Acessibilidade / Reportar erro

Conselhos municipais: prática e impasses no cenário contemporâneo

Municipal councils: practice and dilemmas in the contemporaneous scenary

Consejos municipales: práctica y dilemas en el panorama contemporáneo

Resumos

Pela experiência de inserção militante em dois conselhos municipais, apresentamos informações sistematizadas e essenciais sobre a composição desses espaços de controle social. Quais são alguns dos problemas essenciais no funcionamento concreto dos conselhos? Pela perspectiva social crítica, procuramos apreender as contradições que atravessam esses dispositivos de controle social. Oferecemos pistas orientadoras para os profissionais da Psicologia que buscam atuar na linha do compromisso social e que se engajam na participação nesses importantes mecanismos sociais de discussão e deliberação no âmbito das políticas públicas.

Psicologia social; conselhos municipais; políticas públicas


From an experience of activist insertion in two municipal councils, we present essential and systematized information on the composition of these areas of social control. What are some of the key problems in the practical functioning of the councils? From a critical social perspective, we sought to understand the contradictions in these devices of social control. We offer guidance cues to professionals in psychology who seek to work in the field of social commitment and are engaged in these important social mechanisms of discussion and deliberation in the context of public policy.

Social Psychology; municipal council; public policy


A partir de una experiencia de inserción militante en dos consejos municipales, presentamos informaciones sistematizadas y esenciales sobre la composición de estos espacios de control social. ¿Cuáles son algunos de los problemas esenciales en el funcionamiento concreto de los consejos? Desde una perspectiva social crítica, buscamos aprehender las contradicciones que traspasan estos dispositivos de control social. Ofrecemos pistas orientadoras a los profesionales de la Psicología que procuran actuar en la línea del compromiso social y que se comprometen participando en estos importantes mecanismos sociales de debate y deliberación en el ámbito de las políticas públicas.

Psicología social; consejos municipales; políticas públicas


ARTIGOS

Conselhos municipais: prática e impasses no cenário contemporâneo* * Apoio e Financiamento: Fapesp.

Municipal councils: practice and dilemmas in the contemporaneous scenary

Consejos municipales: práctica y dilemas en el panorama contemporáneo

Silvio José BenelliI; Abílio da Costa-RosaII

IDoutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, professor assistente junto ao Departamento de Psicologia Clínica e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Assis, SP

IIPsicanalista, analista institucional, livre-docente junto ao Departamento de Psicologia Clínica e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Assis, SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Silvio José Benelli. Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Campus de Assis. Avenida Dom Antonio, 2100, Parque Universitário, CEP 19806-900, Assis-SP. E-mail: benelli@assis.unesp.br

RESUMO

Pela experiência de inserção militante em dois conselhos municipais, apresentamos informações sistematizadas e essenciais sobre a composição desses espaços de controle social. Quais são alguns dos problemas essenciais no funcionamento concreto dos conselhos? Pela perspectiva social crítica, procuramos apreender as contradições que atravessam esses dispositivos de controle social. Oferecemos pistas orientadoras para os profissionais da Psicologia que buscam atuar na linha do compromisso social e que se engajam na participação nesses importantes mecanismos sociais de discussão e deliberação no âmbito das políticas públicas.

Palavras-chave: Psicologia social; conselhos municipais; políticas públicas.

ABSTRACT

From an experience of activist insertion in two municipal councils, we present essential and systematized information on the composition of these areas of social control. What are some of the key problems in the practical functioning of the councils? From a critical social perspective, we sought to understand the contradictions in these devices of social control. We offer guidance cues to professionals in psychology who seek to work in the field of social commitment and are engaged in these important social mechanisms of discussion and deliberation in the context of public policy.

Key words: Social Psychology; municipal council; public policy.

RESUMEN

A partir de una experiencia de inserción militante en dos consejos municipales, presentamos informaciones sistematizadas y esenciales sobre la composición de estos espacios de control social. ¿Cuáles son algunos de los problemas esenciales en el funcionamiento concreto de los consejos? Desde una perspectiva social crítica, buscamos aprehender las contradicciones que traspasan estos dispositivos de control social. Ofrecemos pistas orientadoras a los profesionales de la Psicología que procuran actuar en la línea del compromiso social y que se comprometen participando en estos importantes mecanismos sociales de debate y deliberación en el ámbito de las políticas públicas.

Palabras-clave: Psicología social; consejos municipales; políticas públicas

A participação dos psicólogos nas políticas públicas

O tema do protagonismo social da Psicologia como ciência e profissão, focalizando as implicações éticas e políticas de sua produção de conhecimentos científicos e de técnicas de intervenção vem sendo intensamente problematizado ao longo das últimas décadas (Yamamoto, 2007; Bock, 2009) na realidade brasileira. A Psicologia, que inicialmente era predominantemente um saber e uma técnica comprometida com os interesses da elite brasileira, tem passado por uma intensa revisão autocrítica (Benelli, 2009; Bock, 2009), vindo a desenvolver outras tecnologias voltadas para o compromisso social, pautando-se por uma perspectiva social crítica (Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas, 2007, Conselho Federal de Serviço Social, 2007, Conselho Federal de Psicologia, 2007, 2011; Cruz & Guareschi, 2009, Benelli & Costa-Rosa, 2011, Costa-Rosa, 2011). Nesse contexto de politização dos saberes teórico-técnicos da Psicologia, de engajamento social e de luta pela transformação social, abrem-se novos campos de intervenção para o profissional psicólogo como, por exemplo, uma atuação avisada e politicamente informada e situada no vasto campo das políticas públicas e particularmente no âmbito da Assistência Social (Cruz & Guareschi, 2009). Desde a nossa inserção como psicólogos, docentes e pesquisadores, encontramos alguns desafios importantes para os trabalhadores situados nesse âmbito: a) apropriar-se de conhecimentos sobre a lógica própria dos modos de funcionamento da administração pública municipal, da legislação e das práticas de gestão dos serviços públicos; b) trabalhar de modo crítico e engajado pela transformação social, superando as estratégias meramente paliativas, focais e assistencialistas, evitando a psicologização e patologização do social; c) a ocupação militante dos espaços de controle social: participar de Conselho Municipal de Assistência Social, dos Direitos da Criança e do Adolescente, da Saúde, da Educação; d) lutar pela efetivação concreta e de qualidade de políticas públicas municipais básicas de educação, de lazer, de saúde, de habitação, de emprego e renda, que são fundamentais para o equacionamento do "problema social". Nosso objetivo é relatar nossa inserção e discussões nessa área de atuação, contribuindo com os colegas psicólogos que estejam fazendo experiências semelhantes e estimulando outros a se engajarem nessa importante brecha institucional para a categoria profissional.

Caracterização dos conselhos municipais

Como devem ser constituídos e de que modo devem funcionar os Conselhos Municipais? Os Conselhos Municipais (Anhucci, 2007; Brasil, 2006, 2007a, 2007b, 2007c, 2007d, 2007e, 2010; Assis, 2009) são uma inovação política no cenário nacional e representam uma forma de democracia direta, indicando que pessoas, grupos e instituições têm capacidade de conduzir os rumos do próprio destino e também do país. A Constituição Brasileira (Brasil, 1988) reconhece que o poder do povo pode ser exercido de duas maneiras: por meio da participação, também conhecida como democracia participativa, e pela eleição, também conhecida como democracia representativa. Pela Constituição de 1988, temas como Saúde, Assistência Social, Segurança Alimentar, Educação, Moradia e tantos outros passaram a fazer parte do horizonte dos cidadãos brasileiros como direitos a serem garantidos pelo Estado. A principal tarefa do Estado seria enfrentar e produzir soluções para os problemas que afetam a população, garantindo o acesso aos direitos conquistados pela sociedade. A conquista dos direitos determina como os cidadãos vão viver coletivamente e a luta pela sua ampliação está relacionada à busca constante de modos mais dignos e valiosos de viver. As políticas de Estado são ações concretas, como serviços, programas, projetos e benefícios que têm o compromisso de fazer valerem as leis. Elas podem ser entendidas como aquilo que os governos federal, estadual e municipal decidem fazer ou não, frente a uma situação tida como problemática. Para tomar esta decisão, são analisados os aspectos técnicos e também as forças sociais em jogo e os problemas que os governos consideram mais importantes. A conquista da democracia participativa abriu a possibilidade da sociedade civil (e não só dos órgãos do Estado) participar das decisões sobre a política pública pela sua atuação nos conselhos em diversos âmbitos: Assistência Social, Saúde, Direitos da Criança e do Adolescente, Conselho Tutelar e outros. Normalmente, os conselhos de políticas de Estado são órgãos vinculados ao Poder Executivo, são criados por lei e devem se orientar pelo que elas definem. Isso significa e exige uma partilha de poder entre as instâncias do poder público e as da sociedade civil organizada. Os marcos legais dos conselhos municipais podem ser encontrados na legislação, começando pela Constituição Federal (Brasil, 1988), mas cada conselho também possui normativas específicas. Por exemplo, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) se fundamenta no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 08.069/1990) e nos "Parâmetros para Criação e Funcionamento dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente" (Brasil, 2007e). O Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) é normatizado pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) (Lei 12.435/2011), pela Política Nacional de Assistência Social (PNAS) (Brasil, 2004) e pelas Normas Operacionais Básicas (NOB/SUAS) (Brasil, 2005).

Os conselhos municipais (Brasil, 2007d, Assis, 2009) são espaços públicos de participação institucionalizados pelo Estado, com o objetivo de promover a participação da sociedade civil na formulação e no controle das políticas públicas. Por exemplo, a lei Orgânica da Assistência Social, a lei Orgânica da Saúde, o ECA, o Estatuto do Idoso, a legislação de cada área específica, enfim, prevê que a sociedade e os governos participem em conjunto de tudo o que se faz na área. Essa é uma forma importante de garantir uma participação efetiva no município no qual se vive, participando de um dos diversos conselhos. Os conselhos municipais, em geral, são permanentes e contínuos, havendo substituição de membros que participam como conselheiros, mas cada um desses conselhos não acaba. Certamente, a excessiva rotatividade de conselheiros é um problema que atrapalha seu bom funcionamento, sobretudo por que é preciso um tempo de formação e de atuação para se aprender a desempenhar as funções de conselheiro. São os diversos conselhos quem tomam decisões sobre a política pública na sua área de abrangência. Também são eles quem exercem o controle social na sua área específica (recebem informações, decidem, acompanham, fiscalizam e avaliam as ações). Todos os conselhos têm objetivos específicos na sua área de atuação: devem fortalecer a política pública onde atuam (Saúde, Segurança, Criança e Adolescente, Idoso, Deficiente, Assistência Social etc.), procuram garantir o direito à cidadania, promovem a participação da população na gestão das políticas municipais e realizam o controle social. Isso implica a participação da sociedade civil nos processos de planejamento, acompanhamento, monitoramento e avaliação das ações da gestão pública e na execução das políticas e programas públicos. Trata-se de uma ação conjunta entre Estado e sociedade em que o eixo central é o compartilhamento de responsabilidades com vistas a aumentar o nível da eficácia e efetividade das políticas e programas públicos.

Todo conselho é criado pela elaboração de um projeto de lei municipal que o institui e também cria um Fundo específico, como no caso do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente (Brasil, 2007d). Como cada área específica tende a publicar diretrizes para a estruturação, reformulação e funcionamento dos respectivos conselhos, estas devem servir de base para a elaboração da lei municipal de criação deles. Esta lei municipal define o número de conselheiros titulares e suplentes (composição), o período de cada mandato dos conselheiros (eleição), a estruturação (se terá secretaria executiva, comissões temáticas etc.) e também regulamenta as competências, atribuições, responsabilidades e prerrogativas dos conselheiros, estabelecendo o modo de funcionamento do conselho, normalmente propondo a criação de comissões de trabalho. Estabelece ainda disposições gerais quanto ao Fundo, quando ele existe, além de acompanhar a elaboração e execução do orçamento público (Brasil, 2007d; Assis, 2009). Um Conselho Municipal é formado por pessoas da comunidade e por servidores públicos municipais. A população indica metade dos conselheiros e a prefeitura indica a outra parte. Isso se denomina paridade, o que pretende indicar que tanto os representantes da população quanto da prefeitura têm força igual dentro do Conselho, que deve funcionar como um órgão colegiado. Cada Conselho também deve elaborar seu próprio regimento interno (Brasil, 2007d; Assis, 2009), tomando como base os modelos do Conselho Nacional e Estadual da sua área, especificando como será o seu funcionamento prático, como será composta a mesa diretora, como serão realizadas as reuniões, como funcionará a Secretaria Executiva, quando existir. Uma secretaria executiva é uma peça-chave para o bom andamento dos conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, de Assistência Social e também dos outros conselhos: sua existência é fundamental para dar suporte administrativo para o conselho. Um conselho só funciona bem se houver cuidado com três aspectos importantes: a dimensão administrativa, a dimensão técnica e a dimensão política (Brasil, 2007d; Assis, 2009).

Com relação à dimensão administrativa, é preciso atenção aos seguintes aspectos: elaborar e fazer cumprir o regimento interno; definir uma agenda de reuniões, registrar a presença dos conselheiros por assinatura em livro, constando data, horário e local da reunião; definir a pauta das reuniões e encaminhá-la antecipadamente aos conselheiros; nessas reuniões, todos os conselheiros devem ter oportunidade de falar, garantindo a participação nas discussões; caso não seja possível cumprir toda a pauta, é importante dar prioridade a alguns assuntos; as votações só devem ser realizadas quando todos os conselheiros estiverem esclarecidos sobre os assuntos em pauta; é importante ler a ata elaborada pelo(a) secretário(a) no início da reunião e, caso seja possível, é recomendável enviá-la com antecedência para os conselheiros. Na dimensão técnica, o conselho pode funcionar a partir da criação de comissões temáticas ou de comissões de trabalho (Brasil, 2007d; Assis, 2009), que o auxiliam em determinados temas para que suas decisões e pareceres sejam baseados em informações e análises fundamentadas. É importante que as comissões de trabalho se reúnam em separado para trabalhar e que elas funcionem ativamente, cumprindo suas funções e atribuições, levando depois suas discussões, propostas e ações realizadas para o plenário do conselho. Isso exige tempo, disponibilidade, engajamento, suporte técnico-administrativo, local de trabalho adequado, material de escritório, telefone, computador etc. Tudo isso deve ser disponibilizado pela Secretaria Municipal à qual o conselho está ligado, constar na lei municipal e precisa de dotação orçamentária específica. Podem ainda existir outras comissões (permanentes ou provisórias), se o conselho entender necessário. O conselho pode elaborar um Plano de Gestão para os anos de duração do seu mandato, contendo as metas, as ações e as estratégias para alcançar as propostas. Também deve elaborar anualmente seu Plano de Ação ou Plano de Trabalho (Assis, 2009), especificando quais são suas metas, ações e estratégias para alcançar as propostas para esse período. Esse Plano de Trabalho deve ser baseado nas decisões da Conferência Municipal da área respectiva. Além disso, deve contribuir para elaborar e aprovar o Plano Municipal da sua área específica: de Saúde, de Assistência Social, de Habitação etc. O Plano Municipal é o documento que representa toda a política do município na área. O Plano de Gestão e o Plano de Ação anual orientam o funcionamento do Conselho, evitando que ele funcione ao sabor das vicissitudes locais, dando-lhe uma diretriz proativa e imprimindo-lhe iniciativa própria.

Quanto à dimensão política, os conselhos municipais desempenham importante e difícil função política na sociedade: eles operam com o poder político e também com o poder econômico, no financiamento das atividades de cada área, visando à construção da cidadania e o bem da coletividade (Brasil, 2007d; Assis, 2009). Por isso, eles devem assumir alguns papéis políticos: a) garantir a representação dos vários segmentos definidos pela lei; b) buscar construir a articulação com o Conselho Tutelar, com o Poder Executivo, Poder Legislativo, Poder Judiciário, e com o Ministério Público; c) promover a integração, a intersetorialidade e o trabalho em rede com as outras políticas públicas (saúde, educação, cultura, esporte, habitação etc); d) dar transparência a todas as decisões da área, garantindo a participação do usuário nas decisões; e) abrir as reuniões do conselho a todos os interessados; f) assegurar a participação popular na eleição dos membros do Conselho; g) registrar as entidades e programas de atendimento da área temática específica. As importantes atribuições do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e também do Conselho Municipal de Assistência Social estão explicitadas, respectivamente, nos "Parâmetros para Criação e Funcionamento dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente" (Brasil, 2007e) e nas "Diretrizes para a estruturação, reformulação e funcionamento dos Conselhos de Assistência Social" (Brasil, 2006; 2010).

Exercendo as funções do membro de conselhos municipais

Pela perspectiva teórico-técnica social, crítica e dialética, vivenciamos uma experiência de imersão no campo da Assistência Social, mais especificamente, em dois conselhos municipais, empregando a observação participante, procurando conhecer sua constituição, dinâmica e modos de ação. Nosso objetivo consistia em aprender em serviço, atuar politicamente e ao mesmo tempo, realizar uma reflexão escrita, buscando apreender a forma como os sujeitos configuram o social e também como são construídos por ele, em um movimento que é individual, único e ao mesmo tempo, coletivo, histórico e social. O tipo de conhecimento produzido por meio de uma abordagem crítica e dialética em Psicologia Social pode ser caracterizado como um estudo de singularidade (Benelli, 2009; Costa-Rosa, 2011). Cada caso é único, mas como a teoria e o método dialético permitem a apreensão das determinações constitutivas do fenômeno investigado, sua possibilidade de generalização se encontra ancorada na capacidade explicativa alcançada sobre uma diversidade de fenômenos. O conhecimento assim produzido por meio de um exemplar funciona como instância deflagradora da apreensão e do estudo de mediações que concentram a possibilidade de exemplificar a realidade concreta. Isso é possível porque cada indivíduo, apesar de ser único, contém a totalidade social e as expressa no seu agir, pensar, sentir e falar.

Nosso método de análise se baseia no caso singular. Para além da pretensão de dar conta de certa "objetividade empirista", o que buscamos foi, de modo coerente com a perspectiva crítica, por meio de um diário de campo elaborado pela participação nas reuniões e atividades dos dois conselhos municipais, apreender a processualidade desse fenômeno em seus aspectos dinâmicos, essenciais e estruturais. Isso se demonstra efetivo quando o próprio leitor, pelo conhecimento que tem sobre estabelecimentos semelhantes, iluminado pela análise dialética e estrutural apresentada, pode se identificar com as descrições e análises explicitadas. É exatamente esse o efeito que produz a leitura de um caso singular bem estudado e corretamente apresentado.

A elaboração do pensamento corresponde a um processo dialético e permite a construção de categorias analíticas que alcançam o estatuto de conceitos estruturais, que por sua vez são dotados de forte capacidade explicativa e interpretativa. A construção desses conceitos fundamentais passa por uma imersão atenta num determinado campo de análise, o que pode ser realizado, por exemplo, por meio da observação participante, podendo ainda incluir uma coleta de dados quantitativos, a realização de entrevistas, bem como um levantamento bibliográfico e uma análise cuidadosa da literatura pertinente ao tema investigado. Mas não será nunca a simples soma de todos esses elementos quantitativos ou qualitativos aquilo que permitirá a formulação das proposições conclusivas. Não se trata de colecionar todo um conjunto de fragmentos aleatórios e dispersos, procurando ordená-los de modo a exercitar certo associacionismo mecanicista. Categorias conceituais analíticas são formuladas e construídas por meio um processo de trabalho dialético do pensamento. No presente estudo, uma categoria fundamental construída foi a de "prefeiturização" dos conselhos municipais. Feitas essas considerações sobre nosso método de estudo, não é demais assinalar que aceitamos perfeitamente que haja limites quanto à possibilidade de generalização de nossa pesquisa, porque acreditamos que, embora defendendo seu caráter de caso singular, nem por isso pensamos que fica superada, por completo, sua particularidade.

Participando em conselhos municipais

Ao longo do ano de 2008, exercemos nosso mandato de conselheiro municipal participando de 23 reuniões de trabalho do CMDCA e de 21 reuniões do CMAS, bem como de diversas atividades, tais como: visitas a entidades, organização e participação em diversos eventos na área. No ano de 2009, participamos de 22 reuniões do CMDCA e de 21 reuniões do CMAS. Colaboramos na organização e realização das Conferências Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente e também na Conferência Municipal de Assistência Social, ambas realizadas no ano de 2009. Os membros que compunham o CMDCA totalizavam 16 titulares e seus respectivos suplentes, sendo que oito eram representantes do poder público municipal e outros oito eram representantes da sociedade civil, oriundos de organizações sociais diversas. O CMAS era composto por cinco representantes do poder público e por cinco representantes da sociedade civil. Os dois conselhos contavam com uma diretoria composta por um presidente, um vice-presidente e ainda por dois secretários. Havia três comissões de trabalho: a de visitas, a de análise de projetos e documentação e a de finanças. Sem a pretensão de sermos exaustivos, descreveremos alguns aspectos essenciais do funcionamento concreto dos conselhos municipais dos quais participamos.

Não participamos de nenhuma capacitação prévia para atuar nesses conselhos, nosso aprendizado foi se dando ao longo da experiência concreta. Desde logo, inicialmente nossa ignorância era enorme e isso incomodava muito, pois não sabíamos nada sobre conselhos municipais, nem sobre a legislação e tampouco sobre a Assistência Social. Essa era também a situação de muitos outros conselheiros da nova gestão. Movidos pela necessidade de saber sobre essa temática para podermos nos situar mais adequadamente, começamos a explorar pessoalmente o conteúdo dos arquivos de documentos que pertencem ao CMAS e ao CMDCA, que ficavam na sala da secretária dos conselhos. Os conselheiros não tinham livre acesso a esse material, embora não houvesse nenhuma regra formal nesse sentido. Nas ocasiões em que íamos para as reuniões, passamos a verificar de modo pessoal e sistemático o conteúdo dos armários e arquivos com naturalidade, pensando ingenuamente que podíamos fazê-lo, já que eles pertencem aos conselhos dos quais éramos membro. Mais tarde, soubemos que nossas explorações individuais causaram grande incômodo para a secretária executiva, que não era apenas a responsável por zelar por essa documentação, mas também se sentia proprietária dos arquivos, sendo que os conselheiros deveriam pedir a ela o que precisassem. Ora, como poderíamos solicitar o que nem sabíamos que existia? A secretária executiva nunca explicou aos conselheiros nada sobre o material disponível nos arquivos nem estava acostumada a que algum conselheiro se interessasse por esses documentos. E de fato, exceto por nós, é provável que os demais conselheiros não tivessem maior interesse por documentos e informações, nem dispunham de tempo ou de condições para entendê-los e utilizá-los. Longe de querer culpabilizá-los, certamente, apenas mais interesse por parte dos conselheiros não resolveria as coisas, mas já permitiria uma abordagem mais complexa dos problemas. Por outro lado, verificamos que os funcionários do poder público municipal não parecem gostar que os cidadãos tenham acesso e se apropriem de informações sobre os programas, projetos, serviços e, sobretudo, de dados relativos ao financiamento da Assistência Social municipal.

Desde as primeiras reuniões do CMDCA e do CMAS, notamos que ambos tendiam a se ocupar quase que de modo predominante de obrigações "cartoriais", tomando ciência de forma superficial de documentos oficiais encaminhados pela Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS) ou por outras instâncias oficiais para sua aprovação, papéis esses que eram "benzidos" muito rapidamente com vistas ao cumprimento de obrigações burocráticas do município para com o Estado ou com a União. Os documentos para ciência, análise e aprovação costumavam ser apresentados em uma única via, passavam rapidamente pelas mãos dos conselheiros, que não entendiam bem do que se tratava (e não pareciam muito preocupados com isso), enquanto o presidente, que normalmente dirigia as reuniões de trabalho, ia tentando explicar o conteúdo da documentação em pauta, dizendo da urgência com a qual ela devia ser aprovada pelo conselho para que a SMAS pudesse encaminhá-la para os órgãos respectivos. Normalmente, essa documentação, que tratava de planos municipais oficiais da SMAS relativos a programas e serviços focalizados na criança e no adolescente e na Assistência Social, costumava ser aprovada sem maiores perguntas, sem uma análise mais detida; os conselheiros não sabiam bem de a sua origem, por que vinha e a que fins visava, simplesmente despachavam os documentos. Nossa impressão era de que os conselhos, na maior parte do tempo, estavam simplesmente acolitando o poder público municipal, sem assumir o papel proativo que a legislação lhes designava. Participando das atividades do CMDCA e do CMAS, fomos nos inquietando e diversas perguntas foram surgindo. Como funcionava a máquina administrativa municipal? Quais eram os grupos políticos que se confrontavam no cenário do município? Quais eram seus projetos político-sociais? Eram originais e divergentes? Estavam alinhados com os interesses de partidos nacionais relevantes? Visavam a interesses eleitoreiros ou à construção da cidadania? Eram tuteladores ou emancipatórios?

Observamos que os membros dos conselhos não pareciam ter consciência do seu lugar e papel no contexto sociopolítico municipal, mantendo uma atitude passiva, subserviente e descomprometida, quando não francamente aduladora dos gestores municipais. O conjunto dos conselheiros não tinha tempo para grupalizar e muito menos para se tornar um grupo de trabalho efetivo. Havia reuniões ordinárias mensais e outras extraordinárias (convocadas para tratar de questões emergenciais, ou em caráter de urgência, cujos documentos eram objeto de uma apresentação informativa rápida e superficial, sendo aprovados ou encaminhados às pressas e sem maiores discussões). Não havia reuniões semanais das comissões de trabalho, por exemplo, porque os representantes do poder público municipal e os da sociedade civil organizada não dispunham de tempo para tanto; os primeiros já tinham sua cota específica de trabalho como funcionários públicos municipais e a participação nos conselhos significava um acréscimo de ocupações e responsabilidades, já os segundos exerciam uma participação voluntária como conselheiros, que era considerada uma atividade "social relevante" sem remuneração. Certamente, também trabalhavam para sobreviver e dispunham de tempo limitado para se dedicarem às funções de conselheiro. Um excesso de reuniões também era evitado para não tornar as "discussões redundantes e cansativas", conforme ouvimos alguns membros dos conselhos comentando. E se os representantes do poder público tinham suas ocupações, os membros da sociedade civil também as tinham, portanto considerava-se que muitas reuniões de trabalho eram inviáveis. Outras atividades além de reuniões, tais como cursos ou capacitações, poucas vezes eram cogitadas. Também é verdade que os membros mais antigos do CMDCA, sobretudo os representantes do poder público, tinham mais experiência com as políticas municipais locais, mas nem por isso, partilhavam tais conhecimentos com os novatos. Eles demonstravam maior resignação e uma aceitação fatalista do mau funcionamento da administração pública municipal, dizendo: "isso sempre foi assim", "não adianta querer mexer com essa gente".

Diferentemente do que propõe a orientação oficial com relação à representação do governo junto ao CMDCA, verificamos que o prefeito municipal indicava apenas funcionários do segundo ou do terceiro escalão para o cargo de conselheiro municipal. Dificilmente tais conselheiros poderiam trazer uma contribuição efetiva da secretaria que representavam para o CMDCA/CMAS, e acabavam representando a si mesmos nas deliberações, refletindo e agindo a partir do senso comum, sem considerar as normativas legais e o contexto público, político e social municipal. Na verdade, os representantes do poder público escotomizavam a instância que representavam. Os representantes da sociedade civil estavam claramente despreparados para o cargo de conselheiros e podiam acabar sendo "inocentes úteis" para as atuais políticas públicas na área da Assistência Social e dos Direitos da Criança e do Adolescente. Cinco deles não possuíam formação universitária, um era psicólogo, outro assistente social, outro professor, mas todos desconheciam o funcionamento da máquina administrativa municipal, o lugar das políticas públicas sociais no contexto do capitalismo neoliberal globalizado ou as implicações éticas das ciências humanas (psicologia, direito, serviço social, pedagogia, sociologia etc.) bem como a ampla rede social de atendimento à criança e ao adolescente, pública e privada, com sua numerosa documentação e legislação.

As instalações materiais (prédio, mobiliário e equipamentos) da SMAS, nas quais se localizava a sede dos conselhos municipais se apresentavam de modo caracteristicamente desgastada pelo uso e improvisada. As condições de funcionamento eram muito precárias: não havia sequer material de consumo (tinta para impressora, papel e cópias de xerox) à disposição dos conselheiros. Predominava uma estética da pobreza, pois o prédio era antigo, os ambientes eram improvisados e pouco acolhedores, a mobília e os equipamentos eram mal conservados e a aparência geral era desoladora. Por falta de funcionários, os arquivos e a documentação dos conselhos estavam empilhados e amontoados nos armários, sem maior organização. Tudo era velho e as instalações da SMAS tinham o aspecto triste dos seus usuários: ela transpirava pobreza, feiúra, improvisação e falta de investimentos. Do conjunto, se denotava o pouco investimento econômico numa área reconhecidamente improdutiva: a da Assistência Social.

As comissões de trabalho do CMDCA e do CMAS não eram ativas, nem se reuniam para trabalhar de modo autônomo. Elas funcionavam minimamente, quando uma entidade solicitava inscrição ou renovação da certificação emitida pelo conselho, algum conselheiro levava os documentos para ler e analisar individualmente, depois dava seu parecer. A comissão de visitas então ia inspecionar essa entidade, quando uma viatura oficial era disponibilizada para tanto, o que era bem difícil de se conseguir. Lamentavelmente, a partir de nossa experiência como conselheiro municipal, verificamos que não se esperava que realmente que os Conselhos Municipais fossem efetivos, pois suas atividades principais se resumiam a reuniões mensais ou quinzenais para discutir uma pauta de questões e promover o encaminhamento de documentação. Os conselhos geralmente tinham grandes dificuldades para implementar um Plano de Ação na direção da construção dos direitos sociais dos cidadãos. Muitas vezes, eles eram criados nos municípios apenas pela exigência do cumprimento burocrático das determinações da legislação federal e estadual que atrelou os diversos âmbitos das políticas públicas, sobretudo, o repasse de verbas, aos diversos conselhos municipais temáticos. Mas, o poder público municipal não demonstrava a menor intenção de partilhar a informação, o poder e a decisão quanto ao uso do dinheiro, dialogando com os conselheiros e muito menos de se deixar substituir pelos conselhos quanto à definição da política municipal nos diversos setores. A dirigente da SMAS não encaminhava documentos para informação e leitura prévias dos conselheiros, apenas solicitava sua assinatura em documentos e formulários prontos.

Aparentemente o que as secretarias municipais esperavam dos conselhos seria apenas um funcionamento burocrático formal e servil, sancionando a documentação oficial que devia ser expedida aos órgãos competentes, e tudo sem mais demoras ou perguntas. Não se esperava que o Conselho Municipal exercesse concreta e efetivamente suas prerrogativas e atribuições legais específicas. As secretarias municipais não manifestavam muita vontade em partilhar a gestão das políticas públicas com os conselheiros. Ouvíamos dizer que "na prefeitura, quem tinha cabeça mandava, quem não tinha, obedecia". Na verdade, algumas delas entendiam que os conselhos estavam a seu serviço e não deviam colocar obstáculos no cumprimento de seus compromissos burocráticos com as instâncias estaduais e federais, aprovando imediatamente toda e qualquer documentação que lhe fosse encaminhada. Pode ser por isso que não enviavam cópias de documentos para todos os conselheiros nem previam tempo hábil para a análise da documentação. "Tudo é para ontem" costumava ser a palavra de ordem hegemônica no serviço público: a cobrança de documentos e relatórios parecia ser aleatória e não se podia prever quando determinado relatório de solicitação de recursos ou de prestação de contas deveria ser encaminhado, visando a antecipar sua divulgação, análise, discussão e deliberação.

Os membros do CMDCA e do CMAS que são representantes do poder público e outros funcionários da prefeitura que trabalham com o conselho, a secretária executiva, assistentes sociais, advogados que assessoram a SMAS e também o CMAS, precisam ser considerados a partir da cultura organizacional específica do funcionalismo público municipal. Seu comportamento, seu desempenho como conselheiro é profundamente condicionado por tal cultura organizacional predominante na máquina pública, que poderia ser caracterizada por alguns aspectos que são comuns ao funcionalismo público em geral: era possível notar o coleguismo, o corporativismo, uma acomodação ao cargo e ao papel a desempenhar, uma complacência e uma resignação conformista diante da inoperância, da falta de agilidade, da morosidade burocrática, da falta de vontade política e do autoritarismo vertical e personalista que se observa no funcionamento da máquina administrativa municipal. Entretanto, com essa caracterização, não estamos afirmando – como pretende o senso comum hegemônico neoliberal – que como a administração pública é ineficiente, ela deveria ser substituída pela lógica empresarial privada, que seria mais eficiente. Há também um clima de medo e de persecutoriedade entre os funcionários, com relação aos seus superiores hierárquicos. Isso parece se intensificar extraordinariamente em ano de eleições. A regra predominante, informal e onipresente, parece ser "não pense, não pergunte, não questione: obedeça". "Falar em dinheiro público é tabu", diz outra das regras informais da cultura organizacional municipal. Não se deve perguntar sobre orçamentos, fundos municipais, valores de convênios federais, estaduais e municipais. Tampouco é de bom tom perguntar sobre quem gastou, onde o fez, como fez e quem foi beneficiado com tais recursos. Perguntar pela eficácia, pela resolutividade e pela qualidade do serviço está fora de questão. Procurar obter informações, perguntar, querer saber, questionar, é tornar-se perigoso para a cultura institucional, que reage persecutoriamente diante daquele que pergunta. Quanto à Conferência Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e à Conferência Municipal de Assistência Social do ano de 2009, foi notável o grau de impermeabilidade dos atores sociais e sua resistência ao tema da politização da Assistência Social, no sentido de assumi-la como política pública de fato. Assim, podemos considerar que esses eventos foram meramente burocráticos e formais, para cumprir exigências legais, e a realidade municipal continuou intacta, como se nada tivesse acontecido.

Era notório o desinteresse do poder público municipal em oferecer formação para os conselheiros: faltava-lhe estatura democrática e tradição participativa para tanto, predominando uma gestão centralizadora e clientelista. Preocupado com a formação dos membros dos conselhos municipais dos quais participávamos, compilamos uma série de documentos que gravamos num CD que distribuímos aos colegas conselheiros. Tendo solicitado pessoalmente por escrito, obtivemos junto ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), materiais e livros para formação dos conselheiros, que distribuímos para eles. Também conseguimos documentos e livros junto ao Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) para que os conselheiros se capacitassem, mas nosso esforço foi inútil: os conselheiros alegaram que não podiam ler todo aquele material, pois não dispunham de tempo para isso. Já que a SMAS não fornecia material para os conselheiros, havíamos buscado obter esse material por conta própria, solicitando-os à Brasília. Naturalmente, não pedimos autorização para o CMAS nem informamos a secretária executiva sobre tais gestões que estávamos empreendendo. Também obtivemos, apesar da enorme resistência dos funcionários da SMAS, informações sobre o orçamento municipal da Assistência Social, conseguimos uma senha para que os conselheiros pudessem acompanhar os convênios federais e estaduais do município, mas tudo isso foi em vão: eles não pareciam interessados nem em documentos nem em orçamentos públicos.

Impasses e desafios dos conselhos municipais no controle democrático das políticas públicas sociais

Os Conselhos Municipais foram criados para realizar o controle democrático das políticas públicas e também para defender e lutar pela implementação dos direitos humanos no Brasil, na década de 1980. Nesse momento histórico, havia um clima de construção democrática promovido por intensas lutas sociais no país. O tema da participação e da participação política orientava para um aprofundamento da socialização e também da radicalização da prática política no Brasil. Se a democracia foi criada na intenção de tornar visível as práticas de poder, o controle democrático popular é fundamental para um governo visível. Solapando os Conselhos Municipais como importantes mecanismos de democracia participativa, temos em nosso país, diversos elementos condicionadores: o advento do neoliberalismo e da globalização veio limitar o controle democrático e a tomada de decisões fundamentais para os Estados-nação; temos pouca tradição democrática na história brasileira, sendo que o que caracteriza nosso percurso histórico são ditaduras abertas, "(...) o autoritarismo no Estado, a cultura senhorial, o patrimonialismo, o clientelismo, a privatização do público, a tutela, o favor" (Behring & Boschetti, 2009, p. 181). Quando identificamos essas características estruturais da formação social do Estado brasileiro (Behring & Boschetti, 2009), entendemos que a elite brasileira é marcada pelo conservantismo sociocultural, político e social, por um mandonismo e paternalismo tradicionais, acostumada a utilizar a repressão policial e a dissuasão político-militar para fazer frente aos interesses das classes populares, enquanto propõe "reformas" que implicam apenas mudanças graduais e adaptações ambíguas, polarizadas por preocupações particularistas. A contrarreforma neoliberal no campo da política social no governo de Fernando Henrique Cardoso (Behring & Boschetti, 2009) veio mais uma vez promover o desmonte do discurso e das práticas democráticas que apontavam para a construção de direitos num Estado popular. Podemos afirmar que vivemos um recrudescimento da direita, num intenso movimento de "restauração" conservadora, após a euforia participacionista dos anos 80 do século XX. Não é por acaso que nesse contexto, emerge e faz sucesso o controvertido "terceiro setor" (Montaño, 2007).

Atualmente, verificamos que os governos, marcados pela forte tradição política conservadora brasileira, "querem uma sociedade civil bem - comportada, cordata, sob controle, que ao invés de apresentar demandas legítimas, contribua para a governabilidade" (Behring & Boschetti, 2009, p. 183). Para manter sua hegemonia, pode lançar mão de todos os artifícios do jogo político: cooptação por meio do clientelismo, regulamentações ilegais, hostilização de segmentos mais críticos da sociedade civil, perseguições, sabotagens etc. Nesse sentido, os Conselhos Municipais se veem, apesar da literatura e das propostas oficiais no campo das políticas públicas, enfrentados com práticas profundamente antidemocráticas (Anhucci, 2007; Paiva, Rocha & Carraro, 2010). Esse enigma se resolve quando entendemos a natureza das políticas públicas no Estado Capitalista (Santos, Ribeiro & Gomes, 2007). É possível afirmar que o Estado capitalista desempenha duas funções básicas e muitas vezes contraditórias: acumulação e legitimação. Isso quer dizer que o Estado deve tentar manter ou criar as condições em que se faça possível uma lucrativa acumulação de capital, enquanto também deve manter ou criar condições de harmonia social. A partir daí percebe-se que, mesmo quando as políticas são de cunho social, ou seja, voltadas para a legitimação do aparato estatal, estão a serviço do desenvolvimento capitalista. As políticas sociais, além de funcionarem como um paliativo, refreando a ação inconveniente da população excluída, em última instância, favorecem financeiramente a classe dominante, porque sua execução está a cargo de empresas privadas, na maioria das vezes, e seus benefícios não são distribuídos de forma justa socialmente. Na periferia capitalista isso tem se tornado mais grave, porque o Estado tem atuado no sentido da funcionalização da pobreza, com suas políticas compensatórias e assistencialistas, e, por outro lado, servido de prestamista de última instância, pelo seu orçamento, para assegurar o processo de acumulação, sobretudo na esfera rentista. Trata-se, portanto, do Estado de exceção.

Considerações finais

Por essas análises, elaboramos a categoria de "prefeiturização" dos Conselhos Municipais. Com isso, queremos afirmar que os Conselhos Municipais competem e concorrem com o poder público em áreas específicas das políticas públicas de assistência e para a infância, desempenhando inclusive, funções complementares. Muitas vezes, os gestores municipais entendem que os conselhos representam apenas uma reorganização burocrática na administração municipal e que não implicam mudanças ou transformações radicais nas formas de gestão da coisa pública, sabotando o funcionamento efetivo dos conselhos. Diziam que a realidade era bem diferente do aquilo que constava nos documentos oficiais do governo federal, pois "na prática, a teoria é outra". Naturalmente, a lógica política municipal é distinta da dos conselhos, pois estes buscam implementar políticas de modo programático, enquanto que os gestores municipais estão premidos pelo tempo de duração do mandato e precisam produzir fatos que redundem em publicidade e votos com rapidez. Os conselhos são mais lentos, não estão preocupados com interesses eleitorais e os gestores, muito pelo contrário. Diante desses impasses, o psicólogo que está interessado numa participação social crítica, precisa se instrumentalizar teórica, técnica e eticamente para ocupar com conhecimento de causa, as brechas disponíveis nos Conselhos Municipais.

Referências

Anhucci, V. (2007). O conselho municipal dos direitos da criança e do adolescente na perspectiva da participação e do controle social. Dissertação não publicada. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Estadual de Londrina, Paraná.

Assis, S. G. (Org.), (2009). Teoria e prática dos conselhos tutelares e conselhos dos direitos da criança e do adolescente. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; Educação a Distância da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca.

Behring, E. R., & Boschetti, I. (2009). Política social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez.

Benelli, S. J. (2009). A cultura psicológica no mercado de bens de saúde mental contemporâneo. Estudos de Psicologia (Campinas), 26 (4), 515-536.

Benelli, S. J., & Costa-Rosa, A. (2011). Para uma crítica da razão socioeducativa em entidades assistenciais. Estudos de Psicologia, 28(4), 539-563.

Bock, A. M. B. (Org.) (2009). Psicologia e compromisso social. São Paulo: Cortez.

Brasil, (2006). Resolução Nº 237, de 14 de dezembro de 2006. Diretrizes para a estruturação, reformulação e funcionamento dos Conselhos de Assistência Social. Brasília, DF: Conselho Nacional de Assistência Social.

Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Imprensa Oficial.

Brasil. (2004). Política Nacional de Assistência Social. Brasília,, DF. Recuperado em 20 março, 2008, de http://www.mds.gov.br/cnas/legislacao/leis.

Brasil. (2005). Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social. Brasília, DF: SNAS.

Brasil. (2007a). Cartilha SUAS 1- Orientação acerca dos Conselhos e do controle social da política pública de Assistência Social. Brasília, DF: SNAS.

Brasil. (2007b). Cartilha SUAS 2 – Implicações do SUAS e da gestão descentralizada na atuação dos conselhos de Assistência Social. Brasília, DF: SNAS.

Brasil. (2007c). Orientações para Conselheiros da Área de Assistência Social. Brasília, DF : Tribunal de Conta da União.

Brasil. (2007d). Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e Conselho Tutelar: orientações para criação e funcionamento. Brasília, DF: Programa Próconselho.

Brasil. (2007e). Parâmetros para criação e funcionamento dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente. Brasília, DF: Secretaria Especial de Direitos Humanos.

Brasil. (2010). Orientações gerais do Conselho Nacional de Assistência Social para a adequação da lei de criação dos conselhos às normativas vigentes e ao exercício do controle social no SUAS. Brasília, DF: Conselho Nacional de Assistência Social.

Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas. (2007). Referência técnica para atuação do(a) psicólogo(a) no CRAS/SUAS. Brasília, DF : Autor.

Conselho Federal de Psicologia. (2007). VI Congresso Nacional da Psicologia. Do discurso do compromisso social à produção de referências para a prática: construindo o projeto coletivo da profissão. Brasília, DF.

Conselho Federal de Psicologia. (2011). V Seminário Nacional Psicologia e Políticas Públicas - Subjetividade, Cidadania e Políticas Públicas. Brasília, DF.

Conselho Federal de Serviço Social. (2007). Parâmetro para atuação de assistentes sociais e psicólogos(as) na Política de Assistência Social. Brasília, DF : Autor.

Costa-Rosa, A. (2011). Operadores fundamentais da atenção psicossocial: contribuição a uma clínica crítica dos processos de subjetivação na saúde coletiva. Tese de Livre-Docência Não-Publicada, Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Unesp, Assis, São Paulo.

Cruz, L. R., & Guareschi, N. (Orgs.). (2009). Políticas públicas e assistência social: diálogo com as práticas psicológicas. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes.

Lei nº 08.069, de 13 de julho de 1990. (1990, 13 de julho). Dispõe sobre o estatuto da criança e do adolescente. Brasília, DF. Recuperado em 10 junho, 2008, de http://www.planalto.gov.br/ccivil/Leis/L8069.htm .

Lei nº 12.435, de 06 de julho de 2011. (2011, 06 de julho). Altera a Lei nº 8.742/1993 que dispõe sobre a Organização da Assistência Social. Brasília, DF. Recuperado em 10 dezembro, 2011, de http://www.mds.gov.br/cnas/legislacao/leis.

Montaño, C. (2007). Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez.

Paiva, B., Rocha, M., & Carraro, D. (2010). Participação popular e assistência social: contraditória dimensão de um especial direito. Katálysis, 13(2), 250-259.

Santos, R. S., Ribeiro, E. M., & Gomes, F. G. (2007). Compreendendo a natureza das políticas do Estado capitalista. Revista de Administração Pública, 41(5), 819-834.

Yamamoto, O. H. (2007). Políticas sociais, 'terceiro setor' e 'compromisso social': perspectivas e limites do trabalho do Psicólogo. Psicologia & Sociedade, 19(1), 30-37.

Recebido em 26-08-2010

Aceito em 14-10-2012

  • Anhucci, V. (2007). O conselho municipal dos direitos da criança e do adolescente na perspectiva da participação e do controle social. Dissertação não publicada. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Estadual de Londrina, Paraná.
  • Assis, S. G. (Org.), (2009). Teoria e prática dos conselhos tutelares e conselhos dos direitos da criança e do adolescente. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; Educação a Distância da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca.
  • Behring, E. R., & Boschetti, I. (2009). Política social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez.
  • Benelli, S. J. (2009). A cultura psicológica no mercado de bens de saúde mental contemporâneo. Estudos de Psicologia (Campinas), 26 (4), 515-536.
  • Benelli, S. J., & Costa-Rosa, A. (2011). Para uma crítica da razão socioeducativa em entidades assistenciais. Estudos de Psicologia, 28(4), 539-563.
  • Bock, A. M. B. (Org.) (2009). Psicologia e compromisso social São Paulo: Cortez.
  • Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Imprensa Oficial.
  • Brasil. (2007a). Cartilha SUAS 1- Orientação acerca dos Conselhos e do controle social da política pública de Assistência Social. Brasília, DF: SNAS.
  • Brasil. (2007b). Cartilha SUAS 2 – Implicações do SUAS e da gestão descentralizada na atuação dos conselhos de Assistência Social. Brasília, DF: SNAS.
  • Brasil. (2007e). Parâmetros para criação e funcionamento dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente. Brasília, DF: Secretaria Especial de Direitos Humanos.
  • Conselho Federal de Psicologia. (2007). VI Congresso Nacional da Psicologia. Do discurso do compromisso social à produção de referências para a prática: construindo o projeto coletivo da profissão. Brasília,
  • Conselho Federal de Psicologia. (2011). V Seminário Nacional Psicologia e Políticas Públicas - Subjetividade, Cidadania e Políticas Públicas Brasília,
  • Costa-Rosa, A. (2011). Operadores fundamentais da atenção psicossocial: contribuição a uma clínica crítica dos processos de subjetivação na saúde coletiva Tese de Livre-Docência Não-Publicada, Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Unesp, Assis, São Paulo.
  • Montaño, C. (2007). Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez.
  • Paiva, B., Rocha, M., & Carraro, D. (2010). Participação popular e assistência social: contraditória dimensão de um especial direito. Katálysis, 13(2), 250-259.
  • Santos, R. S., Ribeiro, E. M., & Gomes, F. G. (2007). Compreendendo a natureza das políticas do Estado capitalista. Revista de Administração Pública, 41(5), 819-834.
  • Yamamoto, O. H. (2007). Políticas sociais, 'terceiro setor' e 'compromisso social': perspectivas e limites do trabalho do Psicólogo. Psicologia & Sociedade, 19(1), 30-37.
  • Endereço para correspondência

    Silvio José Benelli. Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Campus de Assis. Avenida Dom Antonio, 2100, Parque Universitário, CEP 19806-900, Assis-SP.
    E-mail:
  • *
    Apoio e Financiamento: Fapesp.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      26 Ago 2010
    • Aceito
      14 Out 2012
    Universidade Estadual de Maringá Avenida Colombo, 5790, CEP: 87020-900, Maringá, PR - Brasil., Tel.: 55 (44) 3011-4502; 55 (44) 3224-9202 - Maringá - PR - Brazil
    E-mail: revpsi@uem.br