -, na construção de sua teoria genealógica do poder o tema da monstruosidade ocupará um lugar importante. Em seu curso sobre Os anormais, nos anos de 1974-75, ele discute a ampla dimensão alcançada pelos monstros na genealogia do conceito de anormalidade desde o século XVIII.

Entre as principais figuras no domínio das teorias médico-jurídicas sobre as anomalias daquele período destacava-se a do monstro humano. Foucault nos mostra como no quadro de referência legal do saber jurídico o que definia esse monstro humano, tanto na sua existência como na sua forma, era não apenas a violação das leis da sociedade, mas também a violação das leis da própria natureza. Neste contexto, a existência do monstro enquanto tal já era suficiente para considerar as infrações às leis. Apesar de ser considerado um fenômeno radical e extremamente raro no domínio biológico-jurídico, no limite, o monstro teria se transformado num ponto central para a avaliação de diferentes aspectos da subversão das leis. Ainda de acordo com Foucault,

até a metade do século XVIII, havia um estatuto criminal da monstruosidade, no que ela era transgressão de todo um sistema de leis, quer sejam leis naturais, quer sejam leis jurídicas. Portanto, era a monstruosidade que, em si própria, era criminosa (Foucault, 1999, p. 69).

O monstro, efetivamente, contradizia a lei constituindo uma infração levada ao seu ponto máximo, daí a singularidade de seu caráter subversivo e de sua diferenciação absoluta.

Anomalia e devir

Se o monstro foi capturado pelo saber-poder médico-jurídico no âmbito das anomalias, isso certamente ocorreu porque o anômalo também comportava uma potência subversiva ligada à multiplicidade e ao devir. Conforme observam Deleuze e Guattari, dois dos principais pensadores contemporâneos da diferença, "a palavra 'anômalo', adjetivo que caiu em desuso, tinha uma origem muito diferente de 'anormal'" (Deleuze & Guattari, 1997, p. 25). Indo muito além deste adjetivo latino sem substantivo, o qual qualifica aquilo que não tem ou contradiz a regra, a "a-nomalia", substantivo grego que perdeu o seu adjetivo, designa o que é desigual, rugoso, áspero, ou seja, uma ponta de desterritorialização. Enquanto o anormal só poderia se definir em função de características específicas ou genéricas, o anômalo é como um indivíduo excepcional, uma posição ou um conjunto de posições em relação a uma multiplicidade. A partir desse ponto de vista, "cada multiplicidade é definida por uma borda funcionando como Anômalo; mas há uma enfiada de bordas (fibra), de acordo com a qual a multiplicidade muda" (Deleuze & Guattari, 1997, p. 33); e essa série de bordas enfileiradas constitui uma linha de fuga ou de desterritorialização1 1 Ainda que a linha de fuga necessariamente implique em uma desterritorialização (Zourabichvili, 2003, p. 40), cabe aqui uma maior precisão na definição desses conceitos, no que eles são fundamentais para embasar nossas hipóteses sobre o corpo mostro. A desterritorialização concerne a todas as coisas (matéria, objeto, ser, entidade), indicando não apenas a saída de um território (no sentido próprio ou figurado) que capta e codifica os fluxos que o atravessam, mas também a entrada em um território novo. Esses dois movimentos introduzem em uma mesma coisa, mudanças de funcionamento, função e sentido (Sasso & Villani, 2003, p. 82). Já a linha de fuga pode ser considerada uma figura da multiplicidade cujo inacabamento é constitutivo e que com isso impede a reterritorialização. Enquanto linha de ruptura, desterritorializante, ela representa a irrupção da figura do fora da representação (Sasso & Villani, 2003, p. 210). Situada neste contexto, a anomalia monstruosa aparece com toda a sua potência disruptora, diferencial e diferenciante. . Nestes termos, o anômalo, o outsider ou, naquilo que nos interessa aqui, o monstro - teratológico, isto é, real, ou ficcional - tem muitas funções: ele não apenas tangencia cada multiplicidade, cuja estabilidade passageira ou local ele determina com a dimensão máxima provisória, mas também constitui a condição da aliança necessária ao devir, levando cada vez mais longe na linha de fuga as passagens de multiplicidades ou transformações de devir.

A desterritorialização presente nessa dimensão do devir implica na instauração de um agenciamento, numa circulação de afetos impessoais, numa corrente alternativa, a qual, atuando como uma máquina de guerra que anula diferentes tentativas de reterritorialização, tumultua os projetos significantes e os sentimentos subjetivos. Trata-se, assim, da instauração de uma individuação impessoal, a partir da qual o monstro, no seu devir, coloca em questão o conceito de sujeito e a primazia do simbólico no campo da produção de subjetividades. Se considerarmos que o simbólico e o sujeito constituem duas noções fundamentais promulgadas pela vertente estruturalista de análise da linguagem e do desejo, não apenas no âmbito da linguística mas também no campo psicanalítico, é justamente o primado desse tipo de abordagem, pautado prioritariamente na centralidade destas duas noções, que o devir monstro e a monstruosidade permitem questionar. Além disso, o devir também problematiza qualquer ideia de evolução por dependência e filiação. Para Deleuze e Guattari,

o devir é sempre de uma ordem outra que a da filiação. Ele é da ordem da aliança. Se a evolução comporta verdadeiros devires, é no vasto domínio das simbioses que coloca em jogo seres de escalas e reinos inteiramente diferentes, sem qualquer filiação possível (Deleuze & Guattari, 1997, p. 19).

É nesse sentido que os autores podem considerar que existe sempre uma aliança contra a natureza em qualquer bloco de devir. Opondo a epidemia à filiação e o contágio à hereditariedade, eles nos fazem ver que o devir tem a ver com híbridos, que são, eles próprios, estéreis e nascidos de uma união que não se reproduzirá, mas sempre recomeçam e a cada vez ganham terreno; e certamente os monstros trazem consigo essa capacidade de hibridação e de proliferação.

Segundo Brian Massumi, existiria no devir uma tensão entre dois modos de desejo, um de ordem molar e o outro de ordem molecular, o primeiro remetendo à identidade e o segundo à diferença. Se com certa frequencia o ponto de partida dos devires diz respeito a uma situação molar, em cujos confins algumas alternativas tendem a se apresentar como escolhas entre seres molares, "uma molaridade, diferente daquela normalmente atribuída ao corpo que foge da coerção, sugere a si mesma como uma imagem de 'liberdade'" (Massumi,1992, p. 94). Assim, ainda que a escolha pelo devir possa estar assentada em termos molares, o processo colocado em ação não é, ele próprio, molar. Comportando um vetor de transformação que passa entre duas coordenadas molares, o devir implica relações potenciais de movimento as quais permitem traçar uma trajetória mutante que arrasta as normalidades molares para o reino do monstruoso e do molecular.

O devir-monstro do corpo

Retomando o argumento proposto mais acima por José Gil, se é verdade que o homem procura nos monstros uma imagem estável de si mesmo, ainda que por contraste, não seria menos verdadeiro supor que a monstruosidade atrai como uma espécie de ponto de fuga com o seu devir-inumano, no sentido, por exemplo, do devir animal2 2 Vale a pena lembrar que, para Deleuze e Guattari, o devir deve ser entendido em um sentido verbal e não substancial. Trata-se de um processo que implica numa metamorfose como encontro instantâneo das séries de pontos virtuais que caracterizam qualquer objeto ou ser (Sasso & Villani, 2003, p. 101). Em Kafka: por uma literatura menor (1975) e Mil Platôs (1997), os autores apresentam uma hierarquia puramente empírica de devires (animal, mulher, criança), a qual procede de uma avaliação imanente: animalidade, infância e feminilidade, no caso, não têm nenhum privilégio a priori. Eles são apenas alguns dos domínios mais investidos pelos desejos no âmbito molecular. Neste sentido, não se trata apenas de afirmar que os devires constituem alteridades múltiplas e heterogêneas com relação ao modelo de identificação majoritário (homem, adulto, macho). Na verdade, eles não são propostos como modelos alternativos, como formas ou códigos de substituição. Animalidade, infância e feminilidade valem por seu coeficiente de alteridade ou desterritorialização absoluta, as quais se abrem para um além da forma cuja consistência é molecular. No caso específico do devir animal, o animal não é aquele ser domesticado e familiar; inseparável de uma matilha, ainda que virtual, ele só vale pelas intensidades, singularidades e dinamismos que apresenta (Zourabichvili, 2003, p. 30-31). . Nesse ponto de fuga se confundiriam dois vetores de forças opostos: um tende à metamorfose; o outro, ao horror de tornar-se outro que ela comporta. O que faria do monstro uma espécie de "atrator" da imaginação seria justamente o fato de ele se situar na fronteira entre humanidade e não humanidade. Um nascimento monstruoso, por exemplo, "mostraria como potencialmente a humanidade do homem, configurada no corpo normal, conteria o germe da sua inumanidade" (Gil, 2006, p. 125). Nesse sentido, é como se alguma coisa no mais íntimo de nós mesmos – no nosso corpo ou no nosso ser – nos ameaçasse de dissolução ou caos, como se não soubéssemos onde estaria traçada a fronteira além da qual se desintegraria a nossa identidade humana. Na verdade, continua Gil, o que não se percebe muitas vezes é que é preciso experimentar-se ultrapassando limites, de acordo com determinado grau de plasticidade, para que alguma singularidade possa advir da capacidade de mutação própria ao devir. Talvez seja por esse motivo os monstros exercem tamanha atração: situados em uma zona de indiscernibilidade entre o devir-outro e o caos, eles podem aparecer – como no caso das figuras culturais da "mestiçagem" e da chamada "dupla identidade" – como um foco de atração de saúde e de vida contornado por regiões mortíferas ou mórbidas. Algo nos monstros se confunde e confunde a imaginação, suscitando um autêntico devir-outro, para além de si mesmo. Pergunta-se Gil: "O que é um devir senão a experimentação de todas as nossas potências – afetivas, de pensamento, de expressão?" (Gil, 2006, p. 126).

O devir-monstro teratológico, entretanto, é ambíguo, porque parece atualizar, diretamente e sem qualquer mediação, um devir si-próprio que tende a negar a noção de devir nela mesma. Além disso, ele também é ambíguo porque produz um excesso que se confunde com uma intensificação, a qual produz um corpo hiperorgânico que se assemelha a um corpo sem órgãos, pronto a acolher intensidades. De acordo com Deleuze,

para além do organismo, mas também como limite do corpo vivido, existe aquilo que Artaud descobriu e nomeou: corpo sem órgãos. "O corpo é o corpo, ele está só e não necessita de órgãos; o corpo não é jamais um organismo. Os organismos são os inimigos do corpo". O corpo sem órgãos se opõe menos aos órgãos do que a essa organização dos órgãos que chamamos de organismo. Trata-se de um corpo intenso, intensivo. Ele é percorrido por uma onda que traça no corpo níveis ou limiares segundo as variações de sua amplitude. O corpo, então, não tem órgãos, mas limiares ou níveis (Deleuze, 2002, p. 47).

Se admitirmos que a monstruosidade é uma espécie de diagrama vivo do caos e que este é um desencadeador de forças, o corpo monstruoso parece convocar o homem para uma secreta identificação, tal como o sublime atrai pelo horror latente que contém; portanto a monstruosidade também nos coloca diante de um movimento caótico repentinamente paralisado, como um devir iniciado que abortou, inacabado e mutilado. Assim, afirma Gil, "ficaram à mostra os traços de um grande tumulto, geologia corporal de sismos esboçados, catástrofes em estado avançado e subitamente terminadas" (Gil, 2006, p. 127).

Mais profundamente, o corpo teratológico provoca o que o filósofo português chama de "vertigem da irreversibilidade". Aquilo que está ali diante de nós, e que não deveria estar, parece estar lá para sempre, não podendo mais se apagar. Trata-se de algo que "não passa e faz passar, o acontecimento absoluto, a morte como caos impensável" (Gil, 2006, p. 127). O corpo do monstro é como uma superfície inóspita na qual dificilmente poderíamos nos espelhar ou prolongar o nosso duplo. Nele, é quase impossível morar. Entretanto, aquele corpo monstruoso é, de direito, o nosso duplo, como qualquer outro corpo. Daí a vertigem que nos provoca, visto que, com ele, quebra-se a proporção delicada entre simetria e assimetria, a relação adequada entre reversibilidade e irreversibilidade, entre o sentimento de ser mortal e imortal em vida. Nestas condições, é como se o monstro abrisse as comportas que retinham o tempo, deixando jorrar a irreversibilidade num ímpeto caótico, anunciando uma catástrofe. A corporalização dos duplos na multiplicação dos órgãos, nos corpos monstruosos, arrasta a impossibilidade de operar a reversibilidade das distâncias espaçotemporais: roubando-nos o nosso duplo e encarnando-o, o monstro teratológico já não nos reflete; entretanto, como, apesar de tudo, ainda se trata de um corpo humano, ele continua a nos refletir – daí a vertigem, o fascínio e o espanto inesgotável suscitado pela visão do monstro em seu devir.

Diante das hipóteses acima levantadas, poderíamos dizer que o que está em jogo nesta miríade de afetos provocados pelo devir-monstro do corpo é a sua dimensão de absoluta singularidade. Como afirma Perret-Gentil, de certa forma e de acordo com certa proporção, "tudo aquilo que é mostrado ou que se mostra afirmando a sua singularidade contra e através do semelhante é monstruoso" (Perret-Gentil, 2004, p. 80). Se o monstro constitui algo que é mostrado, ele é aquilo que faz ver a sua singularidade numa tal evidência que pouco deixa a dizer, numa evidência que se mostra por si mesma, sem precisar se justificar. O seu mostrar, enquanto tal, já é suficiente para que se possa ver e saber o que ele é. Trata-se, portanto, de um momento em que a expressão não é mais propriamente equívoca, mas unívoca. Enquanto individuação absoluta, o monstro constitui o impossível de toda generalidade ou a diferença pura e irredutível a qualquer oposição binária.

Interrogando-se de forma mais detalhada sobre o que poderia ser a multiplicidade no domínio das espécies monstruosas, Jean-Clet Martin considerava que a figura do monstro seria constituinte da multiplicidade e da unidade como um todo, a qual produz uma diferença ínfima, porém altamente transformadora. Com efeito, como diz o autor, o monstro nos afeta por sua maneira heteróclita de convocar uma diferença genérica capaz de afirmar uma confusão entre as espécies, como se o gênero irradiasse sua universalidade através de todas as singularidades da matéria, renovando com o seu fluxo qualquer especificidade típica. "O monstro é a mostração de uma vizinhança aberrante, de uma diferença que passa pelo gênero engolindo a das espécies" (Martin, citado por Perret-Gentil, 2004, p. 77). Ser híbrido, o monstro designa a singularidade de um gênero materializado, individualizado embora não-específico, atualizado no aqui-e-agora. Ele seria o gênero enquanto tal, realizado em carne e osso. Destarte, ainda de acordo com Martin, o que o monstro expõe por todos os lados é a realidade do gênero, o realismo do universal e sua individualização no sensível: a ideia como formosa deformidade.

Monstro, corpo e gênero

Essa relação complexa entre monstro e gênero nos permite adentrar em outro ponto fundamental deste artigo, qual seja, a questão da monstruosidade no âmbito das relações entre corpo, sexo e gênero. Não mais no domínio de uma história natural crítica, mas no contexto das discussões sobre corpo e sexualidade no mundo contemporâneo, essas relações se tornaram objeto de algumas discussões importantes no seio do pós-feminismo americano, movimento que buscou implementar uma política de subversão radical do conceito de gênero no âmbito do sexo. Em seu "Manifesto ciborgue", Donna Haraway, uma das principais expoentes desse movimento, que retoma pontos fundamentais da filosofia pós-metafísica, afirma que os monstros sempre definiram os limites da comunidade na imaginação ocidental. Os centauros e as amazonas da Grécia Antiga estabeleceram os limites da polis centrada do humano masculino grego ao vislumbrarem a possibilidade de casamento e as confusões de fronteira entre o guerreiro, de um lado, e a animalidade e a mulher, de outro. Hermafroditas e gêmeos univitelinos constituíram o confuso material humano dos primórdios da França moderna, o qual fundamentava o discurso no natural e no sobrenatural, no médico e no legal, nas maravilhas excepcionais e nas doenças, todos eles elementos cruciais no estabelecimento da identidade moderna. As ciências voltadas para o estudo da evolução e do comportamento dos macacos e símios marcaram as múltiplas fronteiras das identidades industriais do final do século passado. Já "os monstros-ciborgue da ficção científica feminista definem possibilidades e limites políticos bastante diferentes daqueles propostos pela ficção mundana do Homem e da Mulher" (Haraway, 1991, p. 180).

De acordo com Haraway, essas seriam algumas das consequências de se levar a sério a imagem dos ciborgues, como se fossem algo mais do que apenas nossos inimigos. Nossos corpos, conforme atesta a autora, são nossos eus; os corpos são, na verdade, mapas de poder e identidade, e os ciborgues não constituem uma exceção a isso. Só que o corpo do ciborgue não busca uma identidade unitária, portanto não produz infindáveis dualismos antagônicos. Para o ciborgue, um é pouco e dois, apenas uma possibilidade. Com ele, o intenso prazer na habilidade da máquina deixa de ser um pecado e passa a constituir um importante aspecto do processo de corporificação. Assim, a máquina deixa de ser idolatrada e começa a fazer parte de nossos processos corporais. Se podemos ser responsáveis pelas máquinas, também podemos nos responsabilizar pelas fronteiras e passamos a constituir, nós mesmos, essas fronteiras. Nesse sentido, os ciborgues podem expressar seriamente o aspecto, às vezes parcial ou fluido, do sexo e da corporificação sexual. A encarnação ciborguiana não obedece a um calendário edípico no qual as terríveis clivagens de gênero seriam curadas através de uma utopia simbiótica oral ou de um apocalipse pós-edipiano. "Os mais terríveis e promissores monstros dos mundos ciborguianos estão corporificados em narrativas não-edípicas, obedecendo a uma lógica de repressão diferente, a qual, em nome de nossa sobrevivência, precisamos compreender" (Haraway, 1991, p. 150). Nesse sentido, o ciborgue é uma criatura do mundo pós-gênero que não tem qualquer compromisso com as sexualidades edipianas em geral, todas elas fundadas em representações dicotômicas. Construídas em uma dimensão representacional mais estrita, tais sexualidades acabariam por fracassar em seu projeto de recusa do devir monstruoso diferencial de corpos, gêneros e sexos.

Aproximando os monstros das mães e das máquinas, Rosi Braidotti, outra importante representante do feminismo pós-metafísico, também traz contribuições significativas para a apreensão do papel subversivo das figuras monstruosas no que diz respeito ao debate sobre as relações entre sexo e gênero. Segundo a autora, os monstros sempre ocuparam um lugar importante na história e na filosofia das ciências biológicas, indicando a relação delas com a diferença e com os corpos diferentes. No contexto biológico, eles sempre não apenas representaram as más-formações do organismo humano, mas também assinalaram o lugar intermediário das misturas e da ambivalência. Esse aspecto já estaria implícito na raiz grega antiga da palavra monstro, teras, a qual significava tanto horrível como maravilhoso, objeto de abjeção e adoração. Desde o século XIX, seguindo o sistema de classificação da monstruosidade elaborado por Geoffroy Saint-Hilaire, as más-formações corporais haviam sido definidas em termos de excesso, falta ou deslocamento de órgãos. Mesmo que antes de chegar a esse tipo de classificação científica a filosofia natural já lutasse para dar conta destes objetos de abjeção, Braidotti afirma que "a constituição da teratologia como ciência oferece um exemplo paradigmático das maneiras pelas quais a racionalidade científica lidava com diferenças do tipo corporal" (Braidotti, 1994, p. 78).

Assim, de acordo com a autora, fica evidente que o discurso sobre os monstros incide sobre uma questão de suma importância para a teoria feminista: o estatuto da diferença no escopo do pensamento racional. Com sua lógica de oposições binárias, tal pensamento sempre tratou a diferença como aquilo que é alguma outra coisa que não a norma. Considerando que o corpo feminino em diferentes momentos foi aproximado do monstro devido à sua falta ou incompletude em relação ao corpo do homem, e que o corpo e o desejo das mães foram tomados como causa ou origem de diferentes anomalias ou anormalidades, Braidotti (1994) nos mostra que isso se deveu antes de tudo ao fato de que, durante muito tempo, não se conseguiu pensar diferentemente a diferença. Nestes termos, a aproximação entre os corpos dos monstros, das mulheres e das mães nos serve como instrumento de denúncia do pensamento falogocêntrico, que sempre procurou tratar o feminino e a feminilidade como objeto de abjeção. Além disso, marcando a sua diferença singular, como um degenerado que se contrapõe ao tipo genérico, o monstro também nos obriga a recusar a ideia de mulher genérica. Conforme mostrou Eliane Robert Moraes, "diante das interrogações que as criaturas teratológicas lançam, na afirmação de sua diferença, não seria possível postularmos um ideal universal feminino, que negaria igualmente a singularidade de cada ser" (Moraes, 2005, p. 24). Se mulheres e monstros puderem ser considerados figuras emblemáticas da incompletude, acima de tudo, vale lembrar que ambos nos mostram que somos, cada um de nós, um desvio em relação ao suposto homem genérico e universal e que, nessa qualidade, cabe a cada um e a todos a aventura sensível de uma existência.

Monstruosidade e política da multidão

Mantendo-nos no âmbito destes desdobramentos políticos da corporeidade do devir-monstro, não poderíamos deixar de mencionar aqui as importantes contribuições de Antonio Negri a propósito do corpo e da monstruosidade no contexto de uma política imanente da multidão. De acordo com o filósofo italiano, cuja obra retoma em nossos dias o legado de pensadores da diferença tais como Espinosa, Foucault, Deleuze e Guattari, "o corpo mais singular é também (...) o mais comum" (Negri, 2003, p. 202). Como potência de determinação que vive na singularidade materialista, o corpo se alimenta de uma ruptura que gera desmedida; e é na ruptura da temporalidade que o autor situa a chave da produção do ser. Nessas condições, o corpo reage à ruptura produzindo um ser novo. Inserido no domínio da materialidade do eterno, o corpo o conduz à ruptura, e revivifica a eternidade, experimentando-se como práxis do tempo. Destarte, antes de tudo, a reflexão corpórea seria "uma imersão ontológica que ativa o eterno mediante a abertura, deste eterno, sobre a borda do ser, sobre o ponto do porvir" (Negri, 2003, p. 82). Com isso, pode-se dizer que, ao refletir, o corpo não apenas se vê imerso em um campo material, mas também se abre à inovação. O corpo reflete o eterno pondo-o em contato com o devir, porque, apesar de essa relação ser desmedida, ela também é produção. No campo do comum, pensa Negri, é a singularidade que constitui a potência de desmedida. É ela que estabelece uma relação entre o "fora da medida" próprio a resistência à exclusão, e o "além da medida" relativo à potência que constitui um novo comum. Abrindo-se para a desmedida biopolítica, o corpo é afetado por ela e essa afetação já é, ela própria, potência. Para o autor, se o corpo é capacidade de exprimir afetos, tal como queria Espinosa, ao se mostrar afetado pelas relações produtivas, ele tem a sua potência aumentada.

Ainda de acordo com o filósofo italiano, a passagem da época do homem-homem para a do homem-máquina, do moderno para o pós-moderno, fez com que o corpo se transformasse na potência que constitui a base da máquina, ao mesmo tempo em que também se desenvolveu por meio dela. Na época do homem-máquina o trabalho vivo é potência de geração metamórfica, geração teleológica materialista e não finalista. Nenhum transcendental, assim como nenhuma conexão dialética, precede ou informa o efeito dessa geração. Nessa teleologia, "a causa é sempre externa porque se debruça sobre a borda do tempo, onde o novo surge, e – em um certo aspecto – o produto da geração inovadora é sempre um 'monstro'" (Negri, 2003, p. 207). Se "o monstro pode ser reconhecido como potência de metamorfose" (Negri, 2002, p. 137), toda metamorfose implica em passagens. A metamorfose é sempre singular, porque se constitui na criação de um novo ser, para além da borda do tempo, onde a marca da singularidade se coloca. Quando o singular ultrapassa a borda do tempo, a passagem se transforma em multidão, porque "constrói novo ser comum, que, por isso mesmo, vale para a multidão de singularidades" (Negri, 2003, p. 203). As metamorfoses também dizem respeito aos corpos enquanto conjunto de mutações sensoriais, perceptivas e mentais produzidas pela experimentação no mundo da vida dentro de novos ambientes maquínicos e da produção desterritorializada. Neste sentido, Negri considera que a metamorfose é geração biopolítica. A artificialidade ou a naturalidade dos processos biopolíticos expostos sobre borda do ser constituem uma nova natureza ou um novo artefato. Por isso, complementa o autor, diz-se, no pós-moderno, que o sujeito se torna ciborgue ou artefato tecnológico. Na verdade, através de todas as metamorfoses anteriores, ao longo do desenvolvimento das diferentes tecnologias, "o corpo já se tornou, de alguma maneira e em algum aspecto, um ciborgue; mas a transformação atual, na era do homem-máquina, é realmente a transformação do ciborgue, em sentido próprio" (Negri, 2003, p. 222).

Considerações finais

Nos tempos atuais, em que o horizonte social definitivamente se constituiu como o campo por excelência da biopolítica, Negri e Hardt acham que devemos sempre nos lembrar dos monstros e de suas primeiras histórias modernas, visto que o efeito monstro desde então só se multiplicou. "Hoje, Frankenstein é da família" (Negri & Hardt, 2005, p. 255), dizem os autores. Sem dúvida, neste fim de século os monstros proliferam: vemo-los por todos os lados, no cinema, nos quadrinhos, em gadgets e brinquedos, livros e exposições de pintura, no teatro e na dança. Invadindo o planeta, eles definitivamente se tornaram familiares. A própria teratologia se tornou fantástica. Não nos contentamos mais com as classificações oitocentistas de Geoffroy Saint-Hilaire, que finalmente pareciam pacificar um universo confuso, racionalmente escandaloso, incapaz, há séculos, de estabelecer as "leis da aberração". Nesse contexto, o discurso dos seres vivos deve se tornar uma teoria de sua construção e das possibilidades que os aguardam no porvir. Imersos nessa realidade instável, diante da crescente artificialidade do mundo e da institucionalização do social, é necessário que estejamos cada vez mais preparados para que os monstros surjam a qualquer momento - como, aliás, não param de surgir. Se a filosofia deleuziana já havia reconhecido o monstro no interior da humanidade, quando considerava que o homem é o animal que está mudando sua própria espécie, Negri e Hardt (2005) levaram a sério essa formulação. Com o avanço dos monstros e com o tratamento científico dado a eles, a humanidade transforma a si mesma, como também modifica sua história e a própria natureza. Ainda de acordo com os autores,

o problema não consiste mais em decidir se essas técnicas humanas de transformação devem ser aceitas, mas em aprender o que fazer com elas e saber se funcionarão em nosso beneficio ou em nosso detrimento. Na realidade, precisamos aprender a amar certos monstros e a combater outros (Negri & Hardt, 2005, p. 256).

Assim, precisamos utilizar as expressões monstruosas da multidão para desafiar e subverter as metamorfoses da vida artificial transformadas em mercadoria, o poder capitalista que vende as mutações da natureza e a nova eugenia que sustenta esse poder, pois, se como afirmam Negri e Hardt, "o conceito de multidão obriga-nos a entrar num novo mundo no qual só podemos entender a nós mesmos como monstros" (Negri & Hardt, 2005, p. 253). É justamente nesse mundo dos monstros que a humanidade tem que se apropriar do seu futuro.

Referências

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Recebido em 28/08/2008

Aceito em 22/09/2009

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  • Endereço para correspondência:

    Carlos Augusto Peixoto Junior
    Rua Belisario Távora, 521 / 102, Laranjeiras, CEP 22245-070, Rio de Janeiro-RJ, Brasil
    E-mail:
  • 1
    Ainda que a linha de fuga necessariamente implique em uma desterritorialização (Zourabichvili, 2003, p. 40), cabe aqui uma maior precisão na definição desses conceitos, no que eles são fundamentais para embasar nossas hipóteses sobre o corpo mostro. A desterritorialização concerne a todas as coisas (matéria, objeto, ser, entidade), indicando não apenas a saída de um território (no sentido próprio ou figurado) que capta e codifica os fluxos que o atravessam, mas também a entrada em um território novo. Esses dois movimentos introduzem em uma mesma coisa, mudanças de funcionamento, função e sentido (Sasso & Villani, 2003, p. 82). Já a linha de fuga pode ser considerada uma figura da multiplicidade cujo inacabamento é constitutivo e que com isso impede a reterritorialização. Enquanto linha de ruptura, desterritorializante, ela representa a irrupção da figura do fora da representação (Sasso & Villani, 2003, p. 210). Situada neste contexto, a anomalia monstruosa aparece com toda a sua potência disruptora, diferencial e diferenciante.
  • 2
    Vale a pena lembrar que, para Deleuze e Guattari, o devir deve ser entendido em um sentido verbal e não substancial. Trata-se de um processo que implica numa metamorfose como encontro instantâneo das séries de pontos virtuais que caracterizam qualquer objeto ou ser (Sasso & Villani, 2003, p. 101). Em
    Kafka: por uma literatura menor (1975) e
    Mil Platôs (1997), os autores apresentam uma hierarquia puramente empírica de devires (animal, mulher, criança), a qual procede de uma avaliação imanente: animalidade, infância e feminilidade, no caso, não têm nenhum privilégio a priori. Eles são apenas alguns dos domínios mais investidos pelos desejos no âmbito molecular. Neste sentido, não se trata apenas de afirmar que os devires constituem alteridades múltiplas e heterogêneas com relação ao modelo de identificação majoritário (homem, adulto, macho). Na verdade, eles não são propostos como modelos alternativos, como formas ou códigos de substituição. Animalidade, infância e feminilidade valem por seu coeficiente de alteridade ou desterritorialização absoluta, as quais se abrem para um além da forma cuja consistência é molecular. No caso específico do devir animal, o animal não é aquele ser domesticado e familiar; inseparável de uma matilha, ainda que virtual, ele só vale pelas intensidades, singularidades e dinamismos que apresenta (Zourabichvili, 2003, p. 30-31).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2010

    Histórico

    • Aceito
      22 Set 2009
    • Recebido
      28 Ago 2008
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