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O discurso pastoral-gerencial em O monge e o executivo

Pastoral management discourse in The servant

El discurso de gestión pastoral en La paradoja

Resumos

Este trabalho analisa o discurso pastoral-gerencial de O monge e o executivo (James Hunter), identificando suas características e funções e o modo como se articula com o "novo espírito do capitalismo" (Boltanski & Chiapello). Por meio da Análise de Discurso Crítica (Fairclough) são discutidos aspectos do gênero híbrido de autoajuda e gerência espiritualizada, a representação de liderança servidora e os potenciais efeitos de subjetivação desse tipo de livro. Ao definir a gerência em termos de autodesenvolvimento moral e espiritual e limitar-se à esfera das relações interpessoais, a narrativa é investida ideologicamente, tendendo a transformar problemas estruturais e organizacionais em questões privadas e espirituais, da responsabilidade dos indivíduos. Neste sentido, o texto de Hunter parece reforçar as ideologias individualistas e as visões essencialistas do "eu", as quais responsabilizam os indivíduos não só por sua própria empregabilidade, mas também por sua salvação pessoal e pelo sucesso da empresa.

Ideologia; liderança; análise de discurso crítica


This article analyses the pastoral-managerial discourse of James Hunter's The servant identifying its characteristics and functions, and how it is articulated to the "new spirit of capitalism" (Boltanski & Chiapello). Using Fairclough's Critical Discourse Analysis approach, we discuss aspects of the hybrid genre of self-help and spiritual management, the representation of the servant leadership, and potential effects of subjectivization of that kind of book. By defining management in terms of moral and spiritual self-development and limiting to interpersonal relations, the narrative is ideologically invested, tending to turn structural and organization problems into private spiritual issues for which the individual is responsible. In this sense, Hunter's text seems to reinforce the individualistic ideologies and essentialist views of the "I" that assign responsibility to individuals for not only keeping their jobs, but also for their personal salvation and business success.

Ideology; leadership; critical discourse analysis


Este trabajo analiza el discurso de la gestión pastoral de La paradoja (James Hunter), identificando sus características y funciones y cómo se articula con el "nuevo espíritu del capitalismo" (Boltanski & Chiapello). Utilizando Analisis Crítico del Discurso (Fairclough), son discutidos los aspectos del género híbrido de auto-ayuda y gerencia espiritual, la representación del liderazgo de servicio y los potenciales efectos de subjetivación de este tipo de libro. Cuando define la gestión em términos de auto-desarollo moral y espiritual y se limita a la esfera de las relaciones interpersonales, la narración resulta ideologica con tendencia a cambiar problemas estruturales y de organización en asuntos espirituales privados de la responsabilidad de las personas. Por lo tanto, el texto de Hunter parece reforzar las ideologias individualistas y esencialistas que responsabilizan los individuos no sólo por sua propia empleabilidad sino también por su propia salvación personal y éxito de la companhia.

Ideologia; liderazgo; analisis de discurso crítica


ARTIGOS

O discurso pastoral-gerencial em O monge e o executivo1 1 Apoio financeiro: Capes/Propag por meio de bolsa de mestrado concedida à segunda autora

Pastoral management discourse in The servant

El discurso de gestión pastoral en La paradoja

Idilva Maria Pires GermanoI; Danielle Rebouças SáII

IDoutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. Professora Associada do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, Brasil

IIMestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará. Psicóloga Clínica

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Idilva Maria Pires Germano. Rua Monsenhor Catão, 948/302, CEP: 60175-000, Fortaleza-CE, Brasil. E-mail: idilvapg@ufc.br

RESUMO

Este trabalho analisa o discurso pastoral-gerencial de O monge e o executivo (James Hunter), identificando suas características e funções e o modo como se articula com o "novo espírito do capitalismo" (Boltanski & Chiapello). Por meio da Análise de Discurso Crítica (Fairclough) são discutidos aspectos do gênero híbrido de autoajuda e gerência espiritualizada, a representação de liderança servidora e os potenciais efeitos de subjetivação desse tipo de livro. Ao definir a gerência em termos de autodesenvolvimento moral e espiritual e limitar-se à esfera das relações interpessoais, a narrativa é investida ideologicamente, tendendo a transformar problemas estruturais e organizacionais em questões privadas e espirituais, da responsabilidade dos indivíduos. Neste sentido, o texto de Hunter parece reforçar as ideologias individualistas e as visões essencialistas do "eu", as quais responsabilizam os indivíduos não só por sua própria empregabilidade, mas também por sua salvação pessoal e pelo sucesso da empresa.

Palavras-chave: Ideologia; liderança; análise de discurso crítica.

ABSTRACT

This article analyses the pastoral-managerial discourse of James Hunter's The servant identifying its characteristics and functions, and how it is articulated to the "new spirit of capitalism" (Boltanski & Chiapello). Using Fairclough's Critical Discourse Analysis approach, we discuss aspects of the hybrid genre of self-help and spiritual management, the representation of the servant leadership, and potential effects of subjectivization of that kind of book. By defining management in terms of moral and spiritual self-development and limiting to interpersonal relations, the narrative is ideologically invested, tending to turn structural and organization problems into private spiritual issues for which the individual is responsible. In this sense, Hunter's text seems to reinforce the individualistic ideologies and essentialist views of the "I" that assign responsibility to individuals for not only keeping their jobs, but also for their personal salvation and business success.

Key words: Ideology; leadership; critical discourse analysis.

RESUMEN

Este trabajo analiza el discurso de la gestión pastoral de La paradoja (James Hunter), identificando sus características y funciones y cómo se articula con el "nuevo espíritu del capitalismo" (Boltanski & Chiapello). Utilizando Analisis Crítico del Discurso (Fairclough), son discutidos los aspectos del género híbrido de auto-ayuda y gerencia espiritual, la representación del liderazgo de servicio y los potenciales efectos de subjetivación de este tipo de libro. Cuando define la gestión em términos de auto-desarollo moral y espiritual y se limita a la esfera de las relaciones interpersonales, la narración resulta ideologica con tendencia a cambiar problemas estruturales y de organización en asuntos espirituales privados de la responsabilidad de las personas. Por lo tanto, el texto de Hunter parece reforzar las ideologias individualistas y esencialistas que responsabilizan los individuos no sólo por sua propia empleabilidad sino también por su propia salvación personal y éxito de la companhia.

Palabras-clave: Ideologia; liderazgo; analisis de discurso crítica.

RETÓRICA ESPIRITUAL E AUTOAJUDA NO CAMPO DA LIDERANÇA

Desprezados muitas vezes como literatura menor, sem valor acadêmico ou artístico, os livros classificados genericamente como de autoajuda (incluindo seus subgêneros fronteiriços) não param de alimentar um mercado bilionário, nem de difundir sua retórica individualista e "positiva" em praticamente todas as esferas da vida social (Woodstock, 2007). Especialmente a partir da década de 1980, o discurso da autoajuda vem revelando um crescente foco na espiritualidade e numa noção mais íntima e pessoal de religiosidade. O "eu interior" passa a ser locus de valor moral e verdade, bem como de sabedoria e poder transformador.

Com efeito, o discurso híbrido de espiritualidade, psicologia positiva e motivação também se faz presente nas obras que abordam liderança e gerência. Como mostram pesquisas recentes, obras populares de administração, muitas vezes escritas por celebridades do meio, ajudam a disseminar valores, princípios e modas que podem influenciar significativamente futuras iniciativas para a mudança organizacional (Ten Bos & Heusinkveld, 2007, Heusinkveld & Bender, 2012).

Recorrendo a várias tradições religiosas - como o cristianismo, o budismo e o judaísmo -, mas também a saberes científicos popularizados, a gerência espiritual integra um movimento chamado de desenvolvimento da gestão espiritual (spiritual management development ou SMD, em inglês), termo que reúne o conjunto de tais práticas e tendências (Bell & Taylor, 2004). Esse movimento pretende colocar a autodescoberta e a elevação espiritual a serviço do incremento dos negócios. Suas principais premissas são que o "reconhecimento e realização dos recursos internos de um indivíduo fornecem um meio de melhorar o desempenho organizacional" e que "o potencial humano pode ser aproveitado para servir a propósitos específicos de uma organização." (Bell et al., 2004, p. 441). Em face da penetração de obras de gestão espiritual, é importante discutir os efeitos de subjetivação dessa retórica híbrida e seus investimentos ideológicos.

Este artigo tem como objetivo analisar um dos livros mais vendidos do país, O Monge e o Executivo: uma história sobre a essência da liderança, de James Hunter (2004). O texto defende uma noção de liderança que se baseia em valores espirituais e morais, valorizando especialmente certos atributos pessoais do líder comprometido em servir outras pessoas. A noção de liderança "a serviço" sustenta que o objetivo primário da empresa deveria ser um impacto positivo em seus empregados e na comunidade, encorajando valores como confiança, humildade, perdão, integridade, bondade, paciência e compaixão. Para Fry e Kriger (2009), a "liderança servidora consiste em ajudar as pessoas a descobrir sua alma interior, ganhando e mantendo a confiança dos outros, valorizando o serviço sobre o interesse pessoal e a modelagem do papel da escuta eficaz." (p. 1681). Neste sentido, o líder considerado mais eficiente é aquele mais interessado em servir aos demais.

A modelação discursiva do gerente em líder servidor opera no atravessamento de linguagens dos campos econômico, religioso e psicoterápico com base na privatização de relações antes concebidas como essencialmente públicas. Esse modo de "praticar" a linguagem gerencial produz novos efeitos de sentido no domínio das relações de trabalho contemporâneas e, associada a um conjunto de outras práticas discursivas e não discursivas, tem poder substancial de modificar a cultura organizacional e os modos de subjetivação do trabalhador. Com efeito, ultimamente as práticas comunicativas nas organizações vêm recebendo bastante atenção, assinalando que mudanças em processos laborais são, em parte, alcançadas por usos estratégicos de repertórios e narrativas (Wodak, Kwon, & Clarke, 2011, Fenton & Langley, 2011, Prasad, Prasad & Mir, 2010, Phillips, Sewel & Jaynes, 2008).

Se as teorias científicas atuais sobre liderança demonstram interesse crescente pela espiritualidade no local de trabalho (Izak, 2012, Fry & Kriger, 2009, Bell & Taylor, 2004), a análise de uma obra de grande vendagem e cuja temática é a liderança servidora nos parece de particular importância, uma vez que pode iluminar o modo como ajuda a constituir, disseminar e legitimar um estilo de gerência interiorizada e espiritualizada na atual empresa capitalista.

Sob o enfoque da análise crítica do discurso, o intuito deste trabalho é identificar as características e funções do discurso pastoral-gerencial construído no texto, analisar como este se articula com tendências da produção discursiva da sociedade contemporânea e discutir seus potenciais efeitos de subjetivação.

MOLDURAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS

A análise de O monge e o executivo, aqui proposta, funda-se principalmente no quadro teórico-metodológico da Teoria Social do Discurso, uma vertente da Análise de Discurso Crítica (ADC) formulada por Fairclough (2001; 2003), e na sociologia do "novo espírito do capitalismo" proposta por Boltanski e Chiapello (1999/2009).

A ADC é adequada ao problema aqui proposto, uma vez que focaliza a pesquisa social crítica sobre as práticas discursivas na modernidade tardia, "período em que a linguagem ocupa o centro do modo de produção do capitalismo." (Resende & Ramalho, 2006, p. 23). As práticas discursivas envolvem os processos sociais de produção, distribuição e consumo textual, exigindo referência aos ambientes econômicos, políticos e institucionais particulares nos quais o discurso é gerado. A ADC contribui particularmente para compreender como as transformações de processos sociais e culturais mais amplos na atualidade estão dialeticamente ligadas a mudanças nos usos da linguagem.

A análise do processo discursivo baseia-se no modelo tridimensional de discurso, composto por texto, prática discursiva e prática social. A última dimensão, a mais abrangente, inclui as demais, de modo que as práticas discursivas mantêm uma relação mediadora entre texto e práticas sociais. A ADC considera o texto um momento das práticas sociais mais amplas. Como parte de práticas discursivas, o texto é dialeticamente entendido como produto e produtor dessas práticas sociais, que também envolvem elementos não discursivos. O significado de um texto deriva não apenas das palavras que ele contém, mas também do modo como essas palavras são usadas, de seu uso estratégico, de sua referência aos ambientes particulares em que são geradas e dos sentidos políticos e ideológicos que elas veiculam em um contexto social particular.

A ADC é apropriada para a investigação da literatura de autoajuda e gestão empresarial espiritual como fenômeno tardo-moderno, uma vez que permite compreender como suas características textuais e sua utilização em certos contextos se articulam a formas contemporâneas de reprodução e de transformação social. Neste sentido, a abordagem pode elucidar como as transformações pós-fordianas da esfera produtiva são significadas numa nova ordem de discurso global, que cria novos valores culturais sobre o trabalho e a gestão empresarial, como os imperativos da automotivação e adaptabilidade dos trabalhadores e a autonomia e autenticidade nas relações entre gerentes e subordinados.

A análise crítica do discurso em textos de autoajuda e gerência espiritual passa necessariamente pela investigação dos tipos de significado produzidos e suas funções em contextos comunicativos particulares. Fairclough (2003) sugere três tipos de significado operando no discurso: o significado acional (modo de agir, interagir), o significado representacional (modo de representar, designar) e o significado identificacional (modo de ser ou identificar-se). O discurso figura dialética e simultaneamente nas práticas sociais nos três tipos de significado. Esses três tipos correlacionam-se, respectivamente, a gêneros discursivos, discursos e estilos. Em resumo,

Gêneros discursivos são, portanto, maneiras relativamente estáveis de agir e interagir discursivamente na vida social. Discursos são maneiras relativamente estáveis de representar aspectos do mundo, de pontos de vista particulares. Estilos, por fim, são maneiras relativamente estáveis de identificar, discursivamente, a si e a outrem. (Ramalho & Resende, 2006, p. 44).

No nível do gênero, a questão para o analista de discurso é como o texto "figura na ação e interação social e contribui para elas em eventos sociais", especialmente no âmbito das transformações associadas ao novo capitalismo (Fairclough, 2003: p. 65). Neste sentido, pode-se perguntar em que medida certos textos de autoajuda e gerência espiritual (como O monge e o executivo) exibem peculiaridades de gênero cujas funções remetem às novas ideologias e estratégias de poder na atual configuração das relações de trabalho.

O significado acional também pode ser investigado mediante o estudo da intertextualidade. Segundo Fairclough (2001), a categoria intertextualidade refere-se basicamente à "propriedade que têm os textos de ser cheios de fragmentos de outros textos, que podem ser delimitados explicitamente ou mesclados e que o texto pode assimilar, contradizer, ecoar ironicamente, e assim por diante" (p. 114). Como argumentam Resende e Ramalho (2006), a representação de outros textos ou vozes não é mera questão gramatical, mas um "processo ideológico cuja relevância deve ser considerada" (p. 67), uma vez que pode produzir efeitos valorativos ou depreciativos.

Segundo Fairclough (2003), o significado representacional está relacionado ao modo de designar aspectos do mundo físico ("seus processos, objetos, relações, parâmetros espaciais e temporais"), mental ("pensamentos, sentimentos, sensações") e social (p. 134). No nível representacional, perguntamos como o discurso de O monge e o executivo configura certos atores sociais, relações sociais e realidades psíquicas e como exprime certos "projetos de mudança do mundo de acordo com perspectivas particulares." (Resende & Ramalho, 2006, p. 71).2 2 O significado identificacional relaciona-se à maneira de identificar a si mesmo e aos outros e está associado aos estilos. Por razões de espaço, neste trabalho não serão analisados aspectos vinculados ao significado identificacional e ao estilo da obra em estudo

As transformações do trabalho e a disseminação de novos valores na esfera produtiva têm sido associadas à inculcação do que Boltanski e Chiapello (1999/2009) chamam de "novo espírito do capitalismo". Inspirados no clássico texto de Max Weber A Ética protestante e o Espírito do capitalismo (1904/1997), os autores compreendem o "espírito do capitalismo" como uma ideologia que varia nas diferentes formas de desenvolvimento desse modo de produção – o capitalismo burguês do fim do século XIX ("primeiro espírito"), o industrial ("segundo espírito") e o pós-industrial ("terceiro espírito") – fornecendo as razões ou justificativas para que as pessoas se engajem nesse sistema. Esse espírito – que envolve a noção de ideologia como um "conjunto de crenças compartilhadas, inscritas em instituições, implicadas em ações e, portanto, ancoradas na realidade" – é necessário para a sustentação da ordem capitalista, legitimando modos de ação coerentes com ela (Boltanski et al., p.33).

Desde os anos 80 do século XX um "novo espírito" ou ordem de discurso se apresenta na vida social, disseminando novas justificativas sobre o estímulo, a justiça e a segurança que o capitalismo pode oferecer tanto para os indivíduos quanto para as coletividades. O estímulo refere-se a como o sistema pode ajudar alguém a se desenvolver e como pode gerar entusiasmo em quem adere a ele (geralmente em termos de "liberação"). A justiça ou equidade refere-se a como o capitalismo é coerente com uma noção de justiça, servindo ao bem comum. Por fim, a segurança refere-se às formas de garantia pessoal e social que o sistema pode fornecer. Assim, para vincular as pessoas ao capitalismo de forma bem-sucedida, a ideologia precisa responder a essas três questões: "O que é estimulante no capitalismo?"; "Como fornece segurança?"; "Como assegura justiça?" (Chiapello & Fairclough, 2002, p. 188).

O novo espírito do capitalismo, na atual fase de acumulação flexível - de redes articuladas de empresas e de precarização do trabalho -, é particularmente visível na literatura de gestão empresarial, cuja função principal é prescrever como se devem tocar os negócios, fornecendo aos executivos preceitos e exemplos paradigmáticos, geralmente em resposta à crítica e em contraponto a modos de administrar de épocas anteriores, considerados obsoletos e ineficazes. Neste sentido, o espírito que vem se instaurando nas últimas décadas é tributário da crítica artística e da contracultura da década de 1960, cujas reivindicações por maior autonomia e repúdio às hierarquias foram incorporadas ao discurso de gestão, ajudando a recompor as formas de justificação moral para o capitalismo em reestruturação. Esse novo espírito vem inculcando, na dimensão do estímulo, o fim da chefia autoritária, a inovação, a criatividade e a mudança permanente. Na dimensão da justiça, vem defendendo uma nova forma de meritocracia, valorizando a mobilidade, a habilidade de manter-se conectado ou "em rede" e de se envolver constantemente em novos projetos. Na dimensão da segurança, no lugar dos planejamentos de longo prazo, das carreiras e do sistema de bem-estar social, são defendidos os recursos de autoajuda para os trabalhadores adaptáveis que sabem cuidar de si (Chiapello & Fairclough, 2002).

No que tange à dimensão da justiça, os autores argumentam que um regime justificatório "conexionista" ou "orientado para o projeto" vem emergindo especialmente desde a década de 1990, propagando os ideais de "adaptabilidade, flexibilidade, polivalência, sinceridade nos encontros face a face, habilidade para espalhar os benefícios de conexões sociais, para gerar entusiasmo e aumentar a empregabilidade dos membros da equipe" (Chiapello & Fairclough, 2002, p. 191). Em contraste, certos modos de ser e agir deveriam ser evitados: "inabilidade de se envolver, de confiar nos outros, de comunicar-se; mentalidade fechada, intolerância, estabilidade, apego demasiado às próprias raízes e rigidez." (p. 191). No campo da gerência, isso implica que o líder ideal deve exibir as boas qualidades de forma não oportunista ou egoísta, mas de modo a contribuir para o bem comum. Como afirmam os autores, nesse discurso, o grande líder "não lidera de forma autoritária, como fez o chefe hierárquico, mas administra a equipe ouvindo os outros com tolerância e respeitando suas diferenças" (p. 192).

O terceiro espírito do capitalismo, com seu regime justificatório-conexionista, encarna-se no texto de Hunter em estudo, deixando transparecer aspectos ideológicos em curso no campo laboral que merecem análise crítica.

Corpus

O Monge e o Executivo (o título original é The servant: a simple story about the true essence of leadership) é uma obra híbrida em termos de gênero, muitas vezes classificada como literatura de "autoajuda" e "esoterismo", embora também integre a crescente linha editorial do gerencialismo para as massas, que alguns chamam de pop-management (Carvalho, Carvalho & Bezerra, 2010). É responsável pelo sucesso editorial do autor, James Hunter, que só no Brasil vendeu 2,4 milhões de exemplares. Autor consagrado no gênero, com traduções em mais de doze línguas, James Hunter é ainda consultor da J.D. Associados LLC, empresa de consultoria de relações de trabalho e treinamento, em Michigan, nos Estados Unidos. Além disso, desempenha atividades de instrutor e palestrante, principalmente na área de liderança funcional e organização de grupos comunitários, segundo seu sítio na internet (www.jameshunter.com).

Adotando a forma romanesca, O Monge e o Executivo propõe uma nova cultura de liderança, baseada na autoridade servidora – aquela que atende às "legítimas necessidades" dos subordinados - e não, no "velho paradigma" do poder. Na liderança servidora o verdadeiro líder é a pessoa que serve aos subordinados, criando as condições para que eles deem o melhor de si de boa vontade, e não por coerção. Conquistar os corações e as mentes dos empregados implica abandonar um estilo de gerência punitiva, opressora e de intimidação, substituindo-a por uma atuação voltada para as necessidades dos liderados - de ser ouvido, ser apreciado, ter limites. Essa mudança teria o poder de influenciar os subordinados a doar-se à organização.

A obra caracteriza-se por disseminar, por meio de uma narrativa ficcional e alegórica, os conceitos, teorias e técnicas organizacionais explorados pelo autor em sua longa experiência de consultoria e treinamento em Recursos Humanos. Neste sentido, é um texto que serve a propósitos pedagógicos e doutrinários, e não propriamente literários.

O texto relata o breve retiro espiritual do narrador, John Daily, um executivo em crise, a fim de aprender mais sobre liderança. O executivo, um "superocupado gerente-geral de uma grande indústria", vem enfrentando problemas no trabalho, associados ao seu estilo de administrar, e também em casa, com os filhos e a mulher. No retiro, participam outras pessoas em cargos de liderança: um ministro batista, uma diretora de escola, um sargento do Exército, uma treinadora de equipe esportiva, e uma enfermeira-chefe de hospital. No mosteiro, o narrador e os demais personagens participam de atividades em grupo em que são instruídos por Simeão, um frade que havia sido um executivo famoso (Leonard Hoffman) nos círculos empresariais, por sua capacidade de motivar equipes e dirigir várias companhias ao sucesso. A narrativa centra-se nos diálogos conduzidos por Simeão, levando o narrador e os participantes a rever suas ideias e atitudes sobre liderança.

O texto é composto de um prefácio do autor, o prólogo, sete capítulos (As definições, O velho paradigma, O modelo, O verbo, O ambiente, A escolha, A recompensa) e epílogo. O primeiro capítulo redefine certos conceitos sobre liderança, reforçando qualidades consideradas mais adequadas ao líder no atual cenário laboral, como servidão, humildade, compromisso e respeito. O segundo capítulo critica o velho paradigma de liderança, baseado no estilo piramidal de administração, em cujo topo se encontra o chefe/presidente e, no final, os clientes. O terceiro capítulo propõe uma inversão desse modelo de liderança, defendendo que para liderar é preciso servir e suprir as necessidades das pessoas lideradas. No quarto capítulo discute-se o que significa amar os subordinados, apresentando a noção de amor-ágape, fator essencial na verdadeira liderança. Nos capítulos quinto e sexto debate-se a dificuldade, para o líder, de colocar em prática a atitude servidora, ensinando sobre o papel da vontade e da disciplina no desenvolvimento dos novos hábitos. As vontades seriam as escolhas que alguém faz para aliar suas ações com suas intenções. Para finalizar, o autor apresenta as recompensas obtidas pelo líder ao adotar, embora com esforço e sacrifício, esses princípios: satisfação e dedicação mútua dos liderados e felicidade pessoal.

Nossa análise do texto volta-se especialmente para a mescla de gêneros que caracteriza a obra: seus aspectos de intertextualidade, sua representação da liderança e do líder como "servidores" e o vínculo desse discurso com uma nova ordem discursiva mais ampla, que marca o atual estágio de desenvolvimento do capitalismo.

Entendemos que a análise textual é inevitavelmente seletiva. As dimensões aqui privilegiadas, longe de esgotarem as possibilidades de análise do texto investigado, contribuem para elucidar o modo como uma literatura situada entre a autoajuda e o gerencialismo favorece certos modos de ser, agir e nomear no campo laboral.

GERÊNCIA PASTORAL: GÊNERO, DISCURSO E O NOVO ESPÍRITO DO CAPITALISMO EM O MONGE E O EXECUTIVO

O primeiro aspecto que chama a atenção do leitor de O monge e o executivo é seu caráter híbrido em termos de gênero, indicativo de certos conflitos e reconfigurações por que passa hoje o campo do trabalho e administração. O livro de Hunter é assinalado como um desses artefatos de gênero indistinto produzidos pela atual cultura do gerencialismo que divulgam noções pasteurizadas sobre métodos administrativos, em linguagem prescritiva e ideologizada (Wood Jr & de Paula, 2006; Carvalho, Carvalho & Bezerra, 2010).

Adotando tal linguagem, O monge e o executivo apresenta-se como um manual de autoajuda pastoral-gerencial que orienta mudanças no âmbito da gestão de recursos humanos. Como literatura de autoajuda e representante da corrente de SMD, mantém as características consolidadas do gênero: mescla de concepções sobre o poder pessoal, orientação espiritual e religiosidade, aconselhamento psicológico e tecnologias de modificação de comportamento, entre outras (Rüdiger, 1996). Embora o livro não se destine exclusivamente a um público empresarial, sua ênfase é a administração de pessoas em esferas de interação profissional.

Na argumentação de Simeão-Hunter, os problemas e as soluções da liderança são atribuídos fundamentalmente ao âmbito das relações interpessoais, distanciando-se, assim, dos mecanismos estruturais que hoje condicionam os problemas do trabalho, pelos quais a proposta se reduz ao estabelecimento de relações "saudáveis" entre líderes e subordinados. A empreitada dos ocupantes de cargos gerenciais implica, por sua vez, uma jornada espiritual, o escrutínio da interioridade e a busca de um sentido moral para a tarefa de lidar com seres humanos sob sua responsabilidade. O líder deve servir a seus subalternos em suas necessidades legítimas (e não necessariamente atender às suas vontades), influenciando-os a segui-lo voluntariamente. As mudanças de atitudes e comportamentos dos líderes, ao final da travessia da autoaprendizagem, devem se tornar inconscientes como um hábito incorporado.

Uma ilustração do investimento ideológico do gênero de autoajuda pastoral-gerencial e de seu discurso da liderança servidora é o tratamento dado no texto à questão sindical. O principal motivo para o narrador empreender o retiro-treinamento foi justamente sua incompetência para solucionar uma reivindicação trabalhista evitando a interferência do sindicato. Discutindo a diferença entre poder e autoridade, o guru Simeão explica a inquietação dos trabalhadores como reação a formas ou estilos de interação coercitivos, não "saudáveis":

(...) O fenômeno que ocorre frequentemente com os adolescentes, que chamamos rebeldia, é muitas vezes uma reação ao poder que os dominou dentro de casa por muito tempo. A mesma coisa acontece com os negócios. A inquietação de um empregado é muitas vezes uma "rebeldia" disfarçada.

De repente senti náuseas ao pensar no comportamento de meu filho e no movimento sindicalista lá na fábrica." (Hunter, 2004, p. 30-31)

A associação entre reivindicação dos trabalhadores e rebeldia adolescente não é arbitrária. As relações interpessoais não conflitivas e o papel individual do líder em promovê-las são ratificados, configurando em termos "micro-" os conflitos macroestruturais entre capital e trabalho:

Famílias saudáveis, equipes saudáveis, igrejas saudáveis, negócios saudáveis e até vidas saudáveis falam de relacionamentos saudáveis. Os líderes verdadeiramente grandes têm essa capacidade de construir relacionamentos saudáveis.

Isso mesmo, John.(...) o mesmo princípio se aplica aos empregados. Agitação, transferências, greves, baixo moral, baixa confiança e baixo compromisso são meros sintomas de um problema de relacionamento. As necessidades legítimas dos empregados não estão sendo satisfeitas. (Hunter, 2004, p.38)

Negociando o significado do que é importante nas organizações como questão de "relacionar-se saudavelmente", o texto de Hunter suprime efetivamente a dinâmica do poder, isto é, oculta o fato de que o exercício das atividades profissionais, em posições de mando ou subalternas, envolve a dependência de recursos e facilidades que estão desigualmente distribuídos entre os atores sociais. Entre outros meios, o discurso da liderança servidora reduz tal desigualdade entre os atores sociais colocando entre parênteses a natureza e origem das "necessidades legítimas" dos empregados, que devem ser objeto de atenção dos gestores. É interessante notar como as necessidades de empregados, donos de empresa e acionistas são igualados na ideologia das "relações saudáveis": "Os acionistas têm uma necessidade legítima de obter o retorno justo do seu investimento – e, se não estivermos preenchendo essa necessidade, nosso relacionamento com os acionistas não estará bom." (pp. 38-39).

Como resultado, o discurso veicula que a boa vontade de gestores arejados e a aprendizagem de uma atitude mais humanizada e espiritualizada trazem recompensas não somente em termos de eficácia empresarial, mas também em termos pessoais e existenciais. Não obstante, o discurso acaba suprimindo o fato de que a adoção de tais atitudes não é suficiente para compreender as relações de poder mais amplas resultantes da nova ordem capitalista, as quais se transformam em crise financeira, desemprego, baixos salários, precariedade laboral e outras razões para a "inquietação" dos empregados. Neste sentido, a narrativa ilustra a crescente tendência, presente na cultura empresarial, de representar o espaço laboral como "grande família" e, com isso, "diluir os limites simbólicos entre o capital e o trabalho e tornar invisíveis os conflitos de classe sob a figura de uma totalidade harmônica (a empresa que tem alguns problemas, mas não grandes contradições)." (Stecher, 2011, p. 219).

Focalizada na esfera microssocial das relações laborais, é a agência pessoal que se aciona para dar sentido e resolver os dilemas do mundo em mudança. Trata-se de uma reinterpretação do poder pessoal proposta pela psicologia humanista de Abraham Maslow (1954, 1965) e Carl Rogers (1961/1982), que no texto surge com novos matizes. Com efeito, o conceito de autorrealização e o modelo das necessidades humanas, ambos propostos por Maslow, são apropriados e usados de forma distinta daquela que se pode observar nos textos de gestão empresarial das décadas de 60 e 70, quando vigorava maior esforço para fazer face às críticas levantadas pelos movimentos de contestação.

Os sentidos sobre a administração no texto de Hunter são parcialmente produzidos mediante efeitos de intertextualidade. O texto é pródigo nas citações diretas e indiretas que amparam as muitas argumentações sobre o novo paradigma de liderança proposto. Há uma profusão de afirmações dos campos da economia, administração, filosofia e ciências sociais em geral, bem como menção à religião, histórias de vida de personalidades, meios midiáticos e ditos populares. Em geral, as citações na história e nas epígrafes funcionam para corroborar as teses sobre a liderança servidora.

Quanto ao significado representacional, de modo geral, o texto constrói uma versão acerca das transformações do mundo do trabalho mediante uma estratégia de polarização entre o "velho" e o "novo paradigma". Como demonstra a crítica ao atual gerencialismo, os textos de pop-management adotam muitas vezes uma linguagem simplista e orientada pela oposição reducionista "velho-novo". O monge e o executivo não é exceção, e o faz explicitamente. No lado do "velho paradigma" dispõe-se uma lista de termos: "invencibilidade dos EUA, administração centralizada, Japão= produtos de má qualidade, gerenciamento, eu penso, apego a um modelo, lucro a curto prazo, trabalho, evitar e temer mudanças, está razoável". Ao lado, na lista do "novo paradigma", incluem-se: "concorrência global, administração descentralizada, Japão= produtos de boa qualidade, liderança, causa e efeito, melhoria contínua, lucro a curto e a longo prazo, sócios, a mudança é uma constante, defeito zero." (Hunter, 2004: p. 48).

Essa lista bipolar sumariza a doutrina propagada no texto, revelando seu papel na reprodução do novo imaginário laboral em operação na empresa pós-fordista e nos seus poderosos mecanismos de subjetivação do trabalhador. Na realidade a narrativa funciona como mais um dispositivo para difundir certos ideais de empresa, de trabalho e de trabalhadores, valorizando o empreendedorismo, a flexibilidade, a autorregulação, o compromisso com a excelência e com a satisfação do cliente, a adaptação às mudanças e a aprendizagem contínua, entre outros imperativos (Stecher, 2011). O sistema de oposições define, por um lado, o certo e o bom no campo do trabalho, e por outro, o polo da alteridade, a ser repudiado como ultrapassado, inadequado ou irracional. Entre os "outros" rechaçados, distribuem-se, de forma mais ou menos visível no texto, o trabalhador que negocia coletivamente com seu empregador (adotando, assim, postura conflitiva) e o próprio sindicato, retratado como estorvo para a negociação individualizada e "pacífica". Excluídas dos textos estão as militâncias políticas no campo do trabalho, bem como os movimentos políticos de enfrentamento violento. Os movimentos realçados como modelo são aqueles que se referem à luta anticolonialista (por exemplo, na menção a Ghandi), racial (mencionando Luther King) e outros notoriamente de orientação pacifista.

Noutros momentos, a associação Ford-gerência autoritária versus Japoneses-nova liderança surge ilustrando a necessidade de reduzir os mecanismos de controle direto dos trabalhadores e sua substituição por formas de autorregulação. Na narrativa, John Daily relata o episódio de um supervisor da Ford que, ao aplicar seus métodos disciplinares na nova parceria da empresa com a Mazda, é advertido, polida e eficazmente, por um gerente japonês. Enquanto na Ford as pessoas "gritavam, xingavam e se zangavam umas com as outras" e os supervisores "humilhavam publicamente os empregados" (Hunter, 2004, p. 111), na nova parceria o supervisor desavisado pôde mudar seu próprio comportamento, a partir de um novo tipo de liderança.

Os termos que ocupam as duas colunas opostas são de fato espaços de luta simbólica, exprimindo conflitos mais amplos do atual estágio de desenvolvimento da economia capitalista. Os significados das palavras, investidos política e ideologicamente, são disputados de forma a valorizar certos conjuntos de práticas, atores sociais e valores em detrimento de outros. Sintoma da mudança na ordem social do discurso gerencial é a própria relexicalização que sofre a noção de "gerência", explicada pelo Irmão Simeão, alter ego de Hunter em seu papel de consultor bem-sucedido. Num dos encontros pedagógicos para aprender sobre liderança, um dos personagens observa:

- Eu notei que você usa muito as palavras líder e liderança e parece evitar gerente e gerência. É de propósito?

- Boa observação, Lee. Gerência não é algo que você faça para os outros. Você gerencia o seu inventário, seu talão de cheques, seus recursos. Você pode até gerenciar a si mesmo. Mas você não gerencia seres humanos. Você gerencia coisas e lidera pessoas. (Hunter, 2004: p. 28)

Entre os pressupostos existenciais embutidos no texto está o do progresso (e legitimidade) da atual configuração produtiva, com sua exigência de novas formas de organização laboral e gerenciamento de pessoal, bem como de novos léxicos e práticas discursivas. Desse modo, "sócios" e "parceiros" substituem "empregados" e "patrões", assim como a "liderança" descarta a "gerência". O texto de Hunter está atento a tais modificações semânticas e pragmáticas a ponto de abordá-las doutrinariamente.

No que tange ao modo de justificar as novas formas de trabalho e gerência no modelo pós-fordista, O monge e o executivo dissemina alegoricamente o "regime justificatório conexionista" (Boltanski & Chiapello, 1999/2009) e valores como altruísmo, autonomia, flexibilidade e adaptabilidade, entre outros imperativos encarnados na liderança servidora. Como noutras obras de gestão empresarial, o texto adota o claro contraste entre o "grande", que serve de exemplo (o líder servidor), e o "pequeno", tratado depreciativamente (o líder autoritário):

O tratamento digno e respeitoso, a capacidade de contribuir para o sucesso da organização e o sentimento de participação sempre apareceram acima do dinheiro." (Hunter, 2004, p. 39)

A autoridade sempre se estabelece ao servir aos outros e sacrificar-se por eles." (Hunter, 2004, p. 70)

Paciência, bondade, humildade, abnegação, respeito, perdão, honestidade, compromisso - estas são as qualidades construtoras do caráter; são os hábitos que precisamos desenvolver e amadurecer se quisermos nos tornar líderes de sucesso, que vencem no teste do tempo. (Hunter, 2004, p. 129)

De modo geral, a metáfora do "líder a serviço" no texto de Hunter responde ao aspecto injustificável de uma gerência voltada ao sucesso da empresa a qualquer custo ou exclusivamente ao lucro. Também procura estabelecer sua distância de valores e práticas que fundam o modelo de empresa e gerência industrial em declínio. Assim, o regime justificatório subjacente pode não apenas produzir consenso, mas, fundamentalmente, rebater as críticas que ameaçam a fidelidade ao capitalismo em sua face atual, comprometendo a sua eficácia e permanência histórica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho discutimos como o livro O monge e o executivo apresenta importantes articulações com as práticas de gestão no cenário do capitalismo pós-industrial. Seu gênero híbrido de autoajuda, psicologia e espiritualidade tem como horizonte mais amplo a reconfiguração flexível do trabalho e os grandes problemas impostos ao gestor – ou melhor, ao "líder" – para promover a produtividade nos dias de hoje, mantendo o compromisso e empenho dos trabalhadores (subordinados e executivos) ao modelo atual de produção, malgrado as perdas que vem impondo ao conjunto da sociedade em termos de estímulo, de justiça e de segurança.

Argumentamos que seu discurso pastoral-gerencial inscreve-se no "novo espírito do capitalismo", à medida que contribui para estabelecer valores e formas de justificação do sistema baseados, entre outros imperativos, em relações menos hierárquicas e mais altruístas. O texto de Hunter é paradigmático da literatura de gestão empresarial responsável pela difusão e vulgarização das ideologias e modelos normativos em voga nesse campo, os quais adotam o estilo edificante e instrutivo e estão interessados em ditar o que deve ser praticado na empresa. O texto parece comprometido em justificar o modo como o lucro é obtido e fornecer aos executivos argumentos para que "resistam às críticas" e "respondam às exigências de justificação" que envolvam os empregados e outras arenas sociais (Boltanski & Chiapello, 1999/2009, p. 85). Como as demais produções do gênero, o texto de Hunter é impelido a considerar as aspirações e o bem-estar geral, atrelando as vantagens pessoais aos interesses coletivos. Para dar sentido ao trabalho da empresa, o texto, como outras obras, apoia-se em fontes heterogêneas que inspiram nobreza, superioridade moral e mesmo heroísmo, num jogo intertextual que ajuda a renovar e, em última instância, a manter a lógica capitalista e o engajamento dos atores sociais no sistema.

O texto de Hunter exibe preocupações e prescrições que se apresentam na literatura de gestão empresarial desde os anos 60, especialmente no que se refere à valorização da classe de dirigentes assalariados, à busca de maior autonomia para o chefe, à exigência de flexibilização da burocracia da empresa e repúdio ao autoritarismo. Semelhantemente às normatizações do período industrial, O monge e o executivo focaliza o problema da motivação e mobilização dos empregados para o trabalho, isto é, como promover sua lealdade e dedicação de corpo e alma. Com a ajuda de teóricos da escola das relações humanas, a principal alternativa é o estabelecimento de um tipo de relação hierárquico amenizado, evitando práticas e símbolos explícitos de dominação. A manutenção da hierarquia só seria legítima por mérito e responsabilidade do executivo que dispense cuidadosa atenção tanto às necessidades de seus subordinados (sua equipe), quanto às dos seus patrões patrimoniais, os proprietários da empresa.

Não obstante, enquanto literatura de gestão produzida nos anos 90, o texto de Hunter apresenta temas e motivos que o identificam como partícipe do terceiro espírito do capitalismo, que emerge nas últimas décadas na esteira da reestruturação capitalista. Esse responde a um cenário econômico e social bastante adverso, impondo desafios espinhosos para a fidelidade ao sistema.

A literatura de gestão produzida desde os anos 90 de fato dá continuidade à luta antiburocrática e de autonomização dos executivos em relação à maior eficácia da empresa, mas introduz inovações, tendo como principal alvo de oposição as grandes organizações planificadas, de tipo fordista, que adotam rígida hierarquia. Entre os novos temas destacados nessa literatura estão a pressão da concorrência, a mudança rápida das tecnologias e a exigência dos clientes, usados para reforçar o argumento contra a hierarquia de tipo piramidal, que potencialmente inferioriza e infantiliza os subordinados, limitando sua motivação e competência num mundo econômico incerto e complexo. Percebe-se em Hunter, como em outros textos similares, uma recusa mais geral às relações dominante-dominados, exemplificada inclusive na depreciação da organização militar, símbolo da indesejável chefia autoritária: o personagem mais retrógrado e intransigente quanto ao novo conceito de liderança proposto é justamente um sargento do exército.

O livro, invertendo a pirâmide e ecoando outros textos do mesmo período, defende que o verdadeiro patrão é o cliente e que a equipe deve ter um líder que coordena as atividades de trabalhadores autogeridos, e não um chefe que dita ordens.

O monge e o executivo exprime em destaque o conjunto de crenças acerca da liderança que atualmente se consolidam no campo da gestão empresarial: o líder seria aquele ser excepcional que "sabe ter uma visão, transmiti-la e obter a adesão dos outros" (Boltanski & Chiapello, 1999/2009, p. 105).

A competência do líder funciona a partir de seu carisma pessoal e da rede de relações de confiança nele depositada por seus parceiros, já que nas atuais organizações matriciais foram reduzidas as posições formais de poder. É um novo tipo de autoridade e de dispositivo de controle que se forja. A nova gestão empresarial de fato enfrenta um novo problema aparentemente paradoxal: como se controlam equipes autogeridas na empresa não hierárquica? O texto de Hunter exprime esse dilema em sua cartilha da liderança servidora. Sua proposta confirma uma tendência da nova configuração ideológica de deslocar a coerção externa para a interioridade das pessoas, conclamando às motivações intrínsecas, à espiritualidade, à descoberta de si e à confiança que o líder deve inspirar para que as pessoas possam não apenas conferir sentido ao trabalho, mas também se autogerir. Para enfrentar os novos problemas de controle, como mostra O monge e o executivo, solicita-se do líder, assim como de outros membros da equipe e da rede de parceiros, "amor", "afetividade", "espiritualidade", "doação" e "sacrifício" pessoal. É isto que se espera dos líderes, como também de todos os demais parceiros envolvidos na rede de negócios: um alto grau de compromisso ético interiorizado. Não obstante, esse apelo à interioridade, em especial a uma espiritualidade privada, acaba transformando questões organizacionais em questões espirituais de responsabilidade dos indivíduos, levando-os a utilizar recursos internos para lidar com as demandas da empresa, e não para desafiar o mundo externo e suas injustiças. Neste sentido, o texto de Hunter parece reforçar as ideologias individualistas e as visões essencialistas do "eu" que responsabilizam os indivíduos não somente por sua própria empregabilidade, mas também por sua salvação pessoal e pelo sucesso da empresa.

Se na literatura de gestão empresarial dos anos 70 a escola das relações humanas, aliada à crítica derivada do maio de 68, era recrutada como suporte para reivindicar e criar dispositivos capazes de minimizar a exploração e desigualdade na produção capitalista, na literatura dos anos 90 ela perde seu potencial crítico e libertário. Muitos temas (autonomia, espontaneidade, autenticidade, abertura para os outros) presentes na crítica estética e na psicologia humanista ressurgem no texto de Hunter descarnados da função de contestação e denúncia à opressão. Esses temas parecem "até certo ponto autonomizados, transformados em objetivos que valem por si mesmos" (Boltanski & Chiapello,1999/2009, p. 130) .

Com efeito, a nova gestão empresarial incita a uma forma de organização mais "humana", emocional e afetiva, em que as pessoas possam concretizar suas aspirações profundas, a fim de romper com as formas tayloristas de trabalho, nas quais o homem é tratado como máquina; contudo, diferente do taylorismo – cujo modelo de robotização não permite colocar diretamente a serviço dos lucros a afetividade, o senso moral, a honra e a criatividade – a nova a gestão, incluindo a espiritual, permite uma instrumentalização mais profunda dos seres humanos, exigindo-lhes doar-se intima e completamente ao trabalho (Boltanski et al., 1999/2009, p. 131). Assim a nova gestão, mobilizando e produzindo holisticamente certo modo de ser (e não somente de saber ou saber fazer), mostra-se mais eficaz na renovação da lógica capitalista.

REFERÊNCIAS

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Recebido em 26/04/2012

Aceito em 28/08/2012

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  • Endereço para correspondência

    Idilva Maria Pires Germano. Rua Monsenhor Catão, 948/302, CEP: 60175-000, Fortaleza-CE, Brasil.
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  • 1
    Apoio financeiro: Capes/Propag por meio de bolsa de mestrado concedida à segunda autora
  • 2
    O significado identificacional relaciona-se à maneira de identificar a si mesmo e aos outros e está associado aos estilos. Por razões de espaço, neste trabalho não serão analisados aspectos vinculados ao significado identificacional e ao estilo da obra em estudo
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013

    Histórico

    • Aceito
      28 Ago 2012
    • Recebido
      26 Abr 2012
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