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Negociação de significados associados às sexualidades: análise de narrativa construída em interação

Negociación de significados asociados a las sexualidades: análisis de una narrativa

The negotiation of meanings associated to sexualities: an analysis of a narrative-in-interaction

Resumos

O objetivo deste estudo foi investigar os significados que adolescentes associam aos homens e às mulheres no campo da sexualidade. Mais do que identificar a reprodução de padrões tradicionais de gênero, buscou-se evidenciar a negociação destes por parte dos adolescentes através de relativizações e questionamentos e da construção de novos significados. Para isso, analisou-se uma narrativa construída em interação por adolescentes, em um grupo focal on-line. A análise de posicionamento empreendida revelou que os padrões tradicionais de masculinidade e feminilidade foram reproduzidos, mas também relativizados, visto que se identificaram participantes do grupo e personagens da narrativa em posições pouco tradicionais para homens e mulheres.

Gênero; sexualidade; narrativas


El presente estudio buscó investigar los significados que adolescentes asocian a los hombres y a las mujeres en el ámbito de la sexualidad. Más que identificar la reproducción de los modelos tradicionales de género, se pretende resaltar la negociación de los mismos por parte de los adolescentes a través de la relativización, el cuestionamiento y la construcción de nuevos significados. Para esto, se analizó una narrativa construida en interacción por adolescentes, en un grupo focal virtual. El análisis de posicionamiento realizado reveló que los modelos tradicionales del masculino y del femenino fueron reforzados, sino también relativizados, visto que se identificaron miembros del grupo y personajes de la narrativa en posiciones no tradicionales para hombres y mujeres.

Género; sexualidad; narrativas


The study aimed to investigate the meanings associated by teenagers to men and women in the field of sexuality. More than identifying the reproduction of traditional gender standards, we highlight the negotiation of these by adolescents through the relativization, questioning and construction of new meanings. For this, we analyzed a narrative constructed in interaction by teenagers in an online focus group. The positioning analysis undertaken revealed that traditional patterns of masculinity and femininity were reinforced but also relativized, as we identified group members and narrative characters in nontraditional male and female positions.

Gender; sexuality; narratives


ARTIGOS

Negociação de significados associados às sexualidades: análise de narrativa construída em interação

The negotiation of meanings associated to sexualities: an analysis of a narrative-in-interaction

Negociación de significados asociados a las sexualidades: análisis de una narrativa

Gabriela Sagebin BordiniI; Tânia Mara SperbII

IDoutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

IIDoutora em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade de Londres. Professor colaborador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisador 1B do CNPq

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Gabriela Sagebin Bordini. Rua Aliança, 169. Bairro Lindóia, CEP: 91050010, Porto Alegre-RS, Brasil. E-mail: charlestonbordini@yahoo.com.br

RESUMO

O objetivo deste estudo foi investigar os significados que adolescentes associam aos homens e às mulheres no campo da sexualidade. Mais do que identificar a reprodução de padrões tradicionais de gênero, buscou-se evidenciar a negociação destes por parte dos adolescentes através de relativizações e questionamentos e da construção de novos significados. Para isso, analisou-se uma narrativa construída em interação por adolescentes, em um grupo focal on-line. A análise de posicionamento empreendida revelou que os padrões tradicionais de masculinidade e feminilidade foram reproduzidos, mas também relativizados, visto que se identificaram participantes do grupo e personagens da narrativa em posições pouco tradicionais para homens e mulheres.

Palavras-chave: Gênero; sexualidade; narrativas.

ABSTRACT

The study aimed to investigate the meanings associated by teenagers to men and women in the field of sexuality. More than identifying the reproduction of traditional gender standards, we highlight the negotiation of these by adolescents through the relativization, questioning and construction of new meanings. For this, we analyzed a narrative constructed in interaction by teenagers in an online focus group. The positioning analysis undertaken revealed that traditional patterns of masculinity and femininity were reinforced but also relativized, as we identified group members and narrative characters in nontraditional male and female positions.

Key words: Gender; sexuality; narratives.

RESUMEN

El presente estudio buscó investigar los significados que adolescentes asocian a los hombres y a las mujeres en el ámbito de la sexualidad. Más que identificar la reproducción de los modelos tradicionales de género, se pretende resaltar la negociación de los mismos por parte de los adolescentes a través de la relativización, el cuestionamiento y la construcción de nuevos significados. Para esto, se analizó una narrativa construida en interacción por adolescentes, en un grupo focal virtual. El análisis de posicionamiento realizado reveló que los modelos tradicionales del masculino y del femenino fueron reforzados, sino también relativizados, visto que se identificaron miembros del grupo y personajes de la narrativa en posiciones no tradicionales para hombres y mujeres.

Palabras-clave: Género; sexualidad; narrativas.

O objetivo do presente estudo foi investigar os significados que adolescentes associam às sexualidades de homens e mulheres, evidenciando a negociação desses significados. Para isso, este trabalho fundamenta-se em abordagens que consideram que é a interação social que permite a identificação do sujeito como masculino ou feminino, através do contato com os significados referentes ao masculino e ao feminino presentes na cultura (Diamond, 2002; Louro, 2004). Em cada cultura existem padrões hegemônicos ou narrativas convencionais que definem atitudes e sentimentos apropriados para o homem e para a mulher (Connel, 1995). A força dos significados atribuídos ao masculino e ao feminino se deve ao pesado investimento que lhes é feito por instituições como a família, a escola e a lei. Tais instâncias realizam uma pedagogia que reitera as identidades e práticas hegemônicas, fortalecendo-as (Louro, 2001).

É nesse processo que se dá a articulação entre gênero e sexualidade (Louro, 2001). Na sociedade ocidental o conceito de gênero e o conceito de sexualidade andam juntos, fazendo com que as concepções sobre a sexualidade dependam dos significados associados ao homem e à mulher (Guimarães, 2009). Tais concepções e significados tendem a ser rígidos, pois, como as identidades de gênero e sexual são tradicionalmente consideradas as primeiras referências a respeito do sujeito, elas permitem menos flexibilização do que outras identidades sociais (Louro, 2001).

No mundo ocidental, os padrões que delimitam as identidades de homens e mulheres impõem valores relativos a uma sexualidade binária, heterossexual, reprodutiva e natural (Butler, 2003). Em relação aos modelos dominantes de sexualidade dos homens, estudiosos destacam que, no Brasil, um dos seus aspectos principais é a sexualidade heterossexual, que deve ser provada nos âmbitos privado e público. Valorizam-se a conquista sexual, a potência e a promiscuidade (Giacomini, 2011; Santos & Silva, 2008; Seffner, 2008). Quanto à influência dos padrões hegemônicos na sexualidade das mulheres, pesquisas têm mostrado que, no Brasil, estas devem ser discretas e não ser promíscuas. O padrão sexual da mulher também é a heterossexualidade - neste caso, associada ao amor romântico e a relacionamentos duradouros e monogâmicos (Câmara, 2007; Santos & Silva, 2008).

Apesar desse panorama, considera-se que os comportamentos, as atitudes e os sentimentos atribuídos ao homem ou à mulher – neste estudo, especificamente no campo da sexualidade – são fruto de padrões ou convenções e que, por isto mesmo, não abarcam a totalidade de significados associados ao masculino e ao feminino (Connel, 1995). Acredita-se que tal incompletude que caracteriza essas definições hegemônicas sobre ser homem e ser mulher seja resultante da participação do sujeito na elaboração permanente dessas definições. Guareschi et al. (2002) explicam que, na interação, embora o indivíduo se depare com práticas que o incitam a ser de determinadas maneiras, ocorrem resistência e negociação quanto ao que lhe é imposto, o que possibilita a produção de novos sentidos.

Nesse processo de produção e redefinição de significados destaca-se o papel da narrativa, sobretudo das narrativas construídas em interação. Na elaboração destas, os parceiros ajustam suas participações de acordo com o que acontece no momento, preocupados com se fazer entender e com aquilo que os seus interlocutores poderão pensar a seu respeito (Bamberg, 2004). Assim, com a análise de narrativas construídas em interação, o pesquisador pode compreender por que os narradores contam determinada história em um momento e em um contexto específicos (Bamberg, 2012), ou seja, que significados estão sendo produzidos, repetidos ou questionados ali.

Assim, a narrativa desponta como uma ferramenta na investigação das negociações empreendidas pelos indivíduos em relação aos significados hegemônicos. Destarte, por meio da análise de uma narrativa construída em interação, pretende-se ir além da identificação dos padrões tradicionais de gênero que estejam envolvidos nos significados atribuídos às sexualidades de homens e de mulheres. Espera-se destacar as relativizações, as resistências e os questionamentos – desde que estejam presentes – dos adolescentes a esses padrões hegemônicos.

MÉTODO

Recorreu-se a um banco de dados oriundo de uma pesquisa que investigou as concepções de adolescentes sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, cujos participantes e procedimentos são sucintamente descritos a seguir (ver Bordini & Sperb, 2012).

Participantes

Participaram 41 adolescentes, com idades entre 14 e 15 anos, alunos de uma escola privada (20 participantes) e de uma escola pública (21 participantes), ambas da zona central de Porto Alegre (RS). Os participantes eram de diversos estratos sociais, conforme os critérios de Hollingshead (1975), e foram escolhidos por conveniência.

Delineamento, instrumentos e procedimentos

A pesquisa que gerou o banco de dados utilizado seguiu um delineamento qualitativo, de caráter exploratório. Todos os participantes e seus responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que destacava que eles podiam desistir da colaboração, que esta não lhes causaria nenhum prejuízo e que seriam usados pseudônimos para resguardar suas identidades.

Os adolescentes, reunidos em grupos de aproximadamente sete estudantes da mesma escola, participaram de uma sessão de grupo focal on-line síncrono. Tais grupos focais foram realizados via internet, pelo computador, em tempo real, comunicando-se por escrito. Optou-se pelo ambiente virtual por este ser muito popular entre os jovens e porque o anonimato que lhe é característico facilita a discussão (Fox, Morris, & Rumsey, 2007). Moderados pela primeira autora deste estudo, os adolescentes narraram histórias que eles consideravam mostrar o que é ser homem e o que é ser mulher na atualidade – tendo sido este o único tópico proposto durante o grupo focal.

As narrativas foram identificadas sempre que o grupo relatava a ocorrência de uma sequência de eventos que sugerisse que algo aconteceu. Os relatos foram considerados narrativas mesmo quando eram curtos ou não tinham como foco os narradores, e referiam eventos futuros, presentes ou compartilhados, de uma forma fragmentada, entrecortada por outros tópicos (Bamberg, 2004; Georgakopoulou, 2007).

O banco de dados proveniente de tal pesquisa inclui 60 narrativas construídas a partir da interação entre os componentes dos grupos. Essas narrativas estão classificadas conforme o tema que abordam, uma vez que foram submetidas a uma análise de conteúdo (cf. Bardin, 2008). Em razão do objetivo do presente estudo, foram consideradas apenas as narrativas sobre sexualidade (42 do total de 60 narrativas).

Este também foi um estudo qualitativo. Cada uma das 42 narrativas sobre sexualidade foi lida pelo menos três vezes, para a identificação daquelas que contassem tanto com a presença de padrões tradicionais de gênero nas concepções dos adolescentes sobre as sexualidades de homens e/ou mulheres quanto com relativizações e desafios em relação a esses padrões hegemônicos. Escolheu-se, então, uma narrativa que ilustrasse a dinâmica envolvida no processo de negociação, por parte do grupo, dos significados associados às mulheres e aos homens no âmbito da sexualidade.

Esta narrativa, incluindo-se o trecho de interação grupal em meio ao qual foi produzida, foi submetida a uma análise de posicionamento (cf. Bamberg, 2002; Bamberg & Georgakopoulou, 2008) em três níveis. O primeiro nível de análise centrou-se nas posições dos personagens da narrativa: quem eram e como eles estavam posicionados uns perante os outros. O segundo nível de análise enfocou as posições dos narradores e dos seus interlocutores, isto é, quem eram os narradores, quem era a sua audiência e como se utilizaram de suas participações para se posicionarem uns diante dos outros. O último nível de análise concentrou-se nas posições dos participantes quanto aos padrões hegemônicos de gênero e à influência destes na sexualidade. Analisaram-se as posições dos personagens da narrativa, bem como as dos seus narradores e interlocutores, ambas em relação aos padrões hegemônicos, no intuito de maximizar o acesso às negociações dos significados atribuídos aos homens e às mulheres, no campo da sexualidade.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A narrativa analisada foi produzida por um grupo de sete adolescentes (três homens e quatro mulheres) da escola pública e, no banco de dados, está classificada na categoria Sexualidade, subcategoria Hipersexualização do homem. Esta subcategoria inclui narrativas acerca da associação entre ser homem e ter uma sexualidade exacerbada e de orientação heterossexual; são relatos de situações.

O trecho de interação que contém a narrativa examinada é apresentado em seu formato original de discussão realizada por escrito, no computador. As passagens retiradas do trecho estão em itálico, entre aspas, ao lado do número da linha correspondente (entre parênteses ou precedido pela palavra linha). Termos que no original pudessem causar confusão foram reescritos e estão entre colchetes, e símbolos pouco claros são seguidos pela sua definição entre colchetes. Os participantes homens são representados pela letra H e um número; e as mulheres, pela letra M e um número; no entanto não há como ter certeza do sexo dos participantes em grupos mistos, pois a comunicação virtual permite que um se faça passar pelo outro. Diante disso, os adolescentes que se apresentaram como homens ou mulheres são assim referidos no texto. Por exemplo, aqueles que se incluíram no grupo de mulheres ("os homens reclamam que nós reclamamos") ou que usaram regras de concordância nominal que flexionam palavras no feminino ("dancei sozinha") foram considerados mulheres.

É necessário contextualizar a narrativa analisada. Antes de elaborá-la, o grupo discutia sobre festas. M4 havia narrado uma história pessoal em que ela conhecera um adolescente homem em uma festa e, tempos depois, começara a namorá-lo. Quando a moderadora perguntou sobre festas e namoro, o grupo produziu uma narrativa em contraposição à história de M4. M1 contou a situação vivida por uma amiga que foi traída pelo namorado em uma festa (narrativa também categorizada em Hipersexualização do homem). A moderadora perguntou ao grupo se isso mostrava o que é ser homem; a narradora M1 confirmou, e posicionou os homens adolescentes como imaturos ("os jovens sim", "depois eles amadurecem.. eu acho"); já os adolescentes homens se esquivaram dessa pergunta, enfatizando que a questão em jogo, na situação narrada, não era ser homem, mas sim, o contexto festa ("as pessoas acabam em festa !", "festas, definitivamente, não é coisa pra casal"). M4 então os contrariou, finalizando sua narrativa anterior com o comentário de que já tinha ido a muitas festas com o namorado e nunca tivera tal tipo de problema. Em seguida, teve início o trecho de interação que contém a narrativa analisada:

1. H1: homem é ter coragem de dar um fora numa gata [porque] tá namorando com uma

2. H1: mina pior que ela, mesmo sabendo [que] a namorada nao ia descobrir

3. Pesquisadora: hum

4. H2: [uau]

5. M1: tá então, eu acho que ser homem é acordar cedo , pra ir pro trabalho e voltar

6. M1: só denoite, esperando no fim do mes o dinheiro pra sustentar a familiia

7. Pesquisadora: ja aconteceu algo assim com alguem?

8. H3: [sustentar] a familia no fim do mes?

9. M4: aconteceu com uma guri

10. H3: ta [louca]?

11. H3: eaHUEAHUEA [risos]

12. M1: ...

13. M4: guri

14. H2: oaisjoaijsoaj [risos]

15. M4: guria

16. Pesquisadora: estao aparecendo muitas ideias aqui

17. Pesquisadora: e nao necessariamente todos os homens e mulheres sao assim como estamos

18. Pesquisadora: falando

19. M1: é, eu tenho um amigo que quando tava namorando nao ficava com

20. M1: nenhuma guria que chegasse nele

21. Pesquisadora: e chegavam nele?

22. H2: esse [aí é] macho !

23. H1: isso é o normal

24. M4: mas guria chegar, [também], é pedir pra ser chamada [de] puta

25. M1: mas isso depende do caráter do cara né

26. Pesquisadora: as gurias chegavam nele?

27. M1: aham

28. H1: nada a ver

29. H1: eu acho [legal] as gurias chegarem

30. H2: [é]

31. M4: hahaha [risos]

32. H1: é legal poder dar fora [também]

33. Pesquisadora: e como era pra ele? o que ele fazia?

34. M4: é ridículo

35. M1: ...

36. M1: ah tipo, geralmente [é] uma amiga que vai

37. M1: [daí] fala

38. M4: eu não acho [legal] as [gurias chegarem]

39. M1: [ah] eu tenho uma amiga ali e tal que quer ficar contigo

40. Pesquisadora: e ele, o [que] fazia?

41. M4: [ah sim], mas não assim, nessas palavras

42. M1: dizia que nao porque tava namorando

43. H1: dependendo a mina, pegava

44. M4: e nem falar quem é diretamente

45. M2: sadijasiodjosai[risos]

46. Pesquisadora: mas nao era esse [que] nao ficava com ninguem?

47. Pesquisadora: como que pegava?

48. H1: sojisaoijasojiajsoijisao [risos]

49. M4: é,, mas um chato se intrometeu [aí]

50. M4: didaojadijdiaojdaoijdajadodjao [risos]

51. Pesquisadora: hahahahaha [risos]

52. M2: oisjdoisajdoisaj [risos]

53. H1: chato? eu? [lá lá lá]

54. M4: é ...

55. H1: mas sei lá

56. H1: o cara fica dando uma de santo

57. H1: daqui a [pouco] a mina até traiu ele?

58. Pesquisadora: e [vocês acham] que isso de nao ficar [porque] ta namorando tem a ver com ser [homem]

59. Pesquisadora: hoje?

60. H3: M4...

61. M4: tem [sim]

62. M4: [sim]

63. Pesquisadora: como assim? dando uma de santo?

64. H1: sendo fiel

65. Pesquisadora: o que é um homem santo?

66. H1: um homem fiel

67. H3: [Jesus]

68. H3: hahaah [risos]

69. M3: aushauhsuhasuh [risos]

70. M1: HIOESAHOIEHASOIEHA [risos]

71. H1: UHASUHASUHASUH [risos]

72. H3: Jesus

73. H2: sim [depois] a mina vai [lá] trai [ele] e [ele] fica com fama [de] bobo !

74. Pesquisadora: hum

75. M1: de corno

76. H3: chifrudoooooooo

77. H2: [é]

78. H1: [bah] se me traíssem eu tentaria ficar com todas amigas dela

79. H3: guampa [maneira]!!

80. M3: auhsuahsuahs [risos]

81. M4: não, se ambos se gostarem e [tiverem] confiança

82. H3: hehehe [risos]

83. M1: HIEOSAHEIOAHEOIAHEOIAH [risos]

84. M4: isso não ocorre

Entre as linhas 1 e 18 o grupo formula algumas definições de masculinidade. H1 afirma que ser homem é conseguir rejeitar uma mulher bonita para se manter fiel, mesmo no caso de sua namorada ser menos bonita e não ter como descobrir a traição. M1, então, dá outra definição, associando o homem à responsabilidade com a família. Quando a moderadora pergunta se já se passou algo assim com alguém, referindo-se à rejeição de uma mulher bonita, H3 responde em relação à participação de M1 ("[sustentar] a familia no fim do mes?"; "ta [louca]?" linhas 8 e 10) e M4 confirma que já. A moderadora estimula a negociação desses significados, sugerindo que nem todos os homens e mulheres são iguais ("não necessariamente todos os homens e mulheres são assim como estamos falando" linha 17-18). Em resposta a essa colocação da moderadora, tem início a narrativa analisada. M1 começa a contar uma história diferente sobre ser homem, que vem a ser, também, uma história diferente sobre ser mulher.

Análise das posições dos personagens

Essa narrativa, enquanto contada por M1, contém um personagem central: o seu amigo que, quando namora, não fica com ninguém. Quando a história passa a ser narrada por H1, outro personagem é citado: "a mina", namorada do amigo de M1. O amigo de M1 é o protagonista. Ele é o principal agente das ações citadas ("não ficava" - linha 19; "dizia que não" - linha 42) e receptor das ações executadas por outros ("guria que chegasse nele" - linha 20; "a mina até traiu ele" - linha 57 [grifos nossos]). É um personagem que no início da narrativa é colocado pela narradora na posição de agente, de onde partem os referidos atos. Ao final da história, quando outros participantes assumem o posto de narradores, ele passa de agente para receptor. Na relação com os outros personagens, ele é apresentado por M1 na posição de fiel e como uma pessoa que age de acordo com o que pensa. Quando H1 interfere na narrativa, o amigo ainda é colocado na posição de agente ("dependendo a mina, pegava" - linha 43); mas, ao ser posicionado como um homem fiel por H2 e H1, ele fica à mercê dos atos do outro personagem, a mina, correndo o risco de ser passado para trás ("[depois] a mina vai [lá] trai [ele] e [ele] fica com fama [de] bobo !"- linha 73).

A mina, namorada do protagonista, tem um papel coadjuvante na história, inclusive sendo referida apenas por meio dessa expressão genérica, que representa popularmente garota ou menina (Ferreira, 1986). Ela executa alguma ação somente depois da troca de narradores. Estes dão vida à personagem na sua relação com o namorado. Nessa relação, inicialmente, a mina talvez o tenha traído. Isso se depreende do uso da locução adverbial daqui a pouco – que coloquialmente funciona como um advérbio de dúvida – em "daqui a [pouco] a mina até traiu ele?" (57). Na sequência, a personagem executa a ação de traição, o que se nota pela colocação do verbo trair no presente ("a mina vai [lá] trai [ele]" - linha 73), tempo verbal que é usado para fazer referência a fatos próximos ou de realização garantida (Infante, 2005). Esse posicionamento da personagem como traidora está em desacordo com o ideal de mulher apresentado em revistas dirigidas às adolescentes brasileiras – isto é, uma mulher que tem relacionamentos duradouros e monogâmicos (Santos & Silva, 2008).

A caracterização dos personagens não é feita de modo direto, pois os narradores não qualificam explicitamente as ações executadas pelo amigo e pela mina. Tal caracterização fica subentendida em comentários do grupo. O amigo parece ser caracterizado pela narradora como um homem corajoso, como aquele que H1 define no início do trecho examinado, já que ele também tem "coragem de dar um fora numa gata [porque] tá namorando" (1). Essa característica de ter coragem está de acordo com o que se espera do homem, na cultura brasileira (Sefton, 2006).

Ademais, o amigo é caracterizado como um namorado muito fiel, a ponto de optar por perder oportunidades em que facilmente poderia relacionar-se com alguém. O amigo não corteja outras mulheres, elas é que o cortejavam, ao que ele "dizia que não porque tava namorando" (42). Com essa explicação atribuída à ação do personagem ("porque tava namorando"), a narradora posiciona-o como um homem verdadeiramente fiel – não por falta de oportunidades, mas por ter a fidelidade como um valor – e o aproxima do modelo de homem ideal: o homem confiável (Sefton, 2006).

Apesar disso, imediatamente após ser colocado nessa posição, o amigo é posicionado pelo novo narrador, H1, como infiel ("dependendo a mina, pegava" - linha 43). Em primeiro lugar, o uso da palavra dependendo, que aqui serve como advérbio de dúvida (Infante, 2005), denota que o personagem é infiel, ainda que não sempre. Em segundo lugar, a passagem "fica dando uma de santo" (56) reforça o seu posicionamento como infiel, pois a expressão dar uma de é comumente utilizada para descrever uma situação em que uma pessoa se comporta, num dado momento, de um modo que não condiz com aquilo que ela é. Além disso, a locução verbal no gerúndio (fica dando) indica um processo prolongado (Infante, 2005); ou seja, ainda que o faça com alguma constância, o amigo não é "santo", apenas se comporta como tal.

Na sequência, as hipóteses dos narradores caracterizam tanto o amigo quanto a mina, que ganha vida nesse momento da narrativa. Mina, a namorada do amigo, é colocada por H1 na posição de uma mulher possivelmente traidora e, em seguida, apresentada por H2 como uma namorada de fato traidora. O amigo, enquanto receptor das ações descritas nessas suposições, é posicionado por H1 na condição de possivelmente ter sido traído pela namorada. Logo após, na hipótese de H2, é caracterizado como alguém que certamente foi traído e assim ficou com fama de bobo.

Nessa narrativa, a sexualidade masculina é, então, significada de diferentes maneiras. O personagem homem é caracterizado, por um dos narradores, como um homem que abre mão de ficar com outras pessoas, por acreditar na fidelidade. Isso contraria o que Santos e Silva (2008) observaram acerca dos significados associados aos homens adolescentes, em revistas para o público jovem feminino. Nestas, eles aparecem como não confiáveis em uma relação amorosa, por causa dos seus instintos sexuais.

Justamente, logo depois, esse achado de Santos e Silva (2008) é parcialmente confirmado. O mesmo personagem passa a ser posicionado como um homem que não tem a fidelidade como valor; mas o seu comportamento não é atribuído aos instintos. Os novos narradores sugerem que ele é infiel para se precaver do que é conjecturado no final da narrativa: ficar com fama de bobo por estar sendo fiel enquanto é traído pela namorada. A seguir, mostra-se que essa movimentação nas posições dos personagens está a serviço dos posicionamentos dos próprios componentes do grupo.

Análise das posições dos narradores e dos seus interlocutores

A narrativa em questão possui três contadores, ou seja, é coconstruída. Ela é produzida em duas fases: a primeira tem M1 como narradora e a segunda tem H1 como narrador e H2 como um amplificador do que é dito por ele. Em cada fase da narrativa o(s) seu(s) contador(es) te(ê)m a moderadora e os outros participantes como interlocutores. Essa narrativa é construída em interação, uma vez que os participantes – mesmo os que não narram – opinam sobre os personagens e suas ações.

Conforme relatado anteriormente, tal narrativa é produzida após duas outras narrativas que se referiam ao mesmo aspecto da sexualidade (hipersexualização do homem) e ao mesmo assunto (namoro e festas). A primeira delas trazia um exemplo de homem não hipersexualizado ou promíscuo. A segunda narrativa contrastava com a primeira, ao trazer uma personagem mulher na posição de vítima de um homem traidor. A narradora dessa segunda narrativa é M1, que aproveitou uma pergunta da moderadora para posicionar os homens adolescentes como imaturos ("depois eles amadurecem... eu acho"). No final desse trecho, M4 desafiou a posição de vítima da personagem mulher, relatando ter ido a várias festas com o seu namorado sem ter sido traída.

O trecho subsequente inicia com a resposta de H1 a essas participações de M1 e M4 sobre os homens. Ele é enfático ao definir que ser homem é ser corajoso, no sentido de ser íntegro, ao rejeitar uma mulher bonita por estar namorando. Ele ressalta a característica de coragem, especificando que "a namorada nao ia descobrir [a traição]" (2). Assim, H1 abre um espaço de questionamento sobre a fidelidade enquanto valor, e, com isso, posiciona a si mesmo como corajoso e questionador. Esse seu posicionamento segue o modelo de homem ideal encontrado por Sefton (2006), isto é, racional e valente.

M1, então, atribui outro significado a ser homem. Ela associa a masculinidade à responsabilidade com a família, outra das características do homem ideal na cultura brasileira (Sefton, 2006); mas H3 desafia esse significado com veemência. Ele posiciona a moderadora como ingênua, chamando-a de louca por perguntar se alguém já tinha passado por isso (ser um homem responsável pela família). Assim, ele revela a dinâmica do grupo no trecho em questão: oposição entre homens e mulheres.

A moderadora, ao ignorar essa posição em que H3 a coloca, reforça seu posicionamento enquanto uma interlocutora diferente dos demais componentes, que a tomam por uma adulta, pesquisadora de uma universidade renomada. Ela tenta estimular a negociação dos significados trazidos pelos adolescentes, frisando que "não necessariamente todos os homens e mulheres são assim" (17-18). Desse modo, ela sugere uma variabilidade e se aproxima do grupo, ao se incluir nele com o uso do verbo estar na primeira pessoa do plural (Infante, 2005). M1, então, posiciona-se como colaboradora da moderadora, narrando uma situação que faz jus à sua proposta de relativização.

Durante a narrativa o grupo é levado a discutir sobre as mulheres que "chegam" nos homens, devido a um comentário de M4. Esta participante se mostra contrária a tal atitude ("é ridículo" - linha 34) e coloca essas mulheres na posição de "puta" (24). O curioso é que apenas uma adolescente comenta sobre isso, também se posicionando contra ("eu não acho [legal] as [gurias chegarem]" - linha 38). Isso corrobora as observações de Louro (2001) de que a mulher é hegemonicamente representada como dotada de menos interesse pela sexualidade, bem como o padrão cultural assinalado por Giacomini (2011), segundo o qual mulheres e meninas têm menos liberdade para se expressar sexualmente. Assim, nesse grupo identificam-se mulheres que reproduzem padrões de comportamento que limitam as possibilidades da própria mulher.

Alguns dos participantes homens, por outro lado, posicionam-se a favor desse comportamento ("nada a ver eu acho [legal] as gurias chegarem" - linha 28-29); no entanto, novamente percebe-se que suas participações servem para reforçar o jogo grupal de oposição entre homens e mulheres. O comentário final de H1 sobre as mulheres que chegam – "é legal poder dar fora [também]" (32) – mostra que seu objetivo não é discutir os significados de ser mulher, mas provocar as participantes.

Mais adiante M1 segue na posição de colaboradora, explicando à moderadora como as mulheres chegam nos homens. M4 também colabora, mas na posição de corretora das explicações de M1. Isso sugere uma desunião entre as adolescentes mulheres do grupo, enquanto os homens se unem para provocá-las. M1 e M4 unem-se apenas quando a primeira deixa o posto de narradora e de questionadora, no momento em que H1 toma para si o lugar de narrador e coloca as duas na posição de ingênuas.

Essa situação é importante sob dois aspectos. Em primeiro lugar, M1 parece abrir mão de sua história sem reagir, deixando momentaneamente de participar. Ela corresponde, assim, ao modelo de feminilidade, caracterizado pela obediência e docilidade (Friederichs, 2008). Em segundo lugar, a troca de narradores, a partir da passagem "dependendo a mina, pegava" (43), indica novamente o posicionamento grupal de oposição entre homens e mulheres. Mudando o final que M1 propõe para a narrativa, H1 a coloca na posição de ingênua. Simultaneamente, ele coloca M4 nessa posição, já que, no trecho precedente à narrativa analisada, ela havia deixado claro crer na confiança entre casais. Esse posicionamento das adolescentes como ingênuas em relação ao amor corrobora os achados de Santos e Silva (2008), que mostram uma associação entre o amor romântico e a feminilidade.

Não obstante, a partir desse ponto M4 se une a M1, defendendo o seu posto de narradora com a passagem "um chato se intrometeu [aí]" (49). Diante disso e da risada da moderadora em resposta a essa participação de M4, H1 se mostra menos opositor. Ele passa, assim, a se posicionar como alguém que quer colaborar com o estudo da pesquisadora, respondendo à sua pergunta ("mas nao era esse [que] nao ficava com ninguem?" - linha 46). Ele faz uma hipótese que revela a preocupação que está implícita na sua narrativa. Ele especula que, enquanto o personagem homem se comporta de maneira fiel, a personagem mulher o tenha traído. H2 segue essa linha e narra uma situação futura, na qual a mina trai o namorado e este fica com "fama [de] bobo !" (73).

Assim, pode-se cogitar por que os adolescentes homens desse grupo mostram-se tão opositores. Eles parecem não tolerar a posição em que o personagem homem é colocado pela narradora mulher adolescente. Até o momento em que é H1 quem define que ser homem é ser fiel e rejeitar mulheres, o grupo interage; mas quando é M1 quem coloca um personagem homem nessa posição, H1 e H2 unem-se para reposicioná-lo como infiel, provocando as adolescentes e gerando no grupo uma disputa entre os participantes homens e mulheres. A disputa parece dominada por eles, uma vez que elas lhes dão a palavra; mas ao final as adolescentes parecem revelar sua estratégia: permitir que os adolescentes elaborem a narrativa para, depois, debochar do personagem homem construído por eles ("de corno" - linha 75 e "auhsuahsuahs [risos]" - linha 80).

Em suma, com a análise dos posicionamentos dos participantes em relação uns aos outros, confirma-se a importância da interação entre os pares para a construção das identidades de gênero dos adolescentes (Oliveira, 2007), as quais, por sua vez, influenciarão os significados que eles associam às sexualidades de homens e mulheres. Na interação desse grupo, a narradora mulher e questionadora dá a palavra ao homem, quando este se intromete. Dois homens assumem o posto de narrador, posicionando a narradora anterior como passiva diante deles. Estes se colocam na posição de agentes, modificando o final da história, para posicionar as adolescentes do grupo como ingênuas e para evitar que o personagem homem seja colocado na posição de bobo. Finalmente, as adolescentes debocham desse personagem, deixando os adolescentes homens, implicitamente, na posição de bobos. Evidenciam-se, assim, as posições que os participantes do grupo assumem e as negociações, por parte deles, em relação aos significados associados às sexualidades de homens e de mulheres, que ora seguem os modelos hegemônicos, ora se afastam deles, ora deles se reaproximam.

Análise das posições dos participantes em relação aos padrões hegemônicos de gênero

De acordo com Oliveira (2007), na construção das identidades de gênero, além da interação com pares do mesmo sexo, é importante o relacionamento com parceiros do sexo oposto, pois oportuniza o questionamento dos modelos de gênero herdados da socialização familiar. Isso é o que se observa no grupo em questão. A possibilidade de pensar sobre o que é ser homem e ser mulher, em um grupo formado por componentes de ambos os sexos, parece ter promovido a repetição, mas, também, o questionamento de estereótipos baseados na masculinidade e na feminilidade hegemônicas.

Os posicionamentos dos personagens da narrativa ora questionam os padrões tradicionais, ora os reforçam. A personagem mulher, por exemplo, é caracterizada como uma traidora, posição que é contrária ao ideal de sexualidade feminina. Enquanto isso, o personagem homem é inicialmente posicionado como fiel, contrariando os estereótipos relativos à sexualidade masculina; no entanto, em seguida ele passa a ser posicionado como infiel, adequando-se ao modelo de homem adolescente.

Tais posições dos personagens e as variações dessas posições são esclarecidas com a análise das posições dos narradores em relação aos interlocutores. Os participantes homens posicionam-se como agentes, "intrometendo-se" na narrativa de uma adolescente e fazendo dessa narrativa e de suas participações uma provocação às participantes. Eles parecem menos preocupados com os seus posicionamentos do que com as posições em que procuram colocar as adolescentes do grupo – ingênuas e receptoras das atitudes deles. Isso ocorre em paralelo ao seu esforço em transformar a imagem do personagem da narrativa, posicionando-o como infiel.

Disso se depreende que a preocupação dos adolescentes homens com o posicionamento das participantes é semelhante à do personagem homem, ou seja, não ser "feito de bobo". Os participantes posicionam as adolescentes como passivas e ingênuas para não correrem o risco de serem encarados por elas de igual para igual. Os adolescentes e o personagem protegem-se do enfraquecimento de suas masculinidades, reforçando-as. Isso indica uma concepção de masculinidade como algo menos natural do que a feminilidade, precisando, por isso, ser cultivada e reiterada (Louro, 2001).

Na sequência, ocorre o enfraquecimento das posições das adolescentes do grupo, pois a narradora abdica do seu posto e elas parecem aceitar o novo final da narrativa proposto pelos narradores homens; mas depois acontece aquilo que os adolescentes homens possivelmente temiam. A posição em que o personagem homem foi colocado por eles é motivo de chacota das participantes mulheres. Isso confirma o papel do humor como ferramenta de resistência (Jackson & Cram, 2003), pois é em meio a risadas que M4 reposiciona-se ativamente. Contrariando os posicionamentos do amigo e da mina propostos pelos narradores, ela argumenta que "se ambos se gostarem e [tiverem] confiança" (81), "isso [traição] não ocorre" (84). Desse modo, vislumbra-se um significado alternativo para as sexualidades de homens e de mulheres, mais distante dos padrões hegemônicos de gênero.

Isso leva a pensar que, por um lado, o trecho examinado mostra quanto os significados possíveis da masculinidade são reduzidos a uma definição única e hegemônica, contraposta a uma definição inflexível de feminilidade, como explica Connel (1995). Em relação aos significados das sexualidades dos homens, por exemplo, os participantes mostraram-se pouco flexíveis; e quanto às sexualidades das mulheres, embora a análise tenha revelado uma postura mais questionadora por parte dos adolescentes, observou-se uma incapacidade do grupo para discutir as contradições levantadas acerca do feminino. Em geral, padrões rígidos e hegemônicos de masculinidade e feminilidade – principalmente em termos sexuais – foram reforçados.

Por outro lado, essa narrativa revela uma gama de significados alternativos que podem ser – e foram timidamente – atribuídos às sexualidades de homens e de mulheres, apontando para a existência de múltiplas sexualidades femininas e masculinas. A narrativa apresentou, por exemplo, uma personagem mulher com uma sexualidade mais intensa, distante do ideal de feminilidade. Ademais, apresentou um personagem homem com uma sexualidade menos intensa do que propõe a masculinidade hegemônica. Essas posições atípicas foram rechaçadas pelo grupo, mas o contexto interativo e a presença de participantes de ambos os sexos dificultaram, em alguns momentos, a retomada da mera repetição de padrões hegemônicos de gênero.

A ambivalência entre posições de gênero tradicionais no campo da sexualidade e posições que questionavam a feminilidade e a masculinidade hegemônicas revelou as negociações empreendidas pelos participantes em relação aos padrões hegemônicos de gênero. O caráter dinâmico envolvido na construção dos significados das sexualidades de homens e de mulheres evidencia o protagonismo do indivíduo nesse processo. Conforme Louro (2001) e Moita Lopes (2009), o indivíduo é um produtor de significados, um participante ativo na produção de si mesmo, não estando à mercê das identidades e práticas veiculadas pelas instituições vigentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise da narrativa revelou questionamentos e relativizações dos padrões hegemônicos de gênero. As negociações empreendidas pelos adolescentes em relação a esses padrões evidenciaram que eles repetem, reelaboram e constroem diferenças não só entre homens e mulheres, mas também entre as próprias mulheres e entre os próprios homens. Os significados que associaram às sexualidades de homens e de mulheres mostraram que não há um conjunto uniforme de homens e outro de mulheres, uma essência do gênero ou da sexualidade que exista por si só, fora de um contexto (Moita Lopes, 2010).

Parece que a formulação da narrativa em uma situação interacional estimulou tais flexibilizações, ainda que momentaneamente. Coconstruindo a narrativa, os adolescentes buscaram posicionar-se de determinadas maneiras diante dos componentes do grupo e da moderadora, preocupados com o modo como pareceriam aos olhos da audiência (Bamberg, 2002; 2004). As posições em que colocaram os personagens e a si mesmos, em geral, estavam em linha com a masculinidade e a feminilidade tradicionais, mas por vezes distanciaram-se destas. Isso revela a importância da linguagem na negociação dos padrões hegemônicos de gênero, confirmando que, por meio dela, pode-se oferecer resistência ao que está estabelecido e fixado (Butler, 1999), abrindo espaço para o novo.

Possivelmente, esse espaço para o novo foi fomentado pelo contexto de produção da narrativa analisada. Como explica Moita Lopes (2010), mesmo o discurso escrito pode ser um instrumento mediador para a construção de significados, já que hoje a tela do computador tem se configurado como um espaço de negociação de significados. Além disso, a própria composição do grupo focal em questão pode ter aberto espaço para questionamentos e relativizações. A reunião de homens e mulheres em um mesmo grupo parece ter estimulado um debate acerca das posições em que os participantes se colocavam e colocavam os outros componentes. Cogita-se que, com um moderador que buscasse não apenas facilitar a discussão, mas também a flexibilização das masculinidades e feminilidades, o grupo focal teria contribuído mais ainda para a ampliação dos significados associados às sexualidades de homens e mulheres.

Ressalta-se, não obstante, que a narrativa analisada é representante de apenas um dos diversos momentos em que estão se construindo os significados das sexualidades de homens e de mulheres. Lembra-se, também, que esse processo ocorreu em um contexto específico – diante de um grupo de pares, em uma situação artificial proposta por uma pesquisadora - portanto as negociações dos padrões hegemônicos de gênero aqui identificadas também não são únicas e independentes do contexto. Se outras narrativas tivessem sido analisadas em profundidade, outros resultados poderiam ter sido obtidos.

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Recebido em 21/03/2012

Aceito em 23/08/2012

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  • Endereço para correspondência

    Gabriela Sagebin Bordini. Rua Aliança, 169. Bairro Lindóia, CEP: 91050010, Porto Alegre-RS, Brasil.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013

    Histórico

    • Recebido
      21 Mar 2012
    • Aceito
      23 Ago 2012
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