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Movimento, diversidade e autoria

EDITORIAL

Movimento, diversidade e autoria

Neste primeiro número de 2013 a revista Psicologia em Estudo inaugura seu novo projeto gráfico. A capa da revista foi redesenhada para incorporar em sua imagem um novo conceito, que dialoga com as discussões contemporâneas sobre a pesquisa qualitativa em ciências humanas.

Desde sua criação a revista tem a missão de publicar estudos exclusivamente qualitativos (ou qualitativos articulados com quantitativos) e de diferentes abordagens teóricas que contribuam para a problematização e desenvolvimento crítico do conhecimento produzido pela Psicologia. A articulação dessa missão com as emergentes questões no campo da pesquisa qualitativa permitiram a produção de três conceitos que organizaram a produção gráfica da nova capa: movimento, diversidade e autoria. Estes conceitos buscam traduzir em uma identidade visual os debates que integram a história de dedicação desta revista à sua missão ao presente - de tensões e avanços que se produzem no rico terreno das pesquisas qualitativas - e ao futuro - que convida os pesquisadores ao exercício inventivo de redesenhar o campo. Refletir sobre os conceitos que organizaram esta produção gráfica é um modo de delinear o cenário desses debates.

A nova capa apresenta uma mancha de tinta espalhada sobre o papel (ou tela). A abstração da forma reafirma a multiplicidade própria ao campo da Psicologia e resiste a qualquer concretização imagética que a reduza a apenas uma de suas propostas teóricas ou técnicas. Por não ser uma imagem que faça referência à educação, à clínica, às relações de trabalho ou à sociedade e por não destacar o comportamento, o inconsciente, os fenômenos ou relações sociais, por exemplo, a mancha pode representar tudo isso e ainda mais. Sua imprecisão serve para manter em questão o objeto de estudo da Psicologia e para sustentar o contínuo movimento desta ciência no sentido de ampliar suas possibilidades de contribuição para a compreensão do humano, com frequência articulando-se com outros domínios das ciências humanas, como a antropologia, a sociologia, a comunicação e a filosofia.

Por isso a imagem da mancha foi produzida de modo a enfatizar mais o movimento que a forma. Assim, a imagem não fala por si, mas registra e alude ao movimento do pintor, a um gesto que se desenhou sobre o papel. Este movimento, que se inicia no canto inferior da página, projeta-se em sentido ascendente e expansivo, portanto a imagem é metáfora de um campo de estudos em expansão, que multiplica seus desdobramentos em teorias e metodologias, articulando-se entre diversos saberes.

O sentido destes desdobramentos parece ser o de produzir conhecimento sobre a complexidade e dinamismo do humano. Cada vez mais, os estudos qualitativos registram o desafio de pesquisadores que criam dispositivos inovadores de pesquisa e realizam experimentações metodológicas na tentativa de produzir novas formas de inteligibilidade científica. São pesquisas que se dedicam menos a medir, classificar e capturar realidades estanques e mais a apreender fluxos e movimentos e a gerar compreensões dinâmicas sobre processos e transformações; menos ao pincel e à forma, mais ao movimento humano de pintar.

A cada número a mancha de tinta ganhará uma nova cor. Deste modo, o projeto estético da revista busca, por meio da variação cromática, expressar o seu compromisso com a diversidade de temas e questões. Tal qual um artista que se serve de todas as cores disponíveis na confecção de sua obra, a Revista reafirma seu compromisso de construir um espaço democrático e inclusivo, no qual a diferença seja substrato para a geração de compreensões complexas.

Neste sentido, a Revista se alinha às discussões contemporâneas em ciência que, em vez de priorizar as compreensões generalistas e uniformizantes, irão valorizar a plurivocalidade, a compreensão de fenômenos a partir de inteligibilidades locais, a valorização da nuanças históricas e sociais, bem como a sensibilidade a matizes específicos e singulares. Como tintas em uma paleta, a diferença é riqueza de criação e possibilidade de construções sofisticadas.

Por fim, a capa convida-nos a refletir sobre o lugar do artista em relação a sua obra - no caso, do pesquisador em relação ao seu texto. Desde o século XIX as produções narrativas puderam ser divididas em dois domínios distintos. De um lado a literatura – dominada pelos valores da estética, ética e humanismo e permeada pelo uso metafórico da linguagem – e de outro a ciência – que se esforçava para redigir narrativas objetivas e precisas. Marcada por esta divisão desde seu emergir na Modernidade, a Psicologia buscou produzir relatos científicos que fossem suficientemente apurados para corresponder àquilo que se tomava como uma realidade independente, externa e razoavelmente estável. Contudo, a revolução nas ciências promovida pelos desenvolvimentos de campos como estudos feministas, sociologia das ciências e linguística situou a produção científica como uma verdade produzida no interior de uma comunidade discursiva - portanto, delimitada pelas convenções linguísticas desta comunidade e comprometida com seus valores. A objetividade e a neutralidade do pesquisador foram colocadas em cheque, e desde então tornamo-nos cada vez mais atentos às implicações da voz do autor e às circunscrições presentes em nosso modo de escrever ciência. Entendemos que o conteúdo sobre o qual falamos é também governado pelo modo como nos permitimos narrar. O escrever científico perdeu seu status prescritivo e passou a constituir um desafio e uma decisão do autor, o qual tem que avaliar os efeitos do estilo que escolhe para escrever e a coerência que este estilo guarda com suas outras opções (ontológicas e epistemológicas). Explodiram assim múltiplas experimentações na escrita de estudos qualitativos, que incluem o uso de poemas, imagens, múltiplas vozes, narrativas pessoais (ou autoetnográficas), conversações escritas, produções ficcionais e textos performáticos.

Assim, os textos de pesquisas qualitativas têm se tornado cada vez mais autorais, no sentido de expressarem, em sua organização e estilo de narrar, as marcas únicas que o pesquisador neles imprimiu.

De modo semelhante, diante de um quadro de Van Gogh, Monet, Cézanne ou Pollock, vemos a cena criada pela imaginação do artista e vemos também o modo singular de cada um mover-se sobre a tela e nela gravar sua única caligrafia. Um quadro representa uma cena e apresenta um artista. A mancha de tinta na capa da Revista evoca a expressão autoral de cada pesquisador, que na produção dos estudos qualitativos procura por novas formas de narrar a ciência. A escrita científica tornou-se campo de experimentação e inventividade. Nesta proliferação de formas originais de escrita, procuramos por novos critérios para avaliar nossas produções. Além dos modos tradicionais de avaliação em ciência (objetividade, fidedignidade, neutralidade), produzimos novos critérios que hoje incluem o mérito estético, o potencial de inspirar novas pesquisas e, sobretudo, a reflexividade, entendida como a capacidade do pesquisador de situar criticamente (para si e para o seu leitor) o contexto a partir do qual ele fala, os valores que o informam e os efeitos que ele causa e almeja causar.

Sem dúvida, o desenvolvimento dos estudos qualitativos desta última década aponta para as aproximações do fazer científico com as produções artísticas. Em sua nova capa, a Revista Psicologia em Estudo quer enfatizar esta aproximação e, juntamente com seus colaboradores e autores, lançar-se no desafio de explorar esta interseção, exercício que coloca em pauta nossa capacidade inventiva, nosso compromisso com a valorização da diferença e nosso gosto pela própria reinvenção.

Prof. Dr. Murilo dos Santos Moscheta

Editor de seção

E-mail: murilomoscheta@me.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 2013
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