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Professores/as diante da sexualidade-gênero no cotidiano escolar

Teachers face to sexuality and gender during school routine

Profesores/as frente a la sexualidad y género en la rutina escolar

Resumos

A partir de uma investigação de doutorado na qual foram realizadas várias entrevistas individuais com três professoras e um professor do segundo ciclo do Ensino Básico e do Ensino Médio de uma escola pública da Bahia, verificamos que o (des)conhecimento das diretrizes éticas adotadas pelo Estado para combater as discriminações sexuais/de gênero envolve tanto os processos de formação profissional quanto as “crenças pessoais” dos docentes. Embora a arena política de produção destas diretrizes também se mostre efervescente e contraditória, focamos aqui as posturas docentes que, amalgamando singularmente “experiências de vida”, vivências profissionais e fragmentos das diretrizes oficiais, sustentam-se na constituição singular dos sujeitos num contexto em que as possibilidades de os/as investigados/as “lidarem” com a educação sexual e suas concepções pessoais sobre esse tema junto ao alunado se produziam a partir de uma abordagem “pessoal” dele. Discutimos esse cenário com foco na processualidade mediada, histórica, que, no caso, expõe a submissão da postura profissional a posições “pessoais”.

professores/as; educação sexual; formação profissional


As a result of a doctoral research, during which various recurring individual interviews were carried out with 4 basic and high school teachers from a public school in Bahia, we verified that the lack of knowledge about the ethical guidelines established by the State to fight sexual and gender discrimination is implicated in the processes of professional formation, as well as in “personal beliefs” of teachers. Although the political field where these guidelines are produced is also effervescent and contradictory, here we focus on the teachers’ attitudes. These, singularly amalgamating “life experiences”, professional backgrounds and fragments of the official guidelines, are supported by the single constitution of subjects. Since the possibilities of the investigated teachers to “deal” with sexual education and its meanings in relation to the students, were produced from the standpoint of their own personal approach. Focusing on the mediated processes, we discussed this historical scenario that, in this case, shows the subordination of the professional posture to “personal” viewpoints.

Teachers; sexual education; higher education


A partir de una investigación de doctorado, que llevó a cabo varias entrevistas individuales con tres profesoras y un profesor del ciclo básico y medio de una escuela pública en Bahia, verificamos que el (mal) conocimiento de las directrices éticas adoptadas por el Estado para combatir la discriminación sexual y de género está implicado en los procesos de formación profesional, así como en "creencias personales" de los profesores. Aunque la arena política que produce estas directrices también esté efervescente y contradictoria, nos centramos aquí en las actitudes de los maestros. Las cuales, amalgamando de manera singular "experiencias de vida", vivencias profesionales y fragmentos de las directrices oficiales, se basan en la constitución de los sujetos individuales. Así, las posibilidades de las/los investigados/das de relacionarse con la educación sexual y sus significados frente a los estudiantes, se produce a partir de un enfoque "personal". Debatimos este panorama, focalizando procesos mediados, histórico que, en este caso, expone la sumisión de las posturas profesionales a posiciones personales..

Profesores; educación sexual; educación profesional


ARTIGOS

Professores/as diante da sexualidade-gênero no cotidiano escolar1 1 Apoio: Capes.

Teachers face to sexuality and gender during school routine

Profesores/as frente a la sexualidad y género en la rutina escolar

André Heloy AvilaI; Maria Juracy Filgueiras ToneliII; Carmen Silvia de Arruda AndalóIII

IDoutorado em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil (2010). Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia, Brasil

IIDoutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo, Brasil (1997). Professor Associado III da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

IIIDoutorado em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Brasil (1989). Professora aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina

Endereço para correspondência Endereço para correspondência André Heloy Ávila Rua José Bonifácio, 216, Bairro Centro, CEP 45820-550, Eunápolis-BA, Brasil. E-mail: aheloy@uneb.com

RESUMO

A partir de uma investigação de doutorado na qual foram realizadas várias entrevistas individuais com três professoras e um professor do segundo ciclo do Ensino Básico e do Ensino Médio de uma escola pública da Bahia, verificamos que o (des)conhecimento das diretrizes éticas adotadas pelo Estado para combater as discriminações sexuais/de gênero envolve tanto os processos de formação profissional quanto as “crenças pessoais” dos docentes. Embora a arena política de produção destas diretrizes também se mostre efervescente e contraditória, focamos aqui as posturas docentes que, amalgamando singularmente “experiências de vida”, vivências profissionais e fragmentos das diretrizes oficiais, sustentam-se na constituição singular dos sujeitos num contexto em que as possibilidades de os/as investigados/as “lidarem” com a educação sexual e suas concepções pessoais sobre esse tema junto ao alunado se produziam a partir de uma abordagem “pessoal” dele. Discutimos esse cenário com foco na processualidade mediada, histórica, que, no caso, expõe a submissão da postura profissional a posições “pessoais”.

Palavras-chave: professores/as; educação sexual; formação profissional

ABSTRACT

As a result of a doctoral research, during which various recurring individual interviews were carried out with 4 basic and high school teachers from a public school in Bahia, we verified that the lack of knowledge about the ethical guidelines established by the State to fight sexual and gender discrimination is implicated in the processes of professional formation, as well as in “personal beliefs” of teachers. Although the political field where these guidelines are produced is also effervescent and contradictory, here we focus on the teachers’ attitudes. These, singularly amalgamating “life experiences”, professional backgrounds and fragments of the official guidelines, are supported by the single constitution of subjects. Since the possibilities of the investigated teachers to “deal” with sexual education and its meanings in relation to the students, were produced from the standpoint of their own personal approach. Focusing on the mediated processes, we discussed this historical scenario that, in this case, shows the subordination of the professional posture to “personal” viewpoints.

Key words: Teachers, sexual education, higher education

RESUMEN

A partir de una investigación de doctorado, que llevó a cabo varias entrevistas individuales con tres profesoras y un profesor del ciclo básico y medio de una escuela pública en Bahia, verificamos que el (mal) conocimiento de las directrices éticas adoptadas por el Estado para combatir la discriminación sexual y de género está implicado en los procesos de formación profesional, así como en "creencias personales" de los profesores. Aunque la arena política que produce estas directrices también esté efervescente y contradictoria, nos centramos aquí en las actitudes de los maestros. Las cuales, amalgamando de manera singular "experiencias de vida", vivencias profesionales y fragmentos de las directrices oficiales, se basan en la constitución de los sujetos individuales. Así, las posibilidades de las/los investigados/das de relacionarse con la educación sexual y sus significados frente a los estudiantes, se produce a partir de un enfoque "personal". Debatimos este panorama, focalizando procesos mediados, histórico que, en este caso, expone la sumisión de las posturas profesionales a posiciones personales..

Palabras-clave: Profesores, educación sexual, educación profesional

A este trabalho interessaram as processualidades singulares das significações relativas à sexualidade/gênero que constituem não somente quem se é, mas também quem se pensa ser; não só o que se deseja, mas, no extremo, também o que estaria destituído de humanidade, bem como aquilo que se imagina ter sido e quem se planeja ser, hoje e amanhã. Foram focalizados os sujeitos, seus movimentos, sua história não linear e seus contextos. Foram encontrados, junto aos entrevistados, aspectos do núcleo básico de autorreconhecimento singular que constituem as amarrações significantes de algumas de suas visões sobre si mesmos e sobre o mundo à sua volta, como também “pistas” das condições profissionais e pessoais de suas práticas em educação sexual escolar. Foram também observadas as configurações contextuais e humanas em sentido amplo, que possibilitaram aos sujeitos a produção das significações acionadas como critérios norteadores do que é “certo e do que não é” em termos de postura docente no tocante à sexualidade e às feminilidades-masculinidades.

Em síntese, observou-se que formas singulares de existir e de vivenciar a sexualidade e os papéis de homem e de mulher calcadas em “crenças pessoais” (apropriadas socioculturalmente) orientaram as produções de mediação quanto à sexualidade observadas nesta investigação.

A EDUCAÇÃO SEXUAL ESCOLAR PÚBLICA CONTEMPORÂNEA

No contexto escolar brasileiro, preocupações com as práticas sexuais e suas implicações vivenciais e epidemiológicas vêm se impondo como pauta para a educação formal. Oficialmente se defende que as escolas de ensino básico e médio devam ser promotoras dos direitos sexuais e fonte de informação sobre a sexualidade e as práticas sexuais. Parte-se da ideia de que a educação sexual, dentro da escola, pode preparar cidadãos aptos à liberdade do exercício “responsável” da sexualidade. Entretanto, o próprio Ministério da Educação (Brasil, 2005) é um dos que reconhece que “a escola, juntamente com outros espaços sociais, cumpre um papel na reprodução de mecanismos relativos à dominação masculina e heteronormativa” e sinaliza as dificuldades de tornarmos o sistema público de ensino “um local privilegiado para a construção de uma consciência crítica e de desenvolvimento de práticas que se pautem pelo respeito à diversidade e aos direitos humanos, contribuindo para alterar o quadro dessa dominação” (p. 04).

Concomitantemente ao movimento no qual a educação pública se propõe promover o respeito aos direitos humanos e o acolhimento à diversidade sexual, desenrolam-se movimentos contraditórios que refletem o fazer das leis e o funcionamento do Estado nas arenas em que se formulam as diretrizes que regulamentam o espaço institucionalizado do exercício docente e se decidem os meios de desenvolvê-las. Não obstante, inclusive segundo a perspectiva das entrevistadas, há embates de contrários que ganham corpo nas distâncias “entre o que está no papel e a realidade das salas de aulas” e nos documentos oficiais. Tal realidade já foi apontada em algumas análises dos textos oficiais referentes à educação (Adelman, 2000; Freitas, 2002; Vianna e Unbenhaum, 2004, 2006), assim como no estudo acerca dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) que tratam da sexualidade e da diversidade realizado por Altmann (2001). Mais recentemente, toda a polêmica encenada nos palcos da política nacional resultou na censura do “kit” de combate à homofobia. Isto ilustra os antagonismos ativos neste cenário.

As escolas são instituições reprodutoras da heteronormatividade (Brasil, 2005; 2004; 1997) e os/as professores/as2 2 Carvalho aponta a feminilização ideológica do sistema público de educação (2001; 1999), mas esta não se daria em função de, atualmente, haver uma proporção numérica majoritária das mulheres nas escolas e colégios do país (IPEA/UNIFEM, 2008). , como os outros membros da sociedade, convivem com e reproduzem alguns preconceitos normativos moralistas em seus movimentos cotidianos, inclusive no ambiente profissional. Alguns/as autores/as ainda observam que muitas práticas escolares correntes seguem em direção oposta à diretriz constitucional de acolhimento à diversidade humana (Leça, 2005; Brasil, 2004; Adelman, 2000) e, segundo Duarte (2006), tal incoerência remonta à história dos movimentos pela universalização da educação.

A sociedade contemporânea, excludente, vê-se dialogicamente espelhada nas dificuldades e nas possibilidades de as escolas conseguirem combater a discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião pública ou qualquer outra opinião, origem nacional ou social, condição econômica ou de nascimento, como já estabelecido pelo Decreto N.º 63.223, promulgado em setembro de 1968 pela Presidência da República do Brasil.

Neste aspecto as práticas da educação formal não acompanharam com a mesma desenvoltura a teorização legislativa e as intenções ético-políticas a elas atribuídas: na prática, a educação escolar se mantém tão excludente quanto as discriminações que deveria desconstruir e não há, neste sentiodo, uma correlação direta entre as leis e as ações De modo geral, para Fleuri (2006), o sistema público envolvido nesta desconstrução está sob a pressão de demandas urgentes impostas pela contemporaneidade, as quais, segundo Seffner (2007), implicam numa crescente necessidade de o sistema escolar rever seus próprios fundamentos.

Como observado pela UNESCO (2004), a educação sexual formal ainda está distante de consolidar-se em conformidade com a perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos3 3 Pesquisa realizada pela UNESCO (2004), apresentou um retrato dos professores brasileiros do Ensino Fundamental e Médio, de escolas públicas e privadas, nas 27 unidades da Federação, e contemplou “características sociais, econômicas e profissionais” ( p. 17). Cerca de 5.000 docentes foram investigados também acerca de seus “valores sociais” (p. 164) e, segundo a Unesco, manifestaram “ser indiferentes” com relação aos grupos sociais e étnicos mais estigmatizados da sociedade, com exceção aos viciados em drogas. Chama atenção que o maior número de indiferentes ocorre em relação aos homossexuais e as pessoas com AIDS. . Silva e Carvalho (2005) apontam a necessidade de compartilhamento da responsabilidade pela educação sexual com outras instituições, como os serviços públicos de saúde, a família e outros setores da sociedade civil para superar este distanciamento. Por sua vez, Leça (2005) e Garcia (2005) mostraram que o professorado reclama por preparo profissional e por transformações da estrutura institucional, e Altmann (2001) e Nardi e Quartiero (2007) salientaram que o sistema educacional pouco colabora na efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos.

Conforme observado pela investigação que subsidia este trabalho (Avila, 2010), os/as professores/as ainda não estão preparados/as para lidar com questões tão polêmicas e assumir em seu cotidiano profissional uma postura ética sem que antes tenham condições de equacionar as tensões entre seus jeitos próprios de lidar com a educação sexual e as diversas expectativas/avaliações que recaem sobre suas práticas docentes, em especial, as da própria pessoa que desempenha a profissão.

ESTE OLHAR

A elaboração desta investigação das posturas docentes no tocante à sexualidade e às feminilidades-masculinidades ancorou-se em posicionamentos teóricos e epistemológicos de Liev Semienovich Vygotski (1996, 1929/1986), para quem os sujeitos humanos se constituem nas relações culturalmente mediadas, e de Mikhail Bakhtin (1929/2006), que entende os processos de produção de significações a partir das apropriações dos sujeitos nessas relações. Estas significações se realizam em atos, e é como movimento e devir que os sentidos e as ações se fazem apropriar pelo repertório singular e podem passar a ser veiculados pelos sujeitos (ambos os processos, apropriar-se e veicular, são imbuídos de direções, ideias, concepções, valores, intenções e afetos). Destarte, como sinaliza Bakhtin, a constituição dos sujeitos é semioticamente mediada e, “realizando-se no processo da relação social”, institui-se marcada “pelo horizonte social de uma época e de um grupo social determinados” (2006, p. 45); porém não há um determinismo do estabelecido culturalmente sobre as significações singulares, as quais, como a cultura, estão sempre em movimento (Vygotski, 1992).

Nesta perspectiva, “em toda enunciação, por mais insignificante que seja, renova-se sem cessar esta síntese dialética viva entre o psíquico e o ideológico” (Bakhtin, 2006, p. 67), de modo que os processos de significação estão sujeitos aos imprevistos das apropriações singulares e às surpresas das relações de alteridade; ou seja, os seres humanos não somente se submetem aos significados “mais normais” em seu cotidiano vivencial, eles também os singularizam em articulações de sentidos que são próprias de cada sujeito, embora produzidas em sociedade, culturalmente. É preciso considerar também que as mediações disponíveis em contextos dados estão submetidas à ordem sociocultural, mas isto não determina a total submissão dos sujeitos ao que os precede no tempo. As relações de alteridade envolvidas nos processos de apropriação e as circunstâncias objetivas e afetivas únicas de cada vivência humana contribuem para as produções singulares de significações acerca da sexualidade.

Nestas bases e em sintonia com as diretrizes oficiais de respeito à “diversidade de formas de ser e viver o feminino e o masculino” (Silva e Barboza, 2005 p. 36), procuramos constituir uma oportunidade para pensar as relações entre professoras e alunos como fundantes do ensinar-aprender e para observar a constituição das posturas de três professoras e um professor no tocante às feminilidades-masculinidades e à sexualidade. Simultaneamente, evitou-se enquadrar tais sujeitos numa psicologização “interna” ou “essencial” a seus processos de produção, em formulações deterministas das configurações ideológicas sobre o acontecimento das significações singulares. Isto significa que, simultaneamente, tanto a figura como o fundo puderam se destacar no acontecimento das significações, e no caso, as práticas e os significados/sentidos expressos pelos/as informantes foram tomados como meios e “materiais” dos processos de sua produção (Bakhtin, 2003).

Compreende-se que as posturas profissionais dos/as informantes em relação ao tema constituíam-se de mais do que a soma de suas atitudes, comportamentos e “crenças pessoais” e que seus “modos de ser” iam além das ideias e ações (re)produzidas na realização da pesquisa. Destarte, sem pretender um perfil “acabado” das posturas investigadas, foram observados a processualidade destas produções, seus alicerces sociais e ideológicos, as amarrações afetivas, os direcionamentos volitivos e as articulações semióticas que lhes imprimiram direções singulares. Desta perspectiva, as reproduções “automáticas” do que precedeu os sujeitos no tempo e do que estava disponível em seus vários contextos não foram tomadas como “impensadas” e “desprovidas de intenção,” mas como marcadas pelas posições assumidas ante a alteridade elementar aos processos de constituição mediada dos sujeitos.

No acontecimento dos processos de constituição semiótica, embora cada sujeito seja único e suas possibilidades de apropriação da cultura sejam irrepetíveis, sua singularidade (“jeito de ser de um”, segundo uma das informantes) se instituía na mediação, na relação com o(s) outro(s) e com as coisas de um mundo humanizado, de sorte que todo pensamento, linguagem ou atitude, por mais ‘mecânicos’ ou ‘naturais’ que possam parecer, são sempre históricos.

Esse aspecto permite perscrutar as trilhas impressas pelos significados, pelos termos consensuais da cultura e de funcionamento da sociedade, no caminhar dos sentidos singulares. Pino (2005) esclarece que estes são instituídos na alteridade mediadora e nas possibilidades culturais disponíveis a cada sujeito, as quais articulam os termos das experiências vivenciais singulares. Tais articulações, por sua vez, configuram um amálgama íntimo de mediações que dá sustentação e direção às significações singulares, produz sentidos (e justificações) para os próprios sujeitos, para aquilo que fazem e pensam. Assim, estes sentidos e seus encadeamentos, suas rupturas e associações, expõem uma “gramática” pessoal que se constitui a partir de apropriações que dão o respaldo e a segurança ontológica que os sustentam.

As cosmovisões singulares também respondem dinamicamente às interpelações que os próprios sujeitos se colocam acerca de suas significações profissionais (como demandas da produção semiótica que admitem o que possa ou não ser dito) e as imaginadas pela perspectiva das expectativas sobre si atribuídas ao entorno imediato e à comunidade. A supressão e o recorte já vêm demandados e, nada ingênuos, demonstram interesses e sentidos singulares, subsumindo significados educacionais tanto quanto a escolha das palavras e das ações. Simultaneamente, instituindo-se em movimento, as significações apropriadas agregam legitimidade à estrutura dos encadeamentos singulares ancorando-se nas mediações/intenções que levaram às novas apropriações, o que garante sua direção e sustentação4 4 Como salientou Bakhtin (2006), os sujeitos e as regras de comunicação, tanto quanto o contexto institucional, já preveem que haja um horizonte do que possa ser falado entre professor/a e alunos e de como isto deva ocorrer. No caso, as informantes, por acreditarem que “ os alunos vinham totalmente despreparados para a escola” e, por estes serem de “ família de periferia, tudo era imprevisível”. No que tangia à sexualidade, mas não só, poderia haver divergências entre o “ ponto de vista pessoal” e o relacional. Assim, de modo geral, problemas nos códigos e confrontações ideológicas eram evitados ao máximo em tais relações. As professoras entrevistadas preferiam não falar de sexo, porque a questão cabia à família ou especialista e para evitar cair em vulgaridade ou dar chance a outros “ mal-entendidos” ou, ainda, para evitar que “de repente você vá acabar instigando a uma coisa que eles (alunos) nem estavam pensando...” ante a mobilidade própria à dialogia dos processos de sua produção.

A PRODUÇÃO METODOLÓGICA

Depois que a proposta foi aceita pelo grupo docente, a pesquisa foi realizada com a participação e “vinculação” espontâneas de três professoras e um professor que aceitaram voluntariamente o convite feito pelo pesquisador durante uma reunião de planejamento. Todos/as atuavam no segundo ciclo do Ensino Fundamental e no Ensino Médio em um colégio estadual da cidade de Eunápolis, no Sul do Estado da Bahia. Ali o pesquisador se fez presente durante sete semanas, período em que registrou em áudio cerca de oito horas de entrevistas produzidas com cada informante, em encontros individuais recorrentes.

Para auxiliar na condução das entrevistas formulou-se previamente um roteiro geral das entrevistas, o qual foi foi ampliado e modificado no decorrer da pesquisa, servindo mais como um “lembrete” para o pesquisador. Foram oferecidas aos entrevistados algumas questões com o propósito de disparar falas livremente arranjadas a partir do foco da pesquisa, ou seja, as entrevistas abertas, mas centradas no tema investigado. Mantendo condições de privacidade, entrevistador e informantes colocaram o roteiro previamente elaborado de questões ao sabor das produções singulares e das circunstâncias da pesquisa, possibilitando o aprofundamento pretendido nas significações dos sujeitos sobre ser educador/a e, em o sendo, “ter de lidar” com a educação sexual. Assim, as fronteiras móveis do tema em estudo se configuraram seguindo-se a condução dos sujeitos, os sentidos e formas de mediação acionados no/pelo contexto imediato de pesquisa durante o (re)traçar de suas histórias de vida e de suas trajetórias profissionais.

Sendo retratos singulares, feitos a posteriori, de sujeitos em devir, as vidas de três professoras e de um professor, durante as várias entrevistas, foram parcialmente reconstituídas nas significações/sentidos de si mesmos/as e, em especial, da docência e de suas posturas ante a diversidade sexual. A partir das entrevistas foram enredados relatos históricos e polissêmicos do “jeito de ser” de cada entrevistado/a e de “instantâneos” de seus processos de significar a sexualidade: singularidade exposta no ato de explicarem as “concepções próprias” e ao contarem suas histórias. Tomamos, então, tais relatos singulares em seus diálogos com os contextos sociais e culturais e com o acontecimento da alteridade, nos limites temáticos e formais das relações de pesquisa. Com estas informações traçamos as linhas de análise do rico e extenso corpus resultante da transcrição integral do áudio das entrevistas.

Deste modo, pretendeu-se ouvir os anseios e alegrias dos que se empenhavam em ensinar os conteúdos da sua disciplina e, vez por outra, deparavam-se com “dificuldades para passar seus ensinamentos acerca da sexualidade.” Com tal propósito, as análises realizadas tomaram as experiências profissionais e os sentidos que as sustentavam, em especial, aqueles ligados à diversidade sexual ou à educação sexual, procurando-se as configurações processuais (semióticas/ideológicas) e as posições de alteridade que os tornaram possíveis, buscando-se, assim, compreender as falas dos informantes a partir de seus contextos socioculturais de produção. No geral, suas falas foram tomadas como elemento de contextualização. A produção das entrevistas veio possibilitar que se perscrutasse onde tais significações singulares se infiltravam por dilemas morais ou éticos, entre o pedagógico e “o pessoal”, os quais fazem da sexualidade, “um tema ainda tão polêmico” para eles.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Eunápolis/BA: três professoras, um professor e o pesquisador.

As três mulheres compartilhavam a formação inicial “apenas no magistério”, exerciam desde muitos anos a carreira e se tornaram mães sob os auspícios do sagrado matrimônio, sendo que todas “já tinham filho/a na faculdade.” Elas estavam com idades entre 44 e 54 anos e o professor, novato na profissão, tinha 21 anos, não era casado, não era “concursado”, nem tinha “feito magistério” e, embora cursasse o “segundo ano da faculdade de matemática”, não tivera ainda nenhuma “matéria das pedagógicas”, citadas como “boas e importantes” pelas professoras para sua formação profissional.

Numa impressão geral, os informantes teriam em comum: o fato de comporem o quadro docente do colégio B; o contexto de trabalho e o da cidade; a origem sociocultural; o histórico de incentivo/afinidade com os estudos; o fato de a família tê-los ensinado a “respeitar o professor” e tê-los “preparado” para o “ambiente da escola”; a trajetória de “melhoria de vida” alcançada via educação formal; e, como eram evangélicos, o fato de terem declarado sua fé logo na primeira oportunidade. Isto expôs, a princípio, o que os orientaria em termos de postura como educador/as e “pessoas” no tocante à sexualidade e aos gendramentos, bem como algo do que os levara a serem voluntário/as da pesquisa.

Apesar de não terem “interesse específico em discutir sexualidade, (...) a oportunidade para aprender mais” e principalmente o fato de que “gostavam de ajudar” foram suficientes para se disporem a participar voluntariamente da pesquisa. Esta propensão confluiu com uma visão, uma percepção (“eu sabia”) ou sentimento (“eu senti”) que lhes confirmou que o pesquisador “queria sinceridade, ia saber ouvir”, e propiciou a “confiança” de que “poderiam responder com a verdade” sobre a sexualidade e os “papéis de homem e de mulher”, pois consideravam necessário garantir que poderiam se expressar livremente, antes de participar da pesquisa. Outro aspecto que favoreceu a “atitude” de expor “seu ponto de vista próprio” foi saberem que, em princípio, sua formação e sua produção profissional não seriam avaliadas ou “julgadas.”

Assim, a produção dos relatos de cada sujeito deu-se com foco nos processos de engendramento e de produção de sentidos para a sexualidade e para si, nas diretrizes profissionais e no seu entorno imediato. Foi possível confirmar, pelas vozes dadas a ouvir, que “os professores não estão preparados para lidar”, em “suas” salas de aula do Ensino Fundamental/Médio, com a presença corporificada do que foge radicalmente a suas compreensões “leigas” do que é certo ou errado em termos de sexualidade/gênero. Tal direção singular se mostrou resistente aos significados defendidos pelo Estado em termos de educação sexual e de acolhimento à diversidade sexual, os quais foram apropriados pelo viés de suas “crenças como pessoa”, o que lhes permitiu limitar a tarefa da educação sexual para a diversidade às suas possibilidades como sujeitos. Em última instância, suas atitudes como educadoras sexuais, se é possível afirmar que eram educadoras sexuais, mantinham uma “intenção evangelizadora”, normatizadora, e incluíram, sempre que tiveram “abertura”, tentativas de “mostrar a Bíblia para que o aluno veja o que é o correto, sem brigar, sem impor, mas somente para mostrar a ele a verdade”.

De modo geral, verificou-se que o que era recusado pela normalidade que singularizava os informantes, em termos de diversidade sexual, também levava a negociações das bases ideológicas “pessoais” (“aquilo que cada um acredita”) que seguiam a dialogia de movimentos singulares e culturais. Esses processos constituíam sujeitos que agiam, no espaço institucional, sob o efeito das relações com seus alunos e de experiências vividas em territórios sociais e culturais exteriores aos muros das escolas. Neste sentido, as professoras e o professor dividiam a coautoria de significações singulares com outras vozes do contexto ideológico (Bakhtin, 2006). Assim, a investigação de suas posturas expôs as arenas temáticas, os campos ideológicos e as bases idiossincráticas que sustentavam as significações destes sujeitos acerca da docência e da sexualidade (“instrumentos” semióticos discursivos instituídos em alteridade com interlocutor/es e circunstâncias determinados).

Enquanto o jovem professor não “entrava nestes assuntos”, as professoras informantes não se arriscavam a “tomar uma atitude sem antes avaliar a abertura” oferecida pelos alunos a seus “conselhos de conduta”, em termos de sexualidade. Se julgassem que os discentes “iam cair em vulgaridades”, aproveitando o assunto para fazer “bagunça”, se percebessem que eles não “iam nem ouvir”, nem tentavam uma abordagem.

Em seus movimentos, uma das professoras apresentou posturas mais abertas a negociações e menos centralizadas na perspectiva pessoal de regulação da sexualidade/feminilidades-masculinidades. Mais “atenta ao aluno” e habituada à formação continuada e ao enfrentamento do preconceito, esta professora trabalhava desde muitos anos com “alunos especiais” e desenvolvera uma “vinculação” com eles que a mantinha empenhada na “ideia de sempre se aperfeiçoar.” Esta informante, durante a pesquisa, mostrou-se articulando menos rigidamente as diretrizes educacionais acerca dos direitos sexuais e reprodutivos ao crivo de suas “crenças pessoais

As outras duas professoras também haviam adotado a prática do “aconselhamento” acerca do “sexo seguro e responsável,” sempre que “viam que era necessário e tinham oportunidade” de fazê-lo sem incorrer no risco de “poder incitar” à precocidade sexual ou no de “perder o controle da sala.” Uma delas, para não “misturar as coisas,” preferia abordar assuntos em que as demandas da educação sexual não se chocassem demais com sua “base religiosa.” Assim, adaptações eram forjadas por suas percepções sobre as necessidades dos “alunos e da sociedade” e suas práticas se mostraram limitadas pela inflexibilidade das possibilidades “pessoais”.

Como professoras, preferiam não abordar as múltiplas e complexas facetas da sexualidade e das performances de gênero, por desconhecimento, por receio de “despertar” a sexualidade, pelo isolamento e pelo desconforto de trazer a público o que deveria ser “um assunto de família” ou de um “professor especialista”. Os temas tidos como “abomináveis” pela religião foram “evitados ao máximo” por elas.

O aborto, a gravidez indesejada, a “traição de um dos cônjuges”, a homossexualidade, entre outros, não eram “práticas aceitas” e, embora alegassem respeitar as “pessoas nessa condição”, no trato cotidiano, quando foi preciso lidar com estas questões, assumiam uma postura de “cuidadoras”, dizendo saber o que era melhor para aqueles que desconheciam a “verdade”, e acionavam então significações alheias ao escopo profissional. “Sem impor, apenas aconselhando sobre o caminho certo” e mencionando a validade divina desta “mensagem”, preferiram agir nos limites das “certezas compartilhadas” com os seus. Isto pode significar a omissão, quando não se conseguia garantir um “respaldo interior.”

Suas leituras das ocasiões e dos interlocutores/as que lhes davam oportunidade de atuar na educação sexual, bem como suas “estratégias” e os sentidos veiculados, permitiram observar a historicidade processual do “envolvimento” de cada um dos informantes com sua formação, com seu cotidiano profissional, com seus alunos e as “condições de vida” destes últimos e as da própria educação continuada, segundo as oportunidades de suas trajetórias singulares de constituição como sujeitos.

Em termos processuais, os sujeitos mostraram que seus “entendimentos e atitudes” profissionais no tocante à tarefa da educação sexual, vinculados a sua “verdade como pessoa”, se instituíam como uma ética profissional defendida como “correta, certa, verdadeira”. Esta era inquestionável “pela lei do homem”, por que, até então, não fora abalada por sua “experiência de vida acumulada.” Porém, “na prática”, as professoras disseram enfrentar “debates íntimos”, porque, ao mesmo tempo em que reconheciam uma situação em que se viam “obrigadas a aconselhar” jovens não casados a “tomar alguns cuidados sexuais”, prefeririam poder lhes dizer que “não tivessem sexo ainda.” Só eram levadas a “tomar uma atitude” diante de tais questões se tivessem “certeza” que algum/a aluno/a “não tinha sabido esperar a hora certa” e que seu alerta chegaria aos destinatários certos.

Em paralelo, as entrevistas produziram significações singulares, por vezes contraditórias em seu conjunto, que seguiam a tessitura em curso de sua coerência como sujeitos e de seus processos de apropriação e de significação. As entrevistas e o pensar/falar sobre si, retomando os vínculos com alunos e estabelecendo-os com o pesquisador, também parecem ter fornecido um espaço de percepção crítica da própria compreensão/experiência de vida acerca da sexualidade bem como de suas possibilidades de formação profissional para lidar com estas questões. Havia, então, a chance de tomar em perspectiva os contrastes entre suas “visões da sexualidade” e algumas alternativas “disseminadas na cultura moderna”, como diretrizes oficiais das quais as informantes já tinham “ouvido falar” (fragmentos dos PCNs, das LDBs, etc.).

Quando estas professoras se dirigiam a seus alunos “para aconselhar (...) e falar numa boa e com os termos ‘diretos’, para explicar sobre a importância de usar a camisinha,”, falavam “dos riscos de pegar doença, de engravidar... com naturalidade”; contudo, procuravam salientar que há uma “hora certa para o sexo”, que seria “após o casamento”. As orientações e “aconselhamentos” eram sempre nos limites da heterossexualidade “padrão e normal”. Em última instância, elas almejavam ajustar os comportamentos (e a sociedade) a uma moralidade “verdadeira”, desconhecendo a historicidade da heteronormatividade. Esta, para elas, viria parcialmente simbolizada no “poder que o marido tinha sobre a mulher, os filhos, como um objeto dele”, face “machista” que elas rechaçavam (porque a “mulher tem seu lugar ao lado! do homem; os mesmos direitos”). Ao mesmo tempo, idealizavam a “família moderna”, na qual as “responsabilidades da criação dos filhos” e as tarefas domésticas seriam compartilhadas, mas o homem “mantém seu lugar de cabeça do casal” e de esteio da família. Essa visão se impôs como tensão nas “adaptações” singulares necessárias à tomada de posturas como professoras para atender ao controle epidemiológico das DSTs e da natalidade.

Exercício docente e “jeitos de ser de cada um”.

O desenrolar da pesquisa deu ensejo a significações das práticas sexuais que, podendo soar como contraditórias, vibravam com a singularidade das vidas destes sujeitos, expondo a processualidade de sua produção. Os/as informantes flexibilizaram e se apropriaram de campos ideológicos e significados variados, utilizando as regras discursivas a seu alcance para atender tanto à sua “verdade como pessoa” quanto às percepções da “necessidade de regulação” social da vida sexual, numa sociedade que viam como “desregrada.” Na dúvida, resolviam o dilema não abordando a questão.

Com 23 anos de carreira, uma informante muito tempo atrás teria feito seu primeiro autoquestionamento acerca do conflito entre aquilo que ela “acredita e aquilo que o outro defende” – o que ocorreu a partir da “recusa dos alunos aos aconselhamentos” que lhes dava. Esta questão foi mencionada em associação a seus pensamentos acerca da incompatibilidade entre as regras de sua religião e a postura profissional esperada, ao menos em tese, pelo governo e pela sociedade; mas, fundamentalmente, foram as relações com os alunos que a levaram a dizer: “eu me bato com isto (...) respeitar o que eu acredito e respeitar o que o outro acredita.”

Ao se aperceberem de suas contradições, os/as quatro informantes deram entonações e pontuaram suas falas de hesitações e silêncios reticentes, o que expôs suas “dificuldades pessoais” em tratar o tema profissionalmente. Isto também indicava a direção das forças em conflito: contrastes entre matrizes ideológicas de significação da sexualidade, enfim, instituintes da configuração à suas possibilidades de significar o tema.

A partir da pesquisa parcialmente relatada, tornou-se clara a impossibilidade de neutralidade “pessoal” dos informantes ante a missão oficial de acolher a diversidade sexual ou mesmo de, na posição de professoras e professor de matérias/conteúdos específicas/os, não imprimirem a “visão pessoal às formas de dar aula”, à escolha dos conteúdos que deviam “passar” e a suas compreensões sobre os alunos. Sem pressupor uma falta de autoavaliação das práticas docentes relatadas, não foi possível ignorar a interveniência, sobre estas últimas, das “falhas do sistema de ensino e dos problemas da sociedade atual”. As múltiplas instâncias do Estado não investem o suficiente na formação continuada nem na estrutura física, e a sociedade parece não ter “nenhum compromisso com a Educação.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Situações de impasse

Vistas aqui a partir da matriz histórico-cultural de constituição do sujeito, as posturas das três professoras e do professor, nesta investigação, aceitavam e reproduziam alguns ideais institucionais e outros tantos conhecimentos educacionais, seguindo seus processos de vivência da sexualidade e suas “concepções próprias” do “papel do homem e da mulher”; ou seja, as trajetórias que os singularizavam como sujeitos, antes que como educadores, davam direção a suas posturas mediadoras da sexualidade e da diversidade sexual. Seus movimentos tanto reafirmavam suas “crenças pessoais” - pois nelas é que confiavam para se sentirem seguras neste tipo de intervenção - quanto se apropriavam e veiculavam significados “estranhos” a esta matriz, colorindo-os com ela e a “modernizando” superficialmente ao citá-los.

Estes processos – nada simples de realizar – precisavam ir estrategicamente se apoiando, mesmo que em alicerces efêmeros, já que abordar o tema era avançar em terrenos percebidos como movediços, “inconstantes”. Os sujeitos tinham de estar sempre atentos para o caso de precisarem responder ou justificar as ideias ensinadas aos alunos. Muito embora as professoras se mantivessem, “no íntimo, recriminando o sexo antes da benção do casamento”, pregar o sexo seguro e responsável como alternativa à abstinência passou a ser forma legítima de enfrentamento de uma “sexualidade desregrada, ou indesejada”, vista como “perigo real,” conquanto o desconforto em aceitar o uso da camisinha dificultasse/impossibilitasse que ouvissem as dúvidas dos alunos ou se estendessem no assunto.

Para elas, as homossexualidades assomavam como o “mais difícil de lidar”, porque tinham de “lidar” com uma questão que, além de a “sociedade não aprovar” e sua religião considerar uma “abominação”, era “uma escolha” que não “conseguiam aceitar e, com todo o respeito”, não poderiam “deixar de tentar ajudar a pessoa a mudar.” Não obstante, somente uma informante de fato fez isto, porque seria “algo que só traz prejuízos à vida da pessoa, que vai sofrer com o preconceito (...) e não vai estar de acordo com o que Deus deixou pra nós

Após muitas horas de entrevistas, uma das informantes chegou a problematizar a desaprovação religiosa às homossexualidades e a obrigatoriedade da iniciativa de “ajudar a pessoa a mudar.” Lançando no ar uma conclusão provisória, ensaiou questionar: “afinal, o que tinha de diferente?” Então, a informante subitamente fechou os olhos e se calou; após uns instantes, disse apenas: “mas é difícil, é muito difícil... Eu ia precisar de muita ajuda para conseguir mudar, primeiro, isto em mim.”

Os processos amplos e intrincadamente interdependentes (articulados em sentidos, valores, afetos, conhecimentos, memórias, práticas e desejos) de produção de posturas diante da sexualidade foram mobilizados principalmente para deixar os sujeitos se sentindo seguros e à vontade para expor seu saber-fazer docente e para responder profissionalmente por ele. Nesta relação, quanto mais dominavam os conteúdos a serem passados e mais certos estavam de quais e a quem passar, melhor produziam seu trabalho – para eles sua principal tarefa profissional era “ajudar o aluno a ter uma vida melhor.”

As causas deste desempenho geral foram delegadas à complexidade da situação do sistema de ensino, à incompreensão da comunidade e ao “desinteresse dos alunos.” Após defenderem, cada informante a seu tempo e modo, que a “escola deveria ter uma sistemática para realizar” a educação sexual em “consenso com as famílias”, disseram “saber fazer este trabalho” (à exceção do professor). Embora preferissem “ver a família fazer o papel dela nisso”, por acionarem suas posições pessoais sobre como “lidar com a sexualidade”, atuavam nos limites de suas experiências singulares de engendramento e muito aquém de um “preparo profissional mínimo” que fosse capaz de proporcionar a estas professoras a educação sexual e multiculturalista que se pretende que elas ensinem às novas gerações (Brasil, 2005). Paradoxalmente, nem sempre aquietavam seus dilemas reafirmando os princípios partilhados que mais lhes davam segurança e controle sobre a polissemia, apesar de tal movimento não ser visto como antagônico em relação aos sentidos que usualmente lhes davam a necessária segurança para falar sobre sexualidade com seus alunos.

O Estado e parte da sociedade sugerem que as escolas e seu corpo docente sejam capazes de criar um espaço em que os “limites de cada um” contrários às diretrizes de acolhimento à diversidade humana pudessem ser reelaborados, repensados; entretanto, sem que as escolas sejam este espaço para seus funcionários, sem que se constituam grupos docentes coerentes eticamente, sem uma direção consensualmente construída, não haverá uma “transformação para melhor, na vida (...) dos alunos”, nem na dos/as professores/as.

As informantes, em algumas situações para as quais não estavam preparadas, mantinham seus “princípios ou valores” e avaliavam a “adequação” de veicular significações, diante de quem fosse, mas alegaram que não tiveram um “preparo específico” e que nunca debateram sistematicamente “a questão da educação sexual” em seu grupo docente.

As professoras concluíram que todos os/as profissionais da rede pública de ensino, como elas, “tinham, antes, de se aperfeiçoar para enfrentar as manifestações de sexualidade cada vez mais comuns na sala de aula.” Nas condições atuais, as informantes atuavam somente nas “urgências, sem uma orientação de ninguém, (...) no pulso mesmo”. Quando se “informava(m) sobre estas questões” era ouvindo “uma reportagem interessante que passou na televisão” e/ou discutindo-as coloquialmente.

Estas professoras não notavam as amarras singulares de suas próprias posturas sobre a educação sexual escolar, que eram passíveis de questionamentos quanto ao que tinham como certo ou errado; mas podiam flexibilizar alguns sentidos em certas circunstâncias, em especial, quando a preocupação em ajudar os alunos levou-as a conversar com eles e a aceitá-los em suas diferenças do “padrão normal” em que sustentavam suas próprias vivências da questão.

Por outro lado, a cristalização profissional em bases morais singulares não se mostrou impressa somente na produção de mediações para a sexualidade e os engendramentos. Por exemplo, era possível iniciar as aulas de História pelo “Criacionismo (e Deus criou a Terra...)”, antes de “falar da outra História”, pois a “verdade da Palavra” sustentava tal “planejamento” de conteúdos, mesmo que fosse preciso justificar tal atitude fazendo um remendo à “lei de liberdade religiosa da escola” e ignorar a determinação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB/96), que veta o proselitismo religioso na sala de aula e descartar o valor de tratar de outras cosmologias religiosas ou do ateísmo.

Em muitos momentos, foram explicitados elementos dos processos de significação que sinalizaram que elas não viam seus preconceitos como tal. Suas tentativas de “ajudar” os alunos a reencontrarem o “caminho correto” não lhes mostravam seus efeitos deletérios para os que viam seus “jeitos de ser” serem deslegitimados e suas histórias de sua vida serem condenadas.

As professoras recorreram a seus princípios, muitas vezes, sem sopesar a possibilidade de eles expressarem preconceitos aos olhos do Estado de Direitos, ou, pior, sem considerar os efeitos que poderiam ter para jovens já vulnerabilizados/as por discriminações que as atitudes delas só confirmavam. Tal atitude configura uma processualidade que não se descarta, esvazia ou desconstrói por leis, livros ou programas de TV, nem mesmo por palestras, cursos universitários ou reuniões pedagógicas periódicas, e um “jeito de ser” que não será permeável a questionamentos à mensagem heteronormativa das “crenças íntimas” que o sustentam, se não se considerarem as características de sua produção em devir e “os limites de cada um” para lidar, como docente, com a sexualidade tratando-a como mais uma dimensão da diversidade humana, e não como um destino natural dado por Deus e constatada na morfologia anatômica diferenciada.

A efetivação das políticas públicas, inclusive daquelas formuladas pelo MEC, que pretendem a construção de um país menos marcado pelas distinções de gênero, sexo, classe, etnia, corpos, credo, ideias etc., deve constituir-se em respeito aos princípios que almejam consolidar na sociedade. Nesse caso, os sujeitos que fazem cada escola devem construir as diretrizes de seu trabalho como parte mesmo da produção de suas posturas profissionais, na direção da promoção do Estado de Direitos e do acolhimento à diversidade. Para isto é preciso dar voz e legitimidade às/aos professoras e professores na construção local e coletiva das formas de “educar para o mundo” que disponibilizarão a seus alunos.

Recebido em 22/03/2010

Aceito em 19/08/2011

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  • Endereço para correspondência

    André Heloy Ávila
    Rua José Bonifácio, 216, Bairro Centro, CEP 45820-550, Eunápolis-BA, Brasil.
    E-mail:
  • 1
    Apoio: Capes.
  • 2
    Carvalho aponta a feminilização ideológica do sistema público de educação (2001; 1999), mas esta não se daria em função de, atualmente, haver uma proporção numérica majoritária das mulheres nas escolas e colégios do país (IPEA/UNIFEM, 2008).
  • 3
    Pesquisa realizada pela UNESCO (2004), apresentou um retrato dos professores brasileiros do Ensino Fundamental e Médio, de escolas públicas e privadas, nas 27 unidades da Federação, e contemplou “características sociais, econômicas e profissionais” ( p. 17). Cerca de 5.000 docentes foram investigados também acerca de seus “valores sociais” (p. 164) e, segundo a Unesco, manifestaram “ser indiferentes” com relação aos grupos sociais e étnicos mais estigmatizados da sociedade, com exceção aos viciados em drogas. Chama atenção que o maior número de indiferentes ocorre em relação aos homossexuais e as pessoas com AIDS.
  • 4
    Como salientou Bakhtin (2006), os sujeitos e as regras de comunicação, tanto quanto o contexto institucional, já preveem que haja um horizonte do que possa ser falado entre professor/a e alunos e de como isto deva ocorrer. No caso, as informantes, por acreditarem que “
    os alunos vinham totalmente despreparados para a escola” e, por estes serem de “
    família de periferia, tudo era imprevisível”. No que tangia à sexualidade, mas não só, poderia haver divergências entre o “
    ponto de vista pessoal” e o relacional. Assim, de modo geral, problemas nos códigos e confrontações ideológicas eram evitados ao máximo em tais relações. As professoras entrevistadas preferiam não falar de sexo, porque a questão cabia à família ou especialista e para evitar cair em vulgaridade ou dar chance a outros “
    mal-entendidos” ou, ainda, para evitar que “de repente você vá acabar instigando a uma coisa que eles (alunos) nem estavam pensando...”
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Dez 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011

    Histórico

    • Aceito
      19 Ago 2011
    • Recebido
      22 Mar 2010
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