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TÉCNICAS, SABERES E PRÁTICAS PSICOLÓGICAS NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1889-1930)

TÉCNICAS, CONOCIMIENTOS Y PRÁCTICAS PSICOLÓGICAS EN PRIMERA REPÚBLICA (1889-1930)

RESUMO.

O objetivo deste estudo foi analisar as técnicas, saberes e práticas tidas como psicológicas no Rio de Janeiro da Primeira República (1889-1930). Nesse sentido, pautou-se por uma metodologia que priorizou o levantamento de fontes bibliográficas primárias (artigos, livros e relatórios técnicos de época). Constatou-se, como resultado da pesquisa empreendida, que ocorreram aproximações e convergências entre áreas da psicologia aplicada que, posteriormente, iriam ocupar institucionalmente espaços bem separados. Assim, verificou-se que a designação de dado saber, prática ou técnica configurada como "Psicologia" não foi sempre configurada em áreas de aplicação independentes. Nessa perspectiva, segue uma linha diversa de abordagens históricas que primam por setorizar práticas psicológicas, sendo a principal contribuição do artigo para o campo da história da psicologia justamente a de mostrar que uma eventual “História da Psicologia do Trabalho”, no período investigado, não era absolutamente distinta de áreas, hoje classificadas, como as da “História da Psicologia Clínica”, ou da “História da Psicologia Escolar”.

Palavras-chave:
História; psicologia; práticas

RESUMEN.

El objetivo de este estudio fue analizar la técnica, conocimientos y prácticas que se consideraron psicológicos en Río de Janeiro de la Primera República (1889-1930). En este sentido, se caracteriza por una metodología que prioriza el estudio de las Fuentes primarias de la literatura (artículos, libros e informes técnicos de la época). Se encontró como resultado de nuestra encuesta, que se realice aproximaciones y convergencias entre las áreas de la psicología aplicada que más tarde ocuparía espacios institucionalmente bien separados. Por lo tanto, se encontró que la designación dada a el conocimiento, a la práctica y a la técnica llamada de "Psicología" no siempre han sido configurados para áreas de aplicación independientes.En esa perspectiva, sigue una línea diversa de enfoques históricos que priman por sectorizar prácticas psicológicas, siendo la principal contribución del artículo al campo de la Historia de la Psicología justamente la de mostrar que una eventual "Historia de la Psicología del Trabajo", en el período investigado, no era absolutamente distinta de áreas, hoy clasificadas, como las de la "Historia de la Psicología Clínica", o de la "Historia de la Psicología Escolar".

Palabras-clave:
Historia; psicología; prácticas

ABSTRACT.

This study analyzed the techniques, knowledge, and practice that are regarded as psychological in Rio de Janeiro in the First Brazilian Republic (1889-1930). This was marked by a methodology that prioritized the survey of primary literature sources (articles, books, and technical reports of the time). This option implied a systematic selection of themes for discursive analysis. Consequently, we found that there were approximations and convergences between areas of applied psychology that later would be occupied institutionally by well-separated spaces. Therefore, we considered that the designation given to psychological knowledge, practice, or technique was not always based in independent areas of application. From this perspective, it appears that there were several diverse attempts to classify psychological practices, not unlike the field of the History of Psychology that is researched today. The research demonstrated that there weren’t areas such as the “History of Clinical Psychology” or the “History of School Psychology.” in the period (1889-1930), but these themes were not entirely distinguished.

Keywords:
History; psychology; practices

Introdução

No que diz respeito à caracterização estrita como disciplina acadêmica em instituições europeias, a psicologia tem raízes históricas que remontam à filosofia e à fisiologia do século XIX (Herman, 199518. Herman, E. (1995). The Romance of American Psychology: Political Culture in the Age of Experts. Los Angeles: University of California Press.). Nesse sentido, historiadores interessados em perscrutar a emergência desses saberes no velho mundo percorrem trilhas mais sedimentadas do que aqueles que tentam a mesma tarefa no contexto brasileiro.

Realmente, quando se pensa em termos de Brasil, não é possível traçar um quadro próximo do cenário europeu e norte-americano. Sobretudo porque, em nosso país, saberes comumente considerados de fato como “psicológicos” circularam esporadicamente antes mesmo de qualquer configuração institucional de uma psicologia propriamente dita. Ou seja, as técnicas, saberes e práticas psicológicas não emergiram, em terras brasileiras no período em questão, como parte de um projeto estruturado e consolidado a priori.

Segundo uma perspectiva histórica, seria adequado considerar tal projeto como uma construção elaborada forçosamente a posteriori. Isso porque uma investigação realizada de forma crítica não permite marcar etapas nítidas de acertos e patamares de desenvolvimentos formais nesse início da psicologia no Brasil, mas - muito pelo contrário - apenas verificar acerca dessa suposta psicologia a existência de um processo inicial extremamente errático, que se configurou a partir de heterogêneas e instáveis camadas. Estamos, enfim, muito longe das rotas, rumos e percursos que, historicamente, pode-se traçar nos principais países europeus e nos Estados Unidos.

Ora, existe uma historiografia da psicologia que é construída a partir de um modelo de centro e periferia na qual a história da psicologia europeia e americana é vista como a história da psicologia em geral, enquanto a história da psicologia em países da periferia do capitalismo assume, no máximo, a função de celebrar e referendar a abordagem hegemônica. Essa polarização de centro e periferia, no entanto, vem sendo criticada mesmo no Brasil (Castro, 20147. Castro, A. C. (2014). Mental test implementation in the National Technical School in the period between 1942 and 1959: An analysis from the questioning of the notions of center and periphery. Universitas Psychologica, 13(5), 1729-1738.), motivo pelo qual este artigo adere às perspectivas de uma abordagem mais policêntrica (Brock, 20146. Brock, A. C. (2014). What is a polycentric history of psychology? Estudos e Pesquisas em Psicologia, 14(2), 646-659.).

Assim, num primeiro momento, considerando o período histórico brasileiro desde o século XIX até 1930, verifica-se que tais técnicas, saberes e práticas foram apropriados em diferentes contextos e lugares. E os atores sociais mais interessados nessa expertise psicológica - sem contar no particular interesse pelo tema no campo das artes, em especial na literatura (Castro, 20158. Castro, A. C. (2015). De narizes extraídos por Machado: eugenias raciais, traços faciais e teorias psiquiátricas no Brasil oitocentista. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 18(2), 339-357.) - foram justamente aqueles marcados pela preocupação em ensinar e auxiliar pessoas: os educadores e os profissionais da saúde.

Tal caracterização, fluida e indefinida, deve ser assumida como pressuposto desde já, uma vez que permite situar esta análise num campo em que estudos históricos feitos sobre a emergência da psicologia no Brasil apresentam diversidade de posições. Algumas posições, aliás, mutuamente excludentes, como a dos que concebem continuidades lineares de processos anteriores desde o período colonial, e a dos que apontam rupturas citando fatos específicos - um ou mais marcos - como elementos organizadores de iniciativas que, posteriormente, se estruturariam de forma mais definitiva.

Esse cenário mostra que posições historiográficas podem ser entendidas como relativas às respostas que cada autor dá a questões análogas no presente (Certeau, 201610. Certeau, M. de. (2016). A escrita da História (3a ed.). Rio de Janeiro: Gen/Forense Universitária.). Mas, ainda que isto seja recorrentemente enfatizado, é sempre relevante lembrar que uma leitura do passado, por mais controlada que seja pela análise das fontes, é sempre dirigida por uma leitura do presente. Com efeito, as leituras históricas se organizam em função de problemáticas impostas por uma circunstância atual e são também interpretadas por modelos igualmente vinculados a essa mesma situação hodierna, ou pelo menos pela redefinição, no presente, de objetos, conceitos, prioridades e possibilidades de relevância histórica. Nesse sentido, cabe refletir sobre a questão: Existiram técnicas, saberes e práticas - que poderiam ser consideradas psicológicas - no Rio de Janeiro da Primeira República (1889-1930)?

A caracterização do objetivo da pesquisa nesses termos - analisar, num dado local (a então capital do Brasil) e época (o recorte histórico-político convencionado como “Primeira República”), técnicas, saberes e práticas tidas como psicológicas - indica que este artigo traz um renovado, oblíquo e relevante ângulo de visão ao campo da história da psicologia. Isso porque fornece um olhar diferenciado sobre uma questão historiográfica importante, conquanto frequentemente invisibilizada, relacionada à necessidade de abordar a emergência de dados saberes sem estabelecer fronteiras nítidas entre psicologias aplicadas à clínica, ao trabalho e à escola, classificações operacionais essas, aliás, que somente ganharam densidade própria muitos anos depois, em momento posterior.

Dois pontos, entretanto, precisam ser destacados. O primeiro deles diz respeito à ideia de uma psicologia aplicada, pois embora o artigo aluda a essa noção, por conta da terminologia dos documentos examinados, há de se fazer importantes ressalvas. Este estudo não pretende reificar a, assim denominada, “psicologia aplicada”, como um constructo técnico-científico que foi inicialmente desenvolvido para depois, em um momento posterior, ser aplicado. Os tópicos a serem desenvolvidos, a seguir, mostram que não foram aprioristicamente concebidos dados saberes a fim de, depois, serem aplicados a distintos segmentos sociopolíticos. Assim, embora haja referência à terminologia de uma “psicologia aplicada”, o que o artigo mostra é que as técnicas, saberes e práticas se formaram no embate das demandas ensejadas pela Primeira República, de modo indefinido e não sistematizado e, muito depois, é que ganharam efetiva organização, no domínio a posteriori das sistematizações teóricas.

Um segundo dado a destacar é que, como opção analítica, optou-se pelo mundo do trabalho como ponto de partida desta investigação, que também visava se estender para outros campos. A razão de ser dessa escolha, a partir dos saberes psi aplicados ao campo do trabalho, se deve ao fato de que grande parte dos estudos de história da psicologia nesse período privilegia a escola ou a clínica médica, por serem domínios e campos de ação melhor estruturados, no Brasil dessa época (Pereira & Pereira Neto, 200333. Pereira, F. M., & Pereira Neto, A. (2003). O psicólogo no Brasil: notas sobre seu processo de profissionalização. Psicologia em Estudo, 8(2), 19-27.; Figueira & Boarini, 201413. Figueira, F., & Boarini, M. L. (2014). Psicología e higiene mental en Brasil: la historia por contar. Universitas Psychologica , 13(5), 1801-1814.; Klappenbach & Jacó-Vilela, 201620. Klappenbach, H., & Jacó-Vilela, A. M. (2016).The future of the history of psychology in Argentina and Brazil. History of Psychology, 19(3), 229 - 247.; Jacó-Vilela, Espírito-Santo, Degani-Carneiro, Goes, & Vasconcellos, 2016). Aqui, no entanto, buscou-se um ângulo distinto.

A questão de uma psicologia aplicada ao campo do trabalho

Essa tentativa de responder à questão sobre técnicas, saberes e práticas na Primeira República, contudo, precisa partir da compreensão de que as aplicações efetivas da psicologia no mundo do trabalho, em comparação com o ocorrido em países economicamente mais desenvolvidos, ocorreram tardiamente no Brasil. Ademais, no cenário dos países industrializados, as investigações históricas tendem a ser pautadas em questões práticas e orientadas pelo interesse no aumento de produtividade. Nesse sentido, muitos dão grande relevo ao então professor na Universidade de Harvard, Hugo Münsterberg, nesse emergir da denominada psicologia industrial. Interpretação ocasionada tanto pela publicação, em 1913, de “Psychology and Industrial Efficiency” (cujo conteúdo diferia, em parte, da versão alemã, publicada em Leipzig pouco tempo antes), quanto pelas experiências na utilização de testes psicológicos para a seleção de trabalhadores de linhas ferroviárias, no período de 1903 a 1916, nos EUA (Baptista, Rueda, Castro, Gomes, & Silva, 20113. Baptista, M. N., Rueda, F. J. M., Castro, N. R., Gomes, J. O., & Silva, M. A. (2011). Análise de artigos sobre avaliação psicológica no contexto do trabalho: revisão sistemática. Psicologia em Pesquisa, 5(2), 156-167.).

Nessa sua obra clássica, Münsterberg (1913)30. Munsterberg, H. (1913). Psychology and Industrial Efficiency. Boston/New York: Houghton Mifflin Company., aludindo a Frederick Winslow Taylor (autor de “The Principles of Scientific Management”), defendeu a necessidade de se vincular as tarefas do trabalhador com respectivas qualidades mentais desejáveis, assim como encontrar métodos pelos quais essas características pessoais pudessem ser objetivamente medidas: “o interesse das indústrias só pode ser atingido quando ambos os lados - a exigência de formação profissional e a característica funcional individual - forem examinados com a mesma profundidade científica” (Münsterberg, 1913, p. 57).

Nas primeiras décadas do século XX, portanto, essa psicologia do trabalho (referida predominantemente como psicologia industrial), nos Estados Unidos e Europa, foi se constituindo na forma de um saber que se entendia como aplicado, focando questões tais como a do uso de testes na seleção e treinamento de trabalhadores, a da otimização do tempo e do movimento em tarefas rotineiramente executadas nas linhas de montagem, e a da avaliação de excesso de carga e da falta de iluminação como causas da fadiga no trabalho (Zanelli & Bastos, 200434. Zanelli, J. C., & Bastos, A. V. B. (2004). Inserção profissional do psicólogo em organizações e no trabalho. In J. C. Zanelli, J. E. Borges-Andrade & A. V. B. Bastos (Orgs.), Psicologia, Organizações e Trabalho no Brasil (pp. 466-491). Porto Alegre: Artmed.).

O quadro contextual da então capital do Brasil - acidade do Rio de Janeiro - comparativamente a esses anos anteriores a 1930, era totalmente diverso. No período compreendido entre fins do século XIX e, mais propriamente, inícios do século XX, os saberes psi foram sendo pouco a pouco propostos para as escolas brasileiras e para o atendimento médico-psiquiátrico, mas nem tanto para indústria, porque realmente inexistia uma produção industrial. A economia brasileira consistia quase que exclusivamente na produção agrícola - principalmente o café - orientada ao comércio externo, e as pouquíssimas fábricas daquele período eram bem pequenas, mais com perfil manufatureiro têxtil que de indústria de base. Eram, portanto, muito poucas as fábricas que, por terem incorporado maquinário apropriado, podiam efetivamente atender às demandas do mercado brasileiro.

Há, na historiografia nacional, inclusive, uma ampla discussão acerca do desenvolvimento da indústria durante esse período da Primeira República, principalmente sobre o momento imediatamente anterior, e logo posterior, à Primeira Guerra Mundial (Marson, 201526. Marson, M. D. (2015). A industrialização brasileira antes de 1930: uma contribuição sobre a evolução da indústria de máquinas e equipamentos no estado de São Paulo, 1900-1920. Estudos Econômicos (São Paulo), 45(4), 753-785.). O que é mais ou menos consensual é que no período anterior à guerra, o crescimento da indústria de máquinas e equipamentos tinha uma dinâmica atrelada a uma economia primário-exportadora (Lopes & Moreira, 201524. Lopes, R. C., & Moreira, M. J. (2015). Reprimarização da Economia Brasileira e suas Raízes no Subdesenvolvimento (p. 1-6). Anais do Seminário de Pesquisa, Pós-Graduação, Ensino e Extensão do Câmpus Anápolis de CSEH (SEPE), 4(1), (p. 1-6).). Principalmente pelo uso de maquinário para processar e beneficiar café, arroz ou açúcar, e de moinhos ou moendas de milho, mandioca e cana (isso sem falar na especificidade da indústria têxtil de sacarias de juta para a embalagem dos produtos). Nesse sentido, como as principais fontes de demanda para essa indústria estavam relacionadas com a economia de exportação, eventuais situações de crise desse setor refletiam negativamente no incipiente crescimento industrial (embora ocasiões de prosperidade também viabilizassem uma eventual evolução do setor).

Ao lado desses aportes historiográficos que tendem a ser consensuais, no entanto, existem também assimetrias que convêm mencionar. As divergências de interpretação sobre a industrialização na Primeira República geralmente giram em torno de argumentos que visam responder se a Primeira Guerra Mundial ensejou, ou não, ampliações e expansões na produção da indústria de máquinas e equipamentos.

Avultam-se nesse debate duas abordagens principais. De um lado há os que afirmam que a guerra acelerou o desenvolvimento industrial, pois com a eventual diminuição das importações (por causa da guerra), pequenas oficinas de fundição tentavam reaproveitar o ferro velho, aspecto que ampliou o número dessas oficinas metalúrgicas, que usavam equipamentos simples na produção de peças de ferro fundido. Outros, por sua vez, consideram o período da Primeira Guerra Mundial como desfavorável tanto à produção industrial, quanto ao investimento, pela grande redução nas importações de equipamentos pesados, oriundos principalmente da Europa.

Toda essa controvérsia historiográfica, já estudada em detalhes por outrem (cf. Marson, 201526. Marson, M. D. (2015). A industrialização brasileira antes de 1930: uma contribuição sobre a evolução da indústria de máquinas e equipamentos no estado de São Paulo, 1900-1920. Estudos Econômicos (São Paulo), 45(4), 753-785.), foge ao raio de ação deste artigo. Para o cenário de demandas da época, frente ao escopo de uma psicologia do trabalho, basta salientar que a impossibilidade de manutenção do fluxo de importações estimulou, por um lado, a expansão de setores mais simples da produção industrial, e impediu, por outro lado, a constituição de setores industriais mais complexos. De fato, as tais fábricas na Primeira República tinham, em sua grande maioria, características tipicamente artesanais - inclusive com uso de matéria-prima provinda de metal usado reciclado - visto que eram estabelecimentos pequenos de produção fabril com, em muitos casos, ação direta do dono do negócio. Assim, não havia produção em larga escala por parte dessa pequena indústria local, mas apenas reparo de máquinas e reposição de peças, aspecto complementar às importações que diminuíram durante (e pouco depois) da guerra.

Com a efetiva ausência de atividade industrial, e sob uma perspectiva genealógica (Foucault, 201516. Foucault, M. (2015). Nietzsche, a Genealogia e a História. In M. Foucault (Org.), Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra.), podem-se destacar, nesse momento histórico, apenas algumas relações de proveniência que viriam a configurar, anos mais tarde, uma incipiente psicotécnica aplicada ao trabalho. Isso significa ressaltar a importância da demarcação de acidentes de percurso, a fim de demonstrar o quanto os saberes e técnicas psicológicas, nos anos que antecederam a era Vargas, não implicaram necessariamente um processo que, em essência, foi gradativamente sendo executado e concretizado. Ao contrário, as evidentes descontinuidades históricas mostram um estado de forças sociais em disputa, produzindo um conjunto aleatório e instável de equívocos e êxitos.

A virada entre as décadas de 1920 e 1930, contudo, precisa ser interpretada tanto em função da quebra da bolsa de Nova York, em 1929, quanto da revolução ocorrida, em 1930, no Brasil. Pois, no âmbito de disputas políticas, o enfraquecimento do setor exportador de café levou ao poder setores distintos dessa elite agrária, mediante condução de Getúlio Vargas à presidência da república (Fausto, 199712. Fausto, B. (1997). A Revolução de 1930: Historiografia e História. São Paulo: Companhia das Letras.). Assim sendo, o que é possível perceber, no período anterior a tal mudança, são dois aspectos importantes nessas relações de proveniência de uma psicologia do trabalho que emergiria no Rio de Janeiro, de modo mais encorpado, somente na era Vargas.

Uma psicologia do trabalho com relações de proveniência caracterizadas por uma dada vontade de saber - década de 1910

No recorte histórico definido neste artigo não se identifica na capital da República um conhecimento estruturado que possa ser definido em termos de uma “Psicologia do Trabalho”, de fato, mas apenas uma vontade de saber que se manifestou em meio a confrontos no mundo do trabalho. A análise de práticas discursivas e enunciados da década de 1910 evidencia que as técnicas industriais de países mais desenvolvidos se tornaram objeto do desejo em terras brasileiras. Por aqui, muitos aspiravam ao mesmo know-how, ao mesmo saber-fazer.

Na capital da República, um exemplo dessa vontade de saber que intuía o modelo norte-americano de industrialização como um ideal a ser seguido pode ser visto no planejamento para preparar mestres e contramestres para as várias escolas profissionais existentes em Estados da federação, por meio da criação de uma escola normal, situada no Rio de Janeiro, para professores de ensino industrial (Fonseca, 198614. Fonseca, C. S. (1986). História do ensino industrial no Brasil. Rio de Janeiro: SENAI.). Isso porque Amaro Cavalcanti (1849-1922), empossado prefeito do Distrito Federal em 15 de janeiro de 1917, resolveu que essa escola de artes e ofícios a ser criada como instituição modelar para os demais Estados, seguiria o procedimento adotado nos Estados Unidos.

Para tanto, Amaro Cavalcanti passou a fazer contato, por meio de cartas, com os EUA, a fim de reproduzir aqui os mesmos princípios de qualificação profissional. O embaixador brasileiro em Washington, entre 1911 e 1918, Domício da Gama, que era o contato do prefeito, tomou então como modelo a ser reproduzido o “Bradley Polytechnic Institute”, de Illinois, fazendo solicitações a professores americanos, em nome do prefeito da capital brasileira.

O professor Charles Alpheus Bennett4. Bennett, C. A. (1917). The manual arts. Peoria, IL: The Manual Arts Press. - editor da “Industrial Education Magazine” e “Formerly Professor of Manual Arts5. Bennett, C. A. (1937). History of manual and industrial education, 1870 to 1917. Peoria, IL: The Manual Arts Press .” - relutou a princípio em fazer um projeto para uma realidade que desconhecia totalmente, mas diante da insistência aceitou a proposta5. Bennett, C. A. (1937). History of manual and industrial education, 1870 to 1917. Peoria, IL: The Manual Arts Press .. Desse modo, Amaro Cavalcanti recebeu, em agosto de 1918, o plano para uma “escola normal de officios”, por meio de correspondência encaminhada pelo embaixador brasileiro nos EUA (Dias, 198011. Dias, D. de O. (1980). Estudo documentário e histórico sobre a Escola Técnica Federal Celso Suckow da Fonseca. Rio de Janeiro: CEFET.).

No entanto, com o fim do mandato de Amaro Cavalcanti, a Escola Normal de Artes e Ofícios Wenceslau Braz, efetivamente posta em funcionamento em 1920, logo abandonou a proposta norte-americana. O que pode ser analisado, porém, é que o esforço de ir a busca do modelo ideal em Illinois, indicou uma vontade de saber eivada pela admiração do que representava a industrialização americana.

Entrementes, o movimento inverso - que em lugar de solicitar planos elaborados no exterior propugnava por trazer ao Brasil os professores estrangeiros - também decorre de uma vontade de saber, mais característica dos anos 1920, que levou ao adestramento de lidar com certos instrumentos (Oliveira, 200831. Oliveira, C. (2008). A vertigem da descontinuidade: sobre os usos da história na arqueologia de Michel Foucault. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, 15(1), 169-181.), suportados institucionalmente (por laboratórios de psicologia), e orientados para usos específicos do conhecimento da psicotécnica, no mundo do trabalho.

Uma psicologia do trabalho com relações de proveniência oriundas de saberes psicológicos aplicados à educação e à medicina - década de 1920

Ao configurar o campo de uma psicologia industrial nos Estados Unidos, Münsterberg (1913) afirmou que a psicologia aplicada era vinculada às ciências técnicas-tecnológicas, e assim deveria ser considerada como uma “psychotechnics” (Münsterberg, 1913, p. 17). Enfatizando, porém, que nesse âmbito da psicotécnica, tanto a psicologia aplicada à educação, quanto a psicologia aplicada à medicina clínica, já estavam em um estágio em que uma tentativa de elaboração de um sistema completo podia ser percebida, enquanto que a psicologia aplicada ao trabalho se mantinha comparativamente em um estágio preliminar.

Como se sabe, a segunda metade do século XX diferenciou, com fronteiras que tendiam a serem mais nítidas, os saberes psicológicos nos campos da educação, do trabalho e da clínica. Uma análise histórica da psicologia, entretanto, permite verificar que inicialmente as técnicas de uma dada área profissional seguia emergindo dentro de outras áreas, de modo multifacetado. Ou seja, certas fronteiras departamentais e limites institucionais, hoje eventualmente monolíticos, não existiram desde sempre.

Assim sendo, é possível perceber, na Primeira República, que algumas iniciativas originárias de outros contextos ensejaram especial proximidade com a psicologia industrial. Pois o entendimento da época configurava a psicotécnica em termos de uma prática unificada para áreas convergentes e similares (Lourenço Filho, 194525. Lourenço Filho, M. B. (1945). A Psicologia ao serviço da organização. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 6(17), 183-212.), não havendo assimetria entre a psicotécnica do ensino, a psicotécnica médica e tantas outras psicotécnicas quantas fossem os objetos de possível aplicação psicológica (inclusive a indústria).

No entanto, a ideia de que a psicotécnica chegou a tornar-se tema recorrente no discurso social em fins da primeira República, perspectiva adotada em algumas análises históricas (cf. Monarcha, 200128. Monarcha, C. (2001). Lourenço Filho e a organização da psicologia aplicada à educação: São Paulo, 1922-1933. Brasília: Editora Inep/MEC., p. 19), talvez seja mera hipérbole. Tal ênfase na psicotécnica consistia exclusivamente em um enunciado situado, principalmente em São Paulo, e limitado a uma elite intelectual. Contudo, mesmo nesse pequeno círculo, não existia tampouco qualquer sistematização de um conhecimento apropriado e desenvolvido, mas uma vontade de saber que conduziu e sustentou uma prática discursiva entusiasmada com a noção de progresso e desenvolvimento, conforme verificado nas situações indicadas a seguir.

Da colônia psiquiátrica à avaliação de condições de trabalho e seleção de pessoal

As iniciativas precursoras da psicotécnica aplicada ao trabalho, no Rio de Janeiro, parecem remontar ao pesquisador polonês Waclaw Radecki (1887-1953) que, tendo início em 16 de março de 1925, “na Fábrica de Ferreira, Souto & C., à rua Fonseca Telles, em S. Christovão” (Lopes, 1925a21. Lopes, E. (1925a). Trabalhos recentes da Liga Brasileira de Hygiene Mental. Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, 1(1), 219-221., p. 220), segundo Ernani Lopes, desenvolveu exames “psyco-physiologicos” em algumas fábricas do Distrito Federal (Rio de Janeiro) com propósito de investigar “las condiciones de eficiencia física y mental dos trabajadores de menor edad” (Lopes, 1925b22. Lopes, E. (1925b). Las instituciones de profilaxis mental em el Brasil. Archivos Brasileiros de Hygiene Mental , 1(2), 164-175., p. 173).

De fato, por iniciativa do médico Antonio Fernandes Figueira, a então Liga Brasileira de Hygiene Mental organizou em 1925 uma série de investigações sobre a fadiga de menores trabalhadores em atividades industriais. O ponto em questão é que tais pesquisas foram executadas - quanto à escolha dos métodos e realização da experimentação prática - por Radecki e sua esposa, ainda que em colaboração com a Inspetoria de Higiene Infantil do Departamento Nacional de Saúde Pública.

As próprias fábricas indicaram dez crianças que, com outras 20 escolhidas pelo “psycologista” Radecki - e médicos da Liga Brasileira de Hygiene Mental que acompanhavam as avaliações - totalizaram os 30 sujeitos da pesquisa. As dez crianças (tidas como fortes e com mais de 14 anos) tinham seus resultados “dynamometricos” comparados, antes e depois do trabalho semanal, com as outras 20 crianças (consideradas fracas e com idade inferior a 14 anos). Os resultados questionaram frente aos riscos de uma progressiva degeneração, se as crianças utilizadas na indústria como mão de obra barata tinham como “recuperar, no dia de domingo, os 24% da eficaccia do seu trabalho perdidos por efeito da fadiga ... e os 10% de forças physicas perdidas no mesmo tempo” (Lopes, 1925c23. Lopes, E. (1925c). Pesquizas experimentaes sobre a fadiga dos menores trabalhadores nas fabricas-Nota prévia. Archivos Brasileiros de Hygiene Mental , 1(2), 181-184., p. 184).

À parte dessas avaliações por métodos “dynamometricos e ergographicos”, existem também registros de que, em 1928, Radecki realizou, com seus colaboradores, seleção de aviadores militares, atividade essa que também pode ser situada nas relações de proveniência dos saberes e práticas psicológicas que vieram a se instituir anos mais tarde (Lourenço Filho, 194525. Lourenço Filho, M. B. (1945). A Psicologia ao serviço da organização. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 6(17), 183-212.).

Nas análises sobre a história da psicologia no Brasil, todavia, existem algumas controvérsias sobre o perfil efetivo de Radecki em suas múltiplas contribuições. Sendo assim, há quem diga que ele deve ser especialmente considerado como um personagem histórico suscetível a antagônicas versões, numa perspectiva historiográfica aberta, inclusive para não o transformar em um monumento do passado a fim de legitimar dada psicologia do presente (Fonseca, Rosa, & Ferreira, 201615. Fonseca, L. E. P., Rosa, H. L. R. S., & Ferreira, A. A. L. (2016). Yes, we have Wundt: Radecki and the history of psychology in Brazil. Tesis Psicologica,11(1), 18-35.). A questão que precisa ser salientada conforme os propósitos deste artigo, entretanto, é que tanto a avaliação da fadiga em crianças, quanto a seleção de pilotos de aviões, foram realizadas no âmbito do Laboratório de Psicologia instalado na Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro. Laboratório esse que fora inicialmente concebido como instituição auxiliar médica, de psicologia experimental, dentro de uma colônia psiquiátrica.

O desenvolvimento dessas relações entre práticas clínicas dos médicos e técnicas hoje caracterizadas como psicologia do trabalho, contudo, pode ser facilmente identificada em algumas das ações que foram efetivamente realizadas (a seleção de profissionais, por exemplo). Isso porque Radecki tinha interesse em disseminar o conhecimento psicológico e mantinha contatos com diferentes setores e instituições. Assim, em função disso, mediante acordos com a Diretoria da Aviação do Exército (a FAB somente seria criada anos mais tarde), alguns dos médicos militares que participaram de um curso de psicologia foram designados a permanecer no laboratório a fim de aprender a desenvolver pesquisas psicológicas para seleção de aviadores. Procedimento operacional que explica tanto a efetiva realização da avaliação com os candidatos à aviação militar, quanto a produção de textos como "Estudo da attenção nos aviadores", em 1929, e "Psychologia da attenção", em 1930 (Centofanti, 19829. Centofanti, R. (1982). Radecki e a Psicologia no Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão, 3(1), 2-50.)22. Lopes, E. (1925b). Las instituciones de profilaxis mental em el Brasil. Archivos Brasileiros de Hygiene Mental , 1(2), 164-175..

Outro dado interessante, que ajuda a sublinhar as inter-relações entre essas psicologias aplicadas à saúde e ao trabalho, poderia ser identificado quatro anos mais tarde (em 1932), porque com o decreto-lei que converteu o Laboratório da Colônia de Psicopatas em Instituto de Psicologia, Radecki ampliou as funções do laboratório englobando novas sessões, com seus assistentes como docentes em áreas como psicologia aplicada à educação, psicologia aplicada à seleção profissional, psicologia aplicada à medicina, e psicologia aplicada ao direito. Iniciativas, aliás, que não vingaram, por causa do fechamento do instituto, sete meses depois, por novo decreto presidencial.

Dos entrelaçamentos entre a psicologia aplicada à educação e a seleção de pessoal

A historiografia desenvolvida no campo da pedagogia e da psicologia da educação tende a dar evidente importância à trajetória de Manoel Bergstrom Lourenço Filho (1897-1970), expoente do movimento educacional conhecido por “escolanovismo”. No entanto, tal historiografia nem sempre coloca em perspectiva os elementos que permitiriam rastrear a proveniência da constituição de uma psicologia aplicada ao trabalho. Assim, o ponto de interesse em Lourenço Filho, neste artigo, decorre da circunstância de que ele, mais do que outros, exemplifica, nos anos 1920, as tensões e aproximações da educação e do mundo do trabalho, na emergência da psicotécnica, no Rio de Janeiro.

O fato é que os primeiros esforços no âmbito da psicologia aplicada ao trabalho não ocorreram na capital brasileira, mas na cidade de São Paulo. Em 1924, foram realizados procedimentos de seleção e orientação profissional com alunos da Escola Profissional de Mecânica (anexa ao Liceu de Artes e Ofícios), por iniciativa de Roberto Mange e com a cooperação do Instituto de Higiene de São Paulo (dirigido por Geraldo Paula Souza). Iniciativa essa que, mais tarde, iria se desenvolver, dando origem ao Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional (Lourenço Filho, 194525. Lourenço Filho, M. B. (1945). A Psicologia ao serviço da organização. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 6(17), 183-212.).

Esse pano de fundo do mundo do trabalho circunstanciou o contexto no qual, em 1925, Lourenço Filho reativou o Laboratório de Psicologia Experimental da Escola Normal de São Paulo, abandonado desde o final do decênio anterior, e passou a desenvolver atividades nas quais participaram teóricos de renome no campo da psicologia29. Moraes, C. S. V. (1994). A sistematização da política educacional dos liberais reformadores: o inquérito de 1926. Revista da Faculdade de Educação, 20(1/2), 81-105.. Nesse sentido, não havia uma exclusividade para a psicologia aplicada à educação, mas muito do que era abordado envolvia também a dinâmica do trabalho (Monarcha, 200128. Monarcha, C. (2001). Lourenço Filho e a organização da psicologia aplicada à educação: São Paulo, 1922-1933. Brasília: Editora Inep/MEC.), campo que começava a emergir na capital paulista.

Dessa forma, nos meses de julho a agosto de 1927, o professor Henri Piéron (responsável pela criação, na França, do Instituto Nacional de Orientação Profissional - INOP), ministrou importante curso teórico-prático, no Laboratório de Psicologia da Escola Normal, dirigida por Lourenço Filho, que transcreveu e publicou as palestras na obra “Psychologia e psychotechnica”, lançada sob os auspícios do Laboratório de Psicologia nesse mesmo ano (Augras, 19652. Augras, M. (1965). Henri Piéron (1881-1964). Arquivos Brasileiros de Psicotécnica, 17(2), 123-124.; Massimi, 199027. Massimi, M. (1990). História da Psicologia Brasileira. São Paulo: Edição Pedagógica Universitária.).

O mesmo procedimento foi adotado com Léon Walther, ligado ao Instituto Jean-Jacques Rousseau de Genebra, que em 1929 realizou uma série de conferências sobre administração científica do trabalho, sendo sua obra - “Tecno-psychologia do trabalho industrial” - traduzida por Lourenço Filho e publicada no mesmo ano (Monarcha, 200128. Monarcha, C. (2001). Lourenço Filho e a organização da psicologia aplicada à educação: São Paulo, 1922-1933. Brasília: Editora Inep/MEC.). A publicação dessas obras por Lourenço Filho evidencia, genealogicamente, o quanto os temas da racionalização do trabalho e da educação estavam imbricados naquele momento histórico (Gonçalves, 200017. Gonçalves, P. C. C. (2000). Tecno-psicologia do trabalho industrial. Pro-Posições, 11(2), 93-96.).

Nessa perspectiva, Lourenço Filho foi um dos criadores e colaboradores do Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT), em São Paulo. E ao se mudar, em 1931, para o Rio de Janeiro, para dirigir o Instituto de Educação do Distrito Federal, continuou a desenvolver ações que contribuíram para adensar o desenvolvimento da psicologia do trabalho. Como diretor geral do Inep, em um momento em que os testes psicotécnicos começavam a gozar de prestígio como elemento de avaliação de inteligência e aptidão profissional, procurou cooperar com o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), relativamente ao problema da orientação e seleção profissional de candidatos ao funcionalismo público da União (Antunes, 20011. Antunes, M. A. M. (2001). Manoel Bergstrom Lourenço Filho (1897-1970). In R. H. Campos (Org.), Dicionário Biográfico da Psicologia no Brasil - Pioneiros(pp. 209-211). Rio de Janeiro: Imago/Conselho Federal de Psicologia.). Colega e colaborador do professor Mira y López, presidiu a comissão que organizou o curso de pós-graduação em Psicologia do ISOP (Instituto de Seleção e Orientação Profissional da Fundação Getúlio Vargas) e participou da criação da Associação Brasileira de Psicotécnica (nomenclatura posteriormente alterada para “Associação Brasileira de Psicologia Aplicada”), entidade que chegou a presidir (Penna, 200432. Penna, A. G. (2004). Breve contribuição à história da psicologia aplicada ao trabalho no Rio de Janeiro. Mnemosine, 1(1), 143-148.).

Uma psicologia do trabalho que não emergiu especificamente como psicologia do trabalho.

Importa lembrar que essas idas e vindas de trajetórias históricas, geralmente priorizadas em análises genealógicas, ajudam a configurar - como ocorre nos casos de Radecki e Lourenço Filho - aproximações e convergências entre áreas que, posteriormente, iriam ocupar institucionalmente espaços bem separados.

Todos os dados aqui elencados, portanto, servem também para mostrar que a designação de dado saber, prática ou técnica como “Psicologia do Trabalho” ocorre sempre a posteriori, pois em momentos históricos anteriores não foram adjetivados dessa forma, posto que estavam conjugados a outras designações técnicas e conceituais. A historiografia da psicologia do trabalho tende a se referir a um “saber fazer”, mas há sempre de se perguntar: que “fazer” seria esse? Ora, é necessário perceber que não se trata de um fazer inerente a algum objeto essencializado, mas aquele especificado contingencialmente nas disputas de grupos sociais, a cada momento histórico. Assim, muito do que se considera hoje como “Psicologia do Trabalho” recebeu inicialmente o nome de “Psychologia Experimental”, “Psychologia da Attenção”, “Psychotechnica”, “Tecno-psychologia”, ou até não recebeu nome específico nenhum.

Ressaltando-se que, por conta da revolução de 1930, como ocorre em qualquer época de conturbação social, as rupturas de ação coletiva ou individual devem se tornar o princípio de inteligibilidade histórica (Certeau, 201610. Certeau, M. de. (2016). A escrita da História (3a ed.). Rio de Janeiro: Gen/Forense Universitária.). Assim, convêm refletir que as rupturas implicadas na era Vargas ensejaram novas compreensões do mundo do trabalho, que inclusive circunstanciaram o discurso da emergente psicotécnica em função de um conjunto sociocultural mais amplo - cheio de tensões, redes de conflitos, e jogos de força - que narrativas historiográficas lineares da psicologia brasileira tendem a homogeneizar.

Considerações finais

A principal contribuição desta investigação - diante do objetivo de analisar as técnicas, saberes e práticas tidas como psicológicas no Rio de Janeiro da Primeira República - foi a de olhar para a história da psicologia no Brasil a partir de um mirante menos frequentado pela historiografia que nos últimos anos tem se desenvolvido em pesquisas brasileiras. O que se vê recorrentemente, como se constata na bibliografia da área, são abordagens compartimentalizadas da “História da Psicologia Clínica”, ou da “História da Psicologia do Trabalho”, ou ainda da “História da Psicologia Escolar”.

Além do problema da institucionalização desse tipo de classificação, como espécie de estrutura apriorística de estudo, há de se ressaltar que cada uma dessas respectivas histórias tem, igualmente, seus respectivos heróis. Lourenço Filho, só para citar um exemplo, é personagem ilustre na história da psicologia escolar, uma vez que são notórias as suas ações no movimento em prol da “Escola Nova”, enquanto renomado educador. O caso é que em função das fronteiras rígidas dessa referida historiografia marcada por recortes temáticos estanques, alguns podem considerar uma impropriedade situá-lo na história da psicologia do trabalho e, assim, incorrer num reducionismo na compreensão da historicidade da psicologia que se constituiu no Brasil. O mesmo, porém, poderia ser dito de Radecki ou de qualquer outro suposto herói-pioneiro.

Este artigo, portanto, dá adequados subsídios para uma percepção mais ampla das dinâmicas das técnicas, saberes e práticas que foram, no início de século XX, tomando incipientes contornos no desenvolvimento sociopolítico no Brasil. E, consequentemente, também permite novos insights que podem vir a estimular investigações históricas mais dialógicas e menos reducionistas.

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  • 4
    O documento original do plano não está disponível nos arquivos do CEFET/RJ, no entanto, mediante exame das obras desse professor, digitalizadas no site da “Bradley University” - “The manual arts” e “History of manual and industrial education, 1870 to 1917” - é possível perceber que Charles Alpheus Bennett, por sua vez, conquanto fizesse alusão a questões vocacionais, também era bastante incipiente quanto aos procedimentos de uma psicologia industrial, uma vez que sequer citou Münsterberg (Bennet, 1917, 1937).
  • 5
    Penna (2004) registra que Arauld Brêtas, um desses médicos militares, integrou a equipe de Mira y López, participando da fase inicial do ISOP.
  • 6
    Para verificar a função dos diferentes atores sociais - Associação Comercial de São Paulo, o Rotary Club, e o jornal Estado de São Paulo - que propugnavam pela criação de um Instituto de Organização do Trabalho em fins da década de 1920, conferir Moraes (1994).

Apoio e financiamento:

  • 0
    Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Out 2019
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2017
  • Aceito
    13 Nov 2017
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