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Vida e resistência: formar professores pode ser produção de subjetividade?

Life and résistance: can training teachers be production of subjectivity?

Vida y resistencia: ¿formar profesores pode ser producción de subjetividad?

Resumos

Este artigo discute a formação de professores relacionando-a com as noções de vida e de resistência. Propõe uma análise que faz atravessar estas três noções: formação, vida e resistência. Esta análise acontece por meio dos estudos da produção de subjetividade na perspectiva de Michel Foucault, problematizando o fato de que na fronteira da constituição da existência, na zona de indeterminação que emerge dela, é possível tratar o tema da formação como produção de subjetividade. A noção de experiência-limite de Maurice Blanchot contribui para se poder afirmar que formar professores é produzir subjetividades. Com este agenciamento entre formação, vida e resistência, a ideia é pensar possibilidades de condições de trabalhos para professores que vêm sendo judicializadas e aprisionadas em formações ditas competentes para lidar com o contemporâneo e suas facetas, que cada vez mais investem em uma vida pret-à-porter para que se mantenha a permanência de práticas pedagogizantes. Contrário a esta posição, o artigo propõe agenciamentos para formar e desformar, assumindo os riscos e afirmando modos desindividualizantes e mais coletivos e assim facultando a expressão de uma formação inventiva de professores.

Subjetividade; formação de professores; invenção


This article discuss the teachers training linking it with the notions of life and résistance. It proposes an analysis that crosses these three notions: training, life and résistance. This analysis happens through studies of production of subjectivity under the perspective of Michel Foucault, problematizing that in the border of the existence constitution, inside the indeterminacy area that emerges from it, it is possible to deal with the subject of training as production of subjectivity. It uses, as well, the notions of limit experience of Maurice Blanchot to reassure that teachers training is to produce subjectivities. With this agency among training, life and résistance the idea is to think possibilities of work conditions to teachers that have been judicialized and trapped in supposedly competent trainings to deal with the contemporary and its aspects that, increasingly, invest in a pret -à-porter life in order to maintain the pedagogical practises. Against this view, the article proposes agencies to train and deform, owning the risks and asserting unindividualizing and more collective ways, therefore, allowing the expression of an inventive teachers training.

Subjectivity; teachers training; invention


Este artículo discute la formación de profesores relacionándola con las nociones de vida y de resistencia. Propone un análisis que hace con que se atraviesen estas tres nociones: formación, vida y resistencia. Este análisis se produce por medio de estudios de la producción de subjetividad en la perspectiva de Michel Foucault, problematizando que en la frontera de la constitución de la existencia, en la zona de indeterminación que emerge de ella, es posible tratar el tema de la formación como producción de subjetividad. La noción de experiencia-límite de Maurice Blanchot contribuye para poder afirmar que formar profesores es producir subjetividades. Con esta diligencia entre formación, vida y resistencia la idea es la de pensar posibilidades de condiciones de trabajos para profesores que vienen siendo judicializadas y aprisionadas en formaciones dichas competentes para lidiar con el contemporáneo y sus aspectos que, cada vez más, invierten en una vida pret -à-porter para que se mantenga la permanencia de prácticas pedagogizantes. Contrario a esta posición, el artículo propone diligencias para formar y des-formar, asumiendo los riesgos y afirmando modos desindividualizantes y más colectivos, facultando así, la expresión de una formación inventiva de profesores.

Subjetividad; formación de profesores; invención


ARTIGOS TEMÁTICOS

Vida e resistência: formar professores pode ser produção de subjetividade?1 1 Apoio e financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

Life and résistance: can training teachers be production of subjectivity?

Vida y resistencia: ¿formar profesores pode ser producción de subjetividad?

Rosimeri de Oliveira Dias

professora adjunta do Departamento de Educação e do PPGEDU Processos formativos e desigualdades sociais da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Faculdade de Formação de Professores da UERJ - Rua Francisco Portela, 1470 - Patronato – CEP 24. 435-005 - São Gonçalo-RJ. E-mail: rosimeri.dias@uol.com.br

RESUMO

Este artigo discute a formação de professores relacionando-a com as noções de vida e de resistência. Propõe uma análise que faz atravessar estas três noções: formação, vida e resistência. Esta análise acontece por meio dos estudos da produção de subjetividade na perspectiva de Michel Foucault, problematizando o fato de que na fronteira da constituição da existência, na zona de indeterminação que emerge dela, é possível tratar o tema da formação como produção de subjetividade. A noção de experiência-limite de Maurice Blanchot contribui para se poder afirmar que formar professores é produzir subjetividades. Com este agenciamento entre formação, vida e resistência, a ideia é pensar possibilidades de condições de trabalhos para professores que vêm sendo judicializadas e aprisionadas em formações ditas competentes para lidar com o contemporâneo e suas facetas, que cada vez mais investem em uma vida pret-à-porter para que se mantenha a permanência de práticas pedagogizantes. Contrário a esta posição, o artigo propõe agenciamentos para formar e desformar, assumindo os riscos e afirmando modos desindividualizantes e mais coletivos e assim facultando a expressão de uma formação inventiva de professores.

Palavras-chave: Subjetividade; formação de professores; invenção.

ABSTRACT

This article discuss the teachers training linking it with the notions of life and résistance. It proposes an analysis that crosses these three notions: training, life and résistance. This analysis happens through studies of production of subjectivity under the perspective of Michel Foucault, problematizing that in the border of the existence constitution, inside the indeterminacy area that emerges from it, it is possible to deal with the subject of training as production of subjectivity. It uses, as well, the notions of limit experience of Maurice Blanchot to reassure that teachers training is to produce subjectivities. With this agency among training, life and résistance the idea is to think possibilities of work conditions to teachers that have been judicialized and trapped in supposedly competent trainings to deal with the contemporary and its aspects that, increasingly, invest in a pret -à-porter life in order to maintain the pedagogical practises. Against this view, the article proposes agencies to train and deform, owning the risks and asserting unindividualizing and more collective ways, therefore, allowing the expression of an inventive teachers training.

Key words: Subjectivity; teachers training; invention.

RESUMEN

Este artículo discute la formación de profesores relacionándola con las nociones de vida y de resistencia. Propone un análisis que hace con que se atraviesen estas tres nociones: formación, vida y resistencia. Este análisis se produce por medio de estudios de la producción de subjetividad en la perspectiva de Michel Foucault, problematizando que en la frontera de la constitución de la existencia, en la zona de indeterminación que emerge de ella, es posible tratar el tema de la formación como producción de subjetividad. La noción de experiencia-límite de Maurice Blanchot contribuye para poder afirmar que formar profesores es producir subjetividades. Con esta diligencia entre formación, vida y resistencia la idea es la de pensar posibilidades de condiciones de trabajos para profesores que vienen siendo judicializadas y aprisionadas en formaciones dichas competentes para lidiar con el contemporáneo y sus aspectos que, cada vez más, invierten en una vida pret -à-porter para que se mantenga la permanencia de prácticas pedagogizantes. Contrario a esta posición, el artículo propone diligencias para formar y des-formar, asumiendo los riesgos y afirmando modos desindividualizantes y más colectivos, facultando así, la expresión de una formación inventiva de profesores.

Palabras-clave: Subjetividad; formación de profesores; invención.

Este trabalho trata do tema da formação, uma questão específica, embora não menos difícil e delicada, que quero discutir em sua relação com as noções de vida e de resistência. Estou propondo esta discussão de um lugar onde estas três noções se atravessam. Este lugar é o dos estudos da produção de subjetividade na perspectiva foucaultiana. Acredito que na fronteira da constituição da existência, na zona de indeterminação que emerge dela, é possível tratar o tema da formação como produção de subjetividade.

Quando falo em formação não quero este único sentido que lhe é atribuído pelo senso comum. Formação não é só dar forma a, o que já está dado de antemão ou que insiste como limite para o conhecimento; ao contrário, aqui a formação é pensada ensaisticamente como uma experiência modificadora de si (Foucault, 1984/1994), cuja tessitura exige de nós o esforço de fazer uma prática formativa que evite naturalizações e, com esse esforço, resistir e diferir. Precisamente uma concepção de formação concebida pela sua possibilidade de se deslocar (Dias, 2011), de se transformar, na relação com as coisas, com os outros, consigo mesmo, com a verdade - algo muito próximo do que Foucault (2007; 2010b) fez com seus estudos e livros sobre a loucura, a delinquência e a sexualidade, que dizem respeito àquilo que resultou de uma transformação profunda da relação que o próprio autor se viu impelido a ter com estes domínios. As contribuições de Foucault em diversos âmbitos não consistiram em reafirmar um progresso do conhecimento, uma acumulação de saberes e poderes, mas em provocar deslocamentos. Afirma Foucault (1994/2010a, p. 289):

Tenho absoluta consciência de me deslocar sempre, ao mesmo tempo, em relação às coisas pelas quais me interesso e em relação ao que já pensei. Não penso jamais a mesma coisa pela razão de que meus livros são, para mim, experiências, em um sentido que gostaria o mais pleno possível. Uma experiência é qualquer coisa de que se sai transformado. Se eu tivesse de escrever um livro para comunicar o que já penso, antes de começar a escrevê-lo, não teria jamais a coragem de empreendê-lo. Só o escrevo porque não sei, ainda, exatamente o que pensar sobre essa coisa em que tanto gostaria de pensar. De modo que o livro me transforma e transforma o que penso. Cada livro transforma o que eu pensava quando terminava o livro precedente. Sou um experimentador e não um teórico. Chamo de teórico aquele que constrói um sistema global, seja de dedução, seja de análise, e o aplica de maneira uniforme a campos diferentes. Não é o meu caso. Sou um experimentador no sentido em que escrevo para mudar a mim mesmo e não mais pensar na mesma coisa de antes.

Foucault toma o seu trabalho como um deslocamento, movimento que possibilita ao indivíduo diferenciar-se e experienciar uma relação consigo e com a produção de verdade. Com esta ideia movente, o filósofo se autodenomina um experimentador, - questão muito cara para uma formação inventiva (Dias, 2012), que não quer se reduzir ao lugar-comum de dar forma a, mas se coloca como uma formação-experiência, estando além das dimensões (im)pessoais, pois uma formação é feita consigo, com outros e para outros. Esta questão tem um alcance coletivo, dizendo respeito a uma prática que tem por objetivo desindividualizar, a um modo de pensar que extrapola o sujeito individual e se endereça à experiência daqueles que serão formados ou atravessam o caminho do formador. Nestes termos, uma formação-experiência se opõe a lógicas capacitadoras e pedagogizantes que formam produzindo verdades únicas e explicações que reduzem a relação com os saberes, os fazeres, as coisas. Estas lógicas capacitadoras e pedagogizantes são aqui entendidas por um modo naturalizado, que expressa uma formação universal e que se dá por aplicação de um saber prévio generalizante. Ao contrário de tais lógicas, “uma experiência é alguma coisa que fazemos inteiramente sós, mas só podemos fazê-la na medida em que escapará à pura subjetividade, em que outros poderão, não digo retomá-la exatamente, mas, ao menos, cruzá-la e atravessá-la de novo. ” (Foucault, 1994/2010a, p. 295).

Se isso poderia ser facilmente admitido para a experiência de formar um professor - que é, afinal, uma produção, um acontecimento -, como colocar nessa chave da fabricação da experiência aquilo que disparou uma formação inventiva? Como se abrir para uma formação que assuma uma dimensão de tessitura, coemergente na articulação entre pessoas, conhecimentos, relações, programas e gestos? Em que sentido seria possível tomar a formação como efeito de resistências que intensificam a vida? Seria possível em territórios escolares forjar práticas de experimentação ativa que tornem visíveis as diferenças? Como supor que isto seja uma tessitura coletiva?

Estas questões têm me acompanhado nos movimentos formativos e, neste trabalho, tematizo agenciando as noções de formação, de vida e de resistência. Para tanto, uso a perspectiva de produção de subjetividade de Foucault e a noção de experiência-limite de Blanchot para pensar uma formação-experiência. Junto com estes conceitos, que me guiarão no decorrer do trabalho, uso a noção de vida e de resistência para dizer que formar professores é produzir subjetividades e dessubjetivações. Com este agenciamento entre formação, vida e resistência à ideia é possível pensar possibilidades de condições de trabalho para professores diversas das que vêm sendo hegemonicamente praticadas e pensadas, as quais são judicializadas e aprisionadas em formações ditas competentes e habilidosas para lidar com o contemporâneo e suas facetas, que cada vez mais investem em uma vida pret-à-porter (Rolnik, 1997), identitária, para que se mantenha a permanência de práticas generalizantes. Contrariamente a esta posição de judicialização da experiência, o agenciamento é feito para formar e desformar assumindo os riscos de colocar a formação como invenção.

EM QUE SENTIDOS FORMAR PROFESSORES PODE ASSUMIR UMA DIMENSÃO DE PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE?

Aqui é necessário problematizar o que diariamente acontece em cada aula e cada espaço-tempo de preparação desta aula, no ensaio pensado como uma experiência modificadora de si (Foucault, 1984/1994), nas conversas e encontros feitos entre formadores e formandos. Por que falar em produção de subjetividade no lugar de formar professores? O que emerge por essa exigência que se cumpre ou se perde quando falo de um modo que implica diretamente a produção de subjetividade e seus efeitos no formar?

Pensar a formação de professores como produção de subjetividade serve de desvio do imperativo de identidade que marca o campo. A identidade é uma operação de formalização indutiva e dedutiva que faz com que se criem simetrias que autorizam a demarcação do território da educação em categorias que definam sujeito, objeto, didáticas e práticas pedagógicas a partir de uma dimensão abstrata, inteligível, harmoniosa e consensual. Esta operação identitária, embora seja fundamental para uma grande variedade de pensares e fazeres da educação, não é a única ferramenta que possuímos para forjar mundos e o si.

Produção de subjetividade e dessubjetivação, como propõe Foucault, entram como uma variante de um caminho possível à ânsia de um sujeito e um mundo dados previamente que se dão a conhecer. A profusão desta noção exige que se percorram suas experiências para compreender seus distintos modos de funcionar. Por isto é importante dizer, de início, que produção de subjetividade não é um termo a mais para designar o mesmo que sujeito, eu, consciência, identidade, personalidade, termos muito usuais no cotidiano pedagógico que insistem em manter o sujeito em seu lugar dado e determinado previamente. Não obstante, é bom lembrar que neste trabalho problematizo o modo como a formação de professores é hegemonicamente pensada e praticada; porém, quando desloco a subjetividade para o ângulo da sua produção, percebo aí a possibilidade de o indivíduo apropriar-se das forças em jogo na sua constituição e, com isso, expressar-se e criar-se de um modo inteiramente novo, singularizando sua experiência.

Feito isto, convoco Veyne (2008/2011) para a discussão, pois ele diz que Foucault anuncia que o sujeito é constituído, o sujeito não é natural, mas sim, feito em cada época do dispositivo, pelos discursos, pelas práticas de sua liberdade individual e suas estéticas. Afirma Veyne:

A constituição do sujeito corresponde a de suas maneiras: ele se comporta e se vê como vassalo fiel, súdito leal, bom cidadão etc. Um mesmo dispositivo que constitui esses objetos, loucura, carne, sexo, ciências físicas, governamentalidade, faz do eu de cada um certo sujeito [itálico do autor]. A física faz o físico. Assim como, sem um discurso, não haveria para nós objeto conhecido, não existiria sujeito humano sem uma subjetivação. Engendrado pelo dispositivo de sua época, o sujeito não é soberano, mas filho de seu tempo; não é possível tornar-se qualquer sujeito em qualquer época. Em compensação, é possível reagir contra os objetos e, graças ao pensamento, tomar distância em relação a eles, à religião como Igreja e clero, por exemplo.

De tal maneira que o homem nunca deixou de se constituir na série infinita e múltipla de subjetividades diferentes e que nunca terão fim, sem que nunca estejamos diante de algo que seria o homem.... Ao falar de morte do homem de maneira confusa, simplificadora, era isso o que eu queria dizer. A noção de subjetivação serve para eliminar a metafísica, o duplo empírico-transcendental que extrai do sujeito constituído o fantasma de um sujeito soberano. (p. 179).

Seguindo as direções apontadas por Veyne para compreender a produção de subjetividade e as experiências de dessubjetivação, uma espécie de prática de si, é preciso, a meu ver, colocar em análise duas noções importantes: dispositivo e estetização de si. Deleuze (1996; 1986/2005), ao analisar a obra de Foucault, diz que o trabalho deste último se apresenta como dispositivo concreto, um conjunto multilinear composto por linhas diferentes que seguem direções e processos que estão sempre em desequilíbrio.

O dispositivo configura-se como máquinas de fazer ver e falar para poder pensar em termos de linhas e regimes que se movimentam: “Não são nem sujeitos nem objetos, mas regimes que é necessário definir pelo visível e pelo enunciável, com as suas derivações, as suas transformações. ” (Deleuze, 1996, p. 85). Nos dispositivos existem múltiplas linhas de segmentaridades diversas, de visibilidade e de enunciação, de forças e de subjetivação, luz e enunciação que não são nem sujeito nem objeto, mas regimes definidos pelo visível, pelo invisível e pelo enunciável, com suas derivações e suas transformações. As linhas de forças comportam o saber e o poder. As linhas de subjetivação falam “de uma crise do pensamento de Foucault” (p. 86), que faz emergir o si, uma produção de subjetividade. Nestas linhas e regimes o que há é uma dimensão de si que não é de forma nenhuma um a priori que se encontre acabado, mas sim, um processo, uma produção de subjetividade, na medida em que o dispositivo o deixe ou o torne possível. Deleuze entende que não há uma fórmula geral nas linhas de subjetividade, o que há são linhas de fuga, uma potência de invenção. “O estudo da variação dos processos de subjetivação é uma das tarefas fundamentais que Foucault deixou aos que lhe estavam próximos. ” (p. 88). Em tais estudos há um traçado de efeitos forjados com a noção de dispositivo que destaco aqui: o repúdio dos universais e a abertura para a invenção, efeitos fundamentais que permitem dizer, com Deleuze, que pertencemos a dispositivos e agimos neles.

O dispositivo então se define pelo que se passa de mais duro e formal, atravessando as linhas que marcam a capacidade de se transformar, rachando e enfraquecendo as linhas mais duras e sólidas. Quando as linhas mais rígidas se fragmentam abre-se espaço e tempo para se traçarem caminhos de criação. “Não é predizer, mas estar atento ao desconhecido que bate à porta. ” (Deleuze, 1996, p. 94).

As diferentes linhas do dispositivo – visibilidade, enunciação, força e subjetivação – mostram bem o traçado metodológico e prático de Foucault: manter viva a força de uma linha atual. “O atual não é o que somos, mas aquilo em que nos vamos tornando, aquilo que somos em devir, quer dizer, o Outro, o nosso devir-outro. ” (Deleuze, 1996, p. 92). Veyne (2008/2011) complementa dizendo que o empreendimento de Foucault foi

... problematizar um objeto, perguntar-lhe como um ser foi pensado numa época dada (é a tarefa do que ele chamava de arqueologia), analisar (é a tarefa da genealogia, no sentido nietzschiano da palavra) e descrever as diversas práticas sociais, científicas, éticas, punitivas, médicas etc. que tiveram por correlato que o ser tivesse sido pensado assim. A arqueologia não busca extrair estruturas universais ou a priori, mas sim reduzir tudo a acontecimentos não universalizáveis. E a genealogia faz com que tudo desça de uma conjuntura empírica: a contingência sempre nos faz ver o que éramos ou somos. O que é nem sempre foi; isto é, foi sempre na confluência de encontros, de acasos, ao longo de uma história frágil, precária, que se formaram as coisas que nos dão a impressão de serem as mais evidentes. (Veyne, 2008/2011, p. 183).

Problematizar, analisar e enunciar práticas forjadas nos encontros educativos pode ajudar a pensar em uma formação de professores como produção de subjetividade? Para manter viva a questão, sigo com a segunda noção: estetização de si. A estética de si é um pensamento que se acentua no contexto do problema filosófico perseguido por Foucault, a saber: como se dá historicamente a constituição das subjetividades e quais os efeitos éticos, estéticos e políticos de tais definições (Foucault, 1994/2006). Trata-se de uma perspectiva ontológica que diz respeito à constituição dos sujeitos e, ao mesmo tempo, à forma como se dão suas relações de poder e de saber e suas relações consigo. Para Foucault, é na dimensão ética, pelas práticas de si, expressas na relação de si para consigo, que o indivíduo resiste e possibilita uma vida livre. Não obstante, nem toda prática pedagógica prevê uma positivação das experiências e da relação com o outro. Foucault (1994/2006) diz que o que unifica seus estudos é a noção de problematização, que

... não quer dizer representação de um objeto preexistente, nem tampouco a criação pelo discurso de um objeto que não existe. é o conjunto das práticas discursivas ou não discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para o pensamento (seja sob a forma da reflexão moral, do conhecimento científico, da análise política etc. ).... Como se constitui uma 'experiência' em que estão ligadas a relação consigo mesmo e a relação com os outros. (p. 243).

Trata-se da análise da constituição de uma experiência interessada na questão do sujeito e sua relação com a verdade. Esta problematização aprofunda o tema da estética da existência, estética que faz ver e falar o momento em que as forças ativas dominam as forças que tendem à submissão. é neste espaço-tempo que uma experiência formativa como invenção se produz e, ao mesmo tempo, forja uma vida bela e livre. A liberdade só é produzida no momento em que o indivíduo dirige a vida por si mesmo.

A própria matéria de uma estética de si aponta a capacidade de conduzir a vida liberta da moral em termos de juízo de valor, e é neste momento que se pode sair da armadilha da judicialização da experiência. Foucault (2004; 2010b) abre um campo de problematizações sobre as artes de viver, não no sentido de investigar uma vida de prazer ou de alegria entediada, mas sim, de governar a própria vida numa espécie de saber e de arte - algo como uma governabilidade implicada na relação de si consigo mesmo, que significa justamente essa noção de governabilidade entendida como um conjunto de práticas pelas quais é possível “constituir, definir, organizar, instrumentalizar estratégias que indivíduos, em sua liberdade, podem ter uns em relação aos outros. São indivíduos livres que tentam controlar, determinar, delimitar a liberdade dos outros e, para fazê-lo, dispõem de certos instrumentos para governar os outros. ” (Foucault, 1994/2006, p. 286). Governabilidade significa governar a si não por uma moral normalizadora e dominante, mas pela capacidade de dar forma a si próprio e de modular seus próprios valores, gestos, pensares e fazeres. “A noção de governabilidade permite fazer valer a liberdade do sujeito e a relação com os outros, ou seja, o que constitui a própria matéria da ética. ” (Foucault, 1994/2006, p. 286).

Nestes termos, o dispositivo e a estetização de si facultam problematizar a formação de professores como produção de subjetividade e necessidade de dessubjetivação e exigem colocar em análise e intervir diariamente nos focos de experiência para poder agir, escrever, comunicar, pensar e forçar o pensamento a pensar - termos que forjam um modo de expressão e um estilo da atitude. Formação não é somente dar forma a, representar um objeto preexistente e resolver problemas, sendo necessário um esforço para resistir às pedagogizações, pois há sempre uma resistência, uma invenção favorável à expressão de uma experiência ética, estética e política que problematiza para poder afirmar a vida lá onde ela acontece.

ENTRANDO PELOS MEIOS PARA PROBLEMATIZAR UMA VIDA JUDICIALIZADA E AFIRMAR A VIDA COMO POTÊNCIA E RESISTÊNCIA

A ideia de uma vida judicializada coloca a lei como produção de liberdade padronizada e regulada, definindo ações legais que devem ser tomadas, como a idade de entrada na escola, dentre tantos outros exemplos: “a lei enquadra a vida. ” (Scheinvar, 2012, p. 46). Neste enquadrar, como acentua Scheinvar, os processos de judicialização investem na verdade e instauram uma lógica para a vida que desqualifica outras possibilidades de existência, definindo como se deve educar, trabalhar, viver, cuidar dos filhos, o que é invenção, o que é formação, quais as práticas pedagógicas que formam para uma vida de liberdade padronizada, o que é uma relação de trabalho justa. Uma vida judicializada existe e se mantém por uma regra geral e definida por leis e princípios invariantes que, assim, podem ser aplicados e intervêm nas existências mais íntimas, incluindo desejos e estilos de pensar e fazer.

Com efeito, no campo da formação de professores enquadra-se para naturalizar e tomar a vida, nas relações pedagógicas, por meio de normas, currículos, avaliações, controles e imposições de um modo de governabilidade que apreende a vida e a reduz a práticas de controle que não permitem que ela se efetive nos acontecimentos, nas negociações, nos encontros e nas conversas.

Por isso, aqui sigo as sugestões de Foucault e digo que a vida na formação será tomada como algo a ser problematizado. – portanto a formação se distancia de modos representacionais e pedagogizantes, que antecipam o aprender como aquisição de competências. Desta maneira, ao colocar questões para a formação de professores estou retirando-a do dito lugar-comum, no qual ela é compreendida como naturalmente formativa, quando vista, obviamente, por um plano organizado que se sustenta na prefixação de níveis de habilidades ou processos a serem desenvolvidos que devem ser atingidos e por isto podem ser ensinados.

Ao desnaturalizar a vida e a formação envolvo os acontecimentos políticos, econômicos, sociais, educativos e subjetivos nela ocorridos que emergem quando diferentes formas e forças entram em ação, forjando efeitos que não podem ser antecipados e, por isto, precisam ser cartografados. Quando a formação diverge de sua versão naturalizada ela se associa a práticas formativas por meio de temas que destacam o controle da vida, a despotencialização do cotidiano, o questionamento do tema da experiência como somatório e acúmulo, os investimentos econômicos feitos para a manutenção de lógicas capacitadoras que privilegiam experiência como acúmulo e a produção de saberes e de especialistas nesse campo. Tomar a formação como um problema é incluir todas essas dimensões e outras impensadas em sua análise, privilegiando as experimentações ativas das micropolíticas que geram realidades vistas e ditas sobre e com ela. Faço isto para poder deslocar uma vida judicializada para uma vida como resistência e potência, seguindo junto com Foucault e Blanchot, que pensam a vida como um ensaio intenso que se coloca no eixo das relações problematizadoras e próximas para afirmar coletivos que desindividualizam e podem, com isto, pensar práticas formativas abertas à invenção de si e do mundo.

O sentido de vida ganha, assim, a dimensão de uma experiência-limite que mantém acesa a ideia de Blanchot (1986/2007), abordando a possibilidade permanente de o homem se colocar em questão. Desta maneira, Blanchot, conversando com Bataille, coloca em evidência a ideia de que a experiência exige o acontecimento de se colocar em questão, porque ela abre na existência acabada uma brecha para que isso que está definido deixe-se repentinamente transbordar e escapar como uma possibilidade, num inacabamento disforme, estranho. “De onde vem este movimento de exceder cuja medida não é dada pelo poder que tudo pode?” (Blanchot, 1986/2007, p. 190). Sobre esta questão feita a Bataille, em que Blanchot anuncia a necessidade de entender rigorosamente, eu cito:

é preciso entender que a possibilidade não é a única dimensão de nossa existência e que talvez seja-nos dado “viver” cada acontecimento de nós mesmos numa dupla relação: uma vez como aquilo que compreendemos, agarramos e dominamos (mesmo que com dificuldade e dolorosamente) relacionando-o a um bem qualquer, um valor qualquer, isto é, uma última instância, à Unidade; outra vez como aquilo que se subtrai a todo emprego e a todo fim, mais ainda, como aquilo que escapa a nosso próprio poder de prová-lo, mas à prova do qual não poderíamos escapar: sim, como se a impossibilidade, aquilo em que já não podemos poder, nos aguardasse atrás de tudo o que vivemos, pensamos e dizemos, por menos que tenhamos estado alguma vez no fim dessa espera, sem nunca faltar àquilo que exigiu esse excedente, esse acréscimo, excedente de vazio, acréscimo de “negatividade”, que é em nós o coração infinito da paixão do pensamento. (Blanchot, 1986/2007, p. 190).

Blanchot chama a atenção para uma vida que se coloca também sob outra forma quando a relaciona ao jogo do interdito e da resistência, o que ultrapassa o limite do possível. “O interdito marca o ponto onde cessa o poder” (Bataille, 1987 citado por Blanchot, 1986/2007, p. 190). Neste jogo, para Blanchot, é possível afirmar que a resistência não é um ato de que, em certas condições, a força e o domínio de certos homens se mostrariam ainda capazes. Ela designa aquilo que está radicalmente fora do alcance: um virtual que exige do homem se abrir quando o poder deixa de ser nele a última dimensão.

A dimensão virtual externa um pensamento e o porquê de a experiência não vir do sujeito, mas do movimento que a conduz e do qual ela não se separa, já que seus princípios exprimem o infinito do questionar. Por isto é necessário concluir sem pressa o que se passa entre o acontecimento, a produção de si e a dessubjetivação e demorar-se no acontecimento para experienciar um não saber que pode afirmar o que não é um produto, como resultado da dupla negação, e escapar a todas as oposições e dialéticas que se consumam antes da experiência. Afirma Blanchot (1986/2007, p. 193):

é o sim decisivo. é a presença sem nada de presente. Nessa afirmação que se libertou de todas as negações, que relegou e depôs o mundo dos valores, que não consiste em afirmar – em portar e suportar – o que é, mas se mantém acima, fora do ser e não depende portanto nem da ontologia, nem da dialética, o homem se vê atribuir, entre ser e nada e a partir do infinito desse entre-dois acolhido como relação, o estatuto de sua nova soberania, a de um ser sem ser no devenir sem fim de uma morte impossível de morrer. A experiência-limite é assim a própria experiência: o pensamento pensa aquilo que não se deixa pensar! O pensamento pensa mais do que pode pensar, numa afirmação que afirma mais do que o que se pode afirmar!

Blanchot (1986/2007) diz que o mais é a própria experiência de pensar e voltar-se contra a soberania do homem ao se fazer instrumento de soberania; uma experiência que não é um acontecimento vivido, mas se afirma e pode ser falada talvez na espessura estrangeira e flutuante de comunicar o visível e o invisível do ser da linguagem, que

... não aparece a si próprio senão no desaparecimento do sujeito. Como ter acesso a esta estranha relação? Talvez por uma forma de pensamento cuja possibilidade ainda incerta, a cultura ocidental esboçou nas suas margens. Este pensamento que se mantém fora de toda a subjetividade para fazer surgir como que do exterior os seus limites, enunciar o seu fim, fazer cintilar a sua dispersão e dela recolher apenas a invencível ausência, e que ao mesmo tempo se mantém no limiar de toda a positividade, não tanto para lhe apreender o fundamento ou a justificação, mas para redescobrir o espaço em que ela se desdobra, o vazio que lhe serve de lugar, a distância na qual ele se constitui e onde se esquivam as certezas imediatas assim que o olhar as procura –, este pensamento, por referência à interioridade da nossa reflexão filosófica e por referência aquilo a que poderíamos chamar em suma “o pensamento do exterior. ” (Foucault, 1966/2001, p. 15-16).

Ao afirmar o pensamento do fora, Foucault anuncia que o sujeito esvai-se, e com seu desaparecimento se manifestam movimentos sensíveis desejosos de estabelecer uma relação entre o desconhecido e o que transforma. O pensamento deixa de ocupar o lugar de verdadeiro para assumir a conotação de uma provisoriedade para as questões que emergem em um dado local e tempo, em um presente histórico - nem antes nem fora do tempo, com seus limites, possibilidades e mortes - pois o possível não é o que está dado, mas a coragem de inventar novas formas e modos de pensar e fazer e torná-los atuais. Isso implica arrancar o sujeito de si mesmo para dar visibilidade aos devires, para experimentar a relação com a alteridade, com o mundo, com a vida. A experiência do fora assume o sentido de um devir outro, um expresso que está em vias de se fazer, sem começo e sem fim, mas que se faz entre dois, que não é oposição nem complementaridade de dois opostos, mas a afirmação de uma diferença entre duas coisas distintas; contudo, vida e experimentação são distintas uma na outra, porém são indissociáveis. A vida aponta as condições por meio das quais emergem as experimentações, que, por sua vez, fogem, desviam-se da própria vida. Como se deslocar na vida produzindo desvios e fazendo devirem novas possibilidades de existência? Vida e devir são um fenômeno de dupla captura que “não é uma produção do Mesmo, é uma repetição do diferente. Não é a emanação de um Eu, é a instauração da imanência de um sempre-outro ou de um Não-eu. ” (Deleuze, 1988, p. 105).

A experiência do fora desdobra a vida presente, no sentido de uma atualidade em que não se volta ao passado para pensar o presente, mas para delimitar a diferença dos modos de existência em determinadas formações. O que nos forma? Que devires? Que deslocamentos? Quais os efeitos?

O que interessa a Foucault é a nossa atualidade, os sentidos que conseguimos ver, dizer, pensar para constituir modos de existência. é uma vida que acontece entre o que se deixa de ser e o que se transforma, um ressoar permanente de questões e forças que marcam as relações de poder e suas resistências; é poder sobre a vida e potência de vida. Blanchot e Foucault mostram-se fundamentais para se pensar a formação como produção de subjetividade, como correlação de forças que constituem modos de vida experienciais. Neste sentido, Foucault (1966/2001) busca em Blanchot a ideia do fora, para falar de um pensamento do exterior ou um pensamento de resistência; fora que não está dentro e nem é exterior; fora do eu de uma consciência crítica, de certezas naturalizadas; fora como abertura ao imprevisível, ao invisível, ao indizível, ao impensado, a qual, por isto, se afirma como uma potência dispersa e estranha.

Com efeito, pensar a formação como processo de produção de subjetividade pode assumir a composição de uma multiplicidade de forças em devir permanente que se desviam de práticas de judicialização para afirmar a vida pela sua potência de diferenciação. Como coloca Deleuze (1986/2005), o processo de formação é uma dobra do fora que guarda uma potência de resistência que distribui diferença. Formar é como uma dobra do fora para experienciar a vida e forjar um exercício de resistência e, assim, abrir-se aos deslocamentos; é uma tensão no campo da educação que se faz hegemonicamente como um campo de aplicação de didáticas e de pedagogias identitárias. Há uma necessidade incessante de se avaliar quanto se trabalha para a judicialização da vida ou para a expansão da vida, uma necessidade emergente de escolhas que respondam à desindividualização e à constituição de planos mais coletivos de se formar.

AGENCIAR PARA ARRISCAR, FORMAR, DESFORMAR E INVENTAR

As noções de dispositivo, de estetização de si, de produção de subjetividade e dessubjetivação se associam às ideias de formação, de vida e de resistência para a criação de um plano coletivo de formar que conceba a vida como uma obra de arte (Dias, 2011; 2012). Nestes termos, cada um dos conceitos e dos gestos de formar é um espaço-tempo de risco, e nisto, mais uma vez Blanchot (1955/2011) é convocado para forçar a pensar, quando traz uma passagem de uma carta de Rilke (1898/2011) endereçada a Clara Rilke, ao dizer que “... as obras de arte são sempre os produtos de um perigo corrido, de uma experiência conduzida até ao fim, até ao ponto em que o homem não pode mais continuar” (p. 193). E continua Blanchot (1955/2011), acrescentando que “a obra de arte está ligada a um risco, é a afirmação de uma experiência extrema. Mas qual é este risco? Qual é a natureza desse vínculo que a une ao risco?” (p. 257).

O risco de que o autor fala acima é o de assumir uma experiência-limite que objetiva terminar com a permanência do homem e da verdade para poder tensionar sua dimensão natural, formada e dada histórica e socialmente. Assumindo-se o risco amplia-se o grau de suportabilidade de uma experiência, e com isto é possível que se dê uma potência anônima, impessoal de uma formação que se comprometa mais com a dissolução de sua naturalização para que se possa deslocar e devir outro. O tempo da suportabilidade designa o tempo da feitura e da fabricação de uma obra de arte, de uma invenção, justamente porque as respostas certas vacilam e a problematização se mantém. No campo da formação de professores a ideia de invenção nos fortalece para analisar e intervir naquilo que se move e nos move, bem como seus efeitos diretos na vida dos formandos e formadores.

Com efeito, uma formação inventiva de professores (Dias, 2012) possibilita deslocamentos quando força o pensamento a se derivar daquilo que já está colocado como verdade, como um objeto a ser descoberto, como uma aprendizagem adquirida e um ensinamento forjado por códigos didáticos que pressupõem um plano de realidade configurado como origem da representação do real que legitima o corte sujeito/objeto, cultura/natureza, eu ensino/ele aprende, um plano que legitima um modelo e o replica por meio de métodos pedagógicos, processos de ensino e avaliações institucionais que regulam e judicializam a vida. Formar nestes termos, em modelos que regulam, carrega em si a razão e o entendimento que contribuem para um conhecer que forma um senso comum lógico como uma imagem dogmática do pensamento (Deleuze, 1988). Em outras palavras, geralmente formar assume uma representação capacitadora. Esta generalização possui elementos modelares que colocam a formação como ideal e, por isto, julga, prefigura, supõe, recorda, percebe a formação como idêntica, semelhante, analógica e oposta; contudo, o que há é uma produção identitária que se assenta principalmente na judicialização das relações, na pretensão de não escapar aos enquadramentos.

Contrária a esta posição modelar que judicializa a vida, uma formação inventiva de professores não acredita em projetos gerais, capacitadores de professores. Há na invenção outras formas que não convidam o pensamento a um exame, a um julgamento ou à manutenção de um modelo. Estas formas forçam o pensamento a pensar e se colocam como um aprender infinito, como uma instância problemática. Com esta dimensão problematizadora, a formação inventiva comparece, paradoxalmente, excedendo os estados perceptivos do vivido, podendo assim acontecer como um esforço de liberar a vida lá onde ela é aprisionada, facultando deslocamentos dos modelos representacionais - que colocam a formação como solução de problemas prévios - para um bloco de sensação no qual a formação assume a dimensão de invenção de problemas.

Um composto problemático que se abre, vibra e se enlaça para tecer uma experiência. O tema da invenção no campo da formação de professores passa a ser coletivo, o que implica, para a maioria, muitos riscos; mas é possível ver que a palavra invenção e a experiência que a atravessa trazem perigo e riscos. Desde já é bom deixar claro que o risco é signo da liberdade, e nisto sigo contando com Blanchot (1955/2011) para ajudar a pensar por que formar professores pode assumir uma dimensão de produção de subjetividade. Afirma o autor:

O homem é, de todos os seres, o que está sujeito a mais riscos, já que ele próprio vai ao encontro do risco. Construir o mundo, transformar natureza pelo trabalho, só tem êxito por um desafio audacioso no decorrer do qual o mais fácil é posto de lado. Entretanto, nesse desafio fala ainda a busca de uma vida protegida, satisfeita e segura, falam as tarefas precisas e os deveres justos. O homem arrisca sua vida, mas sob a proteção do dia comum, à luz do útil, do salutar e do verdadeiro. Por vezes, na revolução, na guerra, sob a pressão do desenvolvimento histórico, ele põe em risco o seu mundo, mas sempre em vista de uma possibilidade maior, para reduzir o longínquo, proteger o que é, proteger os valores aos quais seu poder está ligado – numa palavra, para compor o dia e dilatá-lo ou verificá-lo na medida do possível (Blanchot, 1955/2011, p. 258).

Como dilatar o possível? Qual risco se assume quando o que está em jogo é uma formação que tem por tarefa produzir deslocamentos entre subjetividades e dessubjetivações? Tal interrogação já não é surpreendente? Qual é o risco levantado por Blanchot que o artista espera? Talvez seja preciso acreditar mais no possível para que se possa inventá-lo, para que se processe uma experiência-limite. é necessário fazer uma distinção entre o possível que se realiza e se estabiliza e um possível que se inventa. Na formação, o primeiro refere-se ao possível como realização de um projeto previamente pensável e dado por determinações e limitações que pedagogizam gestos; já o possível inventado remete ao acontecimento que não e denominado previamente, mas se atualiza na singularização, efetivando uma transformação. Deleuze (1986/2005) diz da importância de se esgotar o possível como atualização de um estado de coisas, como apreensão da atualidade de uma situação para poder criar o possível como potência, como um campo de forças.

Esta dupla captura acredita na efetuação de um campo problemático e desacredita das ideias prontas, dos clichês, das totalidades, de que tudo já esteja dado de antemão, de que não temos nada a fazer, nada em que acreditar. Tomar o possível, no campo da formação como potência, como experiência de problematização, como criação de novas possibilidades de vida, de novos modos de existência, proporcionando pensar, fazer, sentir diferentemente.

Deleuze (1986/2005) diz que Foucault faz uma história das condições institucionais e dos sujeitos que integram relações diferenciais de forças, no horizonte de um campo ontológico e social. Para Deleuze, o que perturba Foucault é o pensamento: “Pensar é experimentar, é problematizar. O saber, o poder e o si são a tripla raiz de uma problematização do pensamento” (p. 124); mas afirma um pensamento que prima pela diferença, pelo lado de fora, que explicita o impensado problemático e dá lugar a um ser pensante que se problematiza a si próprio, como sujeito ético. O que acontece é uma batalha, são relações de forças, intensidades e estratégias que subjetivam e dessubjetivam. As forças vêm sempre de fora, atualizando e diferenciando sem deixar de se integrar. Deste modo, diferir é sempre um arriscar-se em contínuo movimento.

Blanchot (1955/2011, p. 260) afirma:

O risco que espera o poeta e, atrás dele, todo homem que escreve sob a dependência de uma obra essencial, é o erro. Erro significa o fato de errar, de não poder permanecer porque, onde se está, faltam as condições de um aqui decisivo; lá onde se está, o que acontece não tem a ação clara do evento a partir do qual qualquer coisa firme poderia ser feita e, por conseguinte, o que acontece, não acontece, mas tampouco passa, nunca é ultrapassado, chega, vai e volta incessantemente, é o horror e a confusão, e a incerteza de uma repetição eterna.... O risco que o homem corre quando pertence à obra, e quando a obra é a busca da arte, consiste, portanto, em que ele pode arriscar-se do modo mais extremo: não só arriscar sua vida, não só o mundo onde está, mas a sua essência, o seu direito à verdade e, mais ainda, o seu direito à morte.

O risco da obra de arte tomada como vida força o pensamento a pensar para fazer ressoar os dois pontos importantes destacados no início deste artigo para se pensar a formação como produção de subjetividade: dispositivo e estética de si. Deleuze (1996) recupera uma passagem do livro “Arqueologia do Saber”, de Foucault (1969/2005), para afirmar que o dispositivo possui linhas de estratificação ou de sedimentação e linhas de atualização ou de invenção. Destaco uma parte que acentua o caráter de risco que o dispositivo proporciona quando toma o desconhecido que bate à porta, o errante que problematiza e faz emergir o que está do lado de fora, o que é diferença. Foucault (1969/2005, citado por Deleuze, 1996, pp. 94-95) explica:

A descrição do dispositivo dissipa essa identidade temporal em que gostamos de olhar para nós próprios para exorcizar as rupturas da história; ela quebra o fio das teleologias transcendentais; e no lugar onde o pensamento antropológico interrogava o ser do homem ou a sua subjec-tividade, ela faz com que se manifeste o outro, o que está do lado de fora. O diagnóstico, assim entendido, não confere o certificado da nossa identidade por intermédio do jogo das distinções. Ele demonstra que nós somos diferença, que a nossa razão é a diferença dos discursos, a nossa história a diferença dos tempos, o nosso eu a diferença das máscaras.

Deleuze (1996) destaca que as linhas de um dispositivo englobam toda a obra de Foucault, expressando seu método e estratégia, que são extremamente novos ao analisarem as práticas discursivas, os jogos de poder e modos de existência como foco de experiência que expressa os modos de existência virtuais para sujeitos possíveis; mas acrescenta que isso é a metade da tarefa de Foucault, que as linhas de atualização expressas em suas entrevistas são endereçadas para um futuro, para um devir. Chegando até este ponto, a questão inicial do artigo se modula e a pergunta agora pode ser formulada assim: Seria possível pensar em práticas de produção de subjetividade e de dessubjetivações na formação de professores, no sentido de invenção e de investimento da experiência-limite? Com a modulação da questão e o agenciamento das noções aqui tratadas e com os riscos que tal agenciamento suscita no campo da formação de professores, faço ressoarem as linhas da entrevista feita a Foucault por Trombadori, em que o primeiro diz que não se considera um filósofo e destaca que seus autores mais importantes foram Bataille, Nietzsche e Blanchot, pois estes lhe permitiram deslocar-se de sua formação universitária. Afirma Foucault (1994/2010a, p. 291):

... para Nietzsche, Bataille, Blanchot, ao contrário, a experiência é tentar chegar a um certo ponto da vida que seja o mais perto possível do não possível de ser vivido. O que é requerido é o máximo de intensidade e, ao mesmo tempo, de impossibilidade. O trabalho fenomenológico, ao contrário, consiste em desdobrar todo o campo de possibilidades ligadas à experiência vivida.... A experiência em Nietzsche, Blanchot, Bataille tem por função arrancar o sujeito de si próprio, de fazer com que não seja mais ele próprio ou que seja levado a seu aniquilamento ou à sua dissolução. é uma empreitada de dessubjetivação.

A ideia de uma experiência-limite, que arranca o sujeito de si mesmo, eis o que foi importante, para mim, na leitura de Nietzsche, de Bataille, de Blanchot, e que, tão aborrecidos, tão eruditos que sejam seus livros, eu os tenha sempre concebido como experiências diretas, visando a me arrancar de mim mesmo, a me impedir de ser o mesmo.

Com as linhas de atualização desta longa entrevista, Foucault faz uma ontologia do presente, de acordo com a qual a dissolução do sujeito era menos tributária da arte literária do que remetida a todo um jogo de forças, apto a reinventar a relação entre sujeito e experiência, pois na arte, quando a obra emerge como efeito de uma expressão, o homem desaparece, necessitando de grandes deslocamentos para se dessubjetivar de verdades a priori. Talvez estas linhas da entrevista estejam também em vários outros textos e entrevistas dos “Ditos e Escritos” (Foucault, 1994/2006). Serão elas a expressão do que Foucault pensa ou a experimentação daquilo que pode o pensamento? E o próprio autor responde: “Eu me resguardo de fazer a lei. Tento antes colocar problemas, trabalhá-los, mostrá-los em uma complexidade tal que chegue a fazer calar os profetas e os legisladores, todos aqueles que falam pelos outros e antes dos outros” (Foucault, 1994/2010a, p. 338). Ao calar os legisladores, Foucault faz ver e falar a complexidade de um problema com a concretude da vida das pessoas e, com efeito, elabora um plano comum por meio de questões concretas, de casos difíceis, de movimentos, de encontros e de conversas. Com isto, ele elabora um trabalho social eliminando o porta-voz.

O problema da formação de professores como produção de subjetividades é, pra mim, um problema muito difícil, pois os códigos são muito determinados e suas expressões assumem a dimensão do vivido, de um ser que já sabe de antemão o que deve ser ensinado e solucionado. A formação de professores assume, deste modo, um processo sistemático que pode ser empregado como um método generalizante e é aplicável. Essa formação imprime grandes sistemas pedagógicos e históricos que têm efeitos de dominação, de manutenção e de controle da vida das pessoas, por isto funciona por normas visíveis e invisíveis que aprisionam e judicializam a vida, necessitando dessubjetivar.

Por outro lado, a formação inventiva de professores e o risco que carrega assumem assim uma problematização e sua experiência-limite. Sem porta-voz, ela propõe tessituras de encontros e conversas que têm como desafio manter vivo um campo problemático (Dias, 2012). Possível e impossível por não se ocupar com a produção de sujeitos essencialmente prescritos, mas com o que ainda necessita continuamente se agenciar em um processo de constituição da existência de si que forja objetos, essa formação os desloca, e ao mesmo tempo em que os deforma, ela os transforma e os transfigura. é a invenção e constituição de uma série múltipla de subjetividades infinitas, dando acesso à diferença como possibilidade de alteridade, de estranhamento de si, do outro e do mundo.

Talvez - na contramão do momento atual, que grita por normas e direitos que também modulam as relações, instituindo uma judicialização da vida em que a fixidez e a paralisia das soluções rápidas imprimem uma imensa imobilidade do fazer e do pensar - seja possível habitar os espaços e tempos institucionais formativos fazendo deles territórios de pensamentos outros, problematizando sem porta-voz, um vez que os formandos e os formadores podem falar por si mesmos e constituir a si mesmos e suas tessituras experienciais, resistindo e movendo a vida.

Recebido em 03/11/2013

Aceito em 21/09/2014

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Nov 2014
    • Data do Fascículo
      Set 2014

    Histórico

    • Recebido
      03 Nov 2013
    • Aceito
      21 Set 2014
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