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Normatividade vital e dualidade corpo-mente

Normatividad vital y dualidad cuerpo-mente

Normativity of life and body-mind duality

Resumos

O objetivo do artigo é abordar o problema da dualidade entre corpo e mente mediante a discussão do conceito de normatividade vital, proposto por Canguilhem. Destaca a necessidade de superar o conflito histórico entre vitalismo e mecanicismo e de construir um conceito que incorpore a dimensão psíquica como prolongamento do orgânico no humano. Busca realizar articulação entre questões em aberto na biologia e na física e apresenta as idéias de Roger Penrose sobre a ligação entre física e mente. Inquire a possibilidade de a física do século XX inscrever-se na biologia do século XXI. Defende que, para dar conta desse desafio, é imperioso considerar o limite humano em conhecer o universo. Com base nessa discussão, reafirma que a dimensão psíquica no homem pode ter evolucionado de uma capacidade biológica anterior de realizar 'escolhas' para fazer a vida perseverar.

Filosofia; ciências biológicas; física


El objetivo de este artículo es abordar el problema de la dualidad cuerpo-mente mediante la discusión del concepto de normatividad vital, propuesto por Canguilhem. Destaca la necesidad de superar el conflicto histórico entre vitalismo y mecanicismo y de construir un concepto que incorpore la dimensión psíquica como prolongamiento de lo orgánico en lo humano. Busca realizar una articulación entre cuestiones abiertas en la biología y en la física y presenta las ideas de Roger Penrose sobre la relación entre física y mente. Indaga sobre la posibilidad de la física del siglo XX inscribirse en la biología del siglo XXI. Defiende que, para poder concretar este desafío, es imperioso considerar el límite humano para conocer al universo. En base a esta discusión, reafirma que la dimensión psíquica humana puede haber evolucionado a partir de una capacidad biológica anterior de realizar elecciones para preservar la vida.

Filosofia; ciencias biológicas; física


The objective of the article is to broach the problem of body mind duality through the discussion of the concept of normativity of life, proposed by Canguilhem. Highlights the necessity to overcome the historic controversy between mechanism and vitalism, and to construct a concept that incorporates the psychic dimension as an extension of organic in human. Seek to make a link between open questions in biology and in physics and presents Roger Penrose's ideas about connection between physics and mind. Questions the possibility of 20 TH century physics has to be inscribed in 21 TH century biology. To deal with this challenge it is necessary to consider human limits to know the universe. Based on this discussion, reaffirms that human psychic dimension could be evolved from an anterior biological capacity to perform "choices" to make life to persevere.

Philosophy; biological sciences; physics


ARTIGOS

Normatividade vital e dualidade corpo-mente

Normativity of life and body-mind duality

Normatividad vital y dualidad cuerpo-mente

Dina Czeresnia

Doutora em Saúde Pública, Pesquisadora titular da Fundação Oswaldo Cruz, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Dina Czeresnia Rua Leopoldo Bulhões, 1480 CEP 21041-210, Rio de Janeiro-RJ, Brasil E-mail: dina@ensp.fiocruz.br

RESUMO

O objetivo do artigo é abordar o problema da dualidade entre corpo e mente mediante a discussão do conceito de normatividade vital, proposto por Canguilhem. Destaca a necessidade de superar o conflito histórico entre vitalismo e mecanicismo e de construir um conceito que incorpore a dimensão psíquica como prolongamento do orgânico no humano. Busca realizar articulação entre questões em aberto na biologia e na física e apresenta as idéias de Roger Penrose sobre a ligação entre física e mente. Inquire a possibilidade de a física do século XX inscrever-se na biologia do século XXI. Defende que, para dar conta desse desafio, é imperioso considerar o limite humano em conhecer o universo. Com base nessa discussão, reafirma que a dimensão psíquica no homem pode ter evolucionado de uma capacidade biológica anterior de realizar 'escolhas' para fazer a vida perseverar.

Palavras-chave: Filosofia; ciências biológicas; física.

ABSTRACT

The objective of the article is to broach the problem of body mind duality through the discussion of the concept of normativity of life, proposed by Canguilhem. Highlights the necessity to overcome the historic controversy between mechanism and vitalism, and to construct a concept that incorporates the psychic dimension as an extension of organic in human. Seek to make a link between open questions in biology and in physics and presents Roger Penrose's ideas about connection between physics and mind. Questions the possibility of 20 TH century physics has to be inscribed in 21 TH century biology. To deal with this challenge it is necessary to consider human limits to know the universe. Based on this discussion, reaffirms that human psychic dimension could be evolved from an anterior biological capacity to perform "choices" to make life to persevere.

Key words: Philosophy; biological sciences; physics.

RESUMEN

El objetivo de este artículo es abordar el problema de la dualidad cuerpo-mente mediante la discusión del concepto de normatividad vital, propuesto por Canguilhem. Destaca la necesidad de superar el conflicto histórico entre vitalismo y mecanicismo y de construir un concepto que incorpore la dimensión psíquica como prolongamiento de lo orgánico en lo humano. Busca realizar una articulación entre cuestiones abiertas en la biología y en la física y presenta las ideas de Roger Penrose sobre la relación entre física y mente. Indaga sobre la posibilidad de la física del siglo XX inscribirse en la biología del siglo XXI. Defiende que, para poder concretar este desafío, es imperioso considerar el límite humano para conocer al universo. En base a esta discusión, reafirma que la dimensión psíquica humana puede haber evolucionado a partir de una capacidad biológica anterior de realizar elecciones para preservar la vida.

Palabras-clave: Filosofia; ciencias biológicas; física.

Este artigo articula questões em aberto na biologia e na física do século XX, tendo como desafio a dualidade corpo e mente. Um dos principais entraves para encontrar uma resposta a esse problema é o fato de a biologia estar assentada em um modelo mecanicista, fundamentado na física newtoniana. Poderia o corpo ser concebido de modo mais integrado se a física do século XX pudesse ser inscrita na biologia do século XXI? Um aspecto dessa questão diz respeito à função cognitiva e à dimensão psíquica serem conceituadas em epistemologias radicalmente distintas das ciências da natureza. Outra forma de pensar a relação entre corpo e mente poderia surgir a partir da elaboração de um conceito capaz de definir uma forma elementar de valor em seres vivos mais simples? A cognição humana poderia ser decorrência evolutiva da capacidade do ser vivo elementar realizar uma atividade cognitiva primária e anterior? Essa atividade é, por exemplo, aventada na imunologia, interconectada a células como linfócitos (Daniel-Ribeiro & Martins, 2008). Admitir função cognitiva em linfócitos requer concebê-la em uma forma anterior a processos mentais mais complexos, portanto, diferenciada do que o homem reconhece como o seu próprio conhecimento. Essa não é uma questão trivial, pois é uma tarefa difícil ao homem formular o que é conhecimento independentemente do seu modo de experimentá-lo.

O CONCEITO DE NORMATIVIDADE BIOLÓGICA

A idéia de que há uma anterioridade biológica na propriedade humana do conhecimento, inscrita na apreciação do valor favorável ou desfavorável de circunstâncias vitais, foi formulada por Canguilhem (1904 – 1995). Em sua tese O Normal e o Patológico (1943), ele afirmou que a técnica humana, o exercício de uma terapêutica fundamentada no conhecimento médico, seria o prolongamento de uma atividade espontânea, própria da vida de lutar contra o que se apresenta como obstáculo à sua manutenção e desenvolvimento. Ele asseverou:

(...) que a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível, que a vida é polaridade e por isso mesmo, posição inconsciente de valor, em resumo, que a vida é, de fato, uma atividade normativa. Em filosofia, entende-se por normativo qualquer julgamento que aprecie ou qualifique um fato em relação a uma norma, mas essa forma de julgamento está subordinada, no fundo, àquele que institui as normas. No pleno sentido da palavra, normativo é o que institui as normas. E é neste sentido que propomos falar sobre uma normatividade biológica (Canguilhem, 1995, p. 96).

O conceito de normatividade biológica afirma a propriedade de um organismo, mesmo unicelular, exercer uma espécie de "discernimento" a respeito do que é a favor ou ameaça à sua preservação. Existiria uma subjetividade distintiva da condição vital. A vida humana estaria enraizada na vida de uma célula, ou seja, o humano seria uma amplificação de uma propriedade biológica essencial. Canguilhem chama atenção para essa afirmação não ser interpretada como antropomorfismo: "Não emprestamos às normas vitais um conteúdo humano, mas gostaríamos de saber como é que a normatividade essencial à consciência humana se explicaria se, de certo modo, já não estivesse, em germe, na vida" (Canguilhem, 1995, p.97).

Para Canguilhem (1977), a propriedade de autoconservação, a circunstância de a vida perseverar à revelia da tendência a entropia, deve-se a essa capacidade de realizar uma apreciação inconsciente de valor. O filósofo defendeu que esta característica indicaria ser a biologia diferenciada das regularidades descritas pela físico-química e, por isso, foi questionado como defensor de uma espécie de vitalismo.

Porém, se a físico-química não alcançou descrever a propriedade de autoconservação do ser vivo, a biologia não se diferenciou desta. A normatividade ocorre na totalidade do ser vivo e não foi equacionada pela biologia, ao descrever a vida fracionando-a em seus constituintes, mediante a miniaturização crescente dos seus objetos: "Ora, as análises precedentes não terão confundido o nível dos fenômenos conhecidos e vividos e o nível dos fenômenos explicados? A normalidade aparece como uma propriedade dos organismos mas desaparece ao nível dos elementos da organização" (Canguilhem, 1977, p. 121).

A autoconservação, para Canguilhem um dado da vida, é ainda um problema em aberto, inquirido também por físicos ao buscarem uma explicação física para a natureza da vida e da mente humana.

A autoconservação de uma célula é análoga a dos organismos multicelulares, que apresentam células especializadas na manutenção da individualidade, como as do sistema imunológico. Linfócitos, assim como neurônios, são células e participam de uma rede que realiza de forma elaborada funções existentes de modo primordial em seres vivos mais simples. Poderíamos dizer que a função cognitiva humana é uma emergência que se torna possível a partir de uma incomensuravelmente complexa interconexão celular, mas que estaria anteriormente e de forma elementar presente em uma célula. Uma célula estaria muito longe de realizar uma cognição simbólica, mas o corpo humano teria origem filogenética na célula. Raciocinar buscando esse elo poderia auxiliar a elaboração de uma teoria mais integrada sobre o que é o corpo. Essa é também a proposição de Edgar Morin:

Existe apenas um patamar entre homens e macacos. Existe um abismo vertiginoso entre Escherichia coli e Homo sapiens. Mas parece-nos evidente que, do ponto de vista conceitual, a chave do indivíduo-sujeito bacteriano está no indivíduo-sujeito humano; parece-nos evolutivamente lógico que a chave do indivíduo-sujeito humano está no indivíduo-sujeito bacteriano. Temos pois de tentar ligar essas duas proposições num anel produtor de conhecimento (Morin, 2002, p. 224).

Morin propõe uma identidade fundamental na estrutura que liga a noção biológica e antropológica de indivíduo-sujeito. Sujeitos humanos não têm a mesma significação de uma bactéria, isso é óbvio e é afirmado no texto do autor. Ao utilizar essa referência não se pretende entrar no mérito da categoria sujeito, apenas reforçar a idéia de que o humano estaria enraizado no biológico e seria necessário encontrar uma chave epistêmica capaz de esclarecer essa origem.

O conceito de normatividade vital pode ser importante na busca dessa ligação epistêmica entre seres vivos. O corpo humano é extremamente complexo, mas não está dissociado da biologia. Considera-se aqui que a biologia foi construída de forma reduzida ao não conceber o humano como decorrente dela. A célula foi descrita em bases físico-químicas, mas o conceito de normatividade vital aponta uma qualidade da célula não descrita, mesmo apresentando-se na sua totalidade como um dado da vida. O ser vivo unicelular é desmedidamente mais simples do que o homem, mas não seria irrelevante propor que há uma propriedade na célula filogeneticamente constitutiva da condição do humano.

Seria incorrer mais uma vez no vitalismo propor que normatividade vital, conceito elaborado por Canguilhem na primeira metade do século XX, seja retomado como eixo de perguntas fundamentais a desafios da ciência no século XXI, como o da cognição?

Vitalismo é a "doutrina que afirma a necessidade de um princípio irredutível ao domínio físico-químico para explicar os fenômenos vitais" (Ferreira, 2004). O vitalismo tem o sentido de conceber a vida como força extra-física. Porém, é possível supor que a física do século XXI alcançasse propor a descrição física de uma propriedade celular de forma diferenciada das regularidades físico-químicas descritas no contexto da mecânica clássica. Nesse caso, o vitalismo metafísico poderia ser superado por uma transformação na biofísica.

Fazer essa suposição pode ser encarado ainda como um vitalismo por ser ainda uma especulação. Porém, essa idéia não deixa de ser uma argumentação possível no contexto do debate sobre uma visão cognitiva a partir do que sabemos acerca de linfócitos e neurônios. Como viabilizar a descrição de uma propriedade celular cognitiva em uma perspectiva físico-química? Até hoje não houve uma descrição sólida e bem fundamentada dessa função.

Ao mesmo tempo, há a experiência do homem com sua forma simbólica de normatividade. Fenômenos como a linguagem, a mente, o pensamento, não foram explicados em bases físico-químicas. O homem seria uma emergência radicalmente distinta dos outros seres vivos? Considerando o homem um ser vivo decorrente do processo de evolução biológica, como entender o surgimento de propriedades tão fantásticas como as que o define? Se existe a mente humana, porque, guardando a relativização necessária, não seria possível uma "mente" celular?

Não há dúvida de que é a consciência humana singularmente capaz de construir símbolos que expressam pensamentos. Os pensamentos são formações extremamente elaboradas e não há, até hoje, uma descrição física do que sejam. Os pensamentos estão no cérebro? É o cérebro a estrutura anátomo-fisiológica responsável pela elaboração de pensamentos? Qual a base material destes e como eles interagem com o cérebro? A mente poderia ser explicada em termos cerebrais ou ela não pode ser reduzida ao cérebro?

Apesar da imensa distância de complexidade, não haveria uma equivalência na nossa ignorância sobre o que é o pensamento e o que seria a normatividade (cognição) de um ser unicelular? Se há um vínculo epistêmico a ser construído, qual seria a chave para realizar essa conexão em um anel produtor de conhecimento?

Se a biologia não alcançou descrever a normatividade de um ser vivo unicelular, poderia a física vir a fazê-lo como algo que, em escala extremamente ampliada, resultaria nos fenômenos mentais humanos?

NORMATIVIDADE BIOLÓGICA E FÍSICA NÃO COMPUTACIONAL

A capacidade normativa do ser vivo elementar e a consciência poderiam ser estruturas biofísicas ainda não descritas? Essa possibilidade foi aventada, no início da década de 1990, por Roger Penrose, no contexto da discussão sobre a natureza física dos fenômenos mentais. Apesar de ser um físico e matemático de grande envergadura, este aspecto do seu trabalho foi considerado especulativo, encontrando muitas críticas e resistências. A teoria de Penrose tem a ousadia de aventar hipóteses ainda longe da comprovação científica. Porém, isso não a desqualifica no sentido de apresentar questões de grande interesse para ampliar a reflexão sobre cognição e fenômenos biológicos.

Para Penrose, a mente é um aspecto de algum tipo de estrutura física. O mundo mental emerge do mundo físico e, de algum modo, a cultura nasce da mente. A física trata a matéria, objetos massivos, partículas, espaço, tempo, energia. Como sentimentos e percepções poderiam emergir da física? Penrose considera essa relação um mistério, sem abrir mão do desafio de entender o mundo mental nos termos do mundo físico (Penrose, 1998).

Apesar da sua perspectiva fisicista, Penrose discorda energicamente da possibilidade de descrever a mente de modo semelhante a um computador. Dedica grande parte do seu trabalho para argumentar a esse respeito. Ou seja, ele entende que a ação do cérebro é de ordem física, porém essa ação não pode ser simulada computacionalmente. Haveria algo na ação física do cérebro que está além da computação (Penrose, 1998).

Ele identifica duas possibilidades no sentido de buscar a descrição dessa ação física não computacional: já haveria na física conhecida, elementos para se encontrar certos tipos de ação não computacional; ou deve existir algo fora da física conhecida a ser procurado para descrever a ação não computacional do cérebro, ou seja, nosso entendimento físico ainda seria incompleto e talvez a ciência futura venha a explicar a natureza da consciência (Penrose, 1998).

Este último é o ponto de vista de Penrose. A resposta para uma física não computacional, relevante para explicar a ação do cérebro, estaria ligada a uma das mais importantes questões em aberto na física a partir do século XX: como um sistema físico passa do nível quântico para o nível clássico. A tarefa muito difícil de responder como unir esses dois níveis estaria relacionada, segundo o autor, à formulação da teoria quântica da gravidade (Penrose, 1998).

O problema que Penrose apresenta tem, no ponto de vista aqui desenvolvido, uma ligação com o conceito de normatividade vital e a reflexão filosófica de Canguilhem. Não poderia ser objetivo deste texto, discutir os detalhes técnicos da proposição de Penrose e, muito menos, como a física poderia explicar a emergência da mente e da cultura. Contudo, é possível dizer que há uma convergência entre a pergunta do físico e a do filósofo, apesar de terem pontos de vista distintos em relação à que ciência seria capaz de um dia respondê-la. Penrose segue uma linha de pensamento semelhante à proposição de Canguilhem de a mente humana ser o prolongamento de uma propriedade existente em uma célula, ao interrogar a natureza não computacional de um neurônio ou da "mente" de um paramécio:

Que estão fazendo os neurônios individuais? Estão agindo apenas como unidades computacionais?Pois bem, os neurônios são células e as células são coisas muito elaboradas. Na realidade, elas são tão elaboradas que, ainda que só tivéssemos uma delas, poderíamos fazer coisas muito complicadas. Por exemplo, um paramécio, um animal unicelular, é capaz de nadar até o alimento, fugir do perigo, transpor obstáculos e, aparentemente, aprender com a experiência. Todas estas são qualidades que pensaríamos requerer um sistema nervoso, mas o paramécio certamente não tem sistema nervoso. No melhor dos casos, o paramécio seria ele próprio um neurônio! Com certeza não existem neurônios num paramécio – há apenas uma única célula. O mesmo tipo de afirmação poderia ser aplicado a uma ameba. A pergunta é: Como fazem isso?

Uma sugestão é que o citoesqueleto – a estrutura que, entre outras coisas, dá à célula a sua forma – é o que está controlando as complicadas ações desses animais unicelulares. No caso do paramécio, os cabelinhos, ou cílios, que ele usa para nadar são as extremidades do citoesqueleto e são em ampla medida feitos de pequenas estruturas tubulares chamadas microtúbulos. O citoesqueleto é formado desses microtúbulos, bem como de actina e filamentos intermediários. As amebas também se movem, usando efetivamente microtúbulos para propelir seus peudópodos (Penrose, 1998, p. 138-139).

Sem entrar em nenhum detalhe técnico e apenas para ter uma idéia da lógica do raciocínio de Penrose, pode ser dito que ele propõe a hipótese de uma atividade quântica nos microtúbulos estar ligada a ações celulares, inclusive dos neurônios. Fenômenos físicos não computacionais poderiam ocorrer nessas estruturas microtubulares e teriam relação com os processos mentais. O próprio Penrose reconhece o caráter especulativo de suas idéias, mas quem sabe ele não estaria abrindo caminho para a construção no futuro de uma teoria mais completa da biofísica celular?

O que torna essas idéias atraentes, do ponto de vista aqui tratado, é ela possibilitar o avanço da reflexão na filosofia das ciências da vida. A convergência, em alguns aspectos, entre a teoria de Penrose e o conceito de normatividade vital pode indicar caminhos que valem a pena serem investidos. Essa convergência, no entanto, não oculta também divergências e novas perguntas podem colocar problemas em outras bases.

A superação do conhecimento não garante a vitória plena de uma teoria sobre outra porque uma nova visão não veicula a mesma idéia da teoria "vitoriosa" no passado. A perspectiva fisicista de Penrose, caso se tornasse legitimada, estaria muito longe de ser uma vitória restrita ao que poderia ser chamado o "mundo físico". O que seria uma física não computacional? Que ligação essa nova física teria com a emergência do mundo mental de onde emergiria por sua vez o mundo da cultura?

Ao propor que uma física não computacional poderia vir a ser um caminho para explicar a emergência do mundo mental e do mundo cultural, Penrose assume, no interior de uma perspectiva fisicista, a idéia de que haveria no mundo material elementos que fazem emergir o mundo espiritual. Penrose apresenta uma perspectiva filosófica monista, sem contudo desconsiderar a existência dos três mundos contidos na perspectiva pluralista. O problema fundamental, portanto, não seria uma oposição entre monismo, dualismo e pluralismo, mas conceber uma física que está além da que conhecemos até hoje e que fosse capaz de explicar a emergência física dos três mundos.

Essa idéia, caso legitimada, também poderia tornar superada a oposição entre vitalismo e mecanicismo. A descrição de uma física não computacional sobrepujaria a necessidade de se apelar a uma força vital metafísica. No interior de uma perspectiva fisicista seria descrita uma força correspondente ao vitalismo.

Um problema que permaneceria seria o da oposição entre objetividade e subjetividade. Persiste o conflito entre a perspectiva que propõe o mundo físico fazer emergir, de modo objetivo, o mundo mental e o mundo cultural; e a que advoga ser a condição vital, em sua forma mais simples, uma posição inconsciente de valor.

De acordo com Canguilhem, valor é algo inscrito na condição vital e distintivo da condição biológica. A vida é uma originalidade em relação ao não vivo. Se pensarmos o biológico, em toda a amplitude humana, emergindo da física, como responder a essa originalidade do vivo?

ARTICULAÇÃO ENTRE QUESTÕES EM ABERTO NA BIOLOGIA E NA FÍSICA

Buscar uma articulação entre grandes questões em aberto na física e na biologia pode ser um recurso para encontrar um caminho de superação do conhecimento. A filosofia das ciências da vida talvez não tenha realizado um diálogo suficientemente produtivo com a física do século XX. Físicos como Schroedinger e Bohr escreveram sobre a relação entre física e biologia e abriram uma reflexão, intensificada no decorrer do século, que talvez não tenha sido apropriada completamente pela filosofia da biologia e, principalmente, pelo conhecimento biológico.

Um dos aspectos mais controversos da física do século XX, como vimos, é o que diz respeito à passagem do nível quântico para o nível clássico. Como foi comentado acima, Penrose propôs que formular a redução objetiva de um nível a outro poderia abrir caminho para descrever a ação do cérebro como física não computacional.

Em termos gerais, a estrutura conceitual da física clássica está mais adaptada à nossa experiência comum dos fenômenos físicos. Ela baseia-se na idéia de que é possível realizar uma discriminação entre o comportamento dos objetos e a sua observação. Espaço e tempo são categorias definidas pela posição e velocidade dos objetos (Bohr, 1995).

Segundo Bohr (1885 – 1962), a física no inicio do século XX trouxe uma profunda mudança na forma de compreender o que é a realidade. Na descrição da estrutura atômica, encontrou-se não ser possível determinar a posição de um elétron no espaço e no tempo, antes de uma medição ser realizada. Anterior à observação, um elétron pode estar em vários lugares ao mesmo tempo e é somente no momento da observação que essa posição se define. Há uma dualidade no comportamento do elétron e uma determinada situação experimental só é capaz de revelar uma das suas formas de apresentação: onda ou partícula. Não existe na física quântica uma realidade objetiva. As condições de observação interferem no fenômeno estudado (Bohr, 1995).

O nível clássico e o nível quântico definem duas formas irreconciliáveis de compreender o mundo físico. Um é a realidade objetiva, o que pode ser determinado, previsto. O outro é a realidade subjetiva, como por exemplo, aquilo que se constituiu como possibilidades em nosso pensamento antes da definição de uma escolha traduzida em ação. Bohr estabeleceu uma analogia epistemológica entre a mecânica quântica e fenômenos psicológicos (e as ciências humanas), onde é evidente a relação estreita entre sujeito e objeto (Bohr, 1995). A física clássica está em relação à física quântica de uma forma muito semelhante a que se apresenta na oposição entre objetividade e subjetividade, característica de nossa relação com o conhecimento.

A física quântica estendeu a dimensão da subjetividade a partículas infinitamente pequenas enquanto a vida é descrita pela biologia em termos da mecânica clássica. Os contornos desse confuso quadro parecem os de um quebra cabeças em que ainda faltam peças para poder elucidar uma imagem mais definida.

Por um lado, a descrição quântica abriu espaço para uma série de especulações sobre a existência de uma "consciência" na estrutura última da matéria. Por outro lado, não houve como enunciar uma teoria científica capaz de explicar a analogia entre fenômenos quânticos e psicológicos. Os fenômenos quânticos foram descritos para o infinitamente pequeno e a mente humana é uma emergência que ocorre ligada a uma densa rede de neurônios.

A inquietante falta de explicações consistentes trouxe para essa questão uma falta de cientificidade e, portanto, uma resistência nos campos demarcados tanto da física como da biologia. É inevitável reconhecer, contudo, que desde suas primeiras formulações na primeira metade do século XX, os questionamentos sobre as implicações da física quântica na compreensão do que é a realidade fizeram físicos aproximarem-se crescentemente da discussão sobre a natureza da vida, da mente e da consciência.

Schroedinger (1887 – 1961) escreveu "O que é vida?" (1943) e "Mente e matéria" (1956). "O que é vida?" produziu um grande impacto no mundo da ciência, principalmente por ter antecipado a construção da teoria do código genético, demonstrada por Watson e Crick alguns anos mais tarde. Os percursos que conduziram Schroedinger a essa brilhante concepção o fizeram também realizar especulações sobre a natureza da mente e da consciência. Ele observou como a consciência está mediada pela condição biológica do homem. A consciência é intimamente relacionada e dependente do estado físico do corpo, como se evidencia nas suas alterações durante processos característicos do desenvolvimento como adolescência e senilidade; ou como efeito de infecções, drogas ou lesões cerebrais (Schroedinger, 1997).

A consciência pode se alterar em função de transformações corporais. Dizer isso não é nenhuma novidade, mas dizer que a realidade é concebida pelo homem com a mediação da sua biologia, o que seria uma conseqüência lógica disso, é algo que escapa de ser realizado na sua profundidade. Podemos compreender a seguinte reflexão de Schroedinger, em "O que é vida?", como uma circunstância cuja delimitação tem uma origem biológica:

Diz-se, por exemplo, que há uma árvore ali fora, perto da minha janela, mas na verdade, eu não a vejo. Por algum ardiloso artifício, do qual apenas os passos iniciais e relativamente simples são explorados, a árvore real projeta uma imagem em minha consciência e é disso que me apercebo. Se você ficar ao meu lado e olhar para a mesma árvore, esta projetará também uma imagem em sua alma. Eu vejo minha árvore e você, a sua (notavelmente igual à minha) e o que a árvore é em si mesma nós não o sabemos. Kant é o responsável por essa extravagância (Schroedinger, 1997, p. 100).

Referindo-se à resignação incutida por Kant de não sabermos nada sobre a "coisa em si", o autor, em "Mente e Matéria", lembra que a idéia de subjetividade é bem antiga e familiar. A mecânica quântica acrescentou conseqüências para a idéia da realidade como uma construção humana:

O que é novo no cenário atual é o seguinte: que não somente as impressões que obtemos de nosso ambiente dependeriam em grande parte da natureza do estado contingente de nosso sensório, mas, inversamente, o próprio ambiente que desejamos apreender é modificado por nós, notavelmente pelos dispositivos que estabelecemos para observá-lo (Schroedinger, 1997, p. 140).

O conhecimento está intimamente vinculado às condições do sistema que o observa. Quando observamos através dos dispositivos construídos pela técnica humana não estaríamos nos aproximando cada vez mais da verdadeira realidade, mas construindo novas realidades, mediadas por novas condições de observação.

Isso nos estimula a perguntar qual o limite do conhecimento. Os instrumentos construídos permitem ao homem observar progressivamente realidades anteriormente inimagináveis. Porém, as condições de construção desses instrumentos não estariam também mediadas por limites configurados pela nossa biologia?

A física, ao descrever a realidade através de instrumentos potentes de observação não estaria desvelando com precisão cada vez maior um mundo independentemente de nossos poderes e limites de observação. Os instrumentos construídos pelo homem estão mediados por esses poderes e limites. A construção do conhecimento e da realidade humana apresenta transformações suscitadas pela técnica, mas a própria técnica está inscrita nas condições iniciais delimitadas pela constituição biológica. Os dispositivos de observação estariam mediados em última instância pela estrutura do aparelho sensorial humano.

A noção de aparelho sensorial humano diz respeito ao que conhecemos a respeito da fisiologia dos órgãos envolvidos na capacidade de captar a realidade interna e externa ao corpo. O homem tem uma estrutura anatômica e fisiológica complexa e a realidade é apreendida mediante essa estrutura composta de uma rede de interações celulares. A descrição do aparelho sensorial humano é configurada pela mecânica clássica. A descrição dos instrumentos de observação construídos pela técnica também está ancorada na perspectiva da física clássica.

A física clássica descreve a realidade segundo as categorias de espaço e tempo, referências fundamentais da experiência humana. Seres vivos unicelulares se movimentam no espaço e no tempo, contudo, a representação interna do mundo para eles é imediatamente ligada à sobrevivência mais básica. Reconhecem o que lhes é favorável ou desfavorável, reagem a estímulos, movendo-se na sua direção ou afastando-se deles (Szamosi, 1994).

De acordo com a teoria de Jerison (1991), as referências humanas de espaço e tempo foram construídas no decorrer do processo evolutivo (Telles, 2008). Os mamíferos constituíram a possibilidade de estabelecer uma percepção espaço-temporal dos objetos. Anteriormente, na escala evolutiva, os estímulos não apresentavam padrão de modo a existir um reconhecimento da sua proveniência. O homem, muito além disso, criou espaços e tempos simbólicos. Essa teoria reitera a idéia de a biologia definir referências fundamentais ao conhecimento humano sobre a realidade física.

Se for legítima a teoria de Jerison, a física clássica descreveria a realidade segundo critérios que correspondem ao sistema cerebral em uma dinâmica resultante da integração complexa das suas estruturas. Essa rede integrada faz emergir a percepção de um mundo capaz de ser compartilhado pela espécie. A objetividade seria um consenso constituído pela nossa herança biológica. As referências da física clássica teriam emergido no devir evolutivo da espécie humana.

Propor que as referências básicas da experiência do homem no espaço e no tempo são decorrentes da biologia humana, pode produzir uma conseqüente interpretação sobre a passagem do nível quântico ao nível clássico, como questionado anteriormente.

A física quântica, referida à estrutura fundamental da matéria, não apresenta referências no espaço e no tempo. Uma interpretação seria ela não corresponder totalmente à estrutura última da matéria, pois o homem não seria capaz de observar a matéria independentemente da sua condição biológica. A natureza essencialmente probabilística da descrição quântica seria relativa a uma condição fisicamente inscrita na célula, relacionada à normatividade dos seres vivos, desde os mais elementares, e ampliada nos mais complexos. Os fenômenos mentais humanos seriam um prolongamento dessa qualidade essencialmente biológica (no sentido de ser relativa à vida). Ou seja, o fenômeno quântico seria decorrente da "interferência" de uma condição biológica na observação da estrutura fundamental da matéria.

A física não passível de ser descrita em bases computacionais, conforme a proposição de Penrose, seria expressão da propriedade do ser vivo realizar uma posição inconsciente de valor. A redução do nível quântico ao nível clássico seria conseqüente a uma ocorrência a ser explicada por uma física biológica.

Propor essa hipótese é apenas uma especulação, uma ousadia intelectual a ser avaliada como possibilidade de responder a algumas questões. Não teria como aprofundá-la do ponto de vista físico, o que torna a argumentação muito genérica. É mesmo de uma forma bem inicial que essa possibilidade precisa ser aventada, pois não há como desenvolvê-la sem ser de uma forma coletiva.

O conhecimento como algo configurado pela biologia foi estudado por Maturana e Varela (1984). Asseverar que o homem não é capaz de descrever a estrutura última da matéria pode ser filosoficamente sustentado no pensamento de Kant, como abordado acima. É também consonante à concepção de Spinosa de o homem só ser capaz de reconhecer dois dos infinitos atributos da substância única: extensão e pensamento, atributos dos quais ele mesmo é constituído (Spinosa, 2002).

Se for legítimo afirmar o limite do conhecimento vinculado à biologia, a física estaria condicionada por ela. Isso não significaria que o homem não se relaciona com algo além dele mesmo. O que significaria é que o homem não é capaz de se relacionar com o universo sem estar atravessado pela sua própria condição biofísica. Essa proposição possibilitaria admitir a hipótese de a diferença entre matéria viva e matéria inorgânica ser a propriedade da substância viva realizar escolhas, por portar uma condição que o homem descreveu quando formulou a estrutura fundamental da matéria. Na descrição da estrutura atômica haveria interferência de um fenômeno vital.

A descrição de uma realidade essencialmente probabilística pela física atômica seria devida à interferência de uma condição vital e não à estrutura atômica em si mesma. Normatividade vital, posição inconsciente de valor, conforme o conceito de Canguilhem, seria uma propriedade original da estrutura viva escolher, no seu devir, o que a faz perseverar. A idéia da descrição da estrutura atômica sofrer interferência de uma propriedade biológica estaria ajustada a essa originalidade do vivo.

Essa proposição é filosófica, não é refutável experimentalmente, mas seria possível avaliar sua validade lógica. Haveria nessa interpretação alguma inconsistência que a torne vulnerável em comparação a outras interpretações existentes igualmente não validadas cientificamente?

Esse pensamento é condizente com a tese de a teoria quântica não ser definitiva do ponto de vista do encontro da estrutura última da matéria. Porém, a questão é: o homem seria capaz de acessar essa estrutura última? Talvez as conseqüências da formulação da teoria quântica estejam mais próximas da natureza da mente e da biologia do conhecimento do que da estrutura fundamental da matéria.

Reconhecer um limite na capacidade do homem desvelar o universo não significa que não existam leis na natureza, "Deus não joga dados", como disse Einstein. O homem é que não seria potente o suficiente para desvendar essas leis integralmente. Porém, conhecer melhor seus limites pode proporcionar novas possibilidades para conhecer a si mesmo, abrindo caminho para um maior entendimento do que é o corpo humano em uma perspectiva mais íntegra.

CONCEITO DE LIBERDADE COMO CONDIÇÃO ORGÂNICA

Os princípios que orientam a concepção do mundo espiritual ser uma emergência do mundo físico podem ganhar mais força ao se articularem com a biologia em uma perspectiva filosófica. Penrose pensa o mundo físico ser capaz de fazer emergir o mundo da mente e o da cultura. Se a descrição quântica estiver mediada por uma condição essencialmente biológica, o quântico poderia ser uma propriedade biofísica que permite à vida escolher o que a faz perseverar. Para Canguilhem a vida apresenta uma posição inconsciente de valor. Por sua vez, Jonas (2004) propõe que a vida, em sua forma mais elementar, porta o conceito de liberdade:

As grandes contradições que o homem encontra em si mesmo – liberdade e necessidade, autonomia e dependência, o eu e o mundo, relações e isolamento, atividade criadora e condição mortal – já estão germinalmente prefiguradas nas mais primitivas manifestações de vida, cada uma delas mantendo um precário equilíbrio entre o ser e o não ser, sempre já trazendo dentro de si um horizonte de "transcendência" ... – uma escala ascendente de liberdade e risco que culmina no ser humano, o qual talvez possa chegar a uma nova compreensão de sua unicidade quando deixar de considerar-se um ser metafisicamente isolado (Jonas, 2004, p.7).

Penrose admitiu a necessidade de uma superação na física para que esta possa dar resposta à emergência do que foi tratado como metafísico. Porém, o metafísico não seria, isoladamente, atributos espirituais humanos. O ser vivo mais rudimentar apresentaria, de forma metabólica, corporal, e ligada à sobrevivência, uma condição em que se expressa o conceito de liberdade (Jonas, 2004). A visão ontológica de Jonas estende a idéia de liberdade ao primeiro que tem a escolha como base da existência, sendo essa escolha proveniente da necessidade mais básica. O conceito de liberdade é indispensável para a descrição ontológica do dinamismo vital mais elementar:

Desta maneira o primeiro aparecimento do princípio em sua forma pura e elementar implica a irrupção do ser em um âmbito ilimitado de possibilidades, que se estende até as mais distantes amplidões da vida subjetiva, e que como um todo se encontra sob o signo da liberdade (Jonas, 2004, p. 14).

Os primeiros seres vivos estiveram inscritos em uma condição que teria a escolha como base primeira da possibilidade de existir organicamente. A mais elevada forma de subjetividade é um prolongamento dessa potencialidade. A vida em sua forma mais elementar é uma condição de discernir entre possibilidades e esta condição está presente em todos os seres que se sucederam.

O ser vivo realiza sua autopoiese em acoplamento estrutural com o meio (Maturana & Varela, 1984), ele existe como ser em relação com o que o constitui. Ele é ser no limite do não ser. A liberdade do ser é a opção de constituir ou não o outro em si mesmo de forma a se nutrir, crescer, evolucionar. A fronteira entre ser e não ser é a condição de liberdade e necessidade de escolher o que faz a vida perseverar.

O que a vida realiza é um fluir constante em que o ser se desprende do todo em uma condição precária. A existência persiste na medida em que está em relação com o meio circundante. O ser é o limite do não ser e é devir em relação.

Tão constitutiva para a vida é a possibilidade do não ser, que seu ser é, como tal, essencialmente um estar suspenso sobre este abismo, um traço ao longo de sua margem. Assim, o próprio ser,em vez de um estado, passou a ser uma possibilidade imposta, que continuamente precisa ser reconquistada ao seu contrário sempre presente, o não ser, que inevitavelmente terminará por devorá-lo (Jonas, 2004, p. 14-15).

A vida é um paradoxo, se distingue em uma condição instável em que o ser só existe em relação. O não ser e o outro são condição e, ao mesmo tempo, ameaça à existência. Essa é a circunscrição que expressa a transcendência como condição básica da vida por mais rudimentar e pré-espiritual que seja. Se isso for assim, é possível afirmar que o espírito está pré-figurado na existência orgânica (Jonas, 2004)."(...) viver é essencialmente estar relacionado com algo; e relação como tal implica transcendência, implica um ultrapassar-se por parte daquilo que mantém a relação" (Jonas, 2004, p.15).

A filosofia da vida pode ter uma importância crucial para reorientar a ciência da vida no sentido de alcançar a perspectiva da integração entre corpo e mente. Haveria uma condição física essencialmente biológica, ou seja, correspondente à ontologia do vivo. A misteriosa passagem do nível quântico ao nível clássico está até hoje em uma dimensão metafísica. Ela não é passível de explicação objetiva, mas é uma evidência acessível à observação e pode vir a ser imputada a uma condição vital. A perspectiva de unificar os mundos físico, biológico, mental e espiritual pode ser possível se aceitarmos um limite na capacidade do homem conhecer o universo.

DESAFIOS

A tese cartesiana da separação radical entre corpo e mente está cada vez mais questionada no mundo contemporâneo. O problema é que transformar essa cosmologia exigiria mudanças de ordem epistêmica ampla. Os limites da física e da biologia seriam borrados. Em alguns aspectos, a física seria uma biologia ampliada. A física não poderia deixar de conter nela mesma a emergência dos mundos mental e cultural. A linguagem, substrato das ciências humanas e sociais, seria um objeto biofísico, porém conteria a singular propriedade humana de criar símbolos que expressam sentidos para o valor inscrito na condição vital.

Os desafios são imensos, não há nenhuma descoberta nessa reflexão, decorrente de inquietações originadas por perguntas provenientes do campo das ciências da vida. Os entraves não seriam poucos, um deles a incredulidade dos que acreditam poder perscrutar a natureza sem a mediação da sua própria constituição biológica. Há também os que não admitiriam perder a especificidade dos seus campos de conhecimento. Quem seria competente para falar do que?

O problema maior, contudo, não seria a disputa de competências, mas admitir mais plenamente a assustadora condição de o homem não ser capaz de conhecer integralmente processos cognitivos inconscientes que o determinam. A revolução de Copérnico demonstrou ser a terra um pequeno planeta que gira em torno do sol. A segunda revolução copernicana foi enunciada por Freud, mediante o conceito de inconsciente. No século XXI, o conceito de inconsciente precisaria ser alargado e fazer também parte da rede cognitiva que articula células como linfócitos e neurônios.

Supor que o homem concebe a realidade com a mediação do que ele é não impede reconhecer sua capacidade de conhecer a natureza e o universo, mas afirma, como foi analisado, um limite. Esse limite também está na possibilidade da consciência humana penetrar seu inconsciente. A consciência pode ser compreendida como uma emergência no sistema de relação em que se delimita a individualidade humana. O inconsciente, para além da concepção atual ligado ao psiquismo em uma ruptura com a biologia, teria uma materialidade e estaria inscrito na estrutura orgânica, em escala difícil de ser realizada pela consciência. Esta seria apenas uma pequena parte de algo muito mais potente.

O homem tem várias formas de expressão como a ciência, a arte, a filosofia. Saber fazer a articulação entre elas é a maneira de realizar de modo mais pleno sua condição (Atlan, 1991). Reconhecer os seus limites não implica delegar à forças mágicas o papel de governar a existência. A vida é maior do que nossa consciência, mas isso não significa que a transcendência esteja ausente nos nossos próprios corpos, que por sua vez, não se reduzem à descrição que os diferentes campos científicos alcançaram fazer dele.

Em uma época de transformações intensas, vale o exercício de pensar e abrir questões. É importante estar permeável à ousadia das viagens que refletem um desejo de superação da fragmentação excessiva da vida, da ciência em relação à filosofia, da técnica em relação à vida em sua índole essencial de perseverar, evolucionar e afirmar-se, mesmo considerando que o homem pode até destruí-la se não forem modificadas suas prioridades na relação com o planeta.

Recebido em 17/10/2008

Aceito em 18/03/2010

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  • Endereço para correspondência:

    Dina Czeresnia
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Recebido
      17 Out 2008
    • Aceito
      18 Mar 2010
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