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"Suzana e os velhos": sedução, trauma e sofrimento psíquico

"Susanna and the elders": seduction, trauma and psychic suffering

"Susana y los viejos": seduccíon, trauma y sufrimiento psíquico

Resumos

Discute-se a violência das mensagens enigmáticas que o adulto sempre comunica ao cuidar da criança. Trata-se da sexualidade recalcada do próprio adulto, por isso inconsciente para ele mesmo, que impregna toda situação de apego, instalando por um lado uma sedução dirigida à criança - por isso traumatizante - e, por outro, convocando-a para iniciar um trabalho de tradução, de metabolização do excesso. Esse trabalho de tradução da sedução do adulto é, para Laplanche, estruturante, pois não somente funda o psiquismo da criança, mas inaugura uma atividade psíquica, organizadora e humana, por meio de um constante movimento après-coup de tradução, destradução e retradução do enigmático. Nesse movimento tradutivo, a cultura, como um assistente na tradução, permite amenizar a violência das mensagens. Ilustra-se esta discussão com o episódio bíblico de "Suzana e os velhos" e com a sua representação pictográfica da artista Artemísia Gentileschi (1593-1651), em que um cenário edípico se desdobra da tradução.

Teoria da sedução generalizada; psicanálise e arte; bíblia


This article discusses the violence of the enigmatic messages that the adult always communicates while caring for a child. It is the repressed sexuality of the adult himself, therefore unconscious to him, which pervades every situation of attachment, on one hand initiating seduction toward the child - therefore traumatizing - and, on the other, calling on the child to start a task of translation, the metabolizing of excess. This task of translating the seduction by the adult is structuring to Laplanche, because it not only founds the psyche of the child, but opens an organizing and humane psychic activity through a constant après-coup movement of translation and retranslation of the enigmatic. On this movement of translation, culture, as an assistant in the translation, mitigates the violence of the messages. We illustrate this discussion with the Biblical story of "Susanna and the elders" and its pictographic representation by Artemisia Gentileschi (1593-1651), in which an Oedipal setting results from the translation.

Theory of generalized seduction; psychoanalysis and art; bible


Se discute la violencia de los mensajes enigmáticos que el adulto comunica siempre al cuidar de un niño. Se trata de la sexualidad recalcada del propio adulto, por eso inconsciente para él mismo, que impregna toda situación de apego, instalando por un lado una seducción dirigida al niño - por eso traumatizante - y, por otro, convocándolo para iniciar un trabajo de traducción, de metabolización del exceso. Para Laplanche, ese trabajo de traducción de la seducción del adulto es estructurante, pues no solamente basa el psiquismo del niño, sino que inaugura una actividad psíquica organizadora y humana a través de un constante movimiento après-coup de traducción, des-traducción y re-traducción de lo enigmático. En este movimiento traductivo, la cultura, como un asistente en la traducción, permite amenizar la violencia de los mensajes. Ilustramos esta discusión con el episodio bíblico de "Suzana y los viejos" y con su representación pictográfica de la artista Artemísia Gentileschi (1593-1651), donde un escenario edípico se desdobla de la traducción.

Teoría de la seducción generalizada; psicoanálisis y arte; biblia


ARTIGOS

"Suzana e os velhos": sedução, trauma e sofrimento psíquico 1 1 Apoio e financiamento: CAPES.

"Susanna and the elders": seduction, trauma and psychic suffering

"Susana y los viejos": seduccíon, trauma y sufrimiento psíquico

Viviana Carola Velasco Martinez

Doutora em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2003). Professora da Universidade Estadual de Maringá na graduação e no curso de Mestrado em Psicologia, na linha de pesquisa Psicanálise e Civilização

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Viviana Carola Velasco Martinez. Rua Prof. Ney Marques, 21, CEP 87020-300, Maringá-PR, Brasil. E-mail: vcvmartinez@hotmail.com

RESUMO

Discute-se a violência das mensagens enigmáticas que o adulto sempre comunica ao cuidar da criança. Trata-se da sexualidade recalcada do próprio adulto, por isso inconsciente para ele mesmo, que impregna toda situação de apego, instalando por um lado uma sedução dirigida à criança – por isso traumatizante – e, por outro, convocando-a para iniciar um trabalho de tradução, de metabolização do excesso. Esse trabalho de tradução da sedução do adulto é, para Laplanche, estruturante, pois não somente funda o psiquismo da criança, mas inaugura uma atividade psíquica, organizadora e humana, por meio de um constante movimento après-coup de tradução, destradução e retradução do enigmático. Nesse movimento tradutivo, a cultura, como um assistente na tradução, permite amenizar a violência das mensagens. Ilustra-se esta discussão com o episódio bíblico de "Suzana e os velhos" e com a sua representação pictográfica da artista Artemísia Gentileschi (1593-1651), em que um cenário edípico se desdobra da tradução.

Palavras-chave: Teoria da sedução generalizada; psicanálise e arte; bíblia.

ABSTRACT

This article discusses the violence of the enigmatic messages that the adult always communicates while caring for a child. It is the repressed sexuality of the adult himself, therefore unconscious to him, which pervades every situation of attachment, on one hand initiating seduction toward the child – therefore traumatizing – and, on the other, calling on the child to start a task of translation, the metabolizing of excess. This task of translating the seduction by the adult is structuring to Laplanche, because it not only founds the psyche of the child, but opens an organizing and humane psychic activity through a constant après-coup movement of translation and retranslation of the enigmatic. On this movement of translation, culture, as an assistant in the translation, mitigates the violence of the messages. We illustrate this discussion with the Biblical story of "Susanna and the elders" and its pictographic representation by Artemisia Gentileschi (1593-1651), in which an Oedipal setting results from the translation.

Key words: Theory of generalized seduction; psychoanalysis and art; bible.

RESUMEN

Se discute la violencia de los mensajes enigmáticos que el adulto comunica siempre al cuidar de un niño. Se trata de la sexualidad recalcada del propio adulto, por eso inconsciente para él mismo, que impregna toda situación de apego, instalando por un lado una seducción dirigida al niño – por eso traumatizante – y, por otro, convocándolo para iniciar un trabajo de traducción, de metabolización del exceso. Para Laplanche, ese trabajo de traducción de la seducción del adulto es estructurante, pues no solamente basa el psiquismo del niño, sino que inaugura una actividad psíquica organizadora y humana a través de un constante movimiento après-coup de traducción, des-traducción y re-traducción de lo enigmático. En este movimiento traductivo, la cultura, como un asistente en la traducción, permite amenizar la violencia de los mensajes. Ilustramos esta discusión con el episodio bíblico de "Suzana y los viejos" y con su representación pictográfica de la artista Artemísia Gentileschi (1593-1651), donde un escenario edípico se desdobla de la traducción.

Palabras-clave: Teoría de la seducción generalizada; psicoanálisis y arte; biblia.

Este artigo, fundamentado na Teoria da Sedução Generalizada de Laplanche, discute a violência das mensagens enigmáticas que inevitavelmente o adulto dirige à criança ao cuidá-la, e como a cultura e suas produções possibilitam elaborações organizadoras.

Partimos do pressuposto que em toda relação de cuidado temos um pequeno ser em total dependência, sem um inconsciente, mas que a sua presença excita o adulto. Este último responde com elementos da sua sexualidade recalcada que se misturam às ações de apego e se transmitem na forma de mensagens sedutoras, o que levará à criança, frente ao excesso imposto pelo adulto, a um trabalho de tradução disso enigmático – a sexualidade – que o próprio adulto desconhece, porque inconsciente (Laplanche, 2001).

Essa relação de dependência e de profunda assimetria, marcada fundamentalmente pela passividade da criança frente a um adulto e o seu inconsciente, caracterizaria o que Laplanche denomina de Situação Antropológica Fundamental.

Assim, diremos com Laplanche (1987), que toda relação assimétrica implica numa sedução – que é generalizada precisamente porque em toda a relação com a criança o inconsciente do adulto é provocado e procura a satisfação pulsional – e, sobretudo, porque produzirá sofrimento psíquico, exigindo um trabalho de organização e reorganização mediante uma atividade tradutiva. Por relação assimétrica, tomamos não somente a relação concreta de um adulto com uma criança, mas a estendemos para toda a relação que, pela violência da mensagem, instaure uma espécie de re-edição da Situação Antropológica Fundamental.

Para esse autor, será o processo de tradução – traduções impossíveis, traduções precárias e traduções bem sucedidas – que fundamentará o psiquismo. Essa tarefa necessária vai fazer da criança – um ser passivo por excelência – sair da situação traumática que o excesso da sedução lhe impõe transformando-a numa verdadeira hermeneuta, tanto no sentido da compreensão das mensagens enigmáticas vindas dos adultos, quanto da própria sexualidade. Pelo mesmo caminho, pode-se situar o pensamento de Bollas (2000), que considera os pais como agentes de intensa sedução da criança, não somente provocando-a no seu autoerotismo, mas levando-a na direção do amor sexual apaixonado do outro. De tal maneira que a revelação ou epifania sexual é, em si, traumática, principalmente porque o sentido atribuído ao adulto, por exemplo, à mãe, deve ser necessariamente ampliado para a aceitação da mãe sexual.

Assim, a discussão proposta, por um lado, parte do pressuposto que toda mensagem tem uma natureza violenta, é traumática na sua essência, independente das vias que tome a sua comunicação e dos seus caminhos elaborativos, metabolizadores e, por outro, considera que cultura e suas produções, são valiosos recursos que resultarão em traduções organizadoras.

É assim que recorremos à mitologia judaico-cristã e trazemos o relato bíblico de Suzana e os velhos (Daniel, s. n.) para análise. Tomamos este relato como metáfora para tratar do sofrimento psíquico que, nas relações assimétricas, se desdobra de cenas de sedução, isto é, do excesso das mensagens, tomando Édipo – o incesto e a castração – como um modelo de tradução.

Dois destinos para as mensagens e sua natureza traumática inspiram este trabalho. O primeiro se relaciona ao assédio dos velhos e a perturbação de Suzana no episódio bíblico. Mensagens que, pelo seu excesso, condenam Suzana à morte, mas o profeta Daniel a salva.

O segundo destino, mais funesto, tem a ver com a passagem do ponto de vista literal do relato bíblico para uma representação pictográfica dessa mesma cena. Trata-se de Suzana e os velhos, da artista italiana Artemísia Gentileschi (1593-1651), filha do também artista Orazio Gentileschi (1563-1639).

Uma cena dramática da sua própria vida teria inspirado sua Suzana... Tal cena se refere à consumação de uma sedução focal, na forma de estupro, que Artemísia teria sofrido, em 1612, no ateliê do pai, perpetrada por seu professor Agostinho Tassi (1578- 1644). Veremos que esse assédio, a seu modo, também condenará a artista à morte, pois deverá mostrar a sua inocência num julgamento literalmente inquisitorial, reativando algo da ordem da Situação Antropológica Fundamental, mas que pode ser traduzido e organizado, por exemplo, por meio da sua arte, em primeiro lugar e, talvez, por um casamento arranjado para salvar sua honra, isto é, pelo aparecimento de uma espécie de Daniel.

Finalmente, nas conclusões, discutimos a generalidade do traumático, uma vez que sempre a sexualidade inconsciente do adulto (os velhos) será comunicada à criança (Suzana), na forma de sedução e, por isso mesmo, se manifesta tanto de forma violenta, quanto enigmática, que demandará um penoso trabalho de tradução. Os destinos da tradução são diversos, alguns condenam à morte sem piedade, outros, enfim, são suportáveis.

Três conceitos interessam em particular: as mensagens e sua violência inerente ou, se se prefere, a vocação traumática das mensagens; o après-coup e; finalmente, a cultura como o resultado das possibilidades tradutivas e organizadoras da violência das mensagens. Referimo-nos-me aos assistentes de tradução que, para Marteen (2003), fariam um contraponto ao processo de sedução precoce, numa espécie de ordenação que resulta na diferença dos sexos, nas relações entre gerações e o acesso ao corpo, particularmente um corpo nu, diz o autor.

LAPLANCHE E AS MENSAGENS ENIGMÁTICAS

Comecemos por alguns conceitos fundamentais da Teoria da Sedução Generalizada de Laplanche.

Referimos-nos às mensagens enigmáticas que são dirigidas à criança em toda situação em que a assimetria, lembremos, está marcada não só pelo maior poder que o adulto detém diante da passividade da criança, mas pelo fato dele ter um inconsciente e a criança não.

As mensagens, portanto, são sempre traumáticas, porque veiculam o inconsciente do adulto. E mais do que isso, sustenta o autor (1999), são estranhas para o próprio adulto que as emite, pois é outro, outro sexual que se revela nessa relação triangular com a criança. Não estamos atribuindo um sentido clássico à triangulação – o edípico freudiano –, mas sim a um terceiro, outro recalcado que habita o sujeito e cuja força pulsional marca um descompasso pois se sobrepõe ao eu – o estranho para Laplanche (1997). E, talvez, com uma estranheza multiplicada, impõe-se à criança, impregnando toda relação de cuidado. O edípico que disso possa resultar seria, de fato, o produto de uma forma de tradução das mensagens sexuais do adulto.

Laplanche (2001a) refere-se, assim, a uma realidade da mensagem de sedução, uma realidade terceira, no sentido de desvincular a sedução de mais um fantasma. Como terceiro domínio da realidade, diz o autor, "não e nem pura materialidade do gesto (mesmo supondo que esta possa ser estabelecida) nem a pura psicologia do ou dos protagonistas" (Laplanche, 2001a, p. 17).

Se a realidade da sedução está para além do fantasmático e da pura materialidade, temos que as mensagens seriam sempre um produto do recalcamento, isto é, seriam o resultado de uma tradução ou tentativa de tradução, mas não para a criança que as recebe inicialmente e de forma passiva, mas para o adulto que é tomado assim por uma manifestação da sua sexualidade recalcada que se comunica inevitavelmente nas suas relações na forma de sedução.

Isso significa que a sexualidade descoberta da criança nasce da interpretação, da decifração que ela faz do que o adulto acrescenta da sua exuberância pulsional nos cuidados. Pois bem, Laplanche vai sustentar que toda relação com o outro estará marcada por esse algo a mais que interroga a criança e pela sua incapacidade de traduzir aquilo que o próprio adulto não sabe, vive a mensagem de forma traumática. O traumático toma aqui uma conotação de excesso de excitação e que necessariamente desencadeará um processo de estruturação do psiquismo, isto é, nasce o recalcamento das mensagens impossíveis de traduzir, pois a situação de passividade da criança, de dependência total do adulto, evidencia que nem sempre ela tem capacidade para fazer esse trabalho de tradução do excesso. Mas, por outro lado, nascem, também, os processos mais organizados. É por esse meio, o da tradução das mensagens da sexualidade recalcada do adulto – do enigmático – que a criança pode iniciar uma ordenação para a sua existência e para a sua relação com os outros. É esse trabalho que, com o suporte do grupo familiar e da cultura em si, a faz sair do puramente traumático.

Laplanche (1992) nos fala, então, de duas formas como as mensagens se comunicam ao infans, na relação assimétrica com o adulto: por implantação e por intromissão.

Como implantadas, Laplanche (1992) considera as mensagens que o adulto transmite para uma criança cujo estado é de total passividade, sem recursos psíquicos que lhe permitam fazer uma decodificação. Apesar disso, a própria mensagem pelo seu excesso despertará na criança uma vocação interpretativa, por meio do trabalho de tradução. Mas não se trata de uma tradução total das mensagens, a própria situação de passividade da criança, relata o autor, a impossibilita de fazê-lo. Isso significa que, restos que a criança não chega a traduzir, naquele momento, constituirão o que Laplanche (1987, 1992, 1999) denomina de objetos-fonte da pulsão e darão toda uma dinâmica especial ao psiquismo, pois eles impelirão o indivíduo a um constante trabalho de tradução e retradução, isto é, de elaboração do traumático e de organização psíquica.

Isso significa que o processo de implantação envolve, por um lado, a transmissão, junto com a mensagem enigmática, de certos elementos organizadores ou assistentes de tradução. Por outro lado, envolve também uma resposta que faz sair a criança da sua passividade originária, ou melhor, sedução originária, para dar precisamente um destino a essas mensagens, seja traduzindo-as, seja recalcando-as, implantando também um potencial para futuras traduções.

De forma diferente, as mensagens por intromissão, pelo fato de não estar acompanhadas de recursos de elaboração psíquica, instalam uma espécie de corpo estranho, impossível de qualquer tradução, que penetra anal e oralmente (Laplanche, 1992).

Se na implantação, continua o autor, o apego garante a possibilidade de, por um lado, se instalar um enigma, e, por outro, um trabalho de tradução, na intromissão não há qualquer potencial organizador e, portanto, não há formulação de um enigma a ser traduzido. A mensagem, neste último caso, é exclusivamente sexual e penetra violentamente.

Apesar dessa diferenciação por Laplanche (1992), da forma como as mensagens de sedução se transmitem, em que a implantação poderá atenuar expressivamente o efeito traumático da sedução, aqui interessa destacar o caráter traumático da mensagem em si, o inconsciente do outro que invade a criança. Interessa, também, destacar essa dialética que é possível desdobrar do adulto, a criança e outro, ou mesmo, da mensagem, da tradução e do recalcamento. Todo adulto, ao seduzir, apresenta novas tentativas tradutivas para si próprio, novas ordenações e destinos – entre eles ainda o recalcamento, por exemplo – para as seduções que agem e se atualizam em si. Trata-se, afirma Laplanche (2001b), de fantasias sexuais antigas que se atualizam no adulto por causa do aparecimento "desse pequeno ser, deste eu-mesmo, tal como eu-mesmo fui em outro tempo, livrado aos cuidados corporais mais deliciosos e talvez mais perversos" (p. 189). E esse movimento é a matéria-prima das mensagens transmitidas para a criança que, por sua vez, iniciará o mesmo percurso tradutivo.

Disso podemos derivar também uma espécie de dialética temporal, não somente com a ideia de trauma em dois tempos, mas o enfoque de uma peculiaridade toda especial da temporalidade para a psicanálise, o que nos leva diretamente à discussão do après coup, ou Nachträglichkeit, e as considerações de Laplanche (2001c): "A meu juizo, o après coup é impensável sem um modelo de tradução: presupõe que algo é proferido pelo outro e que, après coup, é retraduzido e reinterpretado" (p. 59).

Nesse sentido, o après coup, para o autor, não somente implica num movimento temporal – um passado que se presentifica na neurose, por exemplo – mas na formulação de um enigma vindo do outro, implantado pelo outro, desde as origens, como mensagem a ser interpretada. Por outro lado, ao re-editar a sedução originária, permitiria dar um novo destino àquilo que, porventura, penetrou intrusivamente e teve de ser recalcado numa nova tentativa organizadora, novas traduções, destraduções, retraduções.

Essas novas tentativas elaborativas para um sexual já implantado significa possibilidades de sair da imobilidade derivada do traumático, precisamente pelos recursos de tradução. Eis, por exemplo, a possibilidade enigmatizadora de uma análise e as diversas construções culturais que nos assistem nessa tarefa de decifração do sexual, da alteridade e do si mesmo.

Temos assim, e voltemos à violência das mensagens, que o pulsional, em relação à sedução originária, é a base da constituição psíquica que, como uma herança do não-traduzido, do recalcado, afeta a todo um grupo familiar e põe em movimento um intenso trabalho de comunicação-sedução, ordenação-tradução recalcamento e civilização. Uma culpa trágica, dir-se-ia na Antiguidade Clássica – como uma possível nomeação do excesso da mensagem –, que inevitavelmente marcará o guénos. Cada um, a seu modo, deverá pagar seu tributo, como os heróis gregos, e escapar ou, mesmo, ir ao encontro do seu destino.

De todas as maneiras, e apesar de todos os processos psíquicos organizadores desencadeados pelo trabalho tradutivo, é instigante a constatação que somente na base de uma comunicação violenta – das mensagens de sedução – irrompa o inconsciente e se faça o ser como humano.

Foquemos, então, o terceiro aspecto, que é precisamente o dos processos humanizadores, adquiridos secundariamente pelo trabalho de tradução numa alteridade em que o apego é organizador. Aliás, será precisamente o conservativo que abrirá o espaço para a enigmatização da mensagem e a procura por uma tradução. E privilegiar o conservativo se dá fundamentalmente por elaborações mais sofisticadas do pulsional, marcando a alteridade também com essa qualidade. Assim, elementos menos recalcadores e mais elaborados, por parte do adulto, poderão estar também na base da relação originária, e se constituirão como verdadeiros assistentes, para a criança, no trabalho de traduções. Sem isso, afirma Laplanche (2007), não é possível qualquer enigmatização e o destino seria, por exemplo, a intromissão das mensagens e a psicose como um dos caminhos possíveis.

Vamos para Suzana e os Velhos.

CAPÍTULO 13 DE DANIEL

Suzana, esposa do próspero Joaquim, é uma mulher "de grande beleza, e piedosa (2) porque havia sido educada segundo a lei de Moisés por pais honestos (3)." Frequentam a casa de Joaquim, dois velhos juízes, para atender problemas litigiosos da população. Eis que de tanto ver Suzana nos jardins, "se apaixonaram por ela e, (8) perdendo a justa noção das coisas, desviaram os olhos para não ver mais o céu e não ter mais presente no espírito a verdadeira regra de comportamento (9)." Impossibilitados de declarar um para o outro o seu desejo por Suzana, um dia ambos se despedem, mas com a intenção de ficar mais tempo para ver a mulher desejada. Depois de fazer de conta que se iam, ambos retornaram ao mesmo lugar e, ao encontrar-se, "confessaram-se sua concupiscência. Combinaram então um encontro onde a pudessem surpreender sozinha (14)." Suzana aparece nos jardins e, disposta a se banhar, manda suas empregadas buscar unguentos. Os velhos escondidos, então, ao verem-na sozinha durante seu banho, surpreendem-na e exigem que se entregue a eles, ou contariam que a viram com um jovem amante.

"Suzana exclamou tristemente: que angústias me envolvem por todos os lados! Consentir? Eu seria condenada à morte! Recusar? Nem assim eu escaparia de vossas mãos! (22). Não! Prefiro cair, sem culpa alguma, em vossas mãos, do que pecar contra o Senhor (23)." Suzana gritou e os velhos também, atraindo para o jardim os criados. Acusada de pecar com um jovem amante, os velhos exigiram a sua morte. Suzana clama por justiça divina e um jovem adolescente, Daniel, percebendo a injustiça vai defendê-la. Propõe, então, um julgamento e separa os velhos para inquiri-los, o que lhe permite confirmar o falso testemunho dos juízes. Inocentada Suzana, os dois velhos pagam com a vida a sua concupiscência.

Comecemos apontando para algo bastante óbvio, nesse relato, no que se refere às mensagens que se transmitem.

Em primeiro lugar, a relação de assimetria é evidente, não somente em relação a uma mulher jovem e dois velhos, mas, sobretudo em relação a uma inocente e dois sábios. Neste sentido, a passividade marca essa relação, pois Suzana constata que, de qualquer maneira, iria morrer frente ao desejo dos velhos, seja de possuí-la, seja de condená-la. A passividade a que nos referimos é no sentido atribuído por Laplanche, cito os comentários de Ramos (2009, p. 254):

A ideia dessa passividade posicional da criança diante das mensagens do adulto ancora-se em Descartes e Leibniz. Trata-se, nos filósofos, de propor uma relação entre a criatura e seu criador, Deus. Escreve Leibniz, citado por Laplanche: "Diz-se que a criatura age a partir de fora, na medida em que ela tem perfeição, e sofrer [ação] de outra, na medida em que ela é imperfeita" (apud Laplanche, 1987, p. 123).

E continua: "E uma criatura é mais perfeita que outra quando encontramos nela aquilo que serve para dar a priori a razão do que se passa na outra; é, assim, que se diz que ela age sobre a outra". Para Laplanche, não se trata, evidentemente, de mais ou menos perfeição, mas de uma situação em que um sujeito está numa posição de passividade em relação a outro e essa passividade tem a ver com desigualdade de condições. A situação originária seria caracterizada, então, por essa desigualdade de condições simbólicas, linguageiras, entre o adulto e a criança.

Nesse sentido, temos o termo "sábios" marcando precisamente a assimetria. Por outro lado, a diferença geracional também nos remete à passividade e acrescenta algo mais à violência do desejo dos velhos, assim como o corpo jovem e nu de Suzana que se expõe no banho. Finalmente, e ainda no sentido da passividade, está o próprio fato de se tratar de uma mulher frente não a um homem só, mas a dois.

Temos, dessa maneira, como que um adulto que, numa posição privilegiada, transmite algo da ordem do perverso e polimórfico a uma criança que não tem escapatória a não ser iniciar um penoso trabalho de tradução, vimos, que a proteja do excesso. Mas Suzana não está sozinha, tem Deus do seu lado, que inspira Daniel, curiosamente um adolescente dito de espírito íntegro (Daniel, s.n.), para revelar esse excesso dos velhos e contê-lo. E Daniel, por sua vez, tem do seu lado a justiça e a lei, o que podemos tomar como recursos organizadores do pulsional que marca as mensagens do outro, atenuando a sua violência. Uma ordenação, então, tem lugar no mito bíblico, de tal maneira que Suzana é declarada inocente e os velhos são executados. Trata-se de uma ordenação no sentido de uma tradução que discrimina, separa e levanta uma proteção contra o excesso, contra a intensa sedução. Uma ordenação que separa o adulto da criança, os velhos dos jovens, e impõe limites para a satisfação, para a nudez. Mas vejamos outros destinos para a sedução.

ARTEMÍSIA GENTILESCHI "E OS VELHOS"

Artemísia Gentileschi (1593-1651), órfã de mãe desde pequena, é iniciada na arte da pintura desde muito cedo por seu pai, o também artista caravaggesco, Orazio Gentileschi (1563-1639). Mais tarde e por ser mulher, não é aceita na academia de artes, o que leva seu pai a contratar um colega como professor de perspectiva, Agostino Tassi, seu algoz.

Segundo constam nas Atas do processo de estupro (Menzio, 2004), à idade de 19 anos, em 1612, Artemísia é estuprada por Agostino e forçada, após o estupro, a manter relações sexuais durante meses, mediante a promessa de uma reparação pelo casamento. O pai de Artemísia, ao saber do acontecido, denuncia seu antigo colega e é iniciado um longo e penoso processo de julgamento. Tassi é preso e nega a sua culpa, o que leva Artemísia, numa inversão surpreendente, para o banco dos réus. Não se trata mais de provar a culpa de Agostino e sim de provar a inocência da jovem. Agostino a acusa de ser uma prostituta, igual a todas as mulheres da casa Gentileschi, a acusa também de haver pousado nua como modelo, de ter tido já outros amantes e, portanto, de não ser virgem.

Por sua vez, pesam sobre Agostino várias acusações, uma de estupro de uma jovem, que se transformou na sua esposa, como forma de reparar o crime; outra de mandar matá-la, pois estava desaparecida e, ainda; uma acusação de incesto com sua jovem cunhada. A este último respeito, Lapierre (1998) nos esclarece que, pelas leis papais da época, os cunhados eram considerados irmãos dos cônjuges, portanto, qualquer relação amorosa entre eles caracterizaria um incesto.

Artemísia, então, é submetida a um doloroso processo de declaração de inocência. Foi aplicado o sibilli, método de tortura por torção utilizado para provocar dor e sangramento, no caso da artista, nos dedos da mão. (Lapierre, 1998 & Garrard, 2001).

Na sua tese de doutorado, Coulouris (2010), ao propor um estudo sobre o "o motivo para que, ainda hoje, uma denúncia de estupro seja vista com tanta desconfiança a ponto da vítima ser exaustivamente interrogada" (p. 10), se refere ao caso de Artemísia apontando dois aspectos. O primeiro, se refere à constatação de que, nessa época, os casos de estupro simplesmente deviam ser punidos, como uma forma de contenção do pecado sexual do homem, independente da conduta da vítima. Contudo, e aqui o segundo aspecto, os procedimentos ainda inquisitoriais de averiguação de inocência e da verdade são aplicados principalmente a mulheres tidas, há muito tempo, como mentirosas e com uma forte tendência para o mal. Artemísia, continua Coulouris (2010), deve confessar, então, não mais a verdade, mas a mentira da sua acusação.

Ora, a associação da mulher ao mal não é nada estranho, a crença na possessão demoniada, desde a Idade Média, o confirmava. Também não nos é estranho que se utilizassem métodos de torturas, ao estilo do Malleus Maleficarum, do século XV. Além das feridas infligidas nas mãos de Artemísia, um exame ginecológico e público, como era feito com as bruxas, raspando os pelos das partes íntimas, à procura de um sinal do mal e da culpa, colocará a jovem artista numa situação extremamente humilhante. Mesmo assim, ela não desiste da sua inocência, apesar da dor física e moral, ela descreve o estupro com detalhes:

Trancou o quarto com uma chave e, uma vez fechado, jogou-me num canto da cama, me empurrando com uma mão no peito, enfiou-me um joelho entre as coxas para que não pudesse fechá-las, e levantando a minha roupa – custou-lhe muito fazê-lo – enfiou-me um lenço na boca e garganta para que não pudesse gritar. Feito isso, enfiou os dois joelhos entre as minhas pernas e apontando com seu membro a minha natureza, começou a enfiá-lo para dentro. Arranhei-lhe o rosto e puxei dos seus cabelos antes que colocasse seu membro dentro de mim. Ainda, arranhei-lhe o rosto, puxei dos seus cabelos, e antes mesmo que colocasse seu membro dentro de mim, segurei-o e arranquei-lhe um pedaço de carne (Menzio, 2004, p. 1).

Finalmente, Tassi é condenado à prisão e ao exílio, mas logo se livra da pena e desaparece. Após concluído o processo, o pai arranja um casamento para Artemísia, com Pierantonio Stiattesi, um pintor, que lhe devolve a honorabilidade (Lapierre, 1998).

Mas, Artemísia vinga-se com as próprias mãos que, ensanguentadas – lembremos da tortura! –, pintarão, numa espécie de autorretrato, uma Judith decapitando Holofernes (1612-13), seu amante e inimigo.

Outra cena é logo representada, ainda entre 1612-13. Trata-se de Judith e sua serva, a primeira carregando a espada apoiada no seu ombro, a segunda carregando a cabeça de Holofernes. Esta cena terá duas versões.

Finalmente, em 1613, aperfeiçoará a sua vingança, matando mais uma vez seu inimigo. Pinta uma segunda versão da sua Judith decapitando Holofernes, tida como sua obra mestra pela crítica e que chama a atenção, sobretudo, pelas feições indescritíveis do rosto de Judith durante a decapitação.

Poucos anos depois virá a penitência, mas desta vez com o semblante de Madalena (1615-16), afinal, Artemísia foi acusada de prostituição, de tal maneira que o perdão deverá vir somente após seu arrependimento, um arrependimento público para seu pecado público. Contudo, podemos supor que a sua inocência se expressará no seu Autorretrato como Mártir, em 1615.

Em 1620, novamente um terrível castigo deverá ser infligido a um homem. Inspirada em mais um episódio bíblico, pinta Jael e Sísera e a morte atroz deste último. Jael, mulher de Héber, acolhe o inimigo, o general Sísera que, vencido, pede sua ajuda. Quando confiante ele se deixa vencer pelo cansaço e dorme, Jael crava uma estaca nas suas têmporas até deixá-lo pregado no chão (Juízes, 1960).

Até que em 1622, Artemísia volta a colocar na tela uma figura frágil, Suzana e os velhos, que levará diversos autores, como Lapierre (1998) e Garrard (2001), a supor que essa cena, mais uma vez, faz uma alusão ao estupro sofrido. Eis Suzana e os velhos:

Temos, então, a consumação de um estupro e de uma vingança, aliás, duas – pois são duas versões de Judith decapitando Holofernes (1612-13 e 1613).

Diremos, assim, que, numa franca realização de desejos, ao estilo freudiano, Artemísia aplica ela mesma a pena de morte a seu estuprador. E novamente penitente, pinta sua Madalena como a Melancolia (1625).

Contudo, não nos parece que Suzana e os velhos (1622) sejam apenas mais uma alusão ao estupro sofrido, parece-nos mais uma elaboração das cenas do julgamento, afinal de contas, foram os sábios que olharam para a sua nudez, tocaram seu corpo e, ao submetê-la à tortura, completaram uma cena polimórfico-perversa. Aliás, as formas inquisitoriais de buscar no corpo das acusadas as marcas do pecado parecem ser mais um franco sintoma, por um lado como uma espécie de exorcismo do próprio desejo que ficou arraigado na carne, por outro, a sua satisfação.

Eis o relato bíblico do julgamento de Suzana:

(...) e ela chegou com seus pais, seus filhos e os membros de sua família. Era delicada e bela de rosto. 32 Aqueles homens perversos exigiam que ela retirasse seu véu – pois estava velada –, a fim de poderem (pelo menos) fartar-se de sua beleza (Daniel, s. n., versículos 30 a32).

Também como aconteceu com a Suzana bíblica, os sábios colocaram em dúvida a honestidade de Artemísia e a condenaram à execração pública, uma forma de morte. Porém, surpreende descobrir que, em 1610, aos 17 anos de idade, Artemísia já havia colocado em cena esse mesmo drama de Suzana assediada pelos velhos, aliás, teria sido a primeira obra assinada por ela, como prenúncio do nascimento de uma artista. Apreciemô-la.

Pois bem, se se trata de considerar a versão de Suzana e os velhos (1622) como uma espécie de resposta a uma cena de estupro, seria a sua primeira versão, a de 1610, também uma resposta a uma cena similar? Outra cena de sedução, anterior à focal e muito mais violenta?

Talvez o traumático esteja menos na cena de estupro em si, e mais em outras cenas que se traduzem e destraduzem na primeira versão de Suzana e os Velhos, para se retraduzirem na segunda versão. Isso explicaria também as duas versões para Judith decapitando Holofernes?

Embora Agostino Tassi não fosse alguém confiável, segundo as atas do processo, ele teria acusado o pai de Artemísia de cometer incesto com ela, numa ocasião, e em troca de um pedaço de pão, além de usá-la de modelo (Garrard, 2001).

Não se trata aqui de determinar se houve ou não, de fato, um incesto, mas de sustentar a ideia de que algo excessivo, uma sedução, no sentido laplancheano, teria acontecido com Artemísia e que encontrara na sua arte uma expressão para seu sofrimento e para suas elaborações.

PARA CONCLUIR: AS CRIANÇAS E OS VELHOS

Diremos que se há um denominador comum entre o relato bíblico de Suzana e a sua representação na arte de Artemísia, é porque ambos são o resultado de traduções possíveis, penosas, sobretudo, que não só propõem um sentido ou sentidos organizadores, mas também são enigmáticas. É assim que podemos olhar para Suzana e para Artemísia um pouco com os olhares dos velhos, dos sábios, dos juízes, não só porque somos seduzidos pela beleza, mas porque somos convocados a decifrar precisamente o que nos seduz, embora isso possa ser feito esteticamente, já que a violência da mensagem está muito mais atenuada, chega a nós na forma de uma elaboração mais acabada, precisamente na forma de arte. O trabalho de André (1995), sobre a Morte de Sardanápalo, de Delacroix (1827, 1828 e 1844) mostra-nos um belo exemplo do processo de tradução e ordenação que a arte permite. Na sucessão das versões desse quadro, que compreendem desde os esboços feitos na base de garatujas até a obra acabada, são as traduções do sexual que se organizam, por exemplo, na cena primitiva: sob o olhar de Sardanápalo (e de uma criança), uma bela mulher, em destaque, é degolada, a tergo, por um homem, que obedece às ordens do sultão de destruir todos seus bens. Essa cena se multiplica em todo o quadro de Delacroix, no meio de intensas cores.

Mas nos interessa, aqui, o que de enigmático é implantado em Artemísia, que encontrará em Suzana e outras figuras femininas – na sua nudez, sobretudo – a sua expressão.

Sabemos que desde muito cedo, Artemísia foi introduzida nas artes pelo pai que lhe ensinou a misturar as cores. Também a tomou como modelo. Isso é muito interessante, não só porque o pai a inicia na arte de pintar, mas lembremos da acusação de Tassi, de que Artemísia era uma prostitua e teria servido de modelo a vários pintores. Se unirmos esses dados à acusação de incesto que o duvidoso Tassi havia feito, podemos supor que a proximidade de Artemísia com o pai – a mãe falecera quando ela tinha 12 anos de idade – e ainda como modelo, representou um excesso pelo enigmático sexual que o pai, um homem um tanto solitário, lhe propunha. E não é difícil de adivinhar que Artemísia também sabia o que os artistas podiam fazer, a sós, com suas modelos.

Mas, trata-se, antes de tudo, de uma exposição do corpo ao olhar do outro, um corpo que pode ser desnudado com um olhar? Um velho que olha para o corpo nu de uma criança e nesse olhar algo de desejo lhe escapa. São os velhos que olham para a jovem Artemísia, a pretexto de olhar para seu trabalho, a começar pelo pai que a apresenta a diversos artistas da época, entre eles o próprio Tassi e Michelangelo, neto do grande artista renascentista. Num universo predominantemente masculino, não é só um quadro que deva ser olhado. Temos, assim, uma sedução dentro de uma relação diametralmente oposta, em que o adulto junto com o conservativo transmitiria a sua sexualidade polimórfica e perversa – um pedaço de pão oferecido com segundas intenções? A morte da mãe e a proximidade excessiva com o pai a teriam lançado na Situação Antropológica Fundamental, nascendo, então, em 1610 a sua primeira versão de Suzana e os velhos, como uma tradução. São os professores, são os sábios, são, enfim, os velhos que a seduzem e a quem, de alguma maneira, ela também deve seduzir, inclusive procurando reconhecimento. Isso aparece, sobretudo, na duplicação do olhar que a jovem artista provoca quando em várias das suas obras, e com uma função alegórica (Underwood Jr., 2008), é seu rosto e seu corpo que dão forma a diversas personagens com sua nudez mais ou menos velada, com sua juventude.

O resultado, então, dessa tradução do enigmático que lhe é implantado, serão cenas verdadeiramente edípicas. É o semblante do seu pai que também aparece com frequência nos seus quadros, encarnando, por exemplo, Sísera, o general assassinado em Jael e Sísera (1620), ou encarnando o pai, em Ló e suas filhas, de 1635-38 (Romero, 2009) e isso é muito eloquente.

Nesse sentido, pai e filha parecem dizer algo um ao outro, não só porque um pode ter servido de modelo ao outro, mas também porque há muitos temas iguais representados na sua arte. Talvez se tratasse de temas bastante comuns na época, como os episódios mitológicos, tanto gregos como judaico-cristãos, talvez se tratasse de um trabalho em conjunto de um mestre e sua discípula ou, mesmo, de uma competição entre dois artistas. De todas as maneiras, chama a atenção o fato de ambos terem pintado o tema de Judith, de Madalena, de Ló, a nudez de Danae.

Uma ênfase pode ser apontada no tema da decapitação em Judith, pois ambos os artistas pintaram pelos menos quatro variações do mesmo tema. A decapitação de Golias (David contemplando a cabeça de Golias, 1610), o tema da Circuncisão (1605-07 e 1616-20), de Orazio, o pai, e Salomé com a cabeça de João Batista (s. d.), de Artemísia nos remetem ao mesmo tema da castração. Quanto ao incesto, temos o tema bíblico de Ló e suas filhas, também em várias versões de pai e filha. Aliás, foi em 1621 que Orazio Gentileschi apresenta sua versão de Ló e suas filhas, e, em 1622, a versão de Ló emebebedado pelas filhas, o mesmo ano em que Artemísia, talvez como resposta a um tema tão eloquente, apresenta a sua segunda versão de Suzana. Trata-se de cenas de sedução invertidas, uma resposta de Artemísia – também com sedução – para o sexual. Não esqueçamos que Suzana havia seduzido os velhos com a sua beleza e juventude. Por outro lado, é muito curioso constatar que a mesma figura feminina que aparece num quadro de Artemísia, de 1612, como Danae, já fora pintada antes, pelo pai, como Cleopatra (1610-11). A diferença nos dois corpos nus está em que Danae, de Artemísia, recebe Zeus na forma de uma chuva de ouro, enquanto a Cleópatra, do pai, segura uma cobra na mão direita.

Finalmente, é necessário considerar que, apesar da sua condição de mulher, numa época em que somente os homens poderiam ter um reconhecimento nessa profissão, Artemísia foi a primeira mulher a ser aceita na Accademia del Disegno, em 1661, aos 23 anos de idade, depois de ter sido exposta inúmeras vezes ao olhar dos homens, dos sábios, dos professores, dos velhos. Segundo Lapierre (1998), será a primeira mulher a ser reconhecida e respeitada no universo predominantemente masculino das artes e, ainda, a ser capaz de viver do seu trabalho.

Quanto às suas versões de Judith decapitando Holofernes (1612-13 e 1613), que se supõe ser sua vingança, talvez seja isso mesmo, quem sabe! De todas as maneiras, a violência da mensagem toma as formas sedutoras de Danae, Betsabé, Salomé, Danae, Venus, Artemísia.

Em 1648, retrata uma terceira versão de Suzana e os velhos, e como uma retradução, sua imagem nos lembra vagamente aquela dos seus 17 anos. Supreendentemente, e há poucos dias, Modesti (2012) anuncia a recente descoberta do que seria a última obra de Artemísia: Suzana e os velhos, de 1652, o ano da sua morte.

Recebido em 24-07-2012

Aceito em 27-11-2012

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    Apoio e financiamento: CAPES.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Set 2012

    Histórico

    • Recebido
      24 Jul 2012
    • Aceito
      27 Nov 2012
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