Acessibilidade / Reportar erro

A maior dor do mundo: o luto materno em uma perspectiva fenomenológica

The biggest pain in the world: the mother´s mourning from a phenomenological perspective

El dolor más grande en el mundo: el luto materno en una perspectiva fenomenológica

Resumos

O presente trabalho busca refletir sobre a vivência do luto materno na sociedade brasileira contemporânea, a partir da perspectiva fenomenológico-existencial. Foi realizada uma pesquisa qualitativa com três mães enlutadas. Utilizou-se o método fenomenológico de entrevistas, com uso de pergunta disparadora. A análise dos dados seguiu os quatro passos metodológicos de Giorgi. O relato das mães evidenciou diferentes temáticas, descritas por meio de dez elementos constituintes da vivência de luto materno, a saber: dor; perda de um modo de existir; espiritualidade; culpa; perda do sentido do mundo-da-vida; vontade de morrer; fragmentação dos laços afetivos; engajamento em projetos relacionados ao filho; perpetuação da memória do filho; estreitamento de laços com pessoas significativas para o morto. Os resultados obtidos na pesquisa indicam que, embora o luto se modifique ao longo do tempo, a perda de um filho jamais é superada, sendo este sofrimento compreendido não mais como uma condição patológica, mas como especificidades a serem compreendidas.

Luto; luto materno; psicologia fenomenológica


This paper aims to reflect on the experience of grieving mothers in contemporary Brazilian society from an existential-phenomenological perspective. We performed a qualitative study with three mourning mothers, using the phenomenological interview method with a starter question. Analysis of the data followed Giorgi's four methodological steps. The reports of the mothers showed different themes, described by ten constituents of the grieving´s mother experience, as following: Pain, Loss of a way of being, Spirituality, Guilt, Loss of life-world´s sense, Will to die, Fragmentation of affective bonds, Engagement in projects related to the child, Perpetuation of the memory of the son, Strenghtening of ties with a deceased´s significant others. The results indicate that although the grief changes over time, mothers never fully recover from their loss. This leads us to understand the mothers' suffering as a non-pathological condition but with specific features to be understood.

Grief; maternal mourning; phenomenological psychology


Este trabajo tiene como objetivo reflexionar sobre la experiencia del luto materno en la sociedad brasileña contemporánea, desde la perspectiva fenomenológico-existencial. Se realizó una investigación cualitativa con tres madres enlutadas. Se utilizó el método fenomenológico de entrevistas con una pregunta disparadora. El análisis de los datos siguió los cuatro pasos metodológicos de Giorgi. El relato de las madres señaló diferentes temáticas, descriptas por diez componentes constituyentes de la experiencia de luto materno, siendo: Dolor, Pérdida de un modo de existir, Espiritualidad, Culpa, Pérdida del sentido del mundo-de-la-vida, Deseo de morir, Fragmentación de lazos afectivos, Participación en proyectos relacionados al hijo, Perpetuación de la memoria del hijo y Lazos más estrechos con personas significativas para el muerto. Los resultados del estudio indican que aunque el luto se modifique a lo largo del tiempo, la pérdida de un hijo jamás es superada, entendiendo este sufrimiento no más como una condición patológica, sino con características específicas que deben ser comprendidas.

Luto; luto materno; psicología fenomenológica


ARTIGOS

A maior dor do mundo: o luto materno em uma perspectiva fenomenológica

The biggest pain in the world: the mother´s mourning from a phenomenological perspective

El dolor más grande en el mundo: el luto materno en una perspectiva fenomenológica

Joanneliese Lucas de FreitasI; Luís Henrique Fuck MichelII

IDoutora em Psicologia pela Universidade de Brasília, professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná, Brasil

IIBolsista de Iniciação Científica da Universidade Federal do Paraná, vinculado à linha de pesquisa "Luto e trauma: apontamentos clínicos"

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Joanneliese Lucas de Freitas Praça Santos Andrade, 50, sl. 215 Ala Alfredo Buffren Centro - Curitiba-PR CEP 80.060-240 E-mail: joanne@globo.com

RESUMO

O presente trabalho busca refletir sobre a vivência do luto materno na sociedade brasileira contemporânea, a partir da perspectiva fenomenológico-existencial. Foi realizada uma pesquisa qualitativa com três mães enlutadas. Utilizou-se o método fenomenológico de entrevistas, com uso de pergunta disparadora. A análise dos dados seguiu os quatro passos metodológicos de Giorgi. O relato das mães evidenciou diferentes temáticas, descritas por meio de dez elementos constituintes da vivência de luto materno, a saber: dor; perda de um modo de existir; espiritualidade; culpa; perda do sentido do mundo-da-vida; vontade de morrer; fragmentação dos laços afetivos; engajamento em projetos relacionados ao filho; perpetuação da memória do filho; estreitamento de laços com pessoas significativas para o morto. Os resultados obtidos na pesquisa indicam que, embora o luto se modifique ao longo do tempo, a perda de um filho jamais é superada, sendo este sofrimento compreendido não mais como uma condição patológica, mas como especificidades a serem compreendidas.

Palavras-chave: Luto; luto materno; psicologia fenomenológica.

ABSTRACT

This paper aims to reflect on the experience of grieving mothers in contemporary Brazilian society from an existential-phenomenological perspective. We performed a qualitative study with three mourning mothers, using the phenomenological interview method with a starter question. Analysis of the data followed Giorgi's four methodological steps. The reports of the mothers showed different themes, described by ten constituents of the grieving´s mother experience, as following: Pain, Loss of a way of being, Spirituality, Guilt, Loss of life-world´s sense, Will to die, Fragmentation of affective bonds, Engagement in projects related to the child, Perpetuation of the memory of the son, Strenghtening of ties with a deceased´s significant others. The results indicate that although the grief changes over time, mothers never fully recover from their loss. This leads us to understand the mothers' suffering as a non-pathological condition but with specific features to be understood.

Keywords: Grief; maternal mourning; phenomenological psychology.

RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo reflexionar sobre la experiencia del luto materno en la sociedad brasileña contemporánea, desde la perspectiva fenomenológico-existencial. Se realizó una investigación cualitativa con tres madres enlutadas. Se utilizó el método fenomenológico de entrevistas con una pregunta disparadora. El análisis de los datos siguió los cuatro pasos metodológicos de Giorgi. El relato de las madres señaló diferentes temáticas, descriptas por diez componentes constituyentes de la experiencia de luto materno, siendo: Dolor, Pérdida de un modo de existir, Espiritualidad, Culpa, Pérdida del sentido del mundo-de-la-vida, Deseo de morir, Fragmentación de lazos afectivos, Participación en proyectos relacionados al hijo, Perpetuación de la memoria del hijo y Lazos más estrechos con personas significativas para el muerto. Los resultados del estudio indican que aunque el luto se modifique a lo largo del tiempo, la pérdida de un hijo jamás es superada, entendiendo este sufrimiento no más como una condición patológica, sino con características específicas que deben ser comprendidas.

Palabras-clave: Luto; luto materno; psicología fenomenológica.

A literatura aponta que o luto é uma reação ao rompimento irreversível de um vínculo significativo (Brice, 1991; Freitas, 2013; Kovács, 1992; Parkes, 1998). A vivência do luto está vinculada à qualidade da relação que havia com o morto e às circunstâncias que o levaram a morte. Para Kovács (1992), o processo de luto só estará finalizado quando existir "a presença da pessoa perdida internamente em paz, e há espaço disponível para outras relações" (p. 50).

Segundo uma interpretação de cunho fenomenológico, o luto é vivenciado como a morte de um modo de relação entre o morto e o enlutado, decorrente da ruptura da intercorporeidade (Freitas, 2013). Com a supressão do outro, há uma perda de sentido do mundo-da-vida com exigência de nova significação. A vivência do luto impõe, por conseguinte, novas formas de ser-no-mundo, uma vez que aquelas anteriormente dadas não podem ser vividas novamente, e assim não haveria uma exigência de ressignificação do luto, mas da relação com aquele que morreu (Brice, 1991, Freitas, 2013). Como não é passível de resolução, essa vivência é assumida como uma nova condição existencial: "Do ponto de vista fenomenológico-existencial não há resolução ou substituição possível, como defende a psicologia clássica, mas possibilidades de reconfiguração de um campo de coexistência, do mundo vivido, a partir dessa ausência-presente do outro, do 'tu' em 'mim'" (Freitas, 2013, p.104).

Um dos primeiros estudos em fenomenologia sobre luto materno foi conduzido nos Estados Unidos nos anos 80 (Brice, 1991). Segundo Brice (1991), a característica essencial do luto materno é ser uma vivência conflituosa, ambígua e paradoxal. Em sua pesquisa, o autor descreve a estrutura desta vivência a partir dos seguintes temas: O poder coercitivo da morte; A morte de um mundo; A morte de sua relação dialógica com o filho; Incorporando a morte; Fenômeno essencialmente paradoxal; Diferenciando imagem de presença; A temporalidade do luto; A criança como objeto transicional; Finalidade; Luto como identidade e crise de realidade; Reconhecimento, aceitação e desconhecimento; Um fenômeno essencialmente relacional; Mundo identificado com a morte; Culpa.

Em um estudo fenomenológico que investiga a vivência da perda de filhos com câncer no contexto brasileiro, Silva (2013) destaca que o luto desperta nas mães uma infinidade de sentidos, constituindo-se como uma experiência singular, mas, como destaca, sem perspectiva de resolução. Seguindo pelo olhar fenomenológico, o luto deve ser analisado por meio de seus aspectos diversos, que abrangem: seu modo de apresentação particular; o horizonte histórico; evidenciando os significados culturais e sentidos familiares sobre a morte e o luto; e, especialmente, a mudança abrupta na relação eu-tu, decorrente da supressão do tu em seu aspecto de intercorporeidade (Freitas, 2013). Este último aspecto pode ser compreendido no caso dessa pesquisa, como a supressão do "tu-filho" na relação com o "eu-mãe", impondo à mãe um novo modo de vivenciar a maternidade e a si mesma (Brice, 1991).

Os estudos de Brice (1982, 1991) e Martins (2001) afirmam que perder o filho é viver uma promessa não realizada, é perder o próprio futuro. A literatura mostra também que, além da perda do futuro, a perda de um filho é vivida pelas mães como a perda de uma parte de si, a amputação de um pedaço do corpo. A saudade é vivida com sofrimento e ocorre para elas uma profunda mudança de valores. Em sua pesquisa, Martins aponta que a morte do filho é experienciada como uma contingência especial que poderia ser evitada; é sentida como um acontecimento que impõe uma inversão do curso natural da vida pela qual a mãe se culpa.

Em uma tentativa de manter o vínculo, as mães idealizam seus filhos e engajam-se em um trabalho que a autora chama de memorialista, no qual se mantêm presentes a lembrança dos filhos e o vínculo com eles, por intermédio da memória e do perpétuo relato de sua história. Tal vivência foi denominada por Alarcão, Carvalho e Pelloso (2008) como "mumificação da memória" (p. 344), e por Gianinni (2011) como reconhecimento, um ato geralmente partilhado com outros que auxilia na ressignificação da vivência do luto. Tais práticas, segundo Gudmundsdottir e Chesla (2006), são algumas das tantas possíveis praticadas pelas famílias como modos de lidar com o luto, em uma sociedade onde os rituais estão enfraquecidos e perderam seu papel de marcadores de processos de mudança.

A espiritualidade é ressaltada pela literatura como um dos caminhos de significação mais relevantes para mães e famílias enlutadas, pois oferece sentidos para a condição humana da finitude (Alarcão et al., 2008; Gudmundsdottir & Chesla, 2006; Martins, 2001; Paula, 2010; Silva, 2013). Martins (2001) destaca que o tempo não contribui especialmente para uma resolução do luto ou para uma diferença significativa do "comportamento sofredor" (p.106); contudo, dentre as 117 entrevistadas pela autora, as mães enlutadas há mais tempo apresentavam, segundo ela, um discurso mais elaborado. Uma diferença interessante apontada pela pesquisadora foi o fato de que as mães com maior escolaridade são mais contidas na manifestação da dor, o que indica diferenças culturais importantes sobre a discrição na expressão das emoções, discrição tão característica da vivência do luto no Brasil, como destaca Koury (2010), mas nem sempre verificada na literatura internacional (Brice, 1991; Gianinni, 2011).

As representações sociais de maternidade, o estudo da relação entre mãe e filho e a compreensão do sentido que morte e luto têm em nossa sociedade são questões centrais para que se possa conhecer melhor o contexto em que a vivência do luto materno está inserida; no entanto, tais elementos devem ser articulados à vivência do luto, para uma melhor compreensão do fenômeno (Barbosa, Melchiori & Neme, 2011; Freitas, 2013; Gudmundsdottir & Chesla, 2006). Por isso optamos por um estudo fenomenológico, o qual é capaz de acessar as vivências do enlutamento por meio da descrição compreensiva. O presente trabalho tem, então, como objetivo, refletir sobre a vivência do luto materno em nosso contexto contemporâneo.

METODOLOGIA

A opção pelo método fenomenológico está fundamentada na abertura deste método à descrição dos fenômenos tal como eles são vivenciados. A partir da redução fenomenológica, com sua suspensão da atitude natural, busca-se uma síntese descritiva da experiência vivida por aqueles que participam da investigação (Giorgi & Sousa, 2010). O método fenomenológico é a descrição das experiências vividas sobre um determinado fenômeno, que no presente estudo são as vivências do processo de luto materno.

Esta pesquisa está inserida em um amplo projeto sobre luto, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Setor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná, projeto número CAAE: 10891313.7.0000.0102 e obedece às Diretrizes e Normas Regulamentares de Pesquisa Envolvendo Seres Humanos estabelecidas pelas resoluções 196/96 e 251/97 do Conselho Nacional de Saúde. Foram realizadas entrevistas abertas, de caráter exploratório, com a pergunta disparadora: "Você pode descrever sua experiência ao passar pelo luto?". Não houve limite de tempo determinado, permitindo-se que as mães falassem livremente sobre suas experiências. As entrevistas foram gravadas e transcritas. Antes do início das entrevistas, as participantes leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que lhes garantia a ética e o sigilo na condução da pesquisa. Foi oferecido atendimento psicológico às participantes, caso sentissem necessidade diante do tema da entrevista.

A análise das entrevistas seguiu o método fenomenológico de investigação em psicologia fenomenológica de Giorgi, dividido em quatro passos: 1. estabelecimento do sentido geral; 2. divisão em unidades de significado; 3. a transformação das unidades de significado em expressões de caráter psicológico; 4. a determinação da estrutura geral de significados psicológicos. Esta última parte consiste na convergência das vivências das diferentes entrevistadas (Giorgi & Sousa, 2010).

Participantes

Foram entrevistadas três mães participantes de um grupo de apoio ao luto da cidade de Curitiba - PR, referidas neste trabalho por meio de nomes fictícios, em função do sigilo. Antes da realização das entrevistas os pesquisadores participaram das reuniões do grupo, o que propiciou um maior contato com essas mães, auxiliando na criação de vínculo com elas e na aproximação ao fenômeno do luto. Nesse contexto, três mães foram convidadas a participar de uma entrevista individual. Não foram levados em conta o tipo de morte ou o tempo da perda, uma vez que a literatura não aponta diferenças significativas na vivência da dor diante destas variáveis (Brice, 1991; Barbosa et al., 2011; Martins, 2001).

Perfil das mães

Dália perdeu os dois filhos mais velhos em um mesmo acidente (um rapaz de 19 anos e sua irmã de 17). Eles voltavam de uma festa com outros amigos quando o carro caiu em um lago, em uma estrada mal sinalizada. Os filhos de Dália tinham uma relação de muita proximidade entre si e eram considerados por sua mãe como amigos. O acidente ocorreu seis anos e onze meses antes da realização da entrevista.

Clematite perdeu uma filha com 24 anos de idade. Com problemas de saúde desde os três meses de idade, vivendo com uma enfermidade crônica, apresentou saúde frágil durante toda a vida. Faleceu no dia consagrado a Sant'Ana, de quem era devota (assim como a mãe). Por ter uma doença com implicações para o sistema imunológico, morreu em decorrência das complicações de uma varicela e permaneceu internada durante alguns dias antes de falecer. Clematite foi entrevistada dois anos e onze meses após a perda de sua filha.

Camélia perdeu um de seus dois filhos, que estava com 34 anos. Esta mãe não tem certeza de qual teria sido a causa mortis do filho, embora concorde que há indícios de suicídio. Na ocasião da morte, ele havia perdido o emprego, que o preocupava. Camélia afirma que, durante sua vida, ele teve um bom relacionamento com a família e foi um bom pai para sua filha. A entrevista foi gravada quatro anos e dois meses após seu falecimento.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Foram encontrados dez constituintes essenciais que descrevem a estrutura da vivência de luto das mães entrevistadas. Três desses constituintes estiveram presentes nos relatos de todas as mães, a saber: dor, perda de um modo de existir e vivência da espiritualidade. Os outros sete foram encontrados apenas no discurso de duas delas: culpa; perda do sentido do mundo-da-vida; vontade de morrer; fragmentação dos laços afetivos; engajamento em projetos que tivessem relação com o filho; perpetuação da memória do filho; e estreitamento de laços com pessoas significativas para o morto.

A análise dos discursos das três mães permitiu notar uma diferença qualitativa entre os constituintes estruturantes da vivência do luto. Em alguns, percebeu-se a mera descrição de aspectos presentes na vivência do luto, como a dor ou a culpa, por exemplo. Em outros casos, notou-se a presença do que se pode chamar de ressignificação. No caso dessas unidades, fica evidenciada uma nova forma de existir - já conformada às limitações impostas pela ausência de intercorporeidade. Elas ainda fazem parte da vivência do luto, por este ser um processo infindável, porém revelam novas formas de ser-no-mundo.

Perda do sentido do mundo-da-vida

As entrevistas apontaram a perda do sentido do mundo-da-vida como uma das consequências decorrentes da interrupção abrupta da relação entre mãe e filho. A perda de sentido é também descrita pela literatura sobre o luto materno (Brice, 1991; Martins, 2001; Silva, 2013), e é descrita como uma característica do processo de enlutamento (Davies, 2004; Freitas, 2013; Paula, 2010). Seus depoimentos demonstraram que a morte traz consigo uma necessidade de ressignificação dos valores e do sentido da vida. No instante que procede a morte, aquele que perde um ente querido parece ficar confuso e sem perspectivas. Sua relação com a vida sofre um abalo e lhe é exigido um novo sentido diante da ausência do outro e de sua nova configuração de vida, como vemos no relato de Clematite:

Porque ela.... A vida pra gente acaba! Parece que a gente desmancha.... Mesmo tendo a minha filha, meu marido, minha casa, parece que nada valia a pena.... Nem respirar mais! .... É a pior hora, né? A hora que você perde uma pessoa... Porque... Você não sabe nem o que pensar, é um terror!

Após a perda de uma pessoa amada, é comum que o enlutado reestruture seu futuro, devido aos impactos dessa perda em sua vida. Esse período de confusão, ou mesmo de esvaziamento, pode ser ainda maior e mais difícil se aquele que se foi ocupava grande parte do sentido de sua vida e do seu tempo no dia a dia, o que é frequente no caso de um filho (Brice, 1991). É evidente que cada relação entre mãe e filho guarda suas peculiaridades. Algumas mães serão muito próximas, chegando a afirmar que são amigas dos filhos, como Dália, por exemplo. A maternidade é um fenômeno muito complexo, cujo entendimento advém, sobretudo, de fatores culturais. Ser mãe é, em nossa cultura, um modo de existir significativo, possibilitado apenas pela presença de um "tu": o filho. Sobre a relação eu-tu no processo de luto, Freitas (2013) afirma que "O que falta ao enlutado, mais do que o 'tu', é um modo usual, habitual de ser 'eu', um modo de ser-no-mundo, uma infinidade de significações próprias e inerentes a um campo relacional" (p.103).

Perda de um modo de existir

Se podemos afirmar que ao nascer um filho nasce uma mãe, o que dizer quando uma mãe perde seu filho? Em outros modos de enlutamento, o status social do enlutado muda: de casado para viúvo, ou de filho para órfão, mas a mãe não adquire um novo lugar. Ela continua a ser mãe, agora, porém, de um filho morto. Por outro lado, será possível afirmar que, simbolicamente, há a morte de uma mãe quando morre seu filho?

Nas entrevistas, nota-se que são ressaltadas características especiais dos filhos que morreram as quais não podem ser encontradas nos filhos que permaneceram vivos. Tal discurso está presente na fala de Clematite, por exemplo, quando afirma: "Ela foi o meu anjo na minha vida, apesar de ter duas filhas, ela é assim, realmente né... uma benção". Algo da mesma ordem também se percebe quando Dália relata a diferença entre a relação que mantinha com os dois filhos que morreram e a que mantém com seu outro filho:

Eu sentia ali que eu perdi meus dois filhos e olhava pra eles.... E pensava assim... que meus melhores amigos.... Até o outro [filho mais novo] chegar na fase da adolescência e vim confidenciar... vim perguntar... eu vou sentir muita falta, viu?! ... Ele tá com 14 anos agora. Ele tinha oito na época... Só que ele não é... assim... tão... ele é diferente!

Para essas mães, não são apenas seus filhos que morreram, mas também morreu o modo de existir que se mostrava apenas na relação com eles. Para elas, não só foi interrompida a relação com os filhos, elas se sentem como se uma parte delas tivesse morrido junto com eles. O modo de ser que se mostrava de maneira única e especial naquela relação não pode ser substituído, o que se torna evidente também com o fato de que todas as entrevistadas, mesmo tendo outros filhos, afirmaram que a morte de um deles é uma perda irreparável, como enfatizam também outros estudos (Brice, 1991; Alarcão et al., 2008; Martins, 2001; Silva, 2013).

As mães destacam que a relação entre mãe e filho é dotada de uma característica especial que não se compara àquelas ordinárias, apresentando-se como da ordem do extraordinário, agregada de um elemento visceral, ou como vemos nas falas das mães entrevistadas por Martins (2001), uma perda de parte delas, de seu próprio corpo. Tal experiência se entrevê, por exemplo, no discurso de Camélia:

Eu tenho um vínculo com ele... sempre tive! Filho é filho, não adianta, pra uma mãe é um... é uma coisa, assim, extraordinária, não tem... é uma coisa visceral isso, é de vísceras, é de... é meio que... é a mesma pessoa! Eu sinto como se eu tivesse perdido... não vou dizer a metade de mim porque eu tenho outro filho, mas... mas grande parte de mim... grande, quase tudo!

O discurso dessa mãe demonstra o caráter especial que existe na relação entre mães e filhos ao relatar que filho é "uma coisa de vísceras". De acordo com o dicionário latino-português (Faria, 1991), a palavra vísceras já fora outrora utilizada por Ovídio em seu sentido figurado, como "ventre, filho, fruto das entranhas" (p.584). Herdamos também de Cícero (Faria, 1991) os sentidos de "carne..., coração, âmago" (p. 584). Disto, podem-se concluir duas coisas: 1- a relevância do filho como um ser essencial, estruturante na vida da mãe, fruto de sua carne, nascido de seu âmago; e 2- a ligação física entre ambos como uma recordação da intimidade do corpo da mãe com o filho - uma grande parte dela. Analisando a questão por este prisma, notamos que a nossa cultura valoriza a vivência da maternidade em suas etapas biológicas, como se essa lhe reservasse uma experiência única, exclusiva. Estas etapas são: gestação, parto e amamentação. Não obstante, ainda que se considere este fator importante para a criação do vínculo materno, é necessário ressaltar que, por si só, ele não é necessário, tampouco é suficiente para que exista um vínculo entre mãe e filho; mas pode ser um elemento desencadeador de uma visão naturalizante deste, em que se presume que a mulher possua um instinto materno, concepção corrente na contemporaneidade. Esta relação entre corporeidade e a perda de um filho merece ser aprofundada, dado que outros estudos revelam que a morte repentina de um filho é sentida corporalmente, especialmente na região abdominal (Brice, 1991; Gudmundsdottir, 2009).

Martins (2001), abordando a questão da naturalização do vínculo entre mãe e filho, lembra que este é fundamentado em representações sociais da cultura em que se vive. Segundo a autora, essas "são representações de uma relação que radica mais na natureza do que na cultura" (Martins, 2001, p. 19).

Culpa

Ao afirmar que a maternidade sofre intensa influência cultural, afirmamos também que o processo de luto materno e sua significação devem ser pensados em tal contexto. É neste sentido que procuramos compreender a presença da culpa enquanto constituinte da experiência do luto na maternidade. Ademais, a culpa, segundo Parkes (1998), é uma vivência esperada no processo de luto, entretanto ocorre de um modo acentuado entre mães enlutadas (Brice, 1991; Martins, 2001; Silva, 2013).

Em nossa sociedade a mãe aparece como a responsável por proteger seus filhos. É atribuído a ela o dever de zelar pelo bem-estar do filho em todos os âmbitos de sua vida, sendo que, se este falhar, também será ela a responsabilizada (Alarcão et al., 2008). A culpa da mãe já está presente quando o filho enfrenta problemas ou frustrações em vida. É comum nesses casos, que elas se perguntem, por exemplo: "Onde foi que eu errei?". Quando este filho morre, é também compreensível que elas se responsabilizem pelo ocorrido, mesmo quando este sentimento se encontra em oposição ao que elas próprias consideram como racional. Nas entrevistas ficou evidente que, embora elas percebam racionalmente que não havia meio de ajudar os filhos a escapar da morte, há um sentimento de culpa presente que lhes traz muito sofrimento.

No discurso de Dália encontramos o pensamento de que ela poderia ter feito algo para salvá-los. A despeito de não haver nenhuma possibilidade racional de ajuda naquele momento, ela afirma: "...se eu tivesse lá... eu teria... tentado... eu teria feito alguma coisa pra mim conseguir salvar eles, desafogado eles, eu sei que eu... eu tenho capacidade". As outras mães também parecem se responsabilizar. Clematite relata: "Mas só que eu punha em mim a culpa. 'Ai, meu Deus, por que que eu fui deixar ela ir trabalhar naquele lugar [onde se contaminou com a doença que a levou à, morte], ai meu Deus porque que...', sabe? Então aquela culpa me machucava muito!". A terceira mãe, Camélia afirma que, como mãe, deveria saber o que se passava com o filho (que estava depressivo e possivelmente tenha cometido suicídio).

Ao assumirmos que a maternidade é uma vivência ancorada na cultura, com representações que significam a mãe como protetora onipotente e onisciente em relação aos filhos, precisamos considerar que a culpa também está fundamentada nesse contexto. Esta perspectiva traz uma implicação prática para a vivência do luto materno, pois revela a culpa não como resultado de uma negligência ou descuido da mãe, mas como uma responsabilização que, repousada em sua função social, é culturalmente significada como intrínseca à função materna.

Dor

Outra característica que encontramos presente na vivência do luto materno é a dor, como aponta a literatura fenomenológica (Brice, 1991). A associação entre dor e luto já estava presente em relatos da Idade Média e perdura até os dias de hoje. De fato, este é um dos sentidos originários da palavra. Esta relação está registrada na etimologia da palavra luto, em francês (Ariès, 2003) e em português (Cunha, 2012; Faria, 1991).

Todas as entrevistadas relatam uma dor extrema, de grande intensidade. É possível perceber que elas encontram dificuldade em nomear o que sentem, o que evidencia a singularidade desta dor. Camélia torna isso claro em seu relato quando diz: "Cheguei a esmurrar a parede do... do... inúmeras vezes! Eu ia tomar banho, antes de dormir, o meu marido já deitado... eu urrava no banheiro! Urro assim, como fera mesmo, sabe?". Ocorre ainda uma observação importante por parte de Clematite, que afirma que a dor é algo comum entre todas as mães enlutadas, embora elas possuam "sofrimentos diferentes": "Então, no grupo é... cada um é o seu sofrimento diferente. A dor é uma dor única, eu acho assim, só que a gente... cada um leva a sua dor... de uma maneira". Esta afirmação vai ao encontro da tese de que, mesmo a partir de circunstâncias diferentes (que agregam à dor sofrimentos distintos), a dor do luto de um filho não é circunstancial ao modo da perda.

Fragmentação dos laços afetivos

A fragmentação dos laços afetivos após a morte dos filhos é mais uma das situações experienciadas pelas participantes. Esta fragmentação foi vivenciada de diferentes maneiras. Para Dália, o que ficou evidente foi um distanciamento das pessoas com quem convivia antes da morte dos filhos: "Os amigos deles se retiraram da minha casa, porque não suportavam ir lá e... olhar pra mim, saber que eles não tavam mais ali. Né, eles, eles... se retiraram, se afastaram... e eu comecei a me sentir sozinha...". No caso dela, este distanciamento se deu por parte dos amigos de seus filhos. Para Camélia, essa mudança foi sentida através de um silêncio em relação às pessoas: "Hoje em dia tá muuito diferente de antigamente, mas há um silêncio, em tudo.... O silêncio que eu senti, em relação às pessoas...". A partir dos relatos, é possível perceber que a fragmentação dos laços afetivos é vivenciada a partir dos sentimentos de solidão e de silêncio. São estes os modos de experienciar o distanciamento ou a ruptura das relações que costumavam fazer parte do cotidiano das mães antes da perda. Pode-se dizer que esta situação resulta da dificuldade que muitos de nossa sociedade têm em lidar com a morte, hoje considerada como um tabu (Ariès, 2003).

O silêncio que perdura em relação às famílias enlutadas está associado ao modo como o luto e a morte são vividos e representados na sociedade contemporânea. Como afirma Ariès (2003) "uma morte aceitável é uma morte que possa ser aceita ou tolerada pelos sobreviventes" (p. 86). Sendo assim, a expressão da emoção exacerbada que uma morte pode ser assumida como constrangedora, devendo ser mantida distante das vistas da sociedade, e neste caso, "o luto solitário e envergonhado é o único recurso" (Ariès, 2003, p. 87). Koury (2010) corrobora tal perspectiva, apontando a importância de ser discreto na construção social atual do brasileiro urbano de classe média. Segundo o autor, o comportamento de discrição na expressão das emoções, presente em nosso cotidiano, explica o modo pelo qual geralmente a sociedade se relaciona com o luto. Segundo Giannini (2011), nos EUA as famílias mais bem-sucedidas no processo de luto são aquelas que contam com suporte social, vivenciando inclusive um estreitamento de laços dentro da família. O autor sugere que o apoio social é mais comum do que a literatura aponta, contrariando os achados da atual pesquisa.

Vontade de morrer

Outra vivência que merece atenção especial na experiência do luto materno é a vontade de morrer. A partir do relato das entrevistadas, identificaram-se dois motivos que justificam esse sentimento por parte das mães: permanecer junto do filho e falta de perspectiva de futuro. Ambos os casos podem ser explicados pela perspectiva fenomenológica do luto, a qual aponta as implicações da interrupção abrupta da relação eu-tu (Freitas, 2013). O primeiro fator para o desejo de morrer pode estar associado ao estranhamento da mãe diante da impossibilidade de manter a relação eu-tu tal como a vivia anteriormente com o filho, dado que a sua atualização já não é mais possível. Tal vivência, associada a crenças em uma vida após a morte, apontada por algumas das entrevistadas, assinala a expectativa que algumas nutrem de que morrer seria uma possibilidade de preservar o modo de relação anterior. O relato de Camélia expressa o desejo de permanecer junto do filho: "Tinha vontade de rachar minha cabeça... sabe?... tive vontade de morrer, junto...". A situação pode ser agravada pela perda do sentido do mundo-da-vida, o que por si só já pode diminuir o vínculo desta mãe com o mundo.

O segundo fator está relacionado à dificuldade que as mães encontram de projetar um futuro na ausência dos filhos. Os dados encontrados por Martins (2001) confirmam esta tese. Em seu trabalho a autora demonstrou que a morte de um filho representa a perda de sonhos a respeito do futuro e a impossibilidade da realização de novas experiências. A perda de um filho é descrita como um corte no destino, uma promessa não realizada. A falta de uma perspectiva de futuro deixa as mães aflitas. Perceber um amanhã sem os filhos é angustiante e extremamente difícil, como se nota no discurso de Clematite: "O que será que vai acontecer? Qual será que vai ser o meu fim? Porque eu não quero viver, eu não quero".

Perpetuação da memória dos filhos

No relato das mães entrevistadas, o desejo de perpetuação da memória dos filhos também aparece como mais um elemento constituinte da vivência do luto, confirmando outros achados (Giannini, 2011; Gudmundsdottir & Chesla, 2006; Martins, 2001); contudo, resta a dúvida sobre o seu papel no processo de luto: ritualístico, de manutenção ou de abertura de sentidos?

O anseio de perpetuação da memória surge como uma tentativa de que o filho não seja esquecido pelos outros após sua morte. Há igualmente presente uma preocupação quanto à maneira como ele será lembrado. Elas desejam preservar a memória idealizada do filho, onde suas características positivas e qualidades são enfatizadas. O desejo de que sua filha seja lembrada como um exemplo é evidente no seguinte trecho da entrevista de Clematite:

... foi inaugurada ano passado,... então lá tem uma foto dela, como homenagem, é... exemplo de amor... sabe? Um monte de coisa bem bonito escrito lá! Então, é... ela vai ser lembrada sempre! E não que eu fique lá... é... cultuando, entendeu? Mas é um exemplo, que as pessoas doentes não se esmoreçam, tenham exemplo, né... fortaleça, é... Enquanto há vida, há luta, há esperança, né?

A despeito da função clara de não permitir que os aspectos bons da vida dos filhos sejam esquecidos, é ainda difícil compreender se este já seria um momento de ressignificação da relação eu-tu, ou propriamente um momento do processo de luto de um filho. Homenagens em cemitérios, locais públicos, fotos, relatos escritos e verbais da história do filho, manutenção do quarto do filho, entre outras tantas formas de perpetuar a sua memória, são manifestações amplas e complexas da relação que a mãe passa a ter com o filho morto. As informações e os dados obtidos nessa pesquisa são insuficientes para uma melhor compreensão deste fenômeno. De qualquer forma, permanece uma questão: a perpetuação da memória do filho pode ser já uma forma de ressignificação, preservando os aspectos significativos da relação eu-tu e permitindo sua atualização, apesar da supressão da intercorporeidade? Ou, por outro lado, o desejo de perpetuar a memória do filho seria reflexo de uma situação diametralmente oposta, impedindo a ressignificação da relação eu-tu?

Gudmundsdottir e Chesla (2006) defendem que tais práticas se inserem em um contexto de ressignificação da relação e fazem parte do processo de luto, cumprindo a função de manter um vínculo com o filho após a sua morte. Tais práticas surgiriam em uma sociedade na qual os rituais post mortem caíram em desuso, o que vemos acontecer também no Brasil (Martins, 2001). As autoras explicam que em uma sociedade em que os rituais post mortem têm perdido espaço, as famílias enlutadas empreendem tais atividades de perpetuação da memória e do vínculo como forma importante de lidar com a perda, especialmente em uma sociedade que não oferece suporte aos pais enlutados, esperando que estes retomem suas vidas pouco depois da morte de seus filhos. Giannini (2011) destaca o aspecto de reestruturação dos vínculos sociais alcançados por meio dessa prática. Em todas essas pesquisas é enfatizado o caráter pessoal e único de cada família nesse processo.

Engajamento em projetos relacionados ao filho

Enquanto o que o filho foi ou representou é ressaltado na perpetuação da memória, no caso do engajamento em projetos relacionados ao filho, o que ocorre é claramente um novo modo de se relacionar com o filho, como também aponta o estudo de Brice (1991). Neste caso, a ausência da intercorporeidade é claramente aceita, permitindo que o filho já morto - com suas lembranças e heranças - mantenha uma função na nova vida da mãe.

Clematite viveu toda a sua vida ao lado da filha em diversos hospitais, que é também o seu local de trabalho. Após perder a filha, esse passou a ser um ambiente inóspito. Demorou algum tempo até que ela pudesse perceber, com a ajuda do grupo de apoio, o seu trabalho naquele local como uma "missão". Ajudar pessoas com situações que remetem à de sua filha é difícil para ela, mas é também vivência significativa em seu processo de luto. No caso de Dália, sua "missão" é ainda mais evidente. Ela sempre soube que seu filho tinha o sonho de criar um projeto para crianças carentes. Após sua morte, ela assumiu o sonho do filho:

Então, meu filho sempre falava: "eu quero fazer um grupo pra chamar a atenção desses moleque, pra nóis reuni esses moleque aqui, pra nóis criar homem! Homem de montaria... homem de... de... sabe, de... respeito!". ... E eu tô me sentindo tão bem, tão feliz que eu tô conseguindo realizar o sonho do meu filho! ... Eu tenho... em torno dumas 30 criança, moleque e meninas, que tão indo pro meu grupo, e... e os pais, mães... acompanhando... eu tô conseguindo! (...) E isso me ajuda, tá me ajudando a superar também!

O discurso destas mães sinaliza que engajar-se em um projeto relacionado ao filho possui um forte e significativo valor na vivência do luto. Esse engajamento pode ser um fator de enfrentamento para mães enlutadas, uma vez que ao lidarem com a realidade da morte elas se permitem ressignificar o lugar de seus filhos em suas vidas, além de configurarem novos laços sociais que, como aponta Giannini (2011), são fundamentais para o processo de luto.

A relação entre o novo projeto assumido e o filho pode ocorrer de diversas maneiras, sendo sempre de cunho particular. O fundamental é a constatação de que a criação de uma nova forma de relação eu-tu, em que a mãe já compreende que o "tu" (filho) se apresenta de um modo novo e irreparável, permite estilos originais de existir enquanto "eu" (mãe), tal como defende a literatura fenomenológica, ou sejam que não é o luto, mas a relação com o falecido que carece de ressignificação no processo de enlutamento (Freitas, 2013).

Estreitamento de laços com pessoas significativas para o morto

Outra forma de ressignificar a relação eu-tu ocorre, segundo análise das entrevistas, por meio do estreitamento de laços com pessoas que foram significativas para o morto. O estreitamento de laços surge como uma maneira de as mães suportarem a perda. Essa pessoa significativa para o morto passa a ser um meio pelo qual as mães podem se relacionar com o filho falecido. Essa pessoa pode ser um parente, possuir características semelhantes às do filho perdido ou não, ou ainda, ter tido um papel importante em sua vida. O relevante é que algo do filho esteja associado a esse outro. Segundo Brice (1991), é comum que sejam estreitados os laços com os netos, especificamente aqueles que são filhos de seus filhos perdidos.

A relação de Dália com seu filho mais novo tem uma peculiaridade. A gravidez deste filho foi incentivada pelos filhos mais velhos, falecidos. Devido a esse fato, o filho mais novo assumiu para ela um papel extremamente significativo, sendo que se relacionar com ele hoje se tornou um modo de se relacionar com os filhos que perdeu: "eu procuro colocar ele como se fosse um presente... que eu ganhei dos meus filhos. Tá... Isso ajudou bastante!".

Com Camélia, estes laços foram estreitados por meio da relação com sua neta, filha de seu filho morto: "Essa criança é uma benção! Ela é continuação dele, é adorável, danaada... sabe?". No seu discurso fica evidente o papel da neta como uma continuação do filho. A presença de traços físicos e comportamentais dele em outra pessoa faz com que o "tu" (filho) permaneça presente e seja notado de uma nova forma na vida do "eu" (mãe). O filho se mantém de certo modo preservado, mesmo que agora se apresente de um modo diferente, por meio de um novo significativo. A mãe, embora assuma agora uma posição diferente como avó, terá a chance de se relacionar com alguém que carrega algo do filho perdido, encontrando assim uma nova maneira se relacionar com ele.

Vivência da espiritualidade

Por fim, temos a espiritualidade assumindo diversos papéis na vivência do luto materno. Como já se verificou na literatura (Alarcão et al., 2008; Gudmundsdottir & Chesla, 2006; Martins, 2001; Silva, 2013), esse é um elemento que permite a ressignificação da relação com o filho e a atenuação da dor da perda na esperança de um reencontro. Um dos papéis centrais da espiritualidade é ser um meio de as mães encontrarem sentido na morte de seus filhos e sustentarem a ideia de que estes permanecem vivos em outro lugar melhor. Em outras palavras, é possível afirmar que a espiritualidade se apresenta como uma alternativa à interrupção abrupta da intercorporeidade. Ela propicia, através da crença na vida após a morte, a manutenção da relação eu-tu, vivida agora de outra maneira, em qualquer experiência de luto (Gudmundsdottir & Chesla, 2006; Paula, 2010).

A expressão sobre a relevância da vivência da espiritualidade está presente no discurso das entrevistadas, quando relatam sobre a vivência da fé na experiência do luto. Dália, por exemplo, percebe Deus como o responsável por sua criação e por guiá-la. Ela acredita que seus filhos vieram de Deus e retornaram para Ele quando de sua morte. Esta visão ajuda-a a aceitar a morte dos filhos e a manter uma relação eu-tu com eles, ressignificada a partir de sua vivência espiritual: "aquele que me criou, ele me presenteou com meus filhos, me presenteou com a vida minha, com tudo o que eu tenho! Só que... ele deu apenas pra mim cuidar enquanto eu estiver... habitando aqui na Terra".

Para Clematite, a espiritualidade é um fator muito importante para a aceitação do que aconteceu com sua filha: "Deus me deu, eu cuidei, eu fiz minha parte, e... então essa é a parte de aceitar!". A religiosidade esteve sempre presente na relação entre mãe e filha, ambas eram muito devotas de uma mesma santa. O fato de sua filha ter morrido no dia comemorativo dessa santa é extremamente significativo para ela e a conforta muito. A relação eu-tu pode ser então ressignificada por meio da vivência espiritual, pois Clematite nutre uma fé admirável de que sua filha está "no céu". Sendo assim, sua relação com sua filha pode se dar por meio da religiosidade (rezando missas para ela, por exemplo). Por fim, a relação eu-tu com a filha se manifesta em suas atitudes diárias, por meio das quais ela procura agir de acordo com uma moral que permita um reencontro após a sua própria morte: "Eu continuo pensando nela... como ela foi boa, eu também quero ser boa pras pessoas, porque eu acredito que um dia, quem sabe a gente tenha a chance de... né? De se encontrar, sei lá, eu... sei lá...".

Além de permitir uma ressignificação da relação com os filhos e auxiliá-la na aceitação - algumas vezes nunca alcançada - da morte deles, a Espiritualidade surge ainda como um elemento de amparo, como demonstra o discurso de Camélia: "Me lembro que uma coisa que eu pensava: eu não posso perder a fé! Se eu perder a fé em Deus eu to perdida!".

CONCLUSÕES

A partir da análise da estrutura da vivência do luto das três mães entrevistadas, fica evidenciada a importância de analisar cada caso em sua especificidade, pois cada experiência é única e envolve condições próprias. A experiência da mãe em processo de luto deve ser respeitada de tal forma que esta possa agir diante da perda do filho contemplando as próprias limitações e necessidades, independentemente das cobranças e exigências sociais que possam sobrevir a elas. No decorrer do luto materno, é possível que as mães tenham experiências de perda de sentido e vontade de morrer, por exemplo, sem que tais vivências impliquem em um luto patológico. Essas possibilidades devem ser compreendidas e aceitas, pois estão relacionadas à nova realidade vivida quando da perda de um filho. Em outros estudos poderiam ser mais bem investigadas as relações entre a vontade de morrer, a falta de sentido e o desejo de manutenção da relação eu-tu da maneira de outrora, provocando, esta última, o desejo de unir-se ao filho por meio da própria morte.

A grande dor que uma mãe sofre ao perder um filho também deve ser destacada, especialmente em nosso contexto social de sobrevalorização do papel da mãe associado à discrição na expressão das emoções. Conforme se nota nas entrevistas, essa é uma experiência jamais superada, embora tenda a se modificar com o passar dos anos, à medida que a mãe encontra meios para lidar com a ausência do filho, tal como também escreve Brice (1991). Estes modos estão vinculados a rituais, novos projetos e novas significações vividas que devem ser reconstruídos na direção do fortalecimento dos vínculos familiares e sociais, uma vez que o luto não é um fenômeno individual, mas um fenômeno vivido relacionalmente.

A relação eu-tu, vivida antes como intercorporeidade, tende a passar por uma mudança de atualização, com ressignificação do filho e, especialmente de si mesma, ao se considerar e aceitar vivencialmente os impedimentos que a morte do outro apresenta. Podemos afirmar, consoante com outros estudos sobre o luto materno, que quando se perde um filho "nasce um modo de ser-com o filho ausente" (Silva, 2013, p.206). Percebeu-se que este novo modo de ser permite a elas uma continuidade da relação com o filho perdido e ocorre de variados modos, a depender de cada cultura, estrutura familiar e pessoalidade, tal como defende a literatura (Brice, 1991; Barbosa et al., 2011; Freitas, 2013; Gudmundsdottir & Chesla, 2006). A configuração de tal ressignificação é sempre muito singular e acontece em momentos distintos para cada mãe. Ainda assim, podemos apontar a vivência da espiritualidade, o engajamento em projetos relacionados ao filho e o estreitamento de laços com pessoas significativas para este, como constituintes possíveis de uma reestruturação da relação mãe-filho. Outros elementos constituintes da vivência de luto merecem ser mais estudados, como é o caso da culpa e do desejo de perpetuação da memória do filho, pelo caráter de mobilização de outros aspectos da vida da mãe enlutada que apresentam. Os resultados indicam ainda a necessidade de estudos que aprofundem as vivências corporais e familiares do luto.

Esta pesquisa buscou aproximar-se de uma compreensão mais profunda e mais perto da experiência do luto materno. Espera-se que essa aproximação possa contribuir para a melhoria da rede de atendimento ao luto, ampliando a compreensão e os modos de acolhimento à dor e às experiências de mães enlutadas, sendo um meio para que o luto materno receba o cuidado que merece, sem olhares e ações patologizantes.

Recebido em 01/11/2013

Aceito em 14/05/2014

  • Alarcão, A. C. J., Carvalho, M. D. B., & Pelloso, S. M. (2008). A morte de um filho jovem em circunstância violenta: compreendendo a vivência da mãe. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 16, 341-347. Recuperado em 30 de outubro, 2013, de http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-11692008000300002&script=sci_arttext&tlng=pt
  • Ariès, P. (2003). História da morte no ocidente (P. V. Siqueira, Trad.). Rio de Janeiro: Ediouro. (Original publicado em 1975).
  • Barbosa, C. G., Melchiori, L. E., & Neme, M. B. (2011). Morte, família e a compreensão fenomenológica: revisão sistemática de literatura. Psicologia em Revista, 17, 363-377. Recuperado em 30 de outubro, 2013, de http://periodicos.pucminas.br/index.php/psicologiaemrevista/article/view/P.1678-9563.2011v17n3p363/3763
  • Brice, C. W. (1982). Mourning throughout the life cycle. American Journal of Psychoanalysis, 42, 315-326.
  • Brice, C. W. (1991). What forever means: an empirical existential-phenomenological investigation of maternal mourning. Journal of Phenomenological Psychology, 22, 16-38.
  • Cunha, A. G. (2012). Dicionário etimológico da língua portuguesa (4. Ed.). Rio de Janeiro: Lexikon.
  • Davies, R. (2004). New understandings of parental grief: literature review. Journal of Advanced Nursing, 46, 506-513. Recuperado em 30 de outubro, 2013, de http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1365-2648.2004.03024.x/pdf
  • Faria, F. (1991). Dicionário escolar latino-português (6. ed.). Rio de Janeiro: FAE.
  • Freitas, J. L. (2013). Luto e fenomenologia: Uma proposta compreensiva. Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies, XIX, 97-105. Recuperado em 30 de outubro, 2013, de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rag/v19n1/v19n1a13.pdf
  • Giannini, G. A. (2011). Finding Support in a Field of Devastation: Bereaved Parents' Narratives of Communication and Recovery. Western Journal of Communication, 75, 541-564. Recuperado em 30 de outubro, 2013, de http://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/10570314.2011.608406
  • Giorgi, A., & Sousa, D. (2010). Método fenomenológico de investigação em psicologia Lisboa: Fim de Século.
  • Gudmundsdottir, M. (2009). Embodied grief: Bereaved parents' narratives of their suffering body. OMEGA: Journal of Death and Dying, 59, 253 - 269.
  • Gudmundsdottir, M., & Chesla, C. A. (2006). Building a new world: Habits and practices of healing following the death of a child. Journal of Family Nursing, 12, 143-164. Recuperado em 30 de outubro, 2013, de http://jfn.sagepub.com/content/12/2/143.full.pdf+html
  • Koury, M. G. P. (2010). Ser Discreto: Um estudo sobre o processo de luto no Brasil urbano no final do século XX. Revista Brasileira de sociologia da Emoção - RBSE, 9(5). Recuperado em 30 de outubro, 2013, de http://www.cchla.ufpb.br
  • Kovács, M. J. (1992). Morte, separação, perdas e o processo de luto. In M. J. Kovács (Org.), Morte e desenvolvimento humano (pp. 149-164). (3. ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Martins, G. (2001). Laços atados: A morte do jovem no discurso materno Curitiba: Moinho do Verbo.
  • Parkes, C. M. (1998). Luto: Estudos sobre a perda na vida adulta (M. H. P. Franco, Trad). São Paulo: Summus. (Original publicado em 1972).
  • Paula, B. (2010). Luto e existência: aproximações entre método fenomenológico e práxis religiosa. Revista Caminhando, 11, 102-112. Recuperado em 29 de outubro de 2013, de https://www.metodista.br/ppc/caminhando
  • Silva, P. K. S. (2013). Experiências maternas de perda de um filho com câncer infantil: Uma compreensão fenomenológico-existencial. Dissertação de Mestrado Não-Publicada, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal.
  • Endereço para correspondência:
    Joanneliese Lucas de Freitas
    Praça Santos Andrade, 50, sl. 215
    Ala Alfredo Buffren
    Centro - Curitiba-PR
    CEP 80.060-240
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Out 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Recebido
      01 Nov 2013
    • Aceito
      14 Maio 2014
    Universidade Estadual de Maringá Avenida Colombo, 5790, CEP: 87020-900, Maringá, PR - Brasil., Tel.: 55 (44) 3011-4502; 55 (44) 3224-9202 - Maringá - PR - Brazil
    E-mail: revpsi@uem.br