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Teoria das emoções em Vigotski

Emotions theory in Vigotski

Teoría de las emociones en Vigotski

Resumos

Este artigo explora o estudo da emoção na obra de Vigotski, elencando alguns textos que demonstram sua concepção subjacente de emoção anterior à principal publicação dessa temática, Teoria das emoções, escrita entre 1931 e 1933 e deixada inacabada pelo autor na ocasião de seu falecimento. Esta, pelo resgate da base filosófica cartesiana das psicologias das emoções, apresenta o caráter predominantemente naturalista na ciência psicológica do começo do século XX. Vigotski analisa a necessidade de resgatar a dialética entre fatores biológicos e culturais na constituição das emoções, de maneira a pensá-las, quanto às suas possibilidades de desenvolvimento e transformação, atreladas a condições histórico-sociais.

emoções; psicologia histórico-cultural; dialética


This article explores the study of emotions in the Vigotski work, listing some texts that demonstrate his underlying conception of emotion before the main publishing about this subject, Emotions Theory, written between 1931 and 1933, and left unfinished by the author due to his death. This book, with the recuperation of the philosophic Cartesian base in Psychologies of emotions, introduces the predominant naturalism in Psychological science in the early twentieth century. Vigotsky analyses the need to rescue the dialectic between biological and cultural factors in the emotions constitution, to conceive them in terms of their possibilities of development and transformation, linked to historical and social conditions.

Emotions; historic-cultural psychology; dialectics


Ese artículo explora el estudio de la emoción en la obra de Vigotski, elencando algunos textos que demuestram su concepción subyacente de emoción anterior a la principal publicación de esa temática, Teoría de las emociones, escrita entre 1931 y 1933, y dejada inacabada por el autor en la ocasión de su fallecimiento. Esa, por el rescate de la base filosófica cartesiana de las psicologías de las emociones, presenta el carácter predominantemente naturalista en la ciencia psicológica del comienzo del siglo XX. Vigotski analiza la necesidad de rescatar la dialética entre fatores biológicos y culturales en la constitución de las emociones, de manera a pensarlas en sus posibilidades de desarollo y transformación, conectada a condiciones histórico-sociales.

Emociones; psicología histórico-cultural; dialéctica


ARTIGOS

Teoria das emoções em Vigotski1 1 Apoio: CNPq.

Emotions theory in Vigotski

Teoría de las emociones en Vigotski

Letícia Vier MachadoI; Marilda Gonçalves Dias FacciII; Sonia Mari Shima BarrocoIII

I Discente do Curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, Brasil. Bolsista de Iniciação Científica CNPq

II Doutora em Educação Escolar pela UNESP de Araraquara e Pós-Doutorado no Instituto de Psicologia da USP-SP. Trabalha na Universidade Estadual de Maringá, Brasil

III Doutora em Educação Escolar pela UNESP de Araraquara e Pós-Doutorado no Instituto de Psicologia da USP-SP. Trabalha na Universidade Estadual de Maringá, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Letícia Vier Machado .Rua Saint-Hilaire, 2055, CEP 87015-161, Maringá-PR. E-mail: leticia.psicouem@yahoo.com.br

RESUMO

Este artigo explora o estudo da emoção na obra de Vigotski, elencando alguns textos que demonstram sua concepção subjacente de emoção anterior à principal publicação dessa temática, Teoria das emoções, escrita entre 1931 e 1933 e deixada inacabada pelo autor na ocasião de seu falecimento. Esta, pelo resgate da base filosófica cartesiana das psicologias das emoções, apresenta o caráter predominantemente naturalista na ciência psicológica do começo do século XX. Vigotski analisa a necessidade de resgatar a dialética entre fatores biológicos e culturais na constituição das emoções, de maneira a pensá-las, quanto às suas possibilidades de desenvolvimento e transformação, atreladas a condições histórico-sociais.

Palavras-chave: emoções; psicologia histórico-cultural; dialética.

ABSTRACT

This article explores the study of emotions in the Vigotski work, listing some texts that demonstrate his underlying conception of emotion before the main publishing about this subject, Emotions Theory, written between 1931 and 1933, and left unfinished by the author due to his death. This book, with the recuperation of the philosophic Cartesian base in Psychologies of emotions, introduces the predominant naturalism in Psychological science in the early twentieth century. Vigotsky analyses the need to rescue the dialectic between biological and cultural factors in the emotions constitution, to conceive them in terms of their possibilities of development and transformation, linked to historical and social conditions.

Key words: Emotions; historic-cultural psychology; dialectics.

RESUMEN

Ese artículo explora el estudio de la emoción en la obra de Vigotski, elencando algunos textos que demuestram su concepción subyacente de emoción anterior a la principal publicación de esa temática, Teoría de las emociones, escrita entre 1931 y 1933, y dejada inacabada por el autor en la ocasión de su fallecimiento. Esa, por el rescate de la base filosófica cartesiana de las psicologías de las emociones, presenta el carácter predominantemente naturalista en la ciencia psicológica del comienzo del siglo XX. Vigotski analiza la necesidad de rescatar la dialética entre fatores biológicos y culturales en la constitución de las emociones, de manera a pensarlas en sus posibilidades de desarollo y transformación, conectada a condiciones histórico-sociales.

Palabras-clave: Emociones; psicología histórico-cultural; dialéctica.

A Psicologia de Lev Semenovitch Vigotski vem progressivamente ganhando visibilidade no cenário científico contemporâneo. No Brasil, isso pode ser comprovado pelo número crescente de publicações em periódicos científicos, como também por meio do cadastramento de grupos de pesquisa no Diretório de Pesquisas do CNPq. A vasta e intensa produção do autor e a dificuldade de acesso a ela - tomada aqui como fonte primária na língua de origem, o russo - e as diferentes traduções e interpretações da obra não esgotaram o estudo acerca das diversas temáticas abordadas pelo autor. Nessas produções Vigotski dá vazão à problemática do desenvolvimento ontogenético, da triangulação biológico-histórico-cultural e da questão pensamento-linguagem, além de temas que subjazem a essas temáticas centrais, como a constituição e o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, como imaginação, memória, atenção, abstração e emoção. Não obstante a temática da emoção ter perpassado toda a produção do autor, desde seus primeiros trabalhos de cunho não psicológico e a redação de Psicologia da Arte (Vigotski, 2001), na qual o autor analisa o fenômeno da emoção estética provocada ante uma obra de arte, há poucas evidências de estudos sobre as emoções em Vigotski.

Nota-se que não é comum nos cursos de graduação em Psicologia que esta obra seja arrolada nas referências como bibliografia de disciplinas que abordam os fundamentos da Psicologia. Da mesma forma, também não tem sido recorrente que essa temática ou essa produção vigotskiana específica recebam a atenção que merecem dentro do propósito de se explicar a formação social da mente. Sobre aqueles autores que analisaram a temática das emoções em Vigotski, registra-se que ensaiaram uma aproximação com outros teóricos, como Jean-Paul Sartre (Maheirie & Diogo, 2007), Norbert Elias (Oliveira, 2009) Sigmund Freud (Magiolino & Smolka, 2010) e Gilles Deleuze (Mostafa, 2008), para citar alguns. Assim podemos considerar que, embora os autores tragam subsídios para o estudo da temática, ainda é necessária uma análise detida da obra Teoria das emoções, de Vigotski, uma análise que leve em conta que essa obra tem como norte a base materialista geralmente adotada pelo autor em suas elaborações.

É neste sentido que gostaríamos de contribuir para o estudo deste tema. Nosso objetivo, neste artigo, é apresentar dados de um estudo da emoção na obra de Vigotski realizado nos anos de 2009-2010, tendo como obra central a Teoria das emoções (Vygotsky, 1998; Vigotsky, 2004). Isso requer que não apenas nos reportemos aos seus escritos, mas façamos destaques de autores contemporâneos seus ou de séculos anteriores, para compreendermos suas bases filosóficas e sua apreensão daquilo que a Psicologia já havia produzido acerca da temática eleita, bem como de suas contraposições.

Em um primeiro momento, abordaremos duas conferências de Vigotski que tangenciaram o tema de seu estudo posterior sobre a emoção, a fim de elucidar a concepção de emoção que já subjazia a seus escritos. Em seguida nos aprofundaremos no estudo da Teoria das emoções, para resgatar suas bases filosóficas e a dialética dos fatores biológicos e culturais no desenvolvimento emocional.

A TRILHA DE VIGOTSKI PELAS EMOÇÕES

Em pesquisa realizada na base de dados Scielo (Scientific Eletronic Library Online), em 26 de março de 2010, com os descritores emoção, educação e Psicologia, foi encontrado um total de 43 produções científicas, sendo que deste total, dois artigos discorriam sobre a emoção em Vigotski. Como possíveis causas da insuficiência de estudos nesse âmbito, Rey (2000) indica o desenvolvimento da psicologia cognitiva nos anos 1950, as influências da linguística e da semiótica na psicologia do Pós-Guerra, que conduziram as emoções a um epifenômeno em meio aos demais fenômenos psicológicos, como a linguagem e o pensamento, e a ausência de um marco teórico sólido para a construção de um conhecimento científico sobre o tema.

Não obstante Vigotski ter escrito Teoria das emoções (Vigotsky, 2004) entre 1931 e 1933, época anterior ao ano de de seu falecimento, e ter deixado a obra incompleta, ampliando as possibilidades de interpretação ambígua ou errônea do conteúdo por ele ilustrado, seus estudos deixaram contribuições à temática. O livro teve sua primeira publicação na Rússia tardiamente, em 1984 (Zavialoff, 1998). Num diálogo com o filósofo holandês Baruch de Espinosa, do século XVII, em contraposição ao filósofo René Descartes, o autor procura demonstrar que as psicologias de seu contexto, que se diziam espinosistas em suas teorias das emoções, eram, fundamentalmente, cartesianas e dualistas.

Em Psicologia da Arte (Vigotski, 2001) o autor antecipa algumas das considerações sobre a emoção que iriam ser desenvolvidas oito anos mais tarde, em Teoria das emoções. Sobre essas considerações, Toassa (2009, p. 99) ressalta que Vigotski

(...) nega as teorias que reduzem a arte à sensação ou à emoção comum. Admite, ainda, a existência de emoções desencadeadas por fatos que não dependem meramente do estímulo perceptual diferindo, neste ponto, das emoções animais. Temos, aí, um antecedente histórico para sua dura crítica às psicologias que adotavam o binômio estímulo-reação como paradigma de pesquisa da psicologia humana.

Vigotski se referia àquelas psicologias que tinham suas teorias das emoções embasadas no dualismo cartesiano, marco da filosofia do século XVI. Essas psicologias, entre elas a psicologia de Carl Lange (1834-1900), supunham-se herdeiras do monismo de Baruch [Bento] Espinosa (1632-1677), o que servirá como instigador para a tarefa que Vigotski empreendeu de elucidar as verdadeiras bases filosóficas sobre as quais se erigiram as teorias das emoções de seu tempo.

Na década de 1930 Vigotski empreende a redação de duas conferências que abordam ou tangenciam a temática das emoções em seu sistema de pensamento: A imaginação e seu desenvolvimento na infância e As emoções e seu desenvolvimento na criança, esta última publicada pela primeira vez em 1932 (Clot, 1997).

Em A imaginação e seu desenvolvimento na infância (Vigotski, 1998) o autor faz uma breve explanação de como a imaginação é abordada na psicologia de Sigmund Freud (1856-1939), de Jean Piaget (1896-1980) e de outros autores. Para Vigotski, na velha psicologia, ou seja, na psicologia tradicional de sua época, que ora privilegiava estudos sobre o comportamento, ora dava destaque à consciência (esta, não raro, era estreitamente vinculada à fisiologia), a imaginação era reduzida a outras funções psicológicas, subdividindo-se em imaginação reprodutora, quando análoga à memória, e imaginação criadora. Fazendo frente a esse modo de conceber a imaginação característica propriamente humana , o autor a aborda sob essas duas formas, porém não apenas descrevendo-as, mas elaborando uma explicação que põe aspectos biológicos e histórico-culturais em intrínseca relação.

O processo criativo, por sua vez, era entendido apenas como associação de elementos preexistentes que se combinavam em um número de possibilidades finitas, como se observa em Wundt e psicólogos da época, que "consideravam que a fantasia do homem está limitada, por princípio, pela quantidade de imagens obtidas por associação e que nenhuma nova conexão não vivida entre os elementos pode se somar ao processo da atividade da imaginação." (Vigotski, 1998, p. 111).

Essa concepção associacionista de imaginação não abre possibilidades de criação para além do que já preexiste no psiquismo, ou seja, para além da casualidade. Acrescenta-se a isso que, assim como ocorreu com a emoção na psicologia - que, de acordo com Vigotski (1998), foi um processo psicológico pouco estudado e classificado como epifenômeno, ou seja, um fenômeno psicológico secundário - ocorreu também com a imaginação, sobretudo no que diz respeito à imaginação criativa. O autor enuncia a importância da imaginação criativa para a história da psicologia, como fará com as emoções em Teoria das emoções, enaltecendo a importância desse fenômeno para a cisão das correntes filosóficas e psicológicas em psicologia causal ou explicativa (ponto de vista atomista) e psicologia descritiva (intuitiva).

Para Vigotski (1998, p. 113), ambas as correntes resolveram a questão da imaginação de maneira metafísica: "(...) ao tomar como original a atividade reprodutora da consciência, fechavam o caminho para explicar como surge a atividade criativa no processo de desenvolvimento". Em contrapartida, a concepção vigotskiana da imaginação criativa difere dessas psicologias, pois Vigotski concebe o desenvolvimento da imaginação e sua capacidade de conexões díspares como não casuais e atrelados às condições histórico-sociais, como veremos no decorrer do texto.

A experiência da imaginação concebida por Vigotski (1998) é um pensamento que ao mesmo tempo se afasta da realidade imediata e se orienta para ela, uma vez que se acopla com aspectos emocionais. Neste sentido, a emoção desempenha o papel de mediadora, que conecta realidade imediata e imaginação, e não é só a imaginação que é rica em momentos emocionais, mas também o é o pensamento realista:

Se tomarmos o pensamento realista de um revolucionário, que reflete sobre uma complicada situação política ou a estuda, que penetra nela, em suma, se tomarmos o pensamento orientado para a resolução de uma tarefa de importância vital para o indivíduo, veremos que as emoções relacionadas com tal pensamento realista são, com muita freqüência, incomensuravelmente mais profundas, mais fortes, mais móveis e mais significativas no sistema do pensamento do que as emoções relacionadas com as visões. O importante aqui é outro procedimento de união dos processos emocionais com o pensamento [grifos nossos] (Vigotski, 1998, p. 126).

Antecipa-se aqui a posição teórica de Vigotski que será adotada em Teoria das emoções, no que diz respeito à relação entre cognição e afeto, duas esferas não sobrepostas, mas interdependentes do psiquismo humano. As emoções, em Vigotski, e especificamente nessa conferência, aparecem costurando outros fenômenos psicológicos, como a imaginação e o pensamento, mas não como epifenômenos ou fenômenos auxiliares: assumem um papel ativo, que desencadeia ações e não somente são desencadeadas por elas. Eliminam-se, assim, as contradições entre o interno e o externo e entre imaginação e pensamento realista, para criar vínculos entre essas duas realidades emocionalmente experimentadas.

Em suma, a conferência sobre imaginação é também uma redação sobre a emoção, na medida em que ambas as funções são classificadas como superiores, culturalizadas, e assumem papéis semelhantes na história da Psicologia: foram relegadas à condição de epifenômenos, ao mesmo tempo em que a maneira como foram estudadas pela Psicologia demarca a cisão das correntes psicológicas em psicologia causal e psicologia descritiva. Um dos pontos que Vigotski procurou destacar nesse texto foi a participação ativa da vida emocional na esfera cognitiva do pensamento e no movimento criador, que é a imaginação.

Na conferência seguinte, intitulada As emoções e seu desenvolvimento na criança, Vigotsky (1997) tece algumas críticas às concepções tradicionais da emoção na Psicologia e antecipa algumas ideias desenvolvidas em Teoria das emoções. Inicia sua exposição afirmando a predominância do naturalismo na doutrina das emoções, o qual é comparado aos demais domínios da Psicologia.

Esse naturalismo do qual fala o autor abrange desde a concepção darwiniana das emoções até o behaviorismo de sua época. De acordo com a teoria do evolucionista Charles Darwin (1809-1882), há um vínculo entre as emoções humanas e as reações animais instintivas, e os sentimentos humanos são de origem biológico-animal, inclusive aqueles relacionados às paixões terrenas, ao corpo, ao egoísmo (Vigotski, 1997). Essa teoria influenciou os psicólogos do contexto de Vigotski, dando origem a teorias psicológicas que preencheram os manuais soviéticos de psicologia, ressaltando o caráter instintivo das emoções.

Este foi o destino da psicologia inglesa, a teoria do darwiniano Herbert Spencer (1820-1903), bem como do psicólogo francês Théodule Ribot (1823-1891), e da psicologia alemã de orientação biológica, a qual, a despeito das idiossincrasias de cada uma, continha uma base naturalista-darwiniana das emoções (Vigotsky, 1997). A concepção de emoção comum a essas teorias apontava para o fato de que as emoções humanas eram vestígios das reações animais instintivas, enfraquecidas na sua expressão e em seu desenvolvimento.

Trata-se, pois, de uma espécie de involução do desenvolvimento emocional humano. De acordo com Vigotsky (1997, p. 125)2 2 As traduções do espanhol para o português e do francês para o português são de responsabilidade das autoras. , "(...) a curva do desenvolvimento das emoções é descendente (...), com o progresso do desenvolvimento as emoções recuaram a segundo plano (...), o homem do futuro é um homem desprovido de emoções". Com isso, Vigotsky (1997) destaca a impossibilidade de estudar as particularidades das emoções exclusivamente humanas, uma vez que o avanço do psiquismo implicava no recuo da parcela emocional da vida psíquica. Os protagonistas dessa concepção de emoção como decorrente de reações orgânicas, aos quais Vigotski dedica parte de seu estudo em Teoria das Emoções, eram o fisiologista Carl Lange e o psicólogo William James (1842-1910).

As críticas vigotskianas a James-Lange afirmam que esses autores concederam às emoções uma parte isolada do psiquismo, uma vez que as consideravam como processos de uma natureza totalmente distinta e peculiar, separando-as, assim, tanto do pensamento quanto da consciência (Vigotsky, 1997). Estão postas assim as condições para o retorno ao dualismo cartesiano mente-corpo, cognição-afeto. Essa teoria impossibilita conceber um desenvolvimento emocional ou o aparecimento de novas emoções, uma vez que, para William James, as emoções estavam associadas aos órgãos internos, pouco ou nada variáveis no decorrer do desenvolvimento humano. Nas palavras do autor, "(...) a teoria de James e Lange fechava todas as portas, mais hermeticamente do que todos os precedentes, à questão do desenvolvimento da via emocional" (Vigotsky, 1997, p. 131).

Avançando um pouco no desenvolvimento das teorias das emoções desse período, Vigotsky (1997) discorre sobre as contribuições do fisiologista Walter Cannon, que, na década de 1920, por meio de suas pesquisas em laboratórios com animais, refutou a existência de uma correspondência unívoca entre emoção e expressão corporal, o que indica que, para Cannon, a emoção transcende sua expressão fisiológica, considerando que emoções tão distintas, como medo e alegria, podem resultar numa mesma expressão.

Outra contribuição de Cannon, de acordo com Vigotsky (1997), foi reconectar as emoções ao cérebro, uma vez que em James-Lange as emoções estavam ligadas aos órgãos internos e à periferia do corpo. Para Cannon, a vida emocional dependia do centro cerebral, porém para Vigotski (1997), a limitação de Cannon consistiu em seguir a teoria de James quando considerou as emoções como epifenômenos, reflexos na consciência de alterações no organismo. Para Vigotski, as emoções são funções psicológicas superiores, portanto, culturalizadas e passíveis de desenvolvimento, transformação ou novas aparições. Além disso, a concepção vigotskiana de emoção coloca esse processo psicológico em estreita relação com outros do psiquismo humano.

Vigotsky (1997) ainda menciona as contribuições de Sigmund Freud para o estudo das emoções. Não obstante ter permanecido um naturalista, Freud, por meio da análise das psicopatologias, elucidou que a natureza psicológica não poderia ser compreendida apenas por seus mecanismos causais e fisiológicos. Além de introduzir a concepção de desenvolvimento emocional, mostrou que as emoções são diferentes nas crianças e adultos.

Vigotski chegou à seguinte conclusão:

As duas linhas que tentei examinar no curso dessa conferência são, de um lado, as pesquisas anatômicas e fisiológicas que deslocaram o centro da vida emocional de mecanismos exteriores ao cérebro para um mecanismo cerebral, e, de outro, as pesquisas psicológicas que transferiram as emoções do segundo plano do psiquismo humano para o primeiro plano, tirando-as de seu isolamento (...) para inseri-las na estrutura de todos os outros processos psíquicos (Vigotsky, 1997, p. 149).

Como veremos no próximo item, o autor russo busca ir além destas concepções, entendendo as emoções como formadas a partir de condições histórico-sociais, portanto, aprendidas em determinado contexto.

A OBRA TEORIA DAS EMOÇÕES

Entre 1931 e 1933 Vigotski redigiu o que viria a compor, posteriormente, o livro Teoria das emoções. No período em que o autor redigiu essa obra, os manuais soviéticos de Psicologia, no que se refere à temática das emoções, ainda estavam pautados na reflexologia de Pavlov e nas "(...) relações entre o reflexo condicionado e o comportamento consciente do homem" (Zavialoff, 1998, p. 05), ou baseados no naturalismo herdeiro da perspectiva evolucionista de Charles Darwin.

Numa busca por produções soviéticas desse período que abordassem a temática das emoções, encontramos um capítulo de A. A. Smirnov intitulado Las emociones y los sentimientos (Smirnov et al., 1969), que compactua com muitas das ideias de Vigotski sobre o tema. Neste, o autor procura elucidar seus argumentos acerca da visão central de que as emoções e os sentimentos são sociais, históricos e determinados por relações sociais entre homens, por classes sociais e por exigências sociais. Antes de dar continuidade à análise da Teoria das emoções vamos discorrer sobre a diferenciação entre sentimento e emoção.

Para Smirnov (1969), as emoções e os sentimentos se desenvolvem e se modificam, são constitutivos da personalidade e permeados por vivências e pela história. O homem deveria ser educado para os sentimentos, no fito de desenvolver um posicionamento ante a realidade e construir novas formas de agir nela, novos sentimentos e uma nova moral: a moral do homem soviético, o sentimento da coletividade e a valorização do trabalho.

De acordo com a Teoria Histórico-Cultural, o homem age na realidade e também reage a ela. Para Smirnov (1969), a maneira de reagir do homem ante as coisas, os acontecimentos e as pessoas é definida por emoções e sentimentos. Estes consistem, assim, numa atitude subjetiva de sentir do homem que origina-se a partir da realidade objetiva, das relações estabelecidas na realidade objetiva com outros homens. As emoções e os sentimentos são, ao mesmo tempo, subjetivos para aquele que sente e objetivos em sua gênese. O autor esclarece que nem tudo na realidade objetiva provoca uma reação, mas apenas aquilo que corresponde a uma necessidade ou motivo da atividade do sujeito, que age sobre ele. De acordo com o significado dos objetos que motivam o sujeito, os quais dependem dos fenômenos e das atividades que este desenvolve para cumprir as exigências sociais às quais deve responder, tem-se a variação de intensidade das emoções e dos sentimentos (Smirnov, 1969).

A diferenciação entre emoções e sentimentos, para Smirnov (1969), se dá a partir da seguinte assertiva: as emoções correspondem mais à satisfação de necessidades orgânicas, relacionadas com as sensações, enquanto os sentimentos correspondem a necessidades culturais e espirituais, as quais apareceram durante o desenvolvimento histórico da humanidade. Os sentimentos dependem das condições de vida do homem, de suas relações e necessidades, porém o caráter social não é exclusivo deles, pois o autor considera que as emoções, ainda que mais associadas a fenômenos orgânicos, são sempre e inevitavelmente reações de um ser social, ligadas às exigências sociais de cada período histórico da humanidade.

Para Vigotski, a historicidade é também uma das qualidades das funções superiores da emoção e do sentimento. Além disso, a historicidade pressupõe o desenvolvimento emocional, uma vez que a história caminha com o desenvolvimento da humanidade e, com isso, modificam-se os significados e sentidos dos sentimentos e emoções: "Aquilo que em uma época histórica provocava sentimentos especiais nos membros de uma classe social determinada, pode provocar sentimentos opostos nos membros de outra classe social e em outra época histórica" (Smirnov, 1969, p. 359).

Além de seu caráter histórico, as emoções e os sentimentos também dependem da maneira de viver da sociedade, da classe social a que o indivíduo pertence e de sua educação. Conforme Smirnov (1969, p. 364), "Nos diferentes meios sociais os sentimentos se manifestam de maneira distinta". A maneira como a sociedade se organiza dá origem também aos sentimentos morais, às normas e aos sentimentos estéticos de seus homens, que dependem também das relações estabelecidas durante o desenvolvimento emocional da criança, o qual, em maior ou menor grau, enriquecerá suas experiências emocionais.

Feita essa distinção entre emoção e sentimento, daremos continuidade ao estudo das emoções na obra vigotskiana em tela. Redigido por Nicolas Zavialoff, o prefácio da edição francesa de Teoria das emoções faz uma aproximação de Vigotski com Bakhtin por meio da semiótica, da linguagem e dos signos, e a partir dessa relação aborda a temática das emoções. Apesar de caracterizar Vigotski como um interacionista3 3 De acordo com Tuleski (2008, p. 51), "Vygotski nunca se intitulou interacionista ou sociointeracionista", como o classificam autores contemporâneos que se apropriam de sua teoria de maneira deturpada. A mesma autora ainda salienta que as relações sociais às quais Vygotski se referia eram aquelas relações sociais de produção, como cunhou Karl Marx, e que na concepção interacionista se transformam em meras "interações sociais, o que, frequentemente, adquire a conotação de relações interpessoais ou grupais" (Tuleski, 2008, p. 51). , concepção que diverge da orientação da pesquisa, Zavialoff (1998), o redator do prefácio faz uma coerente introdução à Teoria das emoções.

Para Zavialoff (1998), o questionamento que movia Vigotski no estudo das emoções se referia à relação entre sentimento e conhecimento, entre as esferas afetiva e cognitiva no psiquismo humano. Para o autor, cindir essas duas esferas é um dos maiores defeitos da psicologia tradicional: "O pensamento então se transforma inevitavelmente em uma corrente autônoma de idéias que se pensam por si mesmas, ele é cindido de toda a plenitude da vida real, dos impulsos, dos interesses, tendências reais do homem que pensa" (Zavialoff, 1998, p. 6).

Zavialoff (1998) procura demonstrar como Vigotski efetuou a complementaridade entre o biológico e o social nos sentimentos: sem excluir as reações instintivas, mas também sem reduzi-los a elas, não privilegiando nenhum dos polos, o social ou o biológico; mas se uma emoção é expressa por um signo (palavra, gesto), ela perdura na interatividade linguística, num plano intersubjetivo - portanto, social. O autor do prefácio esclarece o papel da linguagem como organizadora de emoções e meio para expressá-las, como conectora dos planos fisiológico e psicológico. Para ele, a necessidade de Vigotski em abordar a temática das emoções surge a partir de seus estudos sobre o pensamento e a linguagem, visto que as concepções de linguagem e emoção estão imbricadas pelo colorido emocional que acompanha cada palavra, situado no tempo e na história.

Enquanto função psicológica superior, as emoções são tratadas como processos mutáveis, como sistemas abertos que estão "(...) a serviço de uma transformação não somente do mundo, mas também do sujeito, de acordo com certas estratégias cognitivas e emocionais específicas" (Zavialoff, 1998, p. 24). Mesmo o caráter biológico das emoções não é permanente, pois se concebe o sistema nervoso como em constante formação e transformação. Vigotski aposta nas relações complexas entre o cognitivo e o emotivo, conectadas à questão de aprendizagem, que está diretamente imbricada com as normas e os valores culturais; ou seja, a manifestação fisiológica das emoções é também determinada socialmente. Para ilustrar isto, Vigotsky (2004) dá o exemplo da visão de uma serpente no meio do caminho, que pode provocar reações de fuga, se a serpente é associada culturalmente com o perigo, como ocorre em grande parte do Ocidente, ou não, como é o caso de algumas culturas orientais. O caráter social do sentimento, por sua vez, está ligado à sua qualidade de signo intersubjetivo, interiorizado e transformado em signo intrassubjetivo (Zavialoff, 1998).

Segundo Zavialoff (1998), em Teoria das emoções, a preocupação de Vigotski com a análise minuciosa das teorias neurobiológicas das emoções deve-se, em parte, a uma preocupação científica que evitaria cair num determinismo ou reducionismo social. O redator do prefácio ainda destaca que a concepção vigotskiana inova em relação às psicologias de seu tempo ao enfatizar os processos, a mutabilidade e o desenvolvimento das funções psicológicas. Essa inovação concorre com duas principais correntes da psicologia nos anos 1910-1920 na Rússia:

1) a psicologia idealista de Tchelpanov (para essa psicologia, as leis da alma não se confundem com as funções do cérebro mesmo se elas servem para exercer sua autonomia), 2) a abordagem naturalista e mecanicista (reatológica) de Kornilov [aluno de Tchelpanov e diretor do Instituto de Psicologia de Moscou em 1923] que, durante um tempo, seduziu Vygotsky (Zavialoff, 1998, p. 45).

Em contraposição a essas correntes dominantes de seu contexto, em sua teoria Vigotski situa as emoções no mesmo plano das demais funções psicológicas, nem aquém como faz a teoria organicista tampouco além, como uma transcendência afetiva. Além disso, o elemento do desenvolvimento ocupa papel central nos seus escritos: diz respeito às inovações do psiquismo humano, às revoluções que correm no psiquismo. Neste sentido, o desenvolvimento e a consequente mutabilidade do psiquismo humano revelam a adaptabilidade de suas funções superiores.

Os aspectos fundamentais da Teoria das emoções se resumem em desenvolvimento, transformação, processos em contraposição às estruturas estáticas e interdependência entre emoção e cognição. A atualidade da obra de Vigotski é valorizada por Zavialoff (1998) principalmente nos temas da neurobiologia e neuropsicologia atuais. As emoções são situadas em relação à história individual e social, passíveis de transformação e desenvolvimento; são funções superiores que partilham de componentes biológico-instintivos e histórico-sociais.

Vigotsky (2004) ratifica seu estudo histórico-psicológico em função da defasagem presente no capítulo das emoções na psicologia, que afirmava já desde a redação das conferências. Também salienta a relevância do tema na psicologia e como este foi esquecido ao longo do desenvolvimento das teorias psicológicas. Coube a ele esclarecer que as teorias psicológicas que abordavam a temática das emoções até então estavam pautadas na filosofia de René Descartes. Os críticos da época associavam equivocadamente essas teorias à doutrina filosófica de Espinosa, como o fez Carl Lange (citado por Vigotsky, 2004) em relação à sua própria teoria, ao afirmar que Espinosa dava continuidade à teoria das paixões de Descartes.

A teoria de James-Lange, com pequenas divergências, realiza a inversão clássica na relação causal entre as emoções e suas modificações fisiológicas, sintetizada no exemplo: não choramos porque estamos tristes, mas estamos tristes porque choramos. Desse modo, a emoção é posterior à sua reação fisiológica, é o resultado direto do que anteriormente eram apenas manifestações corporais (Vigotsky, 2004). Com isso, tais teóricos entendiam que a emoção em si não poderia existir sem que fosse antecedida ou acompanhada de modificações corporais. Para William James, as emoções sem o acompanhamento de modificações corporais consistem em meras percepções intelectuais.

Essa teoria e aquelas que dela derivaram foram de grande sucesso e reverberam na época contemporânea. Seu êxito, de acordo com Vigotsky (2004), relaciona-se com a abordagem do aspecto objetivo da natureza das emoções, partindo da fisiologia e também desenvolvido por outras correntes, como a psicologia americana do comportamento, a psicologia objetiva russa e certas tendências da psicologia soviética. A conclusão comum a que chegaram todos esses teóricos aponta para uma descontinuidade entre a expressão orgânica das emoções, sua manifestação externa, e sua vivência interna (emoção em-si), afirmando que as manifestações corporais não sintetizam uma emoção.

Embora tenham sido muitas e difusas, as críticas à teoria organicista mostraram-se insuficientes para deter o sucesso de James-Lange. Segundo Vigotsky (2004), as críticas foram insatisfatórias porque seguiram a mesma base organicista para a psicologia dos afetos, mostraram-se incapazes de destruir a base patológica sobre a qual se erigiram as teorias das emoções, além de não conseguirem se desvincular da filosofia de Descartes, que embasou a criação da teoria organicista, nem mesmo revelarem os erros psicológicos da teoria de James-Lange, não contribuindo para "(...) a construção de uma psicologia dos afetos do homem ( )" (Vigotsky, 2004, p. 53).

A obra sobre emoções de Descartes é o Tratado das Paixões, publicado em 1649 (Vigotsky, 2004). Nesta obra o filósofo define que existem seis paixões primordiais: admiração, ódio, desejo, amor, alegria e tristeza. Com isso, procura encontrar um conjunto de estados orgânicos que caracterizam o aparecimento de cada uma delas. A base metodológica de Descartes, de acordo com Vigotsky (2004), é a inauguração do mecanicismo na psicologia, a-histórica e espiritualista na interação alma-corpo no mecanismo da paixão, e o filósofo adota uma concepção teológica do problema psicofísico das emoções.

Essa concepção teológica é consequência da dupla natureza das paixões para Descartes, que define três tipos de percepções humanas: as ligadas unicamente ao corpo; aquelas ligadas apenas ao espírito; e as paixões, grupo de percepções passivas que se ligam simultaneamente ao corpo e ao espírito. Assim, atribui às paixões a expressão da dupla natureza humana, a espiritual e a corporal, um mecanismo automático e as percepções mentais das funções desse mecanismo. É exclusivamente por meio das paixões que essa dupla natureza se expressa em Descartes, ou seja, as paixões constituem o único fenômeno em que substâncias completamente distintas se reúnem (Vigotsky, 2004).

Com essa teoria, Descartes inovou os sistemas de pensamento de seu tempo, uma vez que seu enfoque físico e mecanicista nas paixões retirou as emoções de seus aspectos unicamente psicológicos e estabeleceu para elas uma natureza corporal antes ausente. O mecanicismo em Descartes trouxe consequências para as teorias das emoções: estabeleceu como princípio que a experiência emocional carece de sentido, equiparou as emoções às sensações e percepções, delegou a elas um caráter passivo e excluiu de sua análise o desenvolvimento emocional (Vigotsky, 2004).

Vigotsky (2004, p. 113) enuncia Descartes como sendo "( ) o verdadeiro fundador da teoria visceral, na medida em que reduz a emoção à sensação das modificações viscerais". O autor não questiona a existência das modificações orgânicas durante as emoções, no entanto se pergunta, sobre a relação entre essas modificações e o conteúdo psíquico das emoções, bem como seu significado funcional, qual a relação dos fenômenos fisiológicos com as emoções em si. Sem resposta imediata para esse questionamento, Vigotsky (2004) dá continuidade ao estudo, esclarecendo a magnitude de Espinosa para a construção de uma nova psicologia dos afetos.

Não obstante a consistência das críticas vigotskianas a Descartes em Teoria das emoções, a mesma clareza não se apresenta quando o autor se refere a Espinosa, em meio a críticas e elogios; contudo, não há como compreender as emoções em Vigotski sem ter bem definida sua base espinosana: o título original da obra desse estudo foi idealizado por Vigotski como Espinosa e sua teoria dos afetos-prolegômenos à Psicologia do Homem, mas não foi levado a cabo, como também não foi desenvolvido o discurso sobre o filósofo em Teoria das Emoções, uma vez que a obra foi deixada inacabada (Sawaia, 2000).

Sawaia (2000) pontua que Espinosa era o filósofo preferido de Vigotski, visto por este como a chave para a construção de seu projeto de uma nova Psicologia. Para a autora, a importância da temática das emoções em Vigotski é sua semelhança - ousa-se dizer identidade - com o projeto de uma Psicologia Geral idealizado pelo psicólogo russo, visto que traz a lume os dualismos que perpassaram a história da Psicologia e suas possibilidades de superação. O próprio Vigotski, em sua breve análise da filosofia de Espinosa, apropriando-se dela dialeticamente, afirma que sua opção por este se justifica por ser um defensor do conhecimento científico dos sentimentos humanos e representar um marco na história da Psicologia que, se eliminadas as contradições da teoria, será capaz de superar "(...) os problemas fundamentais aos que o conhecimento da natureza psicológica das paixões e de toda a psicologia do homem têm dado preponderância (...)" (Vigotsky, 2004, p. 59).

O Tratado Breve de Espinosa, escrito por volta de 1661, foi seu primeiro esboço da teoria das paixões, desenvolvida posteriormente na Ética, publicada em 1677, obra sobre a qual Vigotsky (2004) se debruçou. Em Espinosa Vigotski encontrou o elo que procurava entre cognição e afeto. Diferentemente de Descartes, que considerava o problema das paixões como fisiológico, como também o da interação corpo-alma, Espinosa dava vazão à relação existente entre pensamento e afeto, conceito e paixão (Vigotsky, 2004).

Vigotsky (2004) procura argumentar a favor dos aspectos anticartesianos da doutrina de Espinosa, mais evidentes na Ética. No artigo Del poder del entendimiento o de la libertad humana, Espinosa (citado por Vigotsky, 2004) destaca a ideia errônea de Descartes de que os afetos e o conhecimento dependem totalmente da vontade e podem ser governados de maneira ilimitada.

Vigotsky (2004) também considera um erro os críticos de sua época afirmarem que Espinosa considerava os afetos como fenômenos exclusivamente psíquicos para aproximá-lo de um espiritualismo. Ao contrário, para o autor soviético, Espinosa foi um filósofo materialista, ainda que sua teoria tivesse limitações. A apropriação da filosofia espinosista por Vigotski e sua superação ocorreram, para Gomes (2008), no momento em que o psicólogo enunciou o caráter histórico dos sentidos humanos, pautados na atividade humana prática do trabalho. Segundo Gomes (2008, p. 82), a contribuição de Espinosa para a teoria dos afetos foi a abertura de possibilidades "para uma explicação materialista das emoções humanas". Em contrapartida, a filosofia de Descartes era explicativa, causalista e naturalista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo maior de Vigotsky (2004) no esclarecimento das bases filosóficas das teorias psicológicas da emoção de seu contexto consistiu na análise das psicologias de sua época, divididas em psicologia explicativa (causal) e descritiva (teleológica), dentro de um propósito maior de edificação da Psicologia Geral sobre novas bases. Esta sucedeu àquela, devido à insuficiência da psicologia explicativa para esclarecer adequadamente os processos psicológicos superiores, específicos do homem. A finalidade dessa análise é colocar em evidência que ambas as correntes psicológicas possuíam raízes na doutrina cartesiana: embora se propusessem objetivos contrários, eram complementares, cada qual tomando como base um aspecto da filosofia cartesiana de dupla natureza a psicologia explicativa, pautando-se no mecanicismo de Descartes, e a descritiva, em seu espiritualismo.

Diante disso, não restam dúvidas da prevalência de Descartes na psicologia contemporânea e, consequentemente, na Psicologia dos afetos. Não se trata mais do embate filosófico entre Descartes e Espinosa, mas das contradições intrínsecas à doutrina cartesiana, as quais se pulverizaram na Psicologia atual dos afetos. De um lado, a Psicologia explicativa ou causal se incumbe dos problemas das emoções inferiores, unidas indiretamente ao objeto, inacessíveis à lógica e carentes de sentido, admitindo nexos causais; de outro, a Psicologia descritiva se ocupa dos sentimentos superiores, que demandam uma análise teleológica de seus nexos e dependências racionais. Conserva-se o dualismo, com uma dupla análise das emoções em seus aspectos racionais e mecânicos das causas corporais (Vigotsky, 2004). Esse dualismo é amplamente discutido por Vigotski (1996) quando trata do significado histórico da Psicologia, em 1927. Para o autor, na realidade, naquele contexto do final da década de 20 do século passado só existiam duas psicologias: uma idealista e uma materialista, ambas prescindindo do método dialético nos estudos dos fatos da vida humana.

De acordo com Toassa (2009, p. 161), os objetivos de Vigotski estabelecidos na obra em questão coadunam-se com seu projeto de criação de uma psicologia geral, "(...) cujos conceitos contemplassem o que seria próprio do humano". Não obstante, Teoria das emoções deixa a desejar no cumprimento de suas metas: a base filosófica cartesiana e dualista das teorias psicológicas é elucidada minuciosamente, porém o projeto de construção da nova doutrina dos afetos a partir de outras bases não é levado a cabo, provavelmente em função da incompletude da obra, redigida nos três anos anteriores à morte do autor. Para Toassa (2009), as emoções em Vigotski não chegam a constituir uma teoria, são apenas uma concepção.

Para Vigotski, a explicação causal ou descritiva das emoções é igualmente insuficiente. No capítulo das emoções, o dilema da Psicologia é optar pelo humano, com emoções e sentimentos biológicos, sociais, históricos, ou pelo homem-máquina. Até o presente momento, a Psicologia tem estado muito mais próxima do homem-máquina, das explicações causais, em que a meta da educação é ensinar o indivíduo a controlar seus impulsos imediatos, inadmissíveis nas relações sociais e em uma sociedade educada, preparando o homem desde a infância para dominar seus reflexos emocionais.

Elimina-se, assim, toda a complexidade da vida emocional, suas possibilidades de desenvolvimento e transformação, sua função de conhecimento, e cumpre-se o ideal dos sábios da Antiguidade para o homem puramente racional, intelectual. Em contrapartida, Vigotsky (2004) põe em xeque o valor psicológico e científico das explicações causais dos sentimentos humanos, pois afirma que estas não suprem as necessidades da Psicologia. Não obstante, o problema da causalidade não apenas afeta não os sentimentos, na realidade, é condição de toda ciência. Com isso, Vigotsky (2004, p. 174) encontra a chave da própria crise psicológica no problema da causalidade, ao afirmar que esta se tornou "(...) a pedra angular de toda a crise psicológica. Um verdadeiro conhecimento não é possível senão como conhecimento causal". Partindo dessa constatação, a superação da crise no capítulo das emoções na Psicologia só poderia se tornar efetivo, de acordo com o autor, com a superação dos princípios cartesianos que embasaram as teorias dos afetos, uma vez que o fenômeno da emoção não pode ser explicado pela causalidade.

Destarte, Vigotsky (2004) afirma a necessidade de uma reconstrução no capítulo das emoções na Psicologia. Em seus moldes, a emoção é um processo, é passível de desenvolvimento e transformação. O autor critica as teorias das emoções que o antecederam, afirmando que estas não contemplavam uma teoria do desenvolvimento a teoria organicista excluía a priori a possibilidade de qualquer desenvolvimento das emoções, na medida em que emoções reflexas e periféricas são estáveis no comportamento , e negavam relações entre estados emocionais e estados intelectuais, excluindo as emoções do desenvolvimento da consciência.

Além disso, a emoção é concomitantemente biológica e social, portanto não pode ser sintetizada em sua classificação, como propôs Descartes e Carl Lange (citado por Vigotsky, 2004), ou reduzida a uma ideia ou percepção intelectual, como propôs James acerca das emoções superiores (citado por Vigotsky, 2004). Em contrapartida, para Vigotsky (2004), a questão que emerge dessas considerações é saber se existe uma explicação natural para o que há de superior no homem, sem reduzir esses complexos fenômenos a fenômenos inferiores e mecânicos. Zavialoff (1998, p. 67) sintetiza assim as críticas de Vigotski a esse respeito, dirigidas às teorias que o precederam:

Ele [Vigotski] não reduz a experiência subjetiva, os estados mentais a estados cerebrais bem determinados próprios a estruturas bem delimitadas, nem tampouco a um centro particular de integração ou a um cérebro-espírito autônomo que determina uma ação: em Théorie des émotions, ele critica a esse respeito as proposições de Wundt, de James e de Bergson: uma emoção não é uma idéia, ela não é intelectual, produto de um conhecimento intuitivo ou de um órgão capaz de criar automatismos motores.

Por fim, de acordo com Sawaia (2000, p. 6), o mérito de Vigotski no capítulo das emoções provém da simultânea mudança e conservação dos afetos que o autor efetuou, "[...] do campo dos instintos para o do conhecimento, da ética e da política, sem negar-lhe o caráter de afecção corporal". Nesse sentido, Sawaia (2000, p. 6) esclarece a reviravolta que Vigotski provocou na Psicologia ao considerar a emoção não mais em suas formas instintivas, rudimentares e patológicas, mas como positividade epistemológica:

[Vigotski] introduziu na Psicologia: a emoção como positividade epistemológica, superando a tradicional abordagem negativa, próprias das teorias que analisam o homem à reboque da sociedade. Nessas teorias, a afetividade é perigosa porque está associada à individualidade, à criatividade e ao incontrolável, por isso, a presença das emoções na explicação do comportamento só pode ser pela negatividade e pela patologia.

Conclui-se que o autor russo reafirmou em seu estudo das emoções a concepção de homem e sociedade subjacente a toda a sua obra: homem histórico-social e também biologicamente constituído, mas sobre o qual triunfaram as leis sociais e culturais. Essa visão permite que Vigotski conceba o desenvolvimento ontogenético e filogenético como um processo revolucionário, que contém a possibilidade iminente de transformação social por um homem que se modifica e aprende constantemente em relação ao seu mundo objetivo, de acordo com os recursos que lhe são fornecidos, por meio da transformação da natureza, por meio do trabalho. O homem, em seu aspecto emocional, precisa ser compreendido como síntese das relações sociais, e neste sentido, as emoções são datadas historicamente e são construídas a partir das condições materiais de produção.

REFERÊNCIAS

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Recebido em 14/01/2011

Aceito em 24/01/2012

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  • Endereço para correspondência
    Letícia Vier Machado .Rua Saint-Hilaire, 2055, CEP 87015-161, Maringá-PR.
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    Apoio: CNPq.
  • 2
    As traduções do espanhol para o português e do francês para o português são de responsabilidade das autoras.
  • 3
    De acordo com Tuleski (2008, p. 51), "Vygotski nunca se intitulou interacionista ou sociointeracionista", como o classificam autores contemporâneos que se apropriam de sua teoria de maneira deturpada. A mesma autora ainda salienta que as relações sociais às quais Vygotski se referia eram aquelas relações sociais de produção, como cunhou Karl Marx, e que na concepção interacionista se transformam em meras "interações sociais, o que, frequentemente, adquire a conotação de relações interpessoais ou grupais" (Tuleski, 2008, p. 51).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Maio 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Recebido
      14 Jan 2011
    • Aceito
      24 Jan 2012
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