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Constituindo-se sujeito na intersecção gênero e deficiência: relato de pesquisa

Constituyéndose sujeto en la intersección género y discapacidad: relato de investigación

Becoming a person in the gender and disability intersection: a research report

Resumos

O objetivo desta pesquisa consistiu em compreender o processo de constituição de mulheres com deficiência física, com ênfase na intersecção das questões de gênero com a deficiência. Os sujeitos da pesquisa foram oito mulheres com deficiência física, integrantes de um grupo de mulheres organizado em uma associação de pessoas com deficiência física. As informações foram coletadas por meio de entrevistas em profundidade e analisadas com base no método de análise de discurso. Os referenciais teóricos utilizados foram a Psicologia Histórico-Cultural, os estudos de gênero e o modelo social da deficiência. Os resultados indicaram que gênero e deficiência são categorias que se interseccionam por meio dos processos de corporeidade, trabalho e maternidade, os quais são marcados pela violência. Destaca-se a relevância de se considerar gênero e deficiência como categorias de análise nas pesquisas e intervenções em psicologia e demais áreas de conhecimento.

Gênero; deficiência; vulnerabilidade


El objetivo de esta investigación fue el de comprender el proceso de constitución de mujeres con discapacidad física, especialmente en lo que se refiere a la intersección entre las cuestiones de género y la discapacidad. Los sujetos de la investigación fueron ocho mujeres con discapacidad física, integrantes de un grupo de mujeres organizado en una asociación de personas con discapacidad física. Los datos fueron recogidos por medio de entrevistas en profundidad y analizados con base en el método de análisis de discurso. Las referencias teóricas utilizadas fueron la Psicología Histórico-Cultural , los estudios de género y el modelo social de la discapacidad. Los resultados indicaron que género y discapacidad son categorías que se intersecan por medio de los procesos de corporeidad, trabajo y maternidad, que están marcados por violencias. Se destaca la relevancia de considerarse género y discapacidad como categorías de análisis en las investigaciones e intervenciones en psicología y demás campos del conocimiento.

Género; discapacidad; vulnerabilidad


The aim of this research was to understand the constitution process of women with physical disability, emphasizing the gender overlapped with physical disability. The research subjects were eight women with physical disability, members of an organized women group in an association of people with physical disability. The information was collected through in-depth interviews and analyzed based on the method of discourse analysis. The theoretical references were based on the Historic Cultural Psychology, the theories of genre and the social model of disability. The results suggested that gender and disability are linked categories, which are overlapped with the analysis of process of embodiment, work and maternity - all of them characterized by violence. The information obtained provided evidence that gender and disability are categories of analysis in researches and interventions in psychology and others areas of knowledge.

Gender; disability; vulnerability


ARTIGOS

Constituindo-se sujeito na intersecção gênero e deficiência: relato de pesquisa

Becoming a person in the gender and disability intersection: a research report

Constituyéndose sujeto en la intersección género y discapacidad: relato de investigación

Marivete GesserI; Adriano Henrique NuernbergII; Maria Juracy Filgueiras ToneliIII

I Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, professora do Departamento de Psicologia da mesma Universidade.

II Doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, professor do Departamento de Psicologia da mesma Universidade.

III Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humanopelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em Psicologia Social na Universidade Federal de Minas Gerais e na Universidade do Porto/Portugal, professora da Universidade Federal de Santa Catarina.

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Campus Universitário - Trindade CEP 88.040-970. Florianópolis-SC, Brasil E-mail: marivete@yahoo.com.br

RESUMO

O objetivo desta pesquisa consistiu em compreender o processo de constituição de mulheres com deficiência física, com ênfase na intersecção das questões de gênero com a deficiência. Os sujeitos da pesquisa foram oito mulheres com deficiência física, integrantes de um grupo de mulheres organizado em uma associação de pessoas com deficiência física. As informações foram coletadas por meio de entrevistas em profundidade e analisadas com base no método de análise de discurso. Os referenciais teóricos utilizados foram a Psicologia Histórico-Cultural, os estudos de gênero e o modelo social da deficiência. Os resultados indicaram que gênero e deficiência são categorias que se interseccionam por meio dos processos de corporeidade, trabalho e maternidade, os quais são marcados pela violência. Destaca-se a relevância de se considerar gênero e deficiência como categorias de análise nas pesquisas e intervenções em psicologia e demais áreas de conhecimento.

Palavras-chave: Gênero; deficiência; vulnerabilidade.

ABSTRACT

The aim of this research was to understand the constitution process of women with physical disability, emphasizing the gender overlapped with physical disability. The research subjects were eight women with physical disability, members of an organized women group in an association of people with physical disability. The information was collected through in-depth interviews and analyzed based on the method of discourse analysis. The theoretical references were based on the Historic Cultural Psychology, the theories of genre and the social model of disability. The results suggested that gender and disability are linked categories, which are overlapped with the analysis of process of embodiment, work and maternity - all of them characterized by violence. The information obtained provided evidence that gender and disability are categories of analysis in researches and interventions in psychology and others areas of knowledge.

Key words: Gender; disability; vulnerability.

RESUMEN

El objetivo de esta investigación fue el de comprender el proceso de constitución de mujeres con discapacidad física, especialmente en lo que se refiere a la intersección entre las cuestiones de género y la discapacidad. Los sujetos de la investigación fueron ocho mujeres con discapacidad física, integrantes de un grupo de mujeres organizado en una asociación de personas con discapacidad física. Los datos fueron recogidos por medio de entrevistas en profundidad y analizados con base en el método de análisis de discurso. Las referencias teóricas utilizadas fueron la Psicología Histórico-Cultural , los estudios de género y el modelo social de la discapacidad. Los resultados indicaron que género y discapacidad son categorías que se intersecan por medio de los procesos de corporeidad, trabajo y maternidad, que están marcados por violencias. Se destaca la relevancia de considerarse género y discapacidad como categorías de análisis en las investigaciones e intervenciones en psicología y demás campos del conocimiento.

Palabras-clave: Género; discapacidad; vulnerabilidad.

A deficiência não se apresenta hoje apenas como um fenômeno de natureza médica, mas deve ser analisada em estreita relação com diversas outras categorias sociais. As pessoas com deficiência são, antes de tudo, pessoas - portanto, marcadas por suas características geracionais, de gênero, classe, raça e outras. À luz deste argumento, buscou-se neste estudo compreender o processo de constituição de mulheres com deficiência física, com ênfase na intersecção das questões de gênero com as relativas à deficiência. O referencial teórico norteador da pesquisa foi a Psicologia Histórico-Cultural, de Vygotski, em diálogo com os estudos de gênero e com os autores da segunda geração do modelo social da deficiência.

De acordo com a Psicologia Histórico-Cultural, o homem se constitui a partir da apropriação1 1 O conceito de apropriação, com base na Psicologia vygotskiana, refere-se ao movimento do sujeito no sentido de tornar intrapsicológico o conhecimento culturalmente produzido e compartilhado e imprimir a ele um sentido singular/subjetivo. Este processo pelo qual o conhecimento passa do nível interpessoal para o nível intrapessoal foi denominado por Vygotski de processo de internalização. dos múltiplos significados presentes nas relações intersubjetivas. Estes o constituem como sujeito e medeiam seu modo de pensar, sentir e agir no mundo. Assim, ele é uma síntese inacabada das múltiplas relações que estabelece com a cultura e a sociedade, configuradas na processualidade.

Segundo os pressupostos de Vygotski (1992), o processo de apropriação dos signos referentes à deficiência e significados neles e por eles veiculados é marcado pelas condições concretas de existência dos sujeitos e pela sua singularidade, pois o sujeito se apropria destes significados de forma a produzir um sentido singular, ligado às próprias experiências, possibilidades e trajetórias de vida. Destarte, mesmo havendo, em determinada cultura, significados predominantes relacionados à deficiência, corporeidade e sexualidade, sentidos singulares podem emergir.

O modelo social da deficiência, outro referencial de base deste texto, surgiu na Inglaterra no fim dos anos 70. Os autores, ancorados no modelo social da deficiência, partem do pressuposto de que as pessoas com deficiência são sistematicamente discriminadas e excluídas da participação na sociedade contemporânea, sendo este processo decorrente do resultado negativo das barreiras atitudinais, físicas e institucionais que limitam as a possibilidade de pessoas com impedimentos corporais terem uma participação efetiva na sociedade (Lang, 2009; Barnes, 2009; Barton, 2009; Santos, 2010).

No modelo social, a deficiência não é considerada uma tragédia individual, um castigo ou o resultado de certo pecado; não é uma enfermidade que requeira tratamento medicalizante; tampouco deve ser objeto de caridade ou de ações sentimentais e condescendentes, que só geram dependência. Em outras palavras, a deficiência deixa de ser compreendida a partir de um campo estritamente biomédico confinado aos saberes médicos, psicológicos e de reabilitação, que associam a deficiência a uma condição médica ou a uma tragédia pessoal, e passa a ser também um campo das humanidades (Barnes, 2009; Diniz, Barbosa & Santos, 2010). Na realidade, é uma questão de direitos humanos (Santos, 2010; Barton, 2009).

Quanto ao entendimento à deficiência, o presente estudo optou por utilizar o conceito proposto pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007), que foi fundamentado no modelo social da deficiência. Consta no artigo 1º deste documento: "Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas". A Convenção inova no tocante à visão predominante de deficiência, a qual, ancorada no modelo biomédico, reduz a deficiência ao corpo com impedimentos (Barnes, 2009; Diniz et al., 2010). A partir do conceito por ela apresentado, pode-se considerar que a deficiência é articulada com os inúmeros marcadores sociais (raça, gênero, geração, classe social, entre outros) que atuam como barreiras limitadoras do processo de participação efetiva na sociedade (Petersen, 2006; McDonald, Keys & Balcazar, 2007; Lang, 2009).

A compreensão de gênero caracteriza-se como uma produção histórica e cultural baseada nas diferenças percebidas entre os sexos que organiza a sociedade por meio de relações assimétricas (Scott, 1995). A intersecção do gênero com a deficiência, conforme identificado na presente pesquisa e nos estudos sobre deficiência ancorados na segunda geração do modelo social (Petersen, 2006; Lang; 2009; Santos, 2010), potencializa processos de exclusão social.

Este trabalho se justifica pelo fato de as pessoas com deficiência constituírem um segmento cada vez maior da população mundial. Segundo dados do Relatório Mundial sobre Deficiência da Organização Mundial de Saúde (WHO, 2012), elas representam cerca de 15% da população, o que configura um contingente de cerca de um bilhão de pessoas. Quanto mais técnicas e culturalmente mais complexas se tornam as sociedades, mais impedimentos corporais e deficiências surgem (Barnes, 2009).

No Brasil, segundo informações obtidas no censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano 2010, pelo menos 45 milhões de brasileiros possuem algum tipo de deficiência, o que representa 23,9% do total da população (IBGE, 2011). Ademais, o fenômeno da deficiência, compreendido como uma experiência relacionada ao ciclo de vida humano em face do envelhecimento e suas decorrências, não se restringe a uma realidade de pessoas com impedimentos físicos, sensoriais ou intelectuais congênitos ou adquiridos por intercorrências inesperadas, mas é algo inerente à condição humana (Diniz et al., 2010). Isto corrobora a necessidade de se realizarem estudos sobre a experiência da deficiência na intersecção com outras categorias, como as de raça, gênero, classe social e geração, dando visibilidade aos problemas vivenciados pela população com deficiência.

Ressalta-se que esta pesquisa, para contextualizar o processo de constituição das mulheres entrevistadas, procurou dar visibilidade à experiência da deficiência, indo ao encontro do que propõem autores como Barnes (2009), McDonald et al., (2007) e Petersen (2006). Acredita-se que dar visibilidade aos problemas vivenciados por esse grupo social é um ato político, na medida em que pode contribuir para a construção de políticas públicas voltadas às suas necessidades.

A EXPERIÊNCIA DA DEFICIÊNCIA E SUA COMPLEXIDADE

Diversos autores, ancorados na segunda geração do modelo social de deficiência, têm evidenciado as múltiplas relações da deficiência com gênero, classe social, raça/etnia e geração (Gesser, Nuernberg & Toneli, 2012; Lang, 2009; McDonald et al., 2007; Dhungana, 2006; Petersen, 2006). Estes autores destacam que a intersecção da deficiência com outros determinantes sociais pode potencializar processos de opressão e vulnerabilidade social a esse coletivo.

No que se refere às questões decorrentes da intersecção entre gênero e deficiência, as pesquisas realizadas por autores como Joseph (2005-2006), na Índia, e Dhungana (2006), no Nepal, indicam que, ao contrário das mulheres não deficientes, as expectativas que a sociedade tem das mulheres com impedimentos corporais muitas vezes as excluem do direito ao exercício da sexualidade, do trabalho de qualquer natureza e da maternidade. Há um entendimento cultural de que as mulheres com deficiência são incapazes de cumprir os papéis tradicionais de dona de casa, esposa, trabalhadora e mãe (McDonald et al., 2007; Dhungana, 2006; Joseph, 2005-2006).

Os estudos de Brodwin e Frederick (2010) mostraram que a sexualidade das pessoas com deficiência é um assunto pouco discutido na sociedade. Além disso, os estereótipos associados às pessoas com deficiência presumem que elas não são atraentes e são incapazes de ter desejos sexuais, e que qualquer tipo de expressão sexual é inadequada. Joseph (2005-2006) alerta que esta ideia afeta as experiências pessoais e os projetos de vida de pessoas de ambos os sexos, embora as mulheres sejam mais vulneráveis, pela intersecção da deficiência com as desigualdades de gênero.

No contexto acadêmico, especialmente no campo da saúde, poucos são os estudos que abordam a sexualidade a partir da perspectiva da pessoa com deficiência (Long, Krawczyk & Kenworthy, 2013). Ademais, conforme Nicholson e Cooper (2013), boa parte dos modelos teóricos sobre a sexualidade não levam em conta as especificidades das pessoas com deficiência, sobretudo daquelas com deficiência intelectual. Essa dificuldade se estende também ao campo profissional da saúde, no qual se perpetuam barreiras atitudinais que precarizam as condições de assistência à saúde (França, Oliveira, Cruz, Coura & Enders, 2012). Nesse sentido, de acordo com Nicolau, Schraiber e Ayres (2013) e Ferres, Megias, e Exposito (2013), as mulheres com deficiência não são reconhecidas nesse contexto em seus direitos sexuais e reprodutivos, estando em uma condição de dupla vulnerabilidade, em função de barreiras programáticas marcadas pelos processos de gênero e deficiência.

Ainda no que se refere à intersecção gênero e deficiência, autores como Dhungana (2006) e Soares, Moreira e Monteiro (2008) observaram que o processo de infantilização vivenciado pelas mulheres com deficiência produz vulnerabilidades, sendo estas decorrentes, entre outros fatores, da falta de informações relacionadas à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos, garantidos pela Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU (Brasil, 2007). Sánchez (2008), a partir de revisão de literatura, identificou a existência de mitos sobre a sexualidade das pessoas com deficiência que contribuem para a não aceitação desses direitos e limitação do acesso a informações nos variados contextos sociais.

Diversos autores têm apontado que as mulheres com deficiência vivenciam cotidianamente preconceitos, e que estes decorrem principalmente da interação entre as barreiras impostas em função das relações de gênero e deficiência, produzindo uma condição de dupla vulnerabilidade (Thorne, McCormick & Carty, 1997; Ferri & Gregg, 1998). Além disso, McDonald et al. (2007) destacam que ainda predominam narrativas culturais que transmitem estereótipos pejorativos sobre as pessoas com deficiência, desqualificando-as. Estas incluem ideias como a de que as pessoas com deficiência são doentes e incompetentes e geram a exclusão delas na comunidade, na escola e no acesso ao trabalho e a atividades de lazer. Tais narrativas são comunicadas aos indivíduos por meio dos canais de socialização, entre eles as escolas e os meios de comunicação social.

Problematizando a relação entre deficiência e classe social, Barnes (2009) aponta que as enfermidades agudas e crônicas e as deficiências têm relação com a pobreza e com determinantes decorrentes dela, como serviços higiênicos impróprios, dieta alimentar inadequada, moradia em locais inadequados e acidentes industriais. Além disso, o autor destaca que crianças com deficiência têm menos acesso à escolarização formal do que as crianças sem deficiência. Tal fator limita a inserção em trabalhos remunerados que, em quase todas as sociedades modernas, vêm sendo o critério mais importante para classificar as pessoas em termos de classe, status e poder.

Além disso, os estudos de McDonald et al. (2007) apontam que a maioria das pessoas com deficiência vive na pobreza e que a experiência da pobreza pode exacerbar a já marginalizada experiência da deficiência. Isto ocorre em decorrência de essas pessoas terem menos recursos econômicos e sociais para corrigir eventuais impedimentos e pela discriminação institucionalizada. Assim, a experiência da deficiência é fortemente marcada por determinantes sociais de diversas ordens, produzindo processos de opressão pelo corpo.

No próximo tópico, explanar-se-á o percurso metodológico utilizado para a obtenção e análise das informações.

MÉTODO

O trabalho ora apresentado refere-se a uma pesquisa de doutorado realizada com oito mulheres com deficiência física vinculadas a uma associação de pessoas com deficiência situada no Sul do Brasil e participantes de um grupo de mulheres da entidade. A pesquisa teve como objetivo compreender o processo de constituição de mulheres com deficiência física nas dimensões de gênero, corpo e sexualidade, buscando identificar as mediações que foram importantes para a configuração de tais dimensões, bem como as transformações ocorridas a partir da participação dessas mulheres em um grupo voltado à discussão e reflexão acerca das dimensões acima explicitadas. Este artigo aborda um recorte da pesquisa acima o qual focalizará as intersecções entre gênero e deficiência no processo de constituição do sujeito.

Após a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFSC (Parecer nº 06/08), as participantes foram convidadas a participar do estudo. Nesse momento foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, o qual explicitava os objetivos, a justificativa e os procedimentos técnicos da pesquisa. As participantes também foram esclarecidas de que as entrevistas seriam gravadas em aparelho de áudio e que suas identidades seriam preservadas na divulgação dos resultados.

As participantes da pesquisa eram predominantemente de religião católica, com idades entre 24 e 68 anos, sendo cinco de pele branca e três pardas. Três delas eram solteiras, uma viúva, uma divorciada e as demais casadas ou em união estável. No que se refere às lesões, uma apresentava luxação congênita, duas tinham paralisia infantil, uma era paraplégica; uma sofrera amputação do membro inferior esquerdo, uma tinha doença de Crohn, uma tinha hérnia de disco, osteofitose e osteoporose, e por fim, uma possuía limitações motoras do lado direito do corpo, devido a um aneurisma cerebral, além de artrose e alterações degenerativas na coluna vertebral. Sete delas eram provenientes de camadas populares e possuíam renda per capita igual ou inferior a um salário mínimo.

As informações foram obtidas por meio de entrevistas em profundidade e analisadas pela técnica de análise de discurso com base em Vygotski (1992). Na proposta deste autor, destaca-se a importância de investigar os fenômenos presentes no cotidiano a partir do processo que os constituiu e suas relações com os múltiplos determinantes histórico-culturais (Rossetti-Ferreira, Carvalho, Amorim & Silva, 2004). Também busca-se enfatizar os processos de apropriação desses determinantes e a mediação deles no modo como o sujeito pensa, sente e age.

Quanto aos procedimentos utilizados na análise de discurso, primeiramente realizou-se a transcrição detalhada das falas, na qual se procurou identificar tanto o texto quanto o subtexto. Em seguida, foi realizada a leitura flutuante do material, buscando-se as significações que as entrevistadas atribuem às questões relacionadas a gênero, corpo e sexualidade e suas intersecções, ou os demais elementos presentes em seu contexto histórico-cultural. Por fim, esses elementos foram agrupados em categorias de análise. As categorias identificadas a partir da intersecção gênero e deficiência foram as seguintes: Corporeidade; Trabalho; Maternidade e cuidado; Violência.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Neste tópico serão apresentados os resultados obtidos por meio da pesquisa realizada junto às mulheres com deficiência. Os depoimentos das entrevistadas evidenciam que a intersecção entre gênero e deficiência configurou o processo de constituição delas como sujeitos, embora elas tivessem se apropriado das experiências vividas de forma singular. A seguir, serão apresentadas as categorias identificas no estudo.

Corporeidade

Em relação ao processo de constituição da corporeidade das mulheres com deficiência a partir das análises realizadas, alguns elementos necessitam ser destacados, pois se relacionam com os discursos contemporâneos acerca do corpo feminino. Um deles está relacionado, para cinco das oito mulheres entrevistadas, ao fato de a obesidade ser um elemento que as incomoda mais do que a própria deficiência. Os depoimentos a seguir explicitam tal questão: "Eu me sinto mais mal por ser gorda do que por ser deficiente" (Sarah); "Ah, eu acho assim, eu queria ser mais magrinha, sabe? Ter um corpo mais bonitinho, né? (Márcia); "A minha vontade era de ter um corpinho esbelto, tudo, então sempre queria emagrecer" (Doraci).

A partir das informações obtidas nas entrevistas, relacionadas com a literatura que problematiza as questões relativas à obesidade (Ferreira & Magalhães, 2006; Thorne et al., 1997), pode-se inferir que o incômodo com a obesidade decorre principalmente da apropriação dos discursos médicos e midiáticos que enfatizam o corpo magro como um sinônimo de beleza e de saúde, qualidades que estão disponíveis a todas as mulheres, inclusive as com deficiência física, contribuindo também para o seu processo de constituição como sujeitos.

A pesquisa também constatou que, por meio do discurso médico, algumas das mulheres entrevistadas se apropriaram de ideias como as de que a obesidade obstaculiza o processo de reabilitação e acentua a dificuldade de mobilidade. O depoimento de Sarah sintetiza a questão: "Isso (a obesidade) é uma coisa que me incomoda muito ..., é uma coisa que atrapalha muito no meu processo de adaptação à prótese ..., porque o peso é muito, daí eu tenho mais dificuldade de andar, sobrecarrega meus braços". Miriam enfatizou a obesidade como um elemento que dificulta a realização de atividades domésticas e lamenta não conseguir emagrecer, afirmando: "... eu posso fazer de tudo, mas não acontece (emagrecer)".

Percebem-se, assim, dois discursos constitutivos da significação atribuída à obesidade pelas entrevistadas: um que associa magreza a saúde, já apontado em pesquisas como as realizadas por Ferreira e Magalhães (2006), e um que associa o corpo magro a beleza (McDonald et al., 2007). A mediação destes discursos, juntamente com o fato de a obesidade ser uma barreira ao exercício de atividades relacionadas à identidade de gênero, contribuiu para que as cinco entrevistadas que apresentam esta característica se avaliassem como obesas e sentissem a necessidade de emagrecer.

Ainda em relação à obesidade, é interessante ressaltar que são diversos os aspectos que dificultam a manutenção de um corpo magro pelas entrevistadas, e os que foram identificados estão relacionados tanto à dificuldade de se exercitarem para queimar calorias ingeridas, quanto à falta de acesso a alimentos saudáveis, pois a maior parte das entrevistadas pertence às classes D e E, o que dificulta a busca por alimentos funcionais e atividades físicas apropriadas para pessoas com lesões e impedimentos corporais. Assim, estes elementos são reveladores da relação entre corpo e classe social, a qual também foi identificada em uma pesquisa realizada por Ferreira e Magalhães (2006) com mulheres de camadas populares sem lesões e impedimentos físicos.

Além dos signos que valorizam o corpo magro presentes no contexto cultural em que as mulheres entrevistadas se constituíram como sujeitos, a pesquisa também evidenciou que algumas delas se apropriaram das significações que atribuem ao corpo com lesões e impedimentos a condição de incompleto, fora da norma. Isto ficou evidente na fala de Martha, uma senhora de 41 anos que adquiriu uma lesão medular aos 18 anos, em um acidente de automóvel ocorrido quando voltava de uma festa. Ela concebe seu corpo como dividido pela deficiência, o que gera dificuldades de olhá-lo da cintura para baixo, onde se localizam as cicatrizes decorrentes das úlceras por pressão: "dessa parte assim pra baixo ... já evito me olhar um pouco, sabe? ... Porque o corpo ficou deformado, ficou demarcado (pela lesão); e ... é um pouco assim, é o próprio corpo da gente que é defeituoso, tem cicatrizes".

A significação do corpo como desviante, dissonante dos padrões dominantes e valorizados socialmente, mediou a relação de Martha com a feminilidade. Ela não queria ter um namorado que não fosse deficiente, porque julga que uma pessoa sem deficiência poderia ter dificuldade em aceitar as cicatrizes das úlceras por pressão, já que "é o próprio corpo da gente que é defeituoso, tem cicatrizes. Eu penso que aí vai ter a cobrança, né? E também assim, a vergonha também um pouco que a gente tem" (Martha).

As informações obtidas a partir das falas de Martha se aproximam do observado na pesquisa realizada por Soares et al. (2008) junto a jovens com espinha bífida, na qual um dos aspectos estudados pelos autores foi o da relação entre sexualidade, imagem corporal e características desacreditáveis. Quanto aos resultados obtidos pelos autores, eles identificaram que as falas dos jovens entrevistados evidenciavam que a vivência da espinha bífida tem um impacto considerável na imagem corporal deles, em suas experiências subjetivas e relações sociais que se constroem a partir das marcas corporais. Apesar de os jovens sujeitos da pesquisa afirmarem que as atitudes sociais e culturais depreciativas que incidiram sobre seus corpos deficientes não afetaram sua percepção corporal, muitos disseram temer não ser aceitos pelo sexo oposto devido a suas diferenças, evidenciando um processo de apropriação do padrão de beleza baseado nas normas sociais e a relação deste com a aceitação de seus corpos pelo outro (Soares et al., 2008).

O estudo de McDonald et al. (2007), o qual identificou a existência de narrativas culturais dominantes que transmitem estereótipos pejorativos sobre as pessoas com deficiência, também contribui para a compreensão da experiência da lesão medular para Martha. De acordo com os autores, os mitos culturais opressivos sobre os corpos das mulheres, presentes nos discursos dominantes, em propagandas, filmes, revistas, na área da saúde e nas indústrias de beleza, privilegiam um padrão idealizado de corpo.

McDonald et al. (2007), com base nos estudos de Peters (2006) e Snyder (2006), destacam que as narrativas culturais acerca da deficiência e suas intersecções com aquelas relacionadas a gênero e raça, obtidas a partir da análise de literatura, cinema e políticas públicas, contribuem para a identificação de formas pejorativas de conceber essa população.

Diante das questões acima apresentadas, pode-se afirmar que o corpo deficiente é discursivamente produzido como limitado e limitante, e que, embora traga marcas significantes do feminino (como a genitália), não pode objetivar o feminino em sua complexidade simbólica (embora nenhum possa!) a qual, por sua vez, inclui a função reprodutiva e de cuidados, além da marca da sedução. Este corpo/indivíduo sujeitado à (produzido pela) violência da norma é materializado também por meio do sofrimento (físico e psíquico) engendrado por este e neste processo.

Por fim, a pesquisa mostrou que tanto os significados normativos que relacionam magreza a beleza quanto os que atribuem ao corpo com lesões e impedimentos corporais a condição de incompleto e fora da norma foram apropriados e constitutivos da significação do corpo pelas entrevistadas.

O próximo tópico evidenciará a transversalidade das questões de gênero e deficiência com a dimensão do trabalho.

Trabalho

Neste tópico será dada maior ênfase às limitações funcionais das participantes do estudo para a realização das atividades cotidianas. As falas das participantes da pesquisa evidenciaram que as limitações oriundas das lesões e dos impedimentos corporais, juntamente com a obesidade e a dor, geram muitas dificuldades para a realização das funções caracterizadas historicamente como femininas.

Entre as atividades em que elas apresentam maior dificuldade, destacam-se as de se deslocar, passear, carregar sacolas, realizar as tarefas domésticas e cuidar dos filhos e netos, quando elas os têm. Os depoimentos a seguir explanam tal questão:

Eu acho mais difícil para a mulher (ser deficiente) porque aí a mulher não pode fazer nada dali, né? ... E tudo que se faz ... é a dona da casa que faz (Miriam).

É tudo no limite, né? Porque eu não posso correr, não posso fazer uma porção de coisas, né? ... Varro a casa, às vezes varro aqui, mas não varro embaixo da cama, porque não aguento a dor (Adriane).

Com base nos depoimentos de Adriane e Miriam, pode-se destacar que, embora a dificuldade de mobilidade e a dor estivessem presentes em todas as atividades da vida cotidiana, inclusive limitando a inclusão social, o que mais as marcou foi quanto às lesões, os impedimentos corporais e a dor por elas experienciados são elementos que limitam a realização das atribuições que elas caracterizavam como femininas, que consistiam nos afazeres domésticos. Percebe-se, no subtexto de suas falas, um sentimento de frustração por não corresponderem ao estereótipo de gênero que atribui à mulher as funções vinculadas ao âmbito doméstico.

Assim, no que se refere à dimensão do trabalho, as informações obtidas na pesquisa evidenciaram que no contexto em que as mulheres se constituíram há uma significação cultural de que as mulheres com deficiência são incapazes de cumprir os papéis tradicionais vinculados aos cuidados com a casa, o que corrobora os estudos de McDonald et al. (2007), Dhungana (2006) e Joseph (2005-2006); ou seja, os discursos sobre masculinidade e feminilidade são apropriados e naturalizados e medeiam o modo como pensam, sentem e agem no que se refere ao trabalho.

No próximo tópico será mostrado como a intersecção entre gênero e deficiência opera na configuração da relação das entrevistadas com as questões relativas especificamente à maternidade e ao cuidado.

Maternidade e cuidado

A maternidade e o cuidado também foram temas que emergiram nos discursos das entrevistadas. Sobre eles, há na contemporaneidade uma significação muito presente nos diversos contextos interativos que os naturaliza como atribuições da mulher, já apontada nos estudos e ensaios de autores como, por exemplo, Scott (1995). Ao mesmo tempo, há também uma ideia de que uma mulher com deficiência física é incapaz de cumprir as atribuições tradicionalmente vinculadas ao gênero feminino de dona de casa, esposa, trabalhadora e mãe (McDonald et al., 2007; Dhungana, 2006; Joseph, 2005/2006; Gesser, et al., 2012).

A percepção das pessoas com deficiência como incapazes de exercer a maternidade, no caso de Sarah, uma senhora que sofreu amputação do membro inferior esquerdo aos 18 anos e ficou grávida de gêmeos aos 25 anos, fez com que seus familiares se "oferecessem para cuidar das crianças quando elas nasceram", corroborando os estudos acima citados.

Além disso, foi observada, no depoimento de Adriane - uma senhora de 49 anos, casada, com três filhos, um dos quais, que também tinha lesões e impedimentos corporais, falecera aos 13 anos - a apropriação do lugar de cuidadora como definidor de si e sentimento de perda de valor quando sofreu um AVC e não conseguia mais cuidar dos outros:

Eu tinha muita depressão, tentei suicídio três vezes, porque eu via o meu filho na cama e eu sem poder fazer nada. ... Então, ali eu achei que eu não valia mais nada, que eu era um pedaço de isopor que você põe na água e vai embora.

O depoimento de Adriane mostra que a maternidade e a significação de ser responsável pelo cuidado com os outros foram naturalizadas, adquiriram um lugar central na sua constituição como sujeito e tornaram-se um fator gerador de sofrimento quando limitado pelas lesões e impedimentos decorrentes do AVC.

Assim, a intersecção entre gênero e deficiência funcionou como um elemento constituinte das mulheres entrevistadas no que se refere à maternidade e ao cuidado. Conforme será mostrado no próximo tópico, essa intersecção também contribuiu para a produção e naturalização de violências.

Violência

A violência também fez parte do cotidiano das mulheres entrevistadas, sendo atravessada pelas questões de gênero nas histórias de Márcia - uma senhora de 47 anos que adquiriu paralisia infantil aos dois anos e teve como sequela a paralisia total das pernas e parcial dos braços - e de Miriam, uma senhora com 66 anos com hérnia de disco, osteofitose (bico-de-papagaio), osteoporose, úlcera varicosa venosa e obesidade mórbida. Ambas sofreram violência no relacionamento conjugal, sendo que essa incluiu agressões físicas que, segundo o depoimento delas, estavam relacionadas ao comportamento etílico dos esposos.

Cumpre destacar que essas mulheres reconheciam o comportamento de seus companheiros como violento, contudo, apresentaram muita dificuldade em romper com a violência. "Daí ... começou a tomar, beber, sabe? Daí, começou a me incomodar, começou a me bater, né? Chegou a me bater muitas vezes." (Márcia); "O marido botava tudo dentro de casa, mas depois ele virou a beber ..., ele chegava a virar a mesa com tudo em cima" (Miriam), alegando ter o direito, por sustentar a casa e os filhos. Inúmeras vezes o filho de Miriam, que morava na casa ao lado, teve que apartar a briga para que o seu marido não a espancasse.

Luiza, uma senhora de 68 anos que adquiriu paralisia infantil na infância e se locomove andando com os joelhos no chão ou em cadeira de rodas, porque, segundo ela, está fraca e com sobrepeso, relatou sofrer violência simbólica (agressões verbais) dos familiares, os quais a condenavam por querer passear e arrumar um namorado, e consideravam que, devido à deficiência, ela seria incapaz de encontrar um homem "que a amasse de verdade". Ao vivenciar a experiência de ter um pretendente flertando-a, sua família procurou limitar seus contatos afetivos:

... é que ele ligava em casa pra mim, né? Quando eu não estava, daí a minha mãe metia a língua nele, chamava ele de sem-vergonha, de vagabundo, de tudo quanto era coisa, que ele queria comer só o que eu tinha de herança. Se ele não tinha vergonha de namorar com uma deficiente.

O depoimento evidencia a ideia de que pessoas com deficiência são desprovidas de atrativos e de que uma pessoa sem deficiência só se aproxima delas para obter alguma vantagem, conforme também identificado no estudo de Mogollón (2011). Ademais, o depoimento de Luiza também traz implícito o processo de infantilização mediado pelos significados ligados à deficiência articulados com os de feminilidade, pois, se já existe uma significação que atribui à mulher as qualidades de frágil, dócil, meiga, dependente, submissa (Scott, 1995), ela parece ser amplamente potencializada quando gênero e deficiência se interseccionam.

A intersecção de gênero e deficiência como produtora de violências também apareceu na dimensão da conjugalidade. O depoimento mais representativo foi o de Márcia. Vejamos o seu relato sobre o relacionamento sexual dela com o seu ex-esposo: "Era só ‘pá pum' e deu, né? Acabou. Só servia pra ele, pra mim nada .... Então, eu me sentia assim .... Meu Deus! Parece que eu sou um pano de chão: usa, vira, vira do lado e deu?". O depoimento de Márcia mostra quanto gênero e deficiência se interseccionam, contribuindo para a naturalização de violências e limitação dos direitos sexuais e reprodutivos preconizados pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007).

Entendeu-se violência com base no conceito proposto por Debert e Gregori (2008). Estes autores, baseados em uma perspectiva relacional, enfatizam que para entender a violência é necessário "decifrar dinâmicas conflitivas que supõem processos interativos atravessados por posições de poder desiguais entre os envolvidos". A partir das reflexões dos autores, articuladas com as informações obtidas na pesquisa, pode-se inferir que a privação do acesso à educação e inclusão social, as posições desiguais de gênero, os padrões de corpo e de feminilidade presentes na contemporaneidade, aliados à impossibilidade de as mulheres com deficiência ascenderem a eles, influem na limitação do desenvolvimento biopsicossocial das mulheres com deficiência e na naturalização da violência sofrida, além de concorrerem para que elas tivessem menos poder nas relações conjugais e familiares e ficassem mais vulneráveis à violência.

Destarte, as informações obtidas por meio da pesquisa evidenciaram que a intersecção de determinantes como os de gênero e classe social com a deficiência produz opressão e vulnerabilidade, confirmando estudos como o de Ferres, Megias e Exposito (2013). Além disso, conforme também identificado por Mays (2006), as questões de gênero contribuíram para a naturalização das violências experienciadas cotidianamente pelas entrevistadas.

Por fim, constatou-se que o processo de constituição das mulheres entrevistadas foi mediado principalmente por significações relacionadas à infantilização, à atribuição do lugar social de assexuadas, à negação da possibilidade de tomar decisões em todas as dimensões da vida, à discriminação do corpo dissonante dos padrões atuais difundidos pelos discursos médicos e midiáticos, à caracterização delas como incapazes de reproduzir as atribuições de gênero instituídas socialmente e à limitação do acesso de ir e vir e consequente isolamento social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo identificou que gênero e deficiência são categorias que se interseccionam nas dimensões da corporeidade, trabalho e maternidade, produzindo violências e vulnerabilidades. As informações obtidas evidenciaram que as mulheres entrevistadas também se apropriam das expectativas e posicionamentos identitários/subjetivos socialmente construídos referentes às atribuições caracterizadas como femininas, como as de casar, ter filhos e manter o corpo de acordo com os padrões contemporâneos de beleza e de sedução. Observou-se que a impossibilidade de reprodução de tais atribuições, decorrente do embate entre as características destes modos de variação corporal em sua interação com os atributos de gênero e conjugalidade hegemônicos, gerou, ao longo de suas vidas, grande sofrimento.

As prescrições relativas à feminilidade e suas intersecções com a deficiência também contribuíram para a naturalização da violência de gênero, corroborando as informações obtidas nos estudos realizados por autores como Thorne et al. (1997) e Mays (2006). Diante do fato de que a população com deficiência vem crescendo no Brasil e no mundo e que a intersecção entre gênero e deficiência produz opressão e vulnerabilidades, destaca-se a relevância de estas categorias de análise serem consideradas nas pesquisas e no trabalho de intervenção profissional dos psicólogos e demais profissionais que atuam junto a esta população.

Acredita-se que a realização de pesquisas e intervenções profissionais com foco na intersecção entre gênero e deficiência é um ato político, pois pode contribuir para a ampliação dos direitos humanos deste grupo social. Por outro lado, destaca-se a relevância de se dar voz a este público tradicionalmente esquecido pelos autores que estudam gênero e pelos que atuam no campo da deficiência sob a ótica biomédica (Ferri & Gregg, 1998).

Ademais, a Convenção sobre os Direitos as Pessoas com Deficiência, produzida na plenária da ONU por meio de grandes debates com os movimentos sociais, já preconiza que as mulheres com deficiência devem ser protegidas de violências e ter sua autonomia e seus direitos sexuais e reprodutivos garantidos em igualdade de oportunidade com as sem deficiência. Diante disso, acredita-se que os profissionais da Psicologia e demais áreas do conhecimento podem contribuir para a difusão deste documento e para a implementação das ações relacionadas à igualdade de gênero propostas nesse documento.

Os psicólogos, por meio de sua inserção nas políticas públicas (programas do governo), podem contribuir para tornar os profissionais das equipes nas quais eles estão inseridos mais sensíveis às necessidades das pessoas com deficiência e à implementação da Convenção. Este profissional também pode se inserir nos movimentos sociais visando contribuir para o empoderamento e a participação política das pessoas com deficiência.

Enfim, destaca-se a emergência deste modo de conceber o fenômeno da deficiência no contemporâneo e seu potencial emancipatório. Ressalta-se que se trata de uma experiência marcada pelo enfrentamento de barreiras que se atravessam com outras dimensões sociais até então ignoradas pela hegemonia histórica do modelo médico da deficiência. Neste sentido, fazer avançar esta concepção crítica da deficiência, proporcionando visibilidade a esses processos, é um caminho importante para abarcar a complexidade inerente a esta categoria e fazer valer a perspectiva ética que subjaz às conquistas dos direitos humanos destas pessoas.

Recebido em 03/04/2012

Aceito em 10/06/2013

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    O conceito de apropriação, com base na Psicologia vygotskiana, refere-se ao movimento do sujeito no sentido de tornar intrapsicológico o conhecimento culturalmente produzido e compartilhado e imprimir a ele um sentido singular/subjetivo. Este processo pelo qual o conhecimento passa do nível interpessoal para o nível intrapessoal foi denominado por Vygotski de processo de internalização.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jun 2015
    • Data do Fascículo
      Set 2013

    Histórico

    • Recebido
      03 Abr 2012
    • Aceito
      10 Jun 2013
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