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Estresse parental em famílias pobres 1 1 Apoio e financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Estrés parental en familias pobres

RESUMO

O objetivo deste estudo foi investigar possíveis associações entre a pobreza, suas dimensões e o estresse parental. Essa pesquisa teve caráter quantitativo, delineamento transversal e amostra probabilística, constituída por 433 participantes cadastrados no Cadastro Único do Governo Federal. Foram aplicados o Inventário Sociodemográfico, o Índice de Pobreza Familiar (IPF) e o Índice de Estresse Parental (PSI). Para relacionar as variáveis dividiram-se os participantes em dois grupos a partir dos instrumentos de pobreza (mais e menos pobres) e estresse (estresse normal e alto). Foram encontradas associações fortemente significativas entre as categorias 'mais pobres' e 'estresse alto', tanto na pobreza multidimensional como em algumas de suas dimensões (acesso a conhecimento, renda e desenvolvimento infantil). Os resultados relacionaram maiores dificuldades nas atividades parentais a aspectos de vulnerabilidade tradicionalmente identificados em estudos de famílias pobres, como renda e conhecimento, e ainda, apontam para as mazelas trazidas pela pobreza às crianças e aos adolescentes.

Palavras-chave:
Famílias de baixa renda; estresse; programas sociais

RESUMEN

El objetivo de este estudio fue investigar posibles asociaciones entre la pobreza, sus dimensiones y el estrés parental. Esta investigación tuvo carácter cuantitativo, delineamiento transversal y muestra probabilística, constituida por 433 participantes registrados en el Catastro Único del Gobierno Federal. Se aplicaron el Inventario Sociodemográfico, el Índice de Pobreza Familiar (IPF) y el Índice de Estrés Parental (PSI). Para relacionar las variables se dividieron los participantes en dos grupos a partir de los instrumentos de pobreza (más y menos pobres) y estrés (estrés normal y alto). Se encontraron asociaciones fuertemente significativas entre las categorías más pobres y el estrés alto, tanto en la pobreza multidimensional como en algunas de sus dimensiones (acceso a conocimiento, renta y desarrollo infantil). Los resultados relacionaron las mayores dificultades en las actividades parentales a aspectos de vulnerabilidad tradicionalmente identificados en estudios de familias pobres, como ingresos y conocimiento y, además, apuntan a las molestias traídas por la pobreza a los niños y adolescentes.

Palabras clave:
Familias de bajos recursos; estrés; programas sociales

ABSTRACT

This study’s purpose was to investigate possible relationships between poverty, its dimensions and parental stress. This research was quantitative, with a cross-sectional design and probabilistic sample of 433 participants registered in the Federal Government’s CadastroÚnico. The instruments used were the Sociodemographic Inventory, the Family Poverty Index (IPF) and the Parental Stress Index (PSI). To assess the relationship between the variables, the participants were divided into two groups based on the instruments measuring poverty (more and less poor) and stress (normal and high stress). Strongly significant associations were found between the poorer categories and high stress, in terms of both multidimensional poverty and some of its dimensions (access to knowledge, income and child development). The results related major difficulties in parenting practices to vulnerability aspects traditionally identified in studies about poor families, such as income and knowledge, and also highlight the hardships inflicted by poverty on children and adolescents.

Keywords:
Low income families; stress; social programs

Introdução

O fenômeno da pobreza sofreu várias mudanças até ser visto de forma plural e sistêmica, que apela tanto para uma visão pautada no desenvolvimento humano como nos aspectos sociais e políticos adjacentes. Tal fato evidencia que os elementos que constituem a realidade de indivíduos e grupos estão inseridos em uma teia multideterminada e, como tal, uma investigação dessa realidade precisa se basear em uma visão de desenvolvimento integrativa e sistêmica, que evidencie os processos biopsicossociais do ser humano. À medida que se expõem os aspectos macrossistêmicos, focaliza-se aqui, no contexto específico da família, dada sua importância primária, uma vez que é constituída como uma das principais configurações em que a competência e o caráter humano são moldados (Bronfenbrenner & Morris, 2006Bronfenbrenner, U., & Morris, P. A. (2006). The bioecological model of human development. In R. M. Lerner (Ed.), Handbook of child psychology (6th ed., Vol. 1, p. 793-828). Hoboken, NJ: Wiley.).

Os adultos ocupam papel central no sistema familiar, onde aqueles que exercem funções parentais estão sujeitos a um tipo especial de estresse, denominado de estresse parental. É considerado consenso na literatura que a vida na condição de pobreza acarreta no aumento dos níveis de estresse parental e interfere na qualidade dos relacionamentos que fornecem o contexto para a criação e desenvolvimento dos mais jovens. Isto porque as situações adversas trazidas pela pobreza aumentam o sofrimento psicológico dos pais, reduzem sua capacidade de envolver-se em respostas adequadas e interações com as crianças que são fundamentais para estimular seu crescimento, desenvolvimento e segurança socioemocional, o que limita as potencialidades parentais (Chaudry & Wimer, 2016Chaudry, A., &Wimer, C. (2016). Poverty is not just an indicator: the relationship between income, poverty, and child well-being. Academic Pediatrics, 16(3), 23-S29.).

O termo parentalidade é polissêmico e utilizado nas mais variadas situações, sendo a parentalidade em contextos adversos, como a pobreza, uma das categorias identificadas em revisão sobre a temática (Carvalho-Barreto, 2013Carvalho-Barreto, A. D. (2013). Parenting within the life cycle. PsicologiaemEstudo, 18(1), 147-156.). Este termo é cada vez mais usado para argumentar em torno da importância da vinculação entre adultos e crianças, sobretudo entre pais e filhos (Souza & Fontella, 2016Souza, F. H. O., & Fontella, C. (2016). Diga, Gérard, o que é a parentalidade? Clínica & Cultura, 5(1),107-120.).

Os elementos influentes no processo da parentalidade são multideterminados e respondem às idiossincrasias do meio onde vivem as famílias e como se dão seus padrões de interação. Por conseguinte, estudos que investigam a pobreza de famílias em diferentes contextos têm importância fundamental nos debates acerca do desenvolvimento humano (Bem & Wagner, 2006Bem, L. A., & Wagner, A. (2006). Reflexões sobre a construção da parentalidade e o uso de estratégias educativas em famílias de baixo nível socioeconômico. Psicologia em Estudo, 11(1), 63-71.).

Pobreza

A partir do debate teórico inicialmente proposto pelo economista e filósofo indiano Amartya Sen (2000Sen, A. K. (2000). Desenvolvimento como liberdade. São Paulo, SP: Companhia das Letras.), em sua Abordagem das Capacidades, a pobreza tem sido apresentada e encarada como um fenômeno multidimensional, caracterizado pela ausência ou escassez de recursos que possibilitem ao ser humano desenvolver-se de modo saudável, de modo a contemplar suas potencialidades.

Este conceito evidencia aspectos que dizem respeito a uma lógica centrada nas funcionalidades obtidas por meio dos recursos vigentes frente à situação de cerceamento de necessidades básicas, e não somente a simples ausência de meios referentes à renda ou bens para indivíduos serem classificados como pobres. Esta abordagem está, portanto, estreitamente ligada a uma visão da pobreza inspirada na perspectiva do desenvolvimento humano e considera sua pluralidade, levando em conta indicadores como educação, acesso ao trabalho e conhecimento, escolaridade, saúde, entre outros (Barros, Carvalho, & Franco, 2006Barros, R. P., Carvalho, M., & Franco, S. (2006). Pobreza multidimensional no Brasil. (Texto para discussão, n.1227). Brasília, DF: IPEA.).

Não obstante, os parâmetros monetários colaboram para uma comparação entre grupos econômicos entre e dentro das sociedades e têm sido a alternativa historicamente dominante para estudar a pobreza. Isto porque a representação em escala desse fenômeno se torna facilitada pelo critério de insuficiência de renda, que é naturalmente escalar, e ainda, pelo fato de que as famílias acessam os bens e serviços que implicam diretamente no seu bem-estar por meio de mercados que demandam recursos monetários, logo, a insuficiência de renda acaba sendo um dos principais determinantes da carência das famílias (Barros, Carvalho, & Franco, 2006Barros, R. P., Carvalho, M., & Franco, S. (2006). Pobreza multidimensional no Brasil. (Texto para discussão, n.1227). Brasília, DF: IPEA.).

Esta discussão evidencia que, apesar de ser consenso entre os pesquisadores que a pobreza é um fenômeno multidimensional, existem divergências quanto à possibilidade de agregar as diversas dimensões da pobreza em uma medida escalar. Neste ponto, o estudo de Barros, Carvalho e Franco (2006Barros, R. P., Carvalho, M., & Franco, S. (2006). Pobreza multidimensional no Brasil. (Texto para discussão, n.1227). Brasília, DF: IPEA.) surgiu de uma demanda para a criação de um índice a partir do qual fosse possível identificar as famílias pobres brasileiras em uma perspectiva multidimensional, utilizando o Cadastro Único.

Em tal estudo, foi criado o Índice de Pobreza Familiar, que tem amparo em indicadores sintéticos multidimensionais de pobreza, porém tentou superar a dificuldade em estimar o grau de carência de cada família, e não apenas o nível médio de um país, Estado, município ou bairro. Com o objetivo de ilustrar o emprego e a versatilidade deste instrumento, Barros, Carvalho e Franco (2006Barros, R. P., Carvalho, M., & Franco, S. (2006). Pobreza multidimensional no Brasil. (Texto para discussão, n.1227). Brasília, DF: IPEA.) estimaram a pobreza multidimensional das famílias brasileiras cadastradas na amostra das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios, coletadas em 1993 e 2003.

A partir desta aplicabilidade, os autores ressaltam que sua proposta metodológica traz vantagens quando possibilita calcular a pobreza humana de cada família. Eles ilustram a relevância deste tipo de informação por meio de uma análise a respeito da natureza da pobreza das dez famílias mais pobres presentes na amostra da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) - 2003; da pobreza em grupos particularmente vulneráveis (como de membros de famílias chefiadas por mulher), entre outras aplicações. Este recurso metodológico possibilitado por este estudo serviu como base para o desenvolvimento da pesquisa aqui relatada.

O IPF faz uma ponderação da pobreza que varia percentualmente de 0 a 100, estes valores significam os dois extremos da pobreza multidimensional: ausência de pobreza familiar e famílias absolutamente pobres. Os indicadores e dimensões que compõem este índice permitem identificar os pontos frágeis que justificam a pobreza das famílias (Barros, Carvalho, & Franco, 2006Barros, R. P., Carvalho, M., & Franco, S. (2006). Pobreza multidimensional no Brasil. (Texto para discussão, n.1227). Brasília, DF: IPEA.).

A avaliação da pobreza em uma perspectiva multidimensional é recente, sendo frequente encontrar na literatura trabalhos que investigam o papel da pobreza sobre a vida das pessoas entendendo esta variável apenas numa perspectiva monetária. Rocha e Carvalho (2015Rocha, L. E. V., & Carvalho, T. (2015). Desenvolvimento humano e convergência de renda: evidências para a região Nordeste do Brasil no período de 1991 a 2010. In Prêmio Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil(p. 173). Brasília, DF: PNUD.), por exemplo, consideraram que mesmo o Brasil tendo bom posicionamento em termos de renda se comparado a 80% dos países do resto mundo, existe o elemento problemático da desigualdade na distribuição de renda. Estas desigualdades econômicas estão desdobradas nas realidades sociais inter e intrarregionais.

As áreas mais pobres do país são as regiões Norte e Nordeste, atentando-se para o dado de que a região Norte concentrou no ano de 2010, 5,4% do PIB brasileiro. A média do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) dos municípios da região Norte é 15% inferior às regiões Sul e Sudeste.

Belém, capital do Estado do Pará, localizado na região Norte do Brasil, é o município mais populoso da sua região metropolitana e, dentre seus habitantes, 59% das pessoas que compõem as famílias são consideradas pobres em termos multidimensionais. Apesar de uma melhora registrada nos anos de 2000 a 2010, a posição no ranking de desenvolvimento da região metropolitana de Belém continua sendo a penúltima do Brasil, considerando as 16 regiões metropolitanas analisadas pelo Atlas do Desenvolvimento Humano (2013) (Rodrigues, Santos, & Fernandes, 2015Rodrigues, D. L., Santos, R. B. N. dos, & Fernandes, D. A. (2015). Pobreza e desenvolvimento humano na região metropolitana de Belém: uma análise comparativa entre os indicadores linha de pobreza, IDHM e IPM para os anos de 2000 e 2010. In Prêmio Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil(p. 155). Brasília, DF: PNUD.).

Em meio a tais realidades, projetos executados pelo governo brasileiro, a partir de 2001 com o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, estão inseridos numa lógica global de debates emergentes no início do século e pautados em maior atenção ao combate à pobreza. Lavinas, Cobo e Veiga (2012Lavinas, L., Cobo, B., & Veiga, A. (2012). Bolsa família: impacto das transferências de renda sobre a autonomia das mulheres pobres e as relações de gênero. Revista Latinoamericana de Población, 6(10), 31-56.) discutem que iniciativas como o programa Bolsa Família (PBF) são contemporâneas da era neoliberal dos países latino-americanos. Em meio à visibilidade que o conceito de 'pobreza' ganha a partir do início dos anos 1990, sobretudo em função de sua ampla utilização em relatórios de organismos internacionais e documentos de formulação e avaliação de políticas públicas (Ugá, 2004Ugá, V. D. (2004). A categoria pobreza nas formulações de política social do Banco Mundial. Revista de Sociologia e Política, 23, 55-62.), é possível visualizar antagonismos, pois por um lado existem políticas restritivas, que promovem corte de gastos públicos, atendendo à lógica das dimensões políticas macroeconômicas que levam a um maior grau de mercantilização dos serviços, e por outro são adotados programas de mínimos sociais para famílias pobres, que coloca as mulheres como vetor de mobilização, 'empoderando-as' na função de legítimas provedoras da eficiência no uso de recursos escassos.

Neste sentido, o debate sobre o impacto das transferências de renda sobre a autonomia das mulheres pobres no âmbito das relações de gênero, tendo como referência o PBF, destaca que somente a renda não é suficiente para operar o empoderamento das mulheres pobres chefes de família e a percepção do trabalho feminino. Ademais, não se pode esquecer que as mulheres chefes de família vivem em situação de vulnerabilidade, este dado é um forte fator para o aumento do estresse parental destas pessoas (Lavinas, Cobo, & Veiga, 2012Lavinas, L., Cobo, B., & Veiga, A. (2012). Bolsa família: impacto das transferências de renda sobre a autonomia das mulheres pobres e as relações de gênero. Revista Latinoamericana de Población, 6(10), 31-56.)

Alguns estudos (Kemp, Bradshaw, Doman, Finch, & Mayhew, 2004Kemp, P. A., Bradshaw, J., Dornan, P., Finch, N., & Mayhew, E. (2004) Ladders out of Poverty. York: University of York; Hoff, Laursen, & Tardif, 2002Hoff, E., Laursen, B., & Tardif, T. (2002). Socioeconomic status and parenting.In M. Bornstein (Ed.), Handbook of parenting (2nd ed., Vol. 2).London, UK: Lawrence Erlbaum Associates.) desenharam um panorama geral de compreensão das famílias que vivem em situação de pobreza. Main e Bradshaw (2016Main, G., & Bradshaw, J. (2016). Pobreza infantil no Reino Unido: Medidas, prevalência e partilha intra-agregado familiar. Política Social Crítica , 36(1), 38-61.) consideram que o bem-estar de crianças é intensamente afetado pela pobreza ou seus elementos. Em revisão sobre consequências da pobreza, mostra-se que o impacto da pobreza na saúde, durante o período pré-natal, nascimento e infância é profundo. Há evidência de que a pobreza é associada com níveis menores de amamentação, nascimentos prematuros e graus maiores de mortalidade infantil e depressão materna. Os impactos na educação são, na maioria das vezes, associados com dificuldades no desenvolvimento dos processos cognitivos na infância. Ainda, segundo os autores, a baixa escolaridade é associada com baixas habilidades e empregos menos remunerados, elementos que tendem a se manter ao longo das gerações familiares e têm efeitos negativos no desenvolvimento de pais e filhos.

Estes elementos da pobreza restritivos do desenvolvimento saudável de crianças e adultos têm efeito significativo sob os estilos e práticas parentais, aumentando os níveis de risco para a saúde mental das populações pobres, podendo resultar em níveis elevados de estresse ou ansiedade, processos que podem interromper o investimento na prática parental (Jocson & McLoyd, 2015Jocson, R. M., & McLoyd, V. C. (2015). Neighborhood and housing disorder, parenting, and youth adjustment in low‐income urban families. American Journal of Community Psychology, 55(3-4), 304-313). A despeito de todas as famílias brasileiras estarem sujeitas a riscos sociais como a violência, a criminalidade e os problemas derivados do acesso às drogas, é evidente que as famílias pobres são mais vulneráveis a estes fatores e muitos outros como condições precárias de saúde, moradia, saneamento etc. uma vez que dispõe de menos recursos e redes de apoio que possam auxiliá-las. Neste sentido, não é exagero dizer que as famílias pobres precisam dar conta de tarefas desafiadoras tornando-as frágeis e incidindo sobre os pais, estressando-os, o que prejudica o exercício da parentalidade. Neste contexto, o estresse parental pode funcionar como mais um aspecto que dificulta a geração de desenvolvimento em famílias que vivem cercadas por fatores de risco, e, portanto, dificulta o relacionamento pai-filho no que diz respeito, principalmente, ao investimento emocional na parentalidade (Evans & Kim, 2013Evans, G. W., & Kim, P. (2013). Childhood poverty, chronic stress, self‐regulation, and coping. Child Development Perspectives, 7(1), 43-48.).

Estresse parental

O estresse pode ser definido, de modo geral, como uma resposta não específica do organismo a uma situação interpretada como ameaçadora. Esta resposta surge com o objetivo de recuperar o equilíbrio, que foi desafiado por alguma demanda mobilizadora para o indivíduo. Dito isto, até mesmo uma situação interpretada como necessidade de sobrevivência pode desencadear o estresse no organismo, assim como estados emocionais positivos em excesso, pois é demandada uma readaptação do indivíduo. O desenvolvimento do estresse pode depender, então, da avaliação feita pelo indivíduo acerca da situação, o que indica que o estresse não é meramente uma resposta, mas um processo (Sardá, Legal, & Jablonski, 2004Sardá Jr., J., Legal, E.J., Jablonski Jr., S.J. (2004). Estresse: conceitos, métodos, medidas e possibilidades de intervenção. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.).

O estresse vivenciado pelas figuras que desempenham funções de pai e de mãe é denominado estresse parental. Fatores que influenciam o estresse parental estão associados às características dos pais, características da criança, fatores sociais, econômicos e contextos culturais. Ressalta-se que quando os níveis de estresse são considerados adequados, este pode se constituir como um fator motivacional que impulsiona os pais a desempenharem suas tarefas. Entretanto, níveis de estresse muito elevados podem comprometer o funcionamento familiar com consequências negativas para os pais e para os filhos (Cunha, Pontes, & Silva, 2017Cunha, K. C., Pontes, F. A. R., & Silva, S. S. da C. (2017). Pais de crianças com paralisia cerebral pouco estressados. Revista Brasileira de Educação Especial, 23(1), 111-126.).

Assim, revela-se a grande importância dos papéis exercidos pelos adultos em funções parentais nos meios familiares, formando um sistema que dita sua importância também nas nuances das relações que se desdobram na realidade social (Hoghughi, 2004Hoghughi, M. (2004). Parenting: an introduction. In M. Hoghughi& N. Long (Eds), Handbook of parenting: theory and research for practice (p. 1-18). London, UK: Sage.). Dessa forma, as variáveis implicadas no desenvolvimento humano se mostram dispostas em uma rede multideterminada, colocando-se em foco, aqui, a pobreza e o estresse no contexto familiar, mais especificamente, de pessoas exercendo a parentalidade. Assim, o objetivo deste trabalho é relacionar o grau de pobreza das famílias com os níveis de estresse parental.

Método

A presente pesquisa tem uma abordagem quantitativa e seu delineamento é transversal. A amostra utilizada foi representativa, calculada a partir de banco de dados do Ministério do Desenvolvimento Social e resultou em uma amostra probabilística estratificada por bairros da Belém continental.

Participantes

Fizeram parte da pesquisa 433 famílias representadas pelos pais, responsáveis ou cuidadores cadastrados no Cadastro Único do Governo Federal (CadÚnico). Este é um banco de dados que reúne informações sobre as famílias brasileiras em situação de pobreza e extrema pobreza. Os parâmetros do CadÚnico englobam as famílias que possuem até meio salário mínimo por pessoa; ou até três salários mínimos de renda mensal total, que procuram o Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) do município para solicitar cadastramento a fim de estarem aptas a receberem benefícios sociais, como o Bolsa Família.

Os participantes foram organizados a partir de amostra probabilística estratificada para os bairros da Belém continental. Para a participação na pesquisa, além do cadastro no CadÚnico, identificado pelo Número de Identificação Social (NIS), os cuidadores tiveram que se encaixar em dois critérios de seleção: ter ou ser responsável por filhos de cinco a 18 anos e morar nas localidades pesquisadas.

Local de pesquisa

Os dados foram coletados em dez CRAS da região continental de Belém, que foram selecionados por atenderem pessoas de diferentes bairros. Os referidos CRAS são Cras Icoaraci; Cras Tapanã; Cras Benguí; Cras Aurá; Cras Guamá; Cras Pedreira; Cras Jurunas; Cras Barreiro; Cras Cremação e Cras Terra Firme, os quais juntos atendem mais de 30 bairros de abrangência.

O CRAS é uma unidade pública estatal de base territorial instituída no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e localizado em áreas de vulnerabilidade social, que atua com famílias e indivíduos em seu contexto, visando a orientação e o convívio familiar e comunitário. Neste sentido é responsável pela oferta do programa de Atenção Integral às Famílias, oferecendo um serviço de referência territorializada de grande importância na atenção básica às famílias (Brasil, 2004Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome Secretaria Nacional de Assistência Social. (2004). Política Nacional de Assistência Social. Brasília, DF. Recuperado de: http://cursos.unipampa.edu.br/cursos/servicosocial/files/2015/06/Pol%C3%ADtica-Nacional-de-Assist%C3%AAncia-Social-PNAS1.pdf
http://cursos.unipampa.edu.br/cursos/ser...
).

Instrumentos

Foram utilizados três instrumentos nesse estudo: Inventário Sociodemográfico (ISD); Índice de Pobreza Familiar (IPF) e Parental Stress Index ou Índice de Estresse Parental (PSI). O Inventário Sociodemográfico foi utilizado a fim de registrar os dados gerais da família, a composição familiar, dados sobre os integrantes familiares e as características econômicas das famílias participantes, para caracterizar os participantes e também estabelecer um contato inicial. É um instrumento construído pela equipe de pesquisadores do Laboratório de Ecologia do Desenvolvimento - UFPA, tradicionalmente utilizado em pesquisas (Mendes, Pontes, Silva, Bucher-Maluschke, Reis, & Baía-Silva, 2008Mendes, L. S. A., Pontes, F. A. R., Silva, S. S. C., Bucher-Maluschke, J. S. N. F., Reis, D. C., & Baía-Silva, S. D. (2008). Inserção ecológica no contexto de uma comunidade ribeirinha amazônica. Revista Interamericana de Psicologia, 42, 1-10.).

O Índice de Pobreza Familiar (IPF) é um instrumento alinhado ao conceito de pobreza multidimensional, pois investiga em diferentes dimensões o contexto das famílias. Desenvolvido por Barros, Carvalho e Franco (2006Barros, R. P., Carvalho, M., & Franco, S. (2006). Pobreza multidimensional no Brasil. (Texto para discussão, n.1227). Brasília, DF: IPEA.), inclui ao todo, seis dimensões, 26 componentes e 48 indicadores e foi utilizado para medir o grau de pobreza multidimensional tanto em grupos demográficos quanto em nível familiar. Os 48 indicadores são estruturados como perguntas, as quais o cuidador principal poderia responder 'sim' ou 'não'. O 'sim' representa a necessidade insatisfeita, a carência ou fonte de vulnerabilidade, resultando no aumento do indicador de pobreza. O 'não' representa o contrário, a necessidade satisfeita, resultando na diminuição do grau de pobreza.

A ponderação do índice consiste na variação de 0 (ausência de pobreza familiar) a 100 (famílias absolutamente pobres). As seis dimensões da pobreza avaliadas são: a) vulnerabilidade; b) acesso ao conhecimento; c) acesso ao trabalho; d) escassez de recursos; e) desenvolvimento infantil; e f) carências habitacionais.

O Índice de Estresse Parental (Parenting Stress Index Short Form- PSI/SF - Abidin, 1995Abidin, R. R. (1995). Parenting Stress Index (3a ed.). Odessa, FL: Psychological Assessment Resources.) foi aplicado para aferir o nível de estresse parental percebido pelos cuidadores. Nessa pesquisa utilizou-se a versão portuguesa adaptada por Santos (1992Santos, S. V. (1992). Adaptação portuguesa, para crianças em idade escolar, do Parenting Stress Index (PSI): resultados preliminares. Revista Portuguesa de Psicologia, 28,115- 132.). Esse instrumento consiste em uma ferramenta que avalia o grau de estresse que os progenitores ou cuidadores estão vivenciando. Este instrumento já foi utilizado no Brasil em teses e dissertações, principalmente relacionando o estresse parental em pais de crianças com desenvolvimento atípico (Cunha, 2016Cunha, K. C. (2016). Estresse e resiliência em pais de crianças com paralisia cerebral (Tese de Doutorado). Núcleo de Teoria e Pesquisa do Comportamento, Programa de Pós Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento, Universidade Federal do Pará, Pará.).

É constituído em uma escala de 36 itens divididos em três subescalas, (com cada subescala compreendendo 12 itens): (a) Subescala Sofrimento Parental, que avalia as percepções sobre os sentimentos vivenciados pelo genitor em seu papel de pai/mãe; (b) Subescala Interação disfuncional Pai/Filho, para avaliar as percepções dos genitores sobre seus filhos, e quais destas são compatíveis ou não com suas expectativas, assim como avalia as percepções sobre as interações mãe/criança que reforçam ou não seus papéis de pai/mãe; (c) Subescala Criança Difícil, a qual especifica algumas características básicas da criança que facilitam ou não o manuseio de seus comportamentos. A soma dos pontos atribuídos a cada item define o escore total que pode variar de 36 a 180. Essa soma é realizada considerando as subescalas, por meio dos valores exibidos na escala likert do instrumento (escala likert variando de 1=discordo totalmente, 2=discordo, 3=não tenho certeza, 4=concordo e 5=concordo totalmente).

O escore obtido na análise total dos itens do PSI e em suas dimensões é classificado como baixo, normal ou alto. A pesquisa de Santos (1992Santos, S. V. (1992). Adaptação portuguesa, para crianças em idade escolar, do Parenting Stress Index (PSI): resultados preliminares. Revista Portuguesa de Psicologia, 28,115- 132.) apresentou Alfa de Chronback 0.91 para o coeficiente total de estresse que demonstrou elevada consistência interna das medidas utilizadas para descrever o estresse parental.

Procedimento

A pesquisa faz parte de um macroprojeto intitulado 'Pobreza e ecologia do desenvolvimento' que foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisas Científicas do Núcleo de Medicina Tropical da Universidade Federal do Pará e aprovado sob o parecer 865.235. Além disso, o presente estudo contou com autorização dos administradores dos CRAS de cada bairro visitado.

Foram abordados cuidadores que frequentam os CRAS para recadastramento no programa Bolsa Família ou outro tipo de serviço durante sua espera por atendimento, sendo explicados aos participantes os objetivos da pesquisa expressos no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Diante da concordância do participante, o pesquisador realizou a aplicação da entrevista com o uso dos instrumentos. Todas as entrevistas foram realizadas individualmente e aconteceram em uma única vez com cada participante. Após a aplicação dos instrumentos com participantes de todos os bairros da região de Belém continental, iniciou-se a inserção dos dados no pacote estatístico SPSS® versão 23.0, por meio do qual foram realizadas análises estatísticas descritivas.

Análise de dados

A partir das pontuações obtidas com a aplicação dos instrumentos IPF e PSI, os participantes foram classificados quanto ao seu nível de estresse parental (estresse normal ou baixo; estresse alto) e ao grau de pobreza multidimensional (mais pobres; menos pobres).

Os parâmetros utilizados para a divisão nessas categorias basearam-se nos escores obtidos no PSI, no caso do estresse parental, pelo qual o estresse é considerado alto a partir de 94 pontos; na subescala sofrimento parental esse limiar é de 33 pontos, 28 na subescala relacionamento pai/filho e 37 pontos na subescala criança difícil. Esses parâmetros foram estabelecidos pela validação do instrumento.

Em relação ao IPF, para a desagregação das categorias de pobreza o critério utilizado foi dividir os grupos a partir da mediana (=14; ≈ 29%), separando a metade maior da amostra, ou seja, estava acima da mediana (mais pobres) e a metade menor, abaixo da mediana, (menos pobres) da amostra, tanto no total da pobreza quanto em suas dimensões. Ressalta-se que cada dimensão possui um número determinado de itens (Vulnerabilidade=10; Acesso ao conhecimento=6; Acesso ao trabalho=6; Acesso a recursos=4; Desenvolvimento=11 e Habitação=12). O grau de pobreza de cada família foi calculado por meio de regra de três simples, considerando o escore total obtido em cada dimensão e na pobreza multidimensional.

A fim de relacionar as duas variáveis, foram aplicados alguns testes estatísticos apropriados para a estrutura dos dados, que são contínuos categorizados. A técnica utilizada para esse fim foi a análise de correspondência. Dessa forma, o estudo foi desenvolvido em algumas etapas, seguindo pressupostos para a validação dessa técnica. Segundo Fávero, Belfiore, Silva e Chan (2009Fávero, L., Belfiore, P., Silva, F., & Chan, B. (2009). Análise dos dados: modelagem multivariada para tomada de decisões. Rio de Janeiro, RJ: Elsever.), a análise de correspondência é uma técnica estatística exploratória utilizada para verificar associações ou similaridades entre variáveis qualitativas ou variáveis contínuas categorizadas.

Após a aplicação de testes requisitados por essa técnica, para calcular a probabilidade de uma categoria de variável estar associada com outra, se fez necessário calcular o coeficiente de confiança. Em todos os testes, fixou-se α = 5% (p ≤ 0,05) para rejeição da hipótese nula. A análise de correspondência foi realizada com o auxílio do aplicativo Statistica, versão 6.0.

Resultados

Os achados dessa pesquisa foram organizados da seguinte forma: (1) características sociodemográficas, (2) dados descritivos da pobreza familiar e estresse parental e (3) relação entre pobreza familiar e estresse parental.

Características sociodemográficas

Como características sociodemográficas principais apontam-se: a idade média dos participantes foi de 36,6 anos (Dp=8,7). A idade média dos filhos (crianças e adolescentes) foi de 10,4 anos (Dp=3,7). Além disso, a maioria das famílias (79,9%) tem entre seus dependentes pelo menos uma criança (membro com idade até 12 anos).

Observou-se, ainda, a predominância de mulheres como cuidadoras principais (96,5%), sendo que do total de participantes, 46% são casados e 54% solteiros, dos quais 81, 4% nunca se casaram juridicamente, 7,0% eram divorciados ou separados e 1,6% eram viúvos. Em relação à escolaridade, pouco mais da metade (52%) dos participantes tinha ensino médio completo, 25% ensino fundamental completo, 21% ensino fundamental incompleto, 1% era analfabeto e 1% tinha ensino superior completo.

Quanto ao trabalho, 54% disseram exercer alguma atividade, sendo a maioria (66,5%) informal, e 46% declararam não trabalhar. Vale ressaltar que em 83,8% dessas famílias há ausência de trabalhador com qualificação média ou alta e na maioria (94,5%) dessas famílias há ausência de ocupação com renda superior a dois salários mínimos.

Em relação à moradia, a média de habitantes por residência foi de 4,2 pessoas (Dp=1,282) e em 68,8% das casas há densidade de dois ou mais habitantes por dormitório. As configurações familiares encontradas nos 433 participantes foram: 35,6% das famílias são compostas por mães ou pais solteiros (majoritariamente mães); 31,9% das famílias são compostas por mães e pais casados e seus filhos; 20,6% por mães e pais casados e solteiros que moram com seus pais (avôs e avós) e filhos; 6,7% das famílias são reconstituídas, com casais formados por madrastas ou padrastos e um parente biológico. Outras configurações ainda foram encontradas: avôs e netos, mães e pais solteiros com seus filhos e netos e, ainda, um caso de irmão exercendo a parentalidade.

Dados descritivos de pobreza e estresse parental

A média que exprime o grau de pobreza das 433 famílias resultou em aproximadamente 14,4 (30%; DP=8,1), um valor considerado baixo levando em consideração os parâmetros do instrumento, que considera as famílias mais pobres como sendo aquelas mais próximas de 100% (que corresponderia à pobreza absoluta). Porém, o resultado encontrado é maior que a média nacional de pobreza familiar (25%), dado encontrado por Barros, Carvalho e Franco (2006Barros, R. P., Carvalho, M., & Franco, S. (2006). Pobreza multidimensional no Brasil. (Texto para discussão, n.1227). Brasília, DF: IPEA.) em estudo da pobreza multidimensional em nível nacional. O grau de pobreza também foi próximo do encontrado por estes autores ao apresentarem grupos sociodemográficos particularmente vulneráveis, no qual o grau de pobreza para membros de famílias chefiadas por mulheres foi de 28%.

Os dados obtidos com o PSI revelaram que a maioria dos cuidadores (60,5%) apresentou estresse baixo ou normal. O olhar atento sobre os dados indicaram que em geral as participantes foram classificadas com estresse normal ou baixo nas três dimensões, sendo o percentual para cada dimensão respectivamente: 56,4% na dimensão 'sofrimento parental'; 61,9% na 'interação disfuncional pai/filho'; e 79,7% na dimensão 'criança difícil'. Dessa forma, foram classificados com estresse alto 43,6% dos pais na dimensão sofrimento parental; 38,1% na dimensão interação disfuncional pai/filho e 20,3% na criança difícil.

Especificamente no grupo classificado com alto estresse (n=171), a dimensão 'relacionamento pai/filho'foi a que teve porcentagem mais significativa de pais com estresse alto (81,3%), em seguida apareceu a dimensão 'sofrimento parental', com 77,2% de pais com estresse alto. A dimensão 'criança difícil' foi a que teve um percentual menos significativo de pais com estresse alto dentro deste grupo (52%).

Pobreza familiar e estresse parental

Os valores do nível descritivo (p) menores que o nível de significância de 0,05 (5%) e do Critério Beta (β) maior ou igual que 3, indicam que tanto as variáveis como suas categorias são dependentes (Tabela 1). Além disso, pode-se observar que a soma dos percentuais de inércia indicam que mais de 70% da informação foi restituída pela análise de correspondência. Desta forma todos os pressupostos para utilização da técnica de análise de correspondência foram satisfeitos.

Tabela 1
Estatísticas resultantes da aplicação da técnica de análise de correspondência às variáveis: Estresse, IPF, IPFC, IPFR e IPFDI

A Tabela 1 demonstra a variável pobreza, acessada pelo instrumento IPF, e quais dimensões da mesma se mostraram dependentes em relação à variável estresse parental no resultado dos testes estatísticos. Observa-se que a variável pobreza multidimensional, assim como a dimensão 'Acesso ao Conhecimento', 'Acesso a Renda' e 'Desenvolvimento infantil', responderam positivamente a todos os pressupostos integrantes da análise de correspondência, colocando esta variável - pobreza multidimensional - e as dimensões mencionadas como dependentes em relação à variável estresse parental.

A partir disso, foi calculado o coeficiente de confiança a fim de saber qual é a probabilidade de uma categoria de variável estar associada ou apresentar similaridade com outra, levando em conta que as variáveis e suas categorias são dependentes. O resultado pode ser observado na Tabela 2, que traz as informações resultantes a partir das categorias de cada variável em relação à pobreza (o grupo dos menos pobres e mais pobres), e em relação ao estresse (os grupos normal e alto). As associações entre as categorias são consideradas significativas, quando o valor do coeficiente de confiança indica probabilidades moderadamente significativas, isto é, quando 50%≤ γ×100<70% ou quando o valor do coeficiente de confiança indica probabilidades fortemente significativas, i. e., quando (γ) ≥ 70,00%.

Tabela 2
Estatísticas resultantes da aplicação da técnica de análise de correspondência as variáveis: Estresse, IPF, IPFV, IPFC, IPFT, IPFR, IPFDI e IPFH

A Tabela 2 exibe todas as seis dimensões do IPF, mesmo aquelas que não se mostraram dependentes da variável estresse por terem um valor p maior que o limite. Os dados mostram em quais cruzamentos da tabela ocorreram relações estatisticamente significativas, estas podendo apresentar probabilidades fortemente significativas {*} e moderadamente significativas {**}.

Observa-se que a Tabela 2 exprime claramente a relação fortemente significativa entre as categorias 'mais pobres' e 'estresse alto', tendo em consideração que suas variáveis se mostraram dependentes, o que foi pontuado na Tabela 1. Sendo assim, o grupo dos mais pobres se mostra como os mais estressados, em oposição aos menos pobres. Ademais a tabela revela ainda relações fortemente significativas entre a categoria 'mais pobre' do IPF (pobreza total) com a categoria 'alto estresse'.

Os dados da Tabela 2 mostram também relações fortemente significativas entre as categorias 'menos pobres' e 'estresse normal', e também, entre as categorias mais pobres e alto estresse nas seguintes dimensões: 'Acesso ao Conhecimento' (IPFC), 'Acesso à Renda' (IPFR) e 'Desenvolvimento Infantil' (IPFDI).

Discussão

Esta pesquisa revelou que os cuidadores primários nas famílias são majoritariamente mulheres, característica que está conformada com o papel tradicional da mulher como cuidadora principal e também com o crescente adendo a este o papel de chefe de família, constituindo fatores que constroem esse grupo como mais vulnerável. Além disso, existe no programa Bolsa Família a preferência que o titular seja uma mulher, critério que centraliza o papel da mulher como vetor de mobilização do programa (Mendes, 2016Mendes, M. A. (2016). Mulheres chefes de domicílios em camadas pobres: trajetória familiar, trabalho e relações de gênero. In Anais do 14ºEncontro Nacional de Estudos Populacionais(p. 1-11). Caxambu, MG.).

É relevante notar como característica marcante dessa população o fato de que, dos adultos que trabalham, a maioria exerce atividade informal, ou seja, não possuem renda fixa. Esses indicadores estão de encontro com os resultados expostos por Magalhães, Cotta, Martins, Gomes e Siqueira-Batista (2013Magalhães, K. A., Cotta, R. M. M., Martins, T. D. C. P., Gomes, A. P., & Siqueira-Batista, R. (2013). A habitação como determinante social da saúde: percepções e condições de vida de famílias cadastradas no programa Bolsa Família. Saúde e Sociedade, 22(1), 57-72.) em pesquisa com famílias cadastradas no programa Bolsa Família.

Como resultado da aplicação do IPF e PSI, os dados revelaram que as famílias com maior pobreza multidimensional, escassez de acesso ao conhecimento, à renda e menor desenvolvimento infantil foram fortemente associadas com alto nível de estresse parental no cuidador principal.

O acesso ao conhecimento diz respeito à educação do cuidador principal e de todos os adultos que residem na moradia, e teve como um dos resultados a observação que em 93,3% das famílias há ausência de adulto com alguma educação superior. Este resultado chama a atenção, pois de acordo com Gomes e Pereira (2005Gomes, M. A.,& Pereira, M. L. D. (2005). Família em situação de vulnerabilidade social: uma questão de políticas públicas. Ciência & Saúde Coletiva, 10(2), 357-363.), além da distribuição de renda, a educação é um fator de desigualdade, uma vez que a mesma tem o impacto de perpetuação do ciclo de pobreza entre gerações, visto que os pais com baixa escolaridade têm dificuldade em garantir maior nível de escolaridade para seus filhos.

Na dimensão que investiga o acesso à renda, ou seja, leva em consideração os aspectos monetários e revela o quanto a família tem acesso a recursos que possibilitem atender às suas necessidades básicas, uma das informações obtidas foi de que em 94,5% das famílias há ausência de algum adulto que exerça atividade com renda superior a dois salários mínimos. Também para essas famílias com menor acesso à renda, o nível de estresse foi alto. É importante notar que embora a renda se mostre como um fator realmente importante que influencia na qualidade de vida da população, não é o único fator envolvido.

O acesso ao trabalho constitui a maior fonte de bem-estar familiar, o que não poderia ser diferente dado o limitado sistema de proteção brasileiro (Lavinas, Cobo, & Veiga, 2012Lavinas, L., Cobo, B., & Veiga, A. (2012). Bolsa família: impacto das transferências de renda sobre a autonomia das mulheres pobres e as relações de gênero. Revista Latinoamericana de Población, 6(10), 31-56.). Este resultado está alinhado com o dado de que a maioria dos adultos que efetivamente trabalha, exerce atividade informal (Magalhães et al., 2013Magalhães, K. A., Cotta, R. M. M., Martins, T. D. C. P., Gomes, A. P., & Siqueira-Batista, R. (2013). A habitação como determinante social da saúde: percepções e condições de vida de famílias cadastradas no programa Bolsa Família. Saúde e Sociedade, 22(1), 57-72.), a qual revela ser de alta inconstância e dificilmente traz para as famílias alguma segurança ou estabilidade, o que pode constituir fatores que facilitam a emergência de um alto estresse parental nos cuidadores ou progenitores.

A dimensão de desenvolvimento infantil é constituída por indicadores que revelam situações de vulnerabilidade ou mazelas relativas aos dependentes familiares (crianças e adolescentes) e leva em consideração quatro componentes: o trabalho precoce, a evasão escolar, o atraso escolar e a mortalidade infantil (Barros, Carvalho, & Franco 2006Barros, R. P., Carvalho, M., & Franco, S. (2006). Pobreza multidimensional no Brasil. (Texto para discussão, n.1227). Brasília, DF: IPEA.). As famílias mais pobres nessa dimensão foram aquelas que apresentaram alto estresse parental.

Este resultado indica que a pobreza atua de várias formas nessas famílias, atingindo pais e filhos, e, ao atingir as crianças no sentido de não dar oportunidades plenas para seu desenvolvimento, traz para a família dificuldades acerca das mesmas. Isso é verdade tanto no sentido pai-filho da relação, como no sentido filho-pai, visto que ambos não têm suas expectativas preenchidas, o que se reflete no estresse que marca o exercício da atividade parental, ou seja, torna esse processo mais desgastante para o cuidador, de forma que ela se torne também menos efetiva e mais errática, o que traz prejuízos aos membros da díade. Este dado está de acordo com os resultados encontrados por Jocson e McLoyd (2015Jocson, R. M., & McLoyd, V. C. (2015). Neighborhood and housing disorder, parenting, and youth adjustment in low‐income urban families. American Journal of Community Psychology, 55(3-4), 304-313), em que elementos relacionados à pobreza anteciparam maiores níveis de angústia ou estresse parental.

No presente estudo, o oposto também é válido: as famílias menos pobres em todas as dimensões referidas, como a do desenvolvimento infantil, foram aquelas cujos cuidadores apresentaram menores níveis de estresse parental. Além disso, é importante mencionar o dado de que a maioria dos cuidadores (60,5%) deste estudo revelou ter estresse baixo ou normal. Estes fatores podem indicar aspectos protetivos dessa população envolvidos nesse processo que ajudam o sistema familiar a se estruturar de forma mais saudável (Pesce, Assis, Santos, & Oliveira, 2004Pesce, R. P., Assis, S. G., Santos, N., & Oliveira, R. de V. C. de. (2004). Risco e proteção: em busca de um equilíbrio promotor de resiliência. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 20(2), 135-143.).

Neste sentido, a pesquisa de Ghate e Hazel (2002Ghate, D., & Hazel, N. (2002). Parenting in poor environments: stress, support and coping. London, UK: J. Kingsley., p. 16), que analisou uma amostra constituída majoritariamente por mães vivendo em áreas que eram "{...} fortemente indicadoras de desvantagem individual, grupal e pobreza {...}", revelou que a pobreza, muitas vezes, não atua de forma direta nas percepções daqueles que estão a ela submetidos e, portanto, no estresse envolvido nas atividades de um cuidador primário dentro da família. Em vez disso, atua de forma distal, ou seja, em elementos periféricos que, em conjunto, podem atuar de forma a aumentar a vulnerabilidade, risco ou estresse parental desses cuidadores. Isto faz sentido levando em consideração as dimensões da pobreza e como os aspectos específicos como trabalho, renda, conhecimento e desenvolvimento infantil constituíram, conjuntamente, uma associação forte com o alto estresse parental.

Considerações finais

A contribuição do presente estudo foi sugerir que os níveis de pobreza influenciam os níveis de estresse encontrado nas famílias investigadas. Desse modo foi possível verificar alto nível de estresse no grupo classificado como mais pobres tanto na pobreza multidimensional como em algumas de suas dimensões (acesso a conhecimento, renda e desenvolvimento infantil). Ademais se observou estresse normal no grupo classificado como menos pobre.

Esses resultados permitiram colocar em perspectiva quais dimensões ou aspectos da pobreza estão mais associados com obstáculos para o exercício da parentalidade. A pobreza de forma global esteve associada com o alto estresse, ou seja, mais que as dimensões isoladas, o conjunto de dificuldades trazidas pelo fenômeno da pobreza põe as famílias em situações de risco. Ademais, aspectos das pessoas envolvidas na relação parental também foram considerados, de modo que tanto elementos do domínio dos adultos (acesso a conhecimento; renda familiar) como do domínio dos dependentes (desenvolvimento infantil) estiveram fortemente associados com o alto estresse parental.

As limitações desta pesquisa dizem respeito, sobretudo, ao universo amostral, que foi constituído somente pelas famílias pobres que frequentam o CRAS de Belém e estão cadastradas no CADÚnico. É possível que as famílias que não estão cadastradas em programas federais tenham níveis maiores de pobreza por não receberem apoio financeiro, podendo apresentar outros perfis de pobreza, uma vez reiterado seu caráter multidimensional.

Observando as contribuições e limitações, revela-se a importância de estudos que levem em consideração as idiossincrasias culturais e que tentem seguir uma linha sistêmica. Os dados aqui apresentados revelam relações que merecem ser investigadas de forma atenta, como, por exemplo, que dimensões da pobreza mais contribuem para uma família de determinado contexto populacional ser classificada como mais pobre. No que diz respeito ao estresse parental, indagar que dimensões do estresse parental mais se destacaram para explicar alto estresse para aquela tipologia familiar. Além disso, considerando que a maioria dos pais deste estudo apresentaram níveis normais ou baixos de estresse, pesquisas que direcionem o olhar para os aspectos protetivos que envolvem as famílias pobres de Belém-PA, poderão identificar fatores fortalecedores que permitem a esta população enfrentar as adversidades de forma saudável.

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    Apoio e financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2017
  • Aceito
    14 Set 2018
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