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MADELEINE E MEDEIA: MULHERES ALÉM DA MATERNIDADE1 1 Apoio e financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais ( FAPEMIG).

MADELEINE Y MEDEIA: MUJERES ADEMÁS DE LA MATERNIDAD

RESUMO

No texto ‘A juventude de Gide’, Lacan (1998a) compara Madeleine Gide, em seu ato de queimar as cartas de seu marido, André Gide, a Medeia. Este ato será definido como o ato de uma verdadeira mulher. Interessa-nos ler este breve comentário, buscando extrair dele o ponto a partir do qual Lacan define a mulher. Nossa hipótese é que seu ponto de partida não é o gênero mas antes o ato desmedido presente em uma e outra. Para a psicanálise, a sexualidade é sempre da ordem de um enigma para o neurótico. Freud refere-se à mulher como um continente negro e confessa que sua lente edípica e fálica não é suficiente para responder aos mistérios do feminino. Esta chave de leitura o conduz à conclusão de que a maternidade é a realização da feminilidade, por excelência. Para Lacan, a verdadeira mulher se situa na dissociação entre a mãe e a mulher. A partir da leitura de Miller, acerca de Madeleine e Medeia, propomos interrogar qual a relação entre o ato desmedido de uma e de outra mulher. Para tanto, abordaremos uma a uma.

Palavras-chave:
Mulher; ato; maternidade

RESUMEN

En ‘A juventude de Gide’, LacanLacan, J. (2003). Televisão. In V. Ribeiro (Trad.), Outros escritos (p. 508-543). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1975. (1998a) compara a Madeleine Gide, en su acto de quemar las cartas de su marido, Andre Gide, la Medea. Este acto se definirá como el acto de una verdadera mujer. Nos interesa leer este breve comentario, buscando extraer de él el punto a partir del cual Lacan define a la mujer. Nuestra hipótesis es que su punto de partida no es el género sino el acto desmedido presente en una y otra. Para el psicoanálisis, la sexualidad es siempre del orden de un enigma para el neurótico. Freud se refiere a la mujer como un continente negro y confiesa que su lente edípica y fálica no es suficiente para responder a los misterios del femenino. Esta clave de lectura lo conduce a la conclusión de que la maternidad es la realización de la feminidad, por excelencia. Para Lacan, la verdadera mujer se sitúa en la disociación entre la madre y la mujer. A partir de Madeleine y Medea, proponemos interrogar qué relación Miller establece entre el acto desmedido de una y de otra y la mujer. Para ello, abordaremos una a una.

Palabras clave:
Mujeres; acto; maternidad

ABSTRACT

In the text ‘A juventude de Gide’, Lacan (1998a) compares Madeleine Gide, in her act of burning the letters of her husband, Andre Gide, to Medea. This act will be defined to the act of a true woman. We are interested to read this brief comment to capture the point from which Lacan defines the woman. Our hypothesis is that its starting point is not the genre, but the present unmeasured act in both. For psychoanalysis, sexuality comes always from an enigma order to the neurotic. Freud refers to the woman as a dark continent and confesses that his oedipal and phallic lens is not enough to meet the feminine mysteries. This interpretation leads him to the conclusion that maternity is the realization of femininity, par excellence. For Lacan, the true woman is in dissociation between the mother and the woman. From Miller writings about Madeleine and Medea, we propose to question what relationship he establishes between the unmeasured act of them, Medea and Madeleine, and the woman. To do so, we will address one by one.

Keywords:
Woman; act; maternity

Introdução

Este artigo é parte de uma pesquisa de doutoramento em desenvolvimento no Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUC Minas e integra a pesquisa ‘O que quer a mãe hoje: um estudo da maternidade no século XXI a partir da psicanálise’, ambas financiadas pela Fapemig.

Lacan (1998aLacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958., p. 773) comenta o dilaceramento do escritor André Gide ao ser arrancado do desdobramento de si mesmo que eram suas cartas, denominadas por ele de minha criança, quando Madeleine, sua esposa, as queimava. No comentário que faz sobre essa passagem, Lacan compara Gide a Jasão, dizendo: “Pobre Jasão [...] ele não reconhece Medéia [...]”, referindo-se a uma aproximação entre o ato de Madeleine ao ato da personagem Medeia, que mata os próprios filhos, como veremos. E assim Lacan refere-se à Madeleine.

Até que ponto ela veio a se transformar naquilo que Gide a fez ser, permanece impenetrável, mas o único ato onde ela nos mostra claramente se separar dele é o de uma mulher, de uma verdadeira mulher, em sua inteireza de mulher. Este ato é o de queimar as cartas, - que são o que ela tem ‘de mais precioso’. Que ela não tenha dado outra razão que a de “ter que fazer alguma coisa [...] (Lacan, 1998aLacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958., p. 761, grifo do autor).

Propomos desdobrar esta passagem presente nos Escritos, buscando extrair dela o ponto a partir do qual Lacan define a mulher. Seu ponto de partida não é o gênero, mas antes o ato desmedido presente em uma e outra. Tanto Freud quanto Lacan ensinam que a sexualidade é da ordem de um enigma para cada um. A relação entre o corpo sexuado e sua subjetivação nunca é simples e evidente e o neurótico tem sempre uma relação de inadequação a seu sexo.

Freud refere-se à feminilidade como um continente negro, território no qual sua lente fálica e edipiana não lhe permite desvendar todos os mistérios. É inegável que ele tenha encontrado uma dificuldade para representar a posição sexuada do lado feminino. A questão acerca do que é ser uma mulher é colocada em cena no primeiro grande caso clínico publicado por ele, o caso Dora. Há, desde sempre para Freud, um ponto de inassimilável no feminino.

Em Lacan (2008Lacan, J. (2008). O seminário: livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Seminário originalmente proferido em 1972/73.), este inassimilável aparecerá sob a forma do aforisma ‘A Mulher não existe’ que assinala a impossibilidade de pensar o feminino a partir do universal e a necessidade de considerá-lo a partir do singular de cada uma. Lacan retoma o princípio freudiano do primado do falo como o representante da diferença entre os sexos no inconsciente através da postulação da inexistência de um significante d’A mulher. O Outro sexo é o que resiste à identificação, não se pode identificá-lo. Pode-se falar do homem, como universal, identificando-o ao falo, mas há do outro lado uma ausência, uma alteridade que não é identificável a nenhum significante: ‘A mulher não existe’. Não há um ‘dois’ que entra em relação com um ‘um’.

Na década de 70, Lacan (2008Lacan, J. (2008). O seminário: livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Seminário originalmente proferido em 1972/73.) formaliza as fórmulas da sexuação, valendo-se da função fálica. Do lado esquerdo, denominado lado homem, há a universal afirmativa ‘Para todo x, x é fálico’ e no lugar da particular afirmativa temos ‘Existe um x que não é fálico’. A particular afirmativa ‘Existe um x que não é fálico’ funda o lugar da exceção como o lugar do pai, evocando o mito de ‘Totem e tabu’. Todos são fálicos, há um todo, um universal, e há uma exceção que confirma a regra. Esse universal sustenta-se de um ponto de exceção. Há um universal do lado homem das fórmulas, mas esse universal não assegura nenhuma existência. Um conjunto pode ser vazio e pode funcionar como universal. O fato de haver um universal fálico não garante a existência de um homem. O lugar da existência é o lugar do pai.

Do lado direito do quadro, do lado mulher, não existe o Um que faz a exceção. A fórmula do não-todo é lida como não é de todo x que posso dizer que se inscreve na função fálica. Não é de toda mulher que se pode dizer que ela se inscreve na função fálica, ou, se ela se inscreve na função fálica, não é inteira, há uma parte na função fálica, mas não tudo. No lugar da universal negativa, encontramos: ‘Não existe um x que diga não à função fálica’. O pai existe, mas a mulher não. O não-todo implica uma dupla indeterminação: primeiro, afirma uma relação da mulher ao falo que é indeterminada, ela é não-toda na função fálica, e segundo, não podemos saber onde ela é nessa função. Na lógica clássica, a fórmula ‘Não existe um x que diga não’ conduziria à universal afirmativa ‘Todos dizem sim’. Entretanto, não é isso que Lacan escreve com as fórmulas, mas que não há um universal. O não-todo não implica que haveria uma existência que diria não à função fálica e conduz ao ‘um a um’, cada uma inscreve-se na função fálica de modo contingente e não constitui um conjunto. Começamos com Madeleine.

Madeleine Gide

André Paul Guillaume Gide (1869-1951) foi um escritor francês, ganhador do prêmio Nobel de literatura em 1947, que escreveu mais de 50 obras, além de uma série de notas e papéis íntimos que eram destinados a Jean Delay, seu psicobiógrafo. Jean Delay, psiquiatra, neurologista e escritor, produziu dois volumes de uma obra dedicada à juventude de Gide, e é a partir delas que Lacan terá acesso à vida do escritor francês.

A obra de Delay contém notas pessoais de Gide, trechos inéditos, cadernos de leitura e as correspondências entre Gide e sua mãe, porém ficou de fora um elemento essencial: “Nessa massa deve-se levar em conta o vazio deixado pela correspondência com sua prima, transformada em esposa, Madeleine Rondeaux” (Lacan, 1998aLacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958., p. 753). Além dos dois volumes do livro de Jean Delay, Lacan usa como suporte a biografia escrita por Jean Schlumberger, amigo do casal Gide e Madeleine. Esta obra reúne ainda cartas de Madeleine que nunca chegaram a ser enviadas.

Gide era homossexual, mas Lacan (1998aLacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958.), ao abordar sua vida amorosa, centra-se na escolha heterossexual pela prima Madeleine. Sobre a vida de André nos interessa destacar aqui somente aquilo que se refere à sua relação com Madeleine.

A família de Gide vem de gerações de aliança protestante, marcada por “[...] cuidados maternos moralizantes” (Lacan, 1998aLacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958., p. 756), aos quais Juliette, mãe do escritor, não escapa. O pai de Gide, Paul Gide, traz outra característica, a da intelectualidade, sendo uma forte influência para o filho e, ainda que distante, teve uma presença marcante na vida de André, até sua morte quando o filho tinha 11 anos de idade.

Juliette Rondeaux era uma “[...] mulher austera, masculinizada e virtuosa, cultuava a moral, se sacrificava em nome do dever” (Martinho, 2007Martinho, M. H. (2007). André Gide, entre amor, desejo e gozo. Stylus, 14, 27-38., p. 28). O próprio casamento com Paul Gide foi tomado como um dever por insistência de sua família. Martinho indaga que provavelmente foi encarando como uma tarefa que ela se ofereceu a conceber o único filho com o marido. Lacan (1998aLacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958., p. 760) lança uma pergunta: “Que foi para esse menino sua mãe, e aquela voz pela qual o amor se identificava com os mandamentos do dever?”. A relação de André com a mãe é importante para que possamos entender sua relação com Madeleine, já que a mãe é a responsável pela separação entre o amor e o desejo na vida do escritor.

Hellebois (2011Hellebois, P. (2011). Madeleine. In P. Hellerbois. Lacan: lecteur de Gide (p. 43-78). Paris, FR: Editons Michèle.) vai nomear a relação de Juliette com o filho de maternagem moral e apontará, pautado na leitura de Lacan, a marca da morte nessa relação, relacionada com a incidência negativa do desejo da mãe na criança, sendo a salvação de Gide a sedução pela tia Mathilde Rondeaux, mãe de Madeleine.

Martinho (2007Martinho, M. H. (2007). André Gide, entre amor, desejo e gozo. Stylus, 14, 27-38., p. 29) aponta que a tia Mathilde interveio de forma decisiva na vida de André, sendo ao mesmo tempo “[...] salvadora e pervertedora”. Em A porta estreita, Gide, misturando realidade e ficção, narra a cena de sedução na qual uma tia seduz o sobrinho de 13 anos, passando-lhe a mão sobre peito, com a desculpa de arrumar-lhe a roupa. É nessa cena com a tia que André tem seu desejo despertado, mas também torna-se o filho desejado, no plano imaginário. Neste despertar do desejo de Gide, ele não se reconhece como o objeto de desejo feminino, mas identifica-se com a sedutora (Lacan, 1998aLacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958.). Lacan indica que é na mulher, encarnada pela tia, que ele se descobre transmudado em desejante.

Mas essa transformação vem apenas como resíduo de uma subtração simbólica que se fez no lugar em que o menino, confrontado com a mãe, só pôde reproduzir a abnegação de seu gozo e o invólucro do amor. O desejo deixou ali somente sua incidência negativa, para dar forma ao ideal do anjo que não poderia suportar o contato impuro (Lacan, 1998aLacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958., p. 756).

Essa figura do anjo é encarnada por Madeleine. Ela era filha mais velha do irmão de Juliette com Mathilde, a tia sedutora. Mathilde era uma mulher infiel que com seus atos considerados imorais expunha a família socialmente. Em 1880, o pai de Madeleine faleceu e a jovem assumiu as responsabilidades familiares, já que o comportamento de sua mãe envergonhava a família e as filhas a recusavam. É na casa dos tios que Gide tem seu encontro arrebatador com a prima, quando a encontra, “[...] de joelhos, aos prantos e nisso encontra ‘um auge de embriaguez, entusiasmo, desamparo e emoção’. A partir desse momento, Gide se dedica a proteger Madeleine. A elege como seu único objeto de amor” (Martinho, 2007Martinho, M. H. (2007). André Gide, entre amor, desejo e gozo. Stylus, 14, 27-38., p. 32, grifo do autor).

Essa promessa de devoção é o que marcou o amor de André por Madeleine, um amor sem conexão carnal, um amor puro. Antes de se casarem, eles iniciam uma intensa troca de cartas, marcada por um tom fraternal. Madeleine muitas vezes assinava a carta como soeur ainée e o chamava de petit frère. Porém, com medo de um escândalo, devido ao comportamento excêntrico do primo, Madeleine rompe com ele e destrói algumas lembranças que tinha dele (Fayad, 2015Fayad, D. C. (2015). Uma verdadeira mulher em sua inteireza de mulher: o feminino em psicanálise por Medeia e Madeleine Gide (Tese de Doutorado). Programa de Pós Graduação em Psicologia, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Recuperado de:https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/160680
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). Mais tarde, ela, dividida entre a moral e o amor pelo primo, aceita seu pedido de casamento, acreditando poder exercer sobre ele uma influência moral.

Hellebois (2011Hellebois, P. (2011). Madeleine. In P. Hellerbois. Lacan: lecteur de Gide (p. 43-78). Paris, FR: Editons Michèle.) destaca que Juliette era contra o casamento dos primos, mas pouco antes de sua morte havia mudado de ideia, por uma razão que tem relação com sua postura moralizante. Em 1893, Gide faz uma viagem à África onde manteve relações sexuais com prostitutas e também com jovens garotos, as primeiras relatadas à mãe através de cartas e as segundas deduzidas por ela. Com medo de que o filho fosse por um caminho escandaloso, preferiu apoiar o casamento dele com Madeleine. Para o autor, o casamento é selado numa atmosfera fúnebre, já que Juliette morreu menos de um mês antes do noivado do casal. Após o casamento, Madeleine e Gide partiram para a viagem de núpcias, na qual não tiveram relação sexual, fato que se manteve durante os 20 anos de matrimônio.

Gide amava Madeleine e desejava jovens garotos, mostrando seu gosto pederasta. O amor do casal foi marcado pela leitura e pela música, um amor de alma somente. Gide declara que iria abster-se do carinho para não perturbar a pureza de Madeleine: “Melhor eu não te desejar. Seu corpo me incomoda e as possessões carnais me apavoram” (Hellebois, 2011Hellebois, P. (2011). Madeleine. In P. Hellerbois. Lacan: lecteur de Gide (p. 43-78). Paris, FR: Editons Michèle., p. 51, tradução nossa)4 4 “Aussi bien je ne te désire pas. Ton corps me gêne et les possessions charnelles m’épouvantent”. . O desejo de Gide fica relegado ao marginal, ao clandestino.

Sobre a posição de Madeleine, Lacan (1998aLacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958., p. 767) destaca que ela “[...] quis o casamento casto [...] mas ela o quis com base em fundamentos inconscientes, que se revelaram os mais convenientes para deixar o impasse de André no estado em que se achava”. Estes fundamentos inconscientes dizem respeito ao amor da jovem fixado no pai. Lacan retira essa conclusão de uma carta dela a sua tia: “Talvez eu só reconheça dois estados de espírito quanto às coisas da vida: a inquietação pelo futuro, a tristeza pela saudade do papai” (Delay apud Lacan, 1998aLacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958., p. 767 ). Madeleine, fixada em seu pai morto também exclui o desejo. Lacan pergunta “[...] o que teria acontecido se ela houvesse oferecido a André, de Mathilde, sua mãe, com quem se parecia, uma figura que a cor do sexo houvesse reanimado?” (p. 767). Será que haveria entre eles o estabelecimento desta parceria amorosa? Entendemos que, nela, Madeleine ocupava o lugar de objeto amado, que lhe cabia muito bem, não precisando lidar com as questões de seu desejo. Ela consentia com o gosto de Gide pelos jovens garotos desde que isso lhe garantisse sua posição de ser o objeto de amor.

Após um tempo de casamento, Madeleine mudou-se para Cuverville, uma pequena cidade francesa e Gide ficou em Paris, onde sua libido poderia encontrar uma escapatória. Distantes, Gide tinha o pretexto de escrever a Madeleine, o que fazia dela, desde a adolescência, sua leitora. As cartas tinham um valor imenso para o escritor, já que através delas, ele poderia alcançar a imortalidade.

Lacan (1998aLacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958., p. 771) aponta que Madeleine era uma mulher culta, reservada e que “[...] soube não ver aquilo que queria ignorar”. Essa situação se sustenta até 1918, quando Madeleine queimou as cartas que Gide lhe enviou por toda a vida. Gide apaixonou-se por Marc Alégrett e planejava com ele uma viagem a Cambridge. Na véspera da viagem, após o jantar, Madeleine interrogou o marido: “Você não parte só, não é?” (Gide apud Hellebois, 2011Hellebois, P. (2011). Madeleine. In P. Hellerbois. Lacan: lecteur de Gide (p. 43-78). Paris, FR: Editons Michèle., p. 64, tradução nossa)5 5 “Tu ne pars seul, n’est-ce pas?”. . André balbuciou que não, e quando ela lhe perguntou se ele iria com Marc, ele respondeu que sim. Gide tentou argumentar, mas Madeleine lhe respondeu: “Não me digas nada. Nunca mais me digas nada. Eu prefiro teu silêncio à tua dissimulação” (p. 64, tradução nossa)6 6 “Ne me dis rien. Ne me dis plus jamais rien. Je prefere ton silence à ta dissimulation”. . Neste momento, as palavras de amor não tinham mais valor para ela.

Lacan (1998aLacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958.) afirma que Madeleine viu no rosto de Gide o primeiro amor que ele teve longe dela, e, portanto, lhe interroga. Apesar de perturbado com a pergunta de Madeleine, André faz a viagem com Marc. E, após sua partida, Madeleine queima todas as cartas que ele lhe havia enviado durante o tempo que ficaram separados. É a partir deste ato que Lacan traz a passagem que nos é fundamental, retomemos:

Até que ponto ela veio a se transformar naquilo que Gide a fez ser permanece impenetrável, mas o único ato em que ela nos mostra claramente distinguir disto é o de uma mulher, de uma verdadeira mulher em sua inteireza de mulher. Esse ato foi o de queimar as cartas - que eram o que Madeleine possuía ‘de mais precioso’. Que ela não tenha dado outra razão para isso senão ter tido que fazer alguma coisa acrescenta ao ato o signo da fúria provocada pela única traição intolerável (Lacan, 1998aLacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958., p. 772, grifo do autor).

A traição intolerável foi a de Gide ter encontrado um amor longe dela, já que com Marc aparece o ponto do amor. Gide manteve relações sexuais com jovens garotos durante todo o seu casamento com Madeleine, mas isso não era um ponto de conflito para ela, já que ele a preservava no lugar de amada (Hellebois, 2011Hellebois, P. (2011). Madeleine. In P. Hellerbois. Lacan: lecteur de Gide (p. 43-78). Paris, FR: Editons Michèle.; Fayad, 2015Fayad, D. C. (2015). Uma verdadeira mulher em sua inteireza de mulher: o feminino em psicanálise por Medeia e Madeleine Gide (Tese de Doutorado). Programa de Pós Graduação em Psicologia, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Recuperado de:https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/160680
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; Lacan, 1998aLacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958.), é por isso que é somente ao perceber algo no campo do amor na relação com Marc que Madeleine sente-se traída. Por mais que Gide tenha diversas vezes afirmado que Madeleine foi seu único amor, o que importa é isso que destaca Lacan (1998a)Lacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958. de que ela viu no rosto dele um novo amor longe dela. Interessante que a resposta de Madeleine quando indagada sobre seu ato foi ‘ter que fazer alguma coisa’, acrescentando ao ato o signo da fúria. Em Et nunc manet in te, obra escrita por Gide após a morte de Madeleine, ele apresenta a justificativa que a esposa deu para o ato:

Após tua partida, assim que me encontrei sozinha, na grande casa que tu me abandonavas, sem ninguém sobre quem me apoiar, sem mais saber o que fazer, e o que tornar-me [...] eu acreditei inicialmente que me restava apenas morrer. Sim, verdadeiramente, eu acreditei que meu coração parava de bater. Eu sofri tanto. Eu queimei suas cartas para fazer alguma coisa. Antes de destruí-las eu as reli, uma a uma. [...] era o que eu tinha de mais precioso no mundo (Gide apud Hellebois, 2011Hellebois, P. (2011). Madeleine. In P. Hellerbois. Lacan: lecteur de Gide (p. 43-78). Paris, FR: Editons Michèle., p. 69-70, tradução nossa)7 7 “Après ton départ, lorsque je me suis retrouvée toute seule dans la grande mansion que tu abandonnais, sans personne sur qui m’appuyer, sans plus savoir quoi faire, que devenir [...] j’ai cru d’abord qu’il ne me restait qu’à mourir. Oui, vraiment, j’ai cru que mon cœur cessait de battre, que je mourais. J’ai tant souffert. J’ai brûlé tes letres pour faire quelque chose. Avant de les détruire, je les ai toutes relues, une à une [...] C’était ce que j’avais de plus précieux au monde”. .

Parece que algo da devastação se incide para Madeleine. Sem Gide, ela não sabe o que fazer, nem o que ser. Madeleine somente conta para Gide que queimou as cartas quando ele as pede para sua biografia. O depoimento de Gide sobre o ocorrido é contundente e demonstra como o ato de Madeleine o atinge no nível do ser:

Acreditei que morreria. Mas era necessário que você soubesse o que eram essas cartas. [...] essas cartas eram o tesouro de minha vida, o melhor de mim: sem dúvida, o melhor de minha obra. [...] o mais puro de minha existência, o mais puro do meu coração estava lá [...] e muitas vezes eu me disse: ‘podes morrer’ [...] ah, imagino o que pode sentir o pai que chega em casa, e que sua mulher venha dizer: ‘Nosso filho se foi, eu o matei’ (Gide apud Hellebois, 2011Hellebois, P. (2011). Madeleine. In P. Hellerbois. Lacan: lecteur de Gide (p. 43-78). Paris, FR: Editons Michèle., p. 65-66, tradução nossa, grifo do autor)8 8 “J’ai cru mourir. Mais il faut que vous sachiez ce qu’étaient ces lettres [...] Ces letres étaient le trésor de ma vie, le meilleur de moi: à coup sûr, le meilleur de mon œuvre [...] Le plus pur de mon existence, le pur de mon cœur était là. [...] et solvente je me disais: ‘Tu peux mourir: [...] Ah, j’imagine ce que peut éprouver le père qui rentre chez lui, et à qui sa femme vient dire: ‘Notre enfant n’est plus, je l’ai tué’”. .

Gide eleva a perda das cartas à perda de um filho. Esse ato abre um vazio no seu ser. As cartas tinham para ele a função de lhe continuar a vida mesmo após a morte. Madeleine atinge Gide na filiação, ela rompe com uma lógica de descendência do marido, atingindo-o aí no nível do ser.

Interessante, pois neste ato, sob a necessidade de fazer alguma coisa Madeleine também abre mão daquilo que ela tinha de mais importante, pois as cartas eram seu bem mais precioso, possuindo um valor fálico, já que a cartas as tornava a receptora do que Gide havia escrito de melhor (Hellebois, 2011Hellebois, P. (2011). Madeleine. In P. Hellerbois. Lacan: lecteur de Gide (p. 43-78). Paris, FR: Editons Michèle.). Neste momento, Madeleine abre mão do ter para atingir Gide no âmbito do ser. O ato de Madeleine comporta essa dimensão de esburacar o ser de Gide.

Hellebois (2011Hellebois, P. (2011). Madeleine. In P. Hellerbois. Lacan: lecteur de Gide (p. 43-78). Paris, FR: Editons Michèle.) aponta que Gide descrevia-se como alguém que chorava todo dia diante da esposa após a queima das cartas, ela, por sua vez, permanecia indiferente e insensível ao choro do parceiro. Gide descreve que após queimar suas cartas Madeleine envelheceu rapidamente, adoeceu e morreu. No entanto, Schlumberger indica o contrário, que após queimar as cartas do esposo, Madeleine passou a dedicar-se mais a seus gostos, às suas leituras e não a ser somente a destinatária da obra de Gide (Fayad, 2015Fayad, D. C. (2015). Uma verdadeira mulher em sua inteireza de mulher: o feminino em psicanálise por Medeia e Madeleine Gide (Tese de Doutorado). Programa de Pós Graduação em Psicologia, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Recuperado de:https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/160680
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).

É de relance, a partir do ato de Madeleine, que Lacan (1998aLacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958., p. 773) refere-se a Medeia:

André Gide, revolvendo no coração a intenção redentora que atribui ao olhar que nos retrata - sem dar importância à sua respiração ofegante - àquela passante que atravessa seu trespasse sem cruzar com ele, engana-se. Pobre Jasão, que tendo partido para a conquista do tosão dourado da felicidade não reconhece Medeia.

Lacan (1998aLacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958.) não aborda diretamente o ato de Medeia como o ato de uma verdadeira mulher, fazendo isso por meio de uma derivação, quando retrata a inocência de Gide em não reconhecer Medeia em sua Madeleine. Temos aí a equivalência André Gide e Jasão e, portanto, Madeleine e Medeia. Miller (2012Miller, J-A. (2012). Mulheres e semblantes. In H, Caldas, A, Murta & C. O, Murta (Orgs.), O feminino que acontece no corpo: a prática da psicanálise nos confins do simbólico (p. 49- 90). Belo Horizonte, MG: Scriptum., p. 12) diz que Gide não reconheceu na sua angelical esposa a Medeia, a mulher capaz de matar seus próprios filhos para atingir o homem. O que se destaca na peça de Eurípedes é “[...] uma emergência do absoluto”. Ambas possuem em comum o ato como uma resposta à traição do parceiro. Ambas cometem o ato após terem perdido o objeto de amor e ainda de terem destruído aquilo que era mais importante para os maridos, mas principalmente, o que era mais importante para elas - para Medeia os filhos, para Madeleine as cartas de amor.

Ainda que saibamos que não existiria uma verdadeira mulher, já que Lacan (2008Lacan, J. (2008). O seminário: livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Seminário originalmente proferido em 1972/73.) ensina que por não existir A mulher, só podemos tomar as mulheres uma a uma, acreditamos que a passagem citada nos abre um caminho de investigação. Passemos à Medeia.

Medeia de Eurípedes

A peça Medeia foi escrita em 431 a.C. e alude à expedição mitológica dos Argonautas. Em Iolco o trono é usurpado de Esão por seu irmão Pélias. Quando Jasão, filho de Esão, atinge a maioridade, ele exige o trono como seu direito de herança, mas Pélias impõe como condição para a devolução do trono que o sobrinho conquistasse o tosão de ouro, localizado em um bosque da Cólquida. Jasão parte para a missão acompanhado por 50 guerreiros na nau Argos. Quando chega em Cólquida, o rei Eetes coloca para Jasão quatro missões impossíveis como condição de lhe entregar o tosão dourado. “Disposto a voltar a Iolco, diante da impossibilidade de vencer sozinho as provas, Jasão foi socorrido pelos poderes do amor” (Dutra, 1991Dutra, E. (1991). O mito de Medeia em Eurípedes. Revista Letras, 1(8)., p. 2). Medeia, bruxa bárbara, filha de Eetes, ajuda Jasão a vencer as provas com magia. Após a captura do tosão de ouro, ela foge com ele e leva seu irmão caçula Apsirto como refém, ela mata-o e esquarteja-o lançando os pedaços de seu corpo ao mar, para atrasar a perseguição do seu pai à sua embarcação.

Quando chegam a Iolco, Medeia, por meio da magia, convence as filhas de Pélias a esquartejarem e cozinharem o pai com o argumento que ele iria rejuvenescer. Descoberto o crime, Jasão e Medeia fogem para Corinto e são recebidos pelo rei Creonte. Lá eles concebem dois filhos. Dutra (1991Dutra, E. (1991). O mito de Medeia em Eurípedes. Revista Letras, 1(8).) descreve que o casal vive em paz até que o rei decidiu casar Jasão com sua filha Creusa.

A peça Medeia tem início neste ponto e logo no início a nutriz descreve o estado de Medeia:

Seu corpo carpe, inane ela se prosta, delonga o pranto grave assim que sabe o quanto fora injustiçada. O olhar sucumbe à terra, nada a faz ergue-lo feito escarcéu marinho, feito pedra, discerne o vozeiro amigo, exceto quando regira o colo ensimesmado, alvíssimo, em lamúrias pelo pai, pelo país natal, que atraiçoou por quem sem honra a tem agora (Eurípedes, 2010Eurípedes. (2010). Medeia. In T. Vieira (Trad.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 25).

A nutriz também anuncia que algo se passa na relação de Medeia com os filhos: “Ao ver os filhos, tolda o cenho com desdém. Tremo só de imaginar que trame novidades. Sua psique circunspecta suporta mal a dor” (Eurípedes, 2010Eurípedes. (2010). Medeia. In T. Vieira (Trad.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 25). Parece que a nutriz prevê o ato que se anuncia, já que Medeia é “[...] terribilíssima” (p. 26). Da forma como relata a cena, a nutriz deixa entrever que a devastação incide sobre o corpo de Medeia, após anunciada a união de Jasão e Creusa.

Na primeira aparição de Medeia na peça, ela anuncia todo seu sofrimento: “Sofrimento imenso! Nada sofreia o sofrimento que me abate! Ó prole odiosa de uma matermórbida, meritória de maus votos, pereça com o pai!” (Eurípedes, 2010Eurípedes. (2010). Medeia. In T. Vieira (Trad.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 34). Mais que isso, os filhos já aparecem como sem valor para ela.

Creonte ordena a Medeia que ela vá embora com seus filhos, e diz temer que ela faça algum mal para sua filha. O diálogo entre Medeia e Creonte é longo e ela o convence a dar-lhe mais um dia em Corinto, para que possa organizar sua partida e após o consentimento de Creonte ela planeja sua vingança de matar o marido, o rei e a princesa, mesmo sabendo que após este crime não terá nenhuma cidade que a acolha.

Jasão surge na peça e se dirige a Medeia indicando que é ela a culpada do próprio exílio, graças a sua “[...] fala verborrágica” (Eurípedes, 2010Eurípedes. (2010). Medeia. In T. Vieira (Trad.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 63). Ele demonstra sua preocupação com os filhos e oferece ajuda a eles. Medeia, furiosa, nega essa ajuda e diz a Jasão todos os feitos que ela fez para salvá-lo, tendo assim, traído a morada do pai, matado o irmão e feito Pélias ser morto pelas mãos das próprias filhas. Medeia recusa a ajuda de Jasão, pois ela “[...] já está na zona onde o ter não tem nenhum valor se lhe falta o homem” (Miller, 2012Miller, J-A. (2012). Mulheres e semblantes. In H, Caldas, A, Murta & C. O, Murta (Orgs.), O feminino que acontece no corpo: a prática da psicanálise nos confins do simbólico (p. 49- 90). Belo Horizonte, MG: Scriptum., p. 70). Jasão minimiza tudo aquilo que Medeia alega ter-lhe dado e diz: “[...] não desmereço teu pequeno auxílio, mas não comparo ao que me deste o que eu, salvando-me, te propiciei. Me explico: teu logradouro é grego e não bárbaro, prescinde do uso cru da força bruta, não ignoras justiças e normas” (Eurípedes, 2010Eurípedes. (2010). Medeia. In T. Vieira (Trad.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 71). Jasão mostra com isso que foi ele quem retirou Medeia do mundo bárbaro e impõe um limite as suas transgressões.

Jasão tenta demovê-la de levar os filhos, ofertando criá-los no palácio juntamente com a princesa, mas ela nega essa possibilidade. Do mesmo modo que as palavras de Gide não possuem mais valor para Madeleine quando ela o vê apaixonando por Marc, as palavras de Jasão não demovem Medeia e não têm para ela nenhuma importância.

Após o diálogo com Jasão, Medeia encontra Egeu que passava por Corinto. Ele havia ido consultar-se com o Oráculo buscando nele uma resposta sobre sua infertilidade. Egeu interroga Medeia o motivo de seu sofrimento e consente com ela que a traição de Jasão foi terrível. Ela, então, promete a Egeu a fertilidade: “É um achado o que achas, pois meus fármacos darão à luz os filhos de um sem-filho” (Eurípedes, 2010Eurípedes. (2010). Medeia. In T. Vieira (Trad.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 91). Após a promessa de Medeia, Egeu garante acolhê-la em seu país, primeiro em nome dos deuses e depois pelos filhos. Ela pede que ele jure jamais renegá-la e sempre protegê-la.

Medeia chama Jasão dizendo querer retratar-se com ele e pede oportunidade de também retratar-se com o rei e com a princesa. Jasão acredita nela e Medeia envia para Creusa um véu e uma grinalda tecida em ouro, como símbolo de seu arrependimento e um pedido de desculpas. Jasão, sensibilizado com a atitude de Medeia e crendo nela, propõe-se ajudá-la a pedir asilo a Creonte. É por essa confiança que Jasão tem na palavra de Medeia, que Lacan (1998aLacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958., p. 773) compara Gide a ele: “[...] Pobre Jasão, que tendo partido para a conquista do tosão dourado da felicidade não reconhece Medeia”. Miller (2012Miller, J-A. (2012). Mulheres e semblantes. In H, Caldas, A, Murta & C. O, Murta (Orgs.), O feminino que acontece no corpo: a prática da psicanálise nos confins do simbólico (p. 49- 90). Belo Horizonte, MG: Scriptum.) acrescenta que pobres são os homens que não reconhecem Medeia em suas parcerias.

Quando Creusa veste o véu e a grinalda, ela morre envenenada e Creonte, o único com coragem de tocá-la, toma o corpo da filha em seus braços e também morre. Após contarem a Medeia sobre a morte no palácio, ela anuncia que matará os filhos, mas antes o coro lhe indaga: “Matas quem germinou do teu regaço?” (Eurípedes, 2010Eurípedes. (2010). Medeia. In T. Vieira (Trad.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 101), ao que ela responde: “É mordida que fere mais o esposo”. Antes de matá-los há seu monólogo:

O que farei? Sucumbe o coração ao brilho do semblante dos garotos. Mulheres, titubeio! Os planos periclitam. Vou-me, mas com meus dois filhos. Prejudicar crianças em prejuízo do pai não dobra o mal? Fará sentido? Comigo não: adeus, projetos árduos! O que se passa em mim? Aceitarei escárnio de inimigos impunidos? Que infâmia ouvir de mim reclamos típicos de gente frouxa! Ao rasgo de ousadia! Para dentro, meninos! Se a lei veta a presença de alguém no sacrifício, não é problema meu, o pulso agita-se! [...] Dobrou-me o mal, mirar os dois, não é possível: ide, entrai! Não é que ignore a horripilância do que perfarei, mas a emoção derrota raciocínios e é causa dos mais graves malefícios (Eurípedes, 2010Eurípedes. (2010). Medeia. In T. Vieira (Trad.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 119- 120).

Nesta passagem fica evidente que o que está em jogo não é a ausência de amor de Medeia pelos filhos; ela afirma que olhar o semblante deles lhe sucumbe o coração, mas isso não a faz vacilar em sua decisão. Ainda, o ato se mostra a ela como imperioso, destina-se a atingir Jasão mesmo às custas do prejuízo dos filhos, pois “[...] o que há nela de mulher, supera o que há de mãe” (Miller, 2012Miller, J-A. (2012). Mulheres e semblantes. In H, Caldas, A, Murta & C. O, Murta (Orgs.), O feminino que acontece no corpo: a prática da psicanálise nos confins do simbólico (p. 49- 90). Belo Horizonte, MG: Scriptum., p. 72). Aí aparece, então, a possibilidade de pensar os atos de Medeia e Madeleine, como atos de uma verdadeira mulher: atos nos quais o que está em jogo é o ser e não o ter, atos nos quais a posição de mãe não suprime aquilo que há de mulher.

Quando Jasão interroga Medeia sobre o assassinato dos filhos ela é certeira: “[...] fiz o que deveria para te atingir no íntimo” (Eurípedes, 2010Eurípedes. (2010). Medeia. In T. Vieira (Trad.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 147). Ele destaca nela a ausência de limites: “Para as sensatas é [uma ousadia este ato], não tens limite”. Aqui, Jasão traz um indicativo do que Lacan aponta em sua formulação sobre o não-todo. Se para as mulheres sensatas é uma ousadia o ato cometido, para Medeia não, já que ela se localiza como sem limite. Ela, no ato que tem a estrutura do que seria o ‘ato de uma verdadeira mulher’, rompe com a lógica do ter. Ter os filhos perde valor, se eles não a enlaçam com o marido. Ser mulher tem mais valor que ser mãe, revelando uma dissociação entre mãe e mulher (Miller, 2012Miller, J-A. (2012). Mulheres e semblantes. In H, Caldas, A, Murta & C. O, Murta (Orgs.), O feminino que acontece no corpo: a prática da psicanálise nos confins do simbólico (p. 49- 90). Belo Horizonte, MG: Scriptum.).

Medeia afirma a Jasão que irá enterrar os filhos em outro lugar para que nenhum inimigo possa violar o túmulo das crianças e mais uma vez afirma que seu ato não diz de sua falta de amor pelas crianças, pois, diz à Jasão que o fez “[...] para que sofras” (Eurípedes, 2010Eurípedes. (2010). Medeia. In T. Vieira (Trad.). São Paulo, SP: Editora 34., p. 153). Medeia parte para encontrar Egeu na carruagem que seu avô, o deus Sol, lhe enviou.

A peça Medeia é amplamente comentada nos meios psicanalíticos, uma vez que ela destaca a separação da mulher e da mãe. Medeia comete todos seus atos (vale lembrar que antes deste ato central, ela trai seu pai, mata e esquarteja o irmão e convence as filhas de Pélias a matarem o pai) em nome de um homem - Jasão. Pelo amor de Jasão, ela fica sem pai e sem pátria e por ele, ela mata seus filhos.

Segundo Laia (2015Laia, S. (2015). O que Medeia nos ensina sobre as mães, hoje? Curinga, 40, 23-34.), Medeia não mede as concessões que faz a seu homem, tomando aqui a referência de Lacan (2003Lacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958.a, p. 538) quando ele afirma “[...] não haver limites para as concessões que cada uma faz a um homem: de seu corpo, de sua alma, de seus bens [...]”, já que isso aponta para o não-todo como veremos adiante. Por Jasão ela desfaz-se “[...] dos semblantes que lhe conferiam a pátria, dizimando o lugar que era o seu” (Laia, 2015Laia, S. (2015). O que Medeia nos ensina sobre as mães, hoje? Curinga, 40, 23-34., p. 29). Neste primeiro momento não encontramos em Medeia nada que indique a presença da devastação, já que todas as concessões eram circunscritas pelo amor de seu parceiro. A devastação surge após o amor de Jasão ser lhe retirado.

Assim conforme diz às mulheres em Corinto, experimentando ‘ser na cama injuriada’, sem contar com o pilar do qual Jasão passou a ser um semblante, Medeia também experimenta que não existe outra mente mais sanguinária e já não há mais como conter a devastação que Jasão, como um homem, faz propagar em seu corpo (Laia, 2015Laia, S. (2015). O que Medeia nos ensina sobre as mães, hoje? Curinga, 40, 23-34., p. 29-30, grifo do autor).

Assim, Medeia devasta-se somente quando Jasão anuncia que se casará com Creusa. No final da peça, Medeia segue para encontrar com Egeu a quem prometeu a fertilidade e neste momento não mais se apresenta tomada pela devastação. Assim como Madeleine, ela mostra um antes e um depois do ato. Ele tem a função de marcar uma diferença subjetiva. Miller (2012Miller, J-A. (2012). Mulheres e semblantes. In H, Caldas, A, Murta & C. O, Murta (Orgs.), O feminino que acontece no corpo: a prática da psicanálise nos confins do simbólico (p. 49- 90). Belo Horizonte, MG: Scriptum.) indica que a verdadeira mulher só pode aparecer num tyche, como um acaso. É nesse instante do ato e somente nele que poderíamos encontrar uma verdadeira mulher, ainda assumindo que ela não existe. A partir da descrição da peça vamos ao que podemos encontrar em comum entre os atos de Medeia e Madeleine.

Madeleine e Medeia: verdadeiras mulheres?

A passagem de Lacan sobre a verdadeira mulher em sua relação com o ato nos trouxe alguns questionamentos importantes. Podemos encontrar tanto em Madeleine como em Medeia a presença da devastação em seus corpos antes do cometimento dos atos, estes atos podem ser tomados na perspectiva psicanalítica na vertente da clínica do ato, já que dentre outras características, eles marcam um antes e um depois, uma mudança subjetiva. O ato aparece para as duas como um possível tratamento para a devastação. Miller (2012Miller, J-A. (2012). Mulheres e semblantes. In H, Caldas, A, Murta & C. O, Murta (Orgs.), O feminino que acontece no corpo: a prática da psicanálise nos confins do simbólico (p. 49- 90). Belo Horizonte, MG: Scriptum., p. 71) destaca ainda que os atos destas mulheres atingem o parceiro no nível do ser e não apenas do ter:

Para Lacan, discretamente, o ato de uma verdadeira mulher - não vou dizer que seja o ato de Medeia, mas sim que tem sua estrutura: o sacrifício do que tem de mais precioso para abrir no homem o buraco que não poderá ser preenchido [...]. Uma verdadeira mulher explora uma zona desconhecida, ultrapassa os limites, e, se Medeia nos dá um exemplo do que há de extraviado numa verdadeira mulher, é porque ela atua com o menos e não com o mais. No próprio cerne de uma situação em que aparece sem defesa, encontra uma espada mortal. Consegue fazer do menos sua própria arma, que tem mais força do que todas as armas dos guerreiros. Acrescentemos que ela o faz por um homem, em estrita relação com ele.

Ou seja, o que Miller acentua é que o ato de Medeia, e também de Madeleine, evidencia a relação com o menos, ou seja uma distância do ter, que poderia ser preenchido para uma pelos filhos e para outra pelas cartas. Ambas, após a perda do marido, atuam justamente com o que lhes falta. Ao contrário de tentar suturar a falta do amor com outra coisa, elas esburacam o ser parceiro.

Sobre o menos, Miller (2012Miller, J-A. (2012). Mulheres e semblantes. In H, Caldas, A, Murta & C. O, Murta (Orgs.), O feminino que acontece no corpo: a prática da psicanálise nos confins do simbólico (p. 49- 90). Belo Horizonte, MG: Scriptum.) indica que ele abre um campo para falarmos de uma clínica feminina. Ele relembra que para Freud a significação fundamental que a mulher dá para não ter o falo é o penisneid, ou seja, é pela inveja do pênis que a mulher subjetiva a falta fálica. Vale lembrar que tendo a lente fálica como instrumento de leitura, Freud (2006)Freud, S. (2006). Conferência XXXIII: feminilidade. In: J Strachey (Ed.), Obras completas (Vol. 22, p. 113-134). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Trabalho publicado originalmente em 1933. aponta três saídas para a menina em relação ao penisneid: a inibição da sexualidade, o complexo de masculinidade, e por fim a saída à feminilidade normal. Ora, a saída pela feminilidade normal se dá quando a menina se volta para o pai, esperando obter dele o pênis negado pela mãe. “No entanto, a situação feminina só se estabelece se o desejo de ter o pênis for substituído pelo desejo de um bebê, isto é, se um bebê assume o lugar de pênis, consoante uma primitiva equivalência simbólica” (Freud, 2006Freud, S. (2006). Conferência XXXIII: feminilidade. In: J Strachey (Ed.), Obras completas (Vol. 22, p. 113-134). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Trabalho publicado originalmente em 1933., p. 128). Ou seja, em Freud o desejo feminino é identificado como sendo, por excelência, o desejo do pênis. E para ele, a forma da mulher subjetivar a falta se dá pela via da maternidade, quando um filho suturaria a marca do menos. Lacan (1998bLacan, J. (1998b). A significação do falo. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 692-703). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958.) acrescenta um novo passo nessa discussão.

Em ‘A significação do falo’, Lacan (1998bLacan, J. (1998b). A significação do falo. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 692-703). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958.) afirma que a relação entre os sexos se reporta a um único significante: o falo. Daí essa relação gira em torno de um que tem o falo e outro que é o falo. Neste sentido, Lacan não reduz a feminilidade ao campo da maternidade, já que o que está em jogo no feminino não é recobrir a falta com o filho/falo. Isso, pois a solução de ser o falo “[...]consiste em não tapar o buraco, mas metabolizá-lo, dialetizá-lo, sendo o próprio buraco, ou seja, fabricar um ser com o nada” (Miller, 2012Miller, J-A. (2012). Mulheres e semblantes. In H, Caldas, A, Murta & C. O, Murta (Orgs.), O feminino que acontece no corpo: a prática da psicanálise nos confins do simbólico (p. 49- 90). Belo Horizonte, MG: Scriptum., p. 68). Ao ser o falo, a mulher escapa da falta de identidade feminina e ataca a completude do Outro masculino. Ser o falo, indica Miller, reduz o Outro a um semblante. Neste sentido já temos uma primeira indicação do que seria uma verdadeira mulher: “[...] o verdadeiro em uma mulher, se mede por sua distância subjetiva da posição de mãe” (p. 69). O que os atos de Medeia e Madeleine indicam é exatamente o rompimento com a posição materna, daquela que toma os filhos, e no caso de Madeleine as cartas, como falo e os protege como algo precioso. É somente no ato que Madeleine e Medeia constituem-se como tal.

No entanto, é importante esclarecer que não é possível constituir um conceito sobre a verdadeira mulher já que a proposição lacaniana da década de 70 indica que A mulher não existe

‘Esta é uma verdadeira mulher’ só se pode dizer em um grito de surpresa, seja de maravilha ou de horror, e talvez só quando se percebe que, visivelmente, a mãe não tapou nela o buraco. Algo que se articula ao sacrifício dos bens, ao sacrifício do ter, e, talvez, por isso, a mulher tenha merecido esse grito quando consentiu com a modalidade própria da castração (Miller, 2012Miller, J-A. (2012). Mulheres e semblantes. In H, Caldas, A, Murta & C. O, Murta (Orgs.), O feminino que acontece no corpo: a prática da psicanálise nos confins do simbólico (p. 49- 90). Belo Horizonte, MG: Scriptum., p. 69, grifo do autor).

Na divisão da sexuação proposta por Lacan, em 1972-73, há um ponto fundamental, pois, ao formular a tábua da sexuação, ele indica que no lado da mulher não há proposição universal afirmativa como há do lado homem. Isso não permite que se funde o grupo das mulheres de forma que A mulher não existe. O que Lacan (2008)Lacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958. indica é que não há um significante que defina a mulher. Também com o recurso da tábua, Lacan indica que a mulher está não-toda submetida à função fálica: “Não há A mulher, artigo definido para designar o universal. Não há A mulher pois […] por sua essência ela não é toda” (p. 78-79).

Lacan (2008Lacan, J. (2008). O seminário: livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Seminário originalmente proferido em 1972/73.) também aponta a duplicidade a partir da qual a mulher se relaciona na parceria amorosa: por um lado, ela se direciona ao falo (La →Φ), por outro ela se direciona ao S(Ⱥ). Isso significa que a mulher vai em seu gozo, em direção ao falo, mas também em direção ao S(Ⱥ), buscando no Outro barrado um significante que lhe diga o que é uma mulher. No entanto, não há um significante da falta de significante - S(Ⱥ), e, com isso, a demanda de amor da mulher se infinitiza, não sendo regulada pelo registro fálico. O que isso indica é que há uma parte da mulher que não se regula pela lógica fálica, que ultrapassa isso.

É nessa direção que Miller (2012Miller, J-A. (2012). Mulheres e semblantes. In H, Caldas, A, Murta & C. O, Murta (Orgs.), O feminino que acontece no corpo: a prática da psicanálise nos confins do simbólico (p. 49- 90). Belo Horizonte, MG: Scriptum.) nomeia que a verdadeira mulher é a que ultrapassa limites, ou seja, a que se localiza do lado não-todo da sexuação. Ou mais precisamente, se localiza aí, mas não-toda, Lacan afirma (2008Lacan, J. (2008). O seminário: livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Seminário originalmente proferido em 1972/73., p. 80): “Não é porque ela é não-toda na função fálica que ela deixe de estar nela de todo. Ela está lá a toda. Mas há algo mais”. Interessante que o gozo feminino também comporta a marca de um ultrapassamento, não dando à mulher sua significação. Morel (2010Morel, G. (2010). Femme fatales. In G, Morel (Org.), Clinique du suicide(p.268- 283).Touluse, FR: Ères.) traz uma proposição interessante ao indicar que o gozo feminino pode ser encontrado não apenas no campo do amor, “[...] mas o Outro gozo se revela também em certos atos ‘insensatos’, passionais, que testemunham uma lógica outra que a lógica fálica da falta a ter e da falta a ser, podendo surgir com uma força capaz de anular a lógica fálica” (p. 27, tradução nossa, grifo do autor)9 9 “Mais l'Autre jouissance se révélerait dans certains actes 'insensés' passionnels, que témoignent d'une logique autre que la logique phallique du manque à avoir et du manque à être, et qui peut surgir avec une force capable d'annuler la logique phallique”. . Um dos exemplos que traz a autora é o ato assassino de Medeia.

Morel (2010Morel, G. (2010). Femme fatales. In G, Morel (Org.), Clinique du suicide(p.268- 283).Touluse, FR: Ères.) indica que antes de ser abandonada por Jasão, Medeia encontrava-se obediente à norma fálica; ela era mulher, esposa e mãe, ela estava determinada a adquirir os bens para seus esposos e seus filhos, suas ações até aí encontram-se sob a lógica do ter - portanto, fálica. Porém, após a traição de Jasão ela encontra-se disposta a sacrificar seus filhos. A autora destaca que os filhos estavam para ela na posição de objeto ‘a’, mas também eram os objetos que tinham mais valor para Jasão. “Em sua vingança de Jasão, Medeia atua, portanto, como mulher traída e não mãe. Nela, a mulher e a mãe estão disjuntas e a feminilidade não-toda subverte a lógica fálica maternal, resultando o ato, irresistivelmente” (Morel, 2010Morel, G. (2010). Femme fatales. In G, Morel (Org.), Clinique du suicide(p.268- 283).Touluse, FR: Ères., p. 272, tradução nossa)10 10 “Dans sa vengeance de Jason, Médée agit donc en femme trahie et non en mère. En elle, la femme et la mère se disjoignent, et la féminité pas-toute subvertit la logique phallique maternelle, entraînant l'acte, irrésistiblement”. . O ato é o que surge como consequência da subversão da lógica fálica maternal pela lógica não-toda.

Ainda, torna-se evidente para nós é que no ato de uma verdadeira mulher abre-se mão do ter, uma vez que os filhos respondem a um ter fálico. Para Madeleine ter as cartas de amor não possui mais valor para ela, já que ela perdeu o amor de Gide, o que constituía o seu ser. O ter só tinha valor para ela enquanto constituia seu ser como amada. Quando Lacan (2008Lacan, J. (2008). O seminário: livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Seminário originalmente proferido em 1972/73.) indica que A mulher não existe, uma possibilidade para ela realizar o seu ser é sendo mulher de um homem, o que não se sustenta para Madeleine, quando ela percebe no rosto de Gide o amor por outro. Neste ponto, no qual se encontra à deriva, é que surge o ato. Derzi e Marcos (2013Derzi, C. A. M., & Marcos, C. M. (2013). As manifestações do ato e sua singularidade em suas relações com o feminino. Ágora, 16(1), 71-86.) indicam que é a lei do desejo, fundada no Nome do Pai, que permite que o sujeito não fique tão à deriva, e que estar à deriva empurra o sujeito para o ato. Parece que ‘o ter que fazer alguma coisa’ pronunciado por Madeleine a empurra para o ato. Com Medeia temos o mesmo, as palavras de Jasão nem mesmo o amor aos filhos a afastam do ato. Nada disso tem valor, quando não se é amada.

Outro ponto de enlace entre Madeleine Gide e Medeia é como o ato dá à devastação um tratamento. Lacan (2003Lacan, J. (1998b). A significação do falo. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 692-703). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958.b) afirma em ‘O aturdito’ que é como única que a mulher quer ser reconhecida pelo parceiro, de forma que assim, ela pode ser marcada como a mulher, ainda que seja somente de um homem. Diferente da forma de amar masculina na qual o homem se dirige à parceira tomando-a como objeto ‘a’, como objeto causa de seu desejo, mediado pela fantasia. O amor, portanto, demarca um lugar privilegiado para a mulher e a devastação pode ser seu outro nome, orienta Miller (2016Miller, J-A (2016). Uma partilha sexual. Opção Lacaniana Online Nova Série 7(20). Recuperado de: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_20/ Uma_partilha_sexual.pdf
http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/num...
). Esse lugar privilegiado do amor para as mulheres é destacado desde Freud em Introdução ao narcisismo e retomado por Lacan. A devastação pode surgir, pois ao direcionar-se a um parceiro, a mulher vai em duas direções: ao falo, o que é circunscrito, e ao S(Ⱥ), infinitizando sua demanda de amor. Quando a demanda de amor não pode ser correspondida na parceria a devastação impõe a sua face. Vale destacar que Lacan (2008Lacan, J. (2008). O seminário: livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Seminário originalmente proferido em 1972/73., p. 85) indica que na partição sexual “[...] quem quer que seja ser falante se inscreve de um lado ou de outro [...]” não fazendo nela uma equivalência anatômica.

Interessante, que além da passagem na qual Lacan (1998aLacan, J. (1998a). A juventude de Gide. In V. Ribeiro (Trad.), Escritos (p. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Publicado originalmente em 1958.) refere-se a Jasão comparando-o a Gide há outra referência da tragédia em seu texto. Na versão francesa dos Escritos constam os seguintes versos como epígrafe: “Se dás aos ardilosos conhecimentos novos, resultas um inútil e não um sábio. E se há quem te considere superior em saber aos que se passam por sabichões serás visto na cidade como um ser ofensivo” (Eurípedes apud Miller, 2012Miller, J-A. (2012). Mulheres e semblantes. In H, Caldas, A, Murta & C. O, Murta (Orgs.), O feminino que acontece no corpo: a prática da psicanálise nos confins do simbólico (p. 49- 90). Belo Horizonte, MG: Scriptum., p. 73). Essa passagem é uma fala de Medeia para Creonte. Ele a interpela dizendo que ela sabe como arruinar alguém e por isso teme que ela fique na cidade. Fayad (2015Fayad, D. C. (2015). Uma verdadeira mulher em sua inteireza de mulher: o feminino em psicanálise por Medeia e Madeleine Gide (Tese de Doutorado). Programa de Pós Graduação em Psicologia, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Recuperado de:https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/160680
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) indica que, portanto, o que Lacan (1998a) acentua quando usa esta epígrafe é o caráter a fúria de Medeia quando relegada, comparando-a aí à Madeleine. Além dessa referência da fúria, Miller (2012) aponta que há aí uma referência ao saber de Medeia, aparecendo ela na posição de sábio. Ela sabe como abrir no homem um buraco que nunca será preenchido. O ato dela, assim como o de Madeleine, comporta essa dimensão.

Considerações finais

Medeia e Madeleine revelam a face oculta do feminino não-todo recoberto pela lógica fálica, evidenciando a disjunção entre a mulher e a mãe e a aproximação do feminino com o real. Para Miller (2012Miller, J-A. (2012). Mulheres e semblantes. In H, Caldas, A, Murta & C. O, Murta (Orgs.), O feminino que acontece no corpo: a prática da psicanálise nos confins do simbólico (p. 49- 90). Belo Horizonte, MG: Scriptum.), uma verdadeira mulher define pela distância subjetiva da posição da mãe. Não se trata de construir o conceito de A verdadeira mulher, como nos lembra Miller (1993)Miller, J. A. (1993). Des semblants dans la relation entre les sexes. La Cause Freudienne, (36), 7-16., trata-se antes de tomá-las uma a uma.

Não podemos esquecer que, para Lacan, o significante mulher não é redutível ao sexo e ao gênero. Leguil (2015Leguil, C. (2015). Sur le genre des femmes selon Lacan. In C. Leguil e F. Fajnwaks (Orgs.), Subversion lacanienne des théories du genre (p. 47-86). Paris, FR: Edition Michèle., p. 61, grifo do autor) afirma que Lacan faz da relação de um sujeito com sua feminilidade algo da ordem do ato. “Na medida em que a feminilidade se articula a um ato que lhe confere um modo de existência, a mulher representa uma ‘prova’ para o homem”. Faz-se referência aqui ao Lacan do Seminário 18 quando Lacan (2009)Lacan, J. (2009). O seminário: livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Seminário originalmente proferido em 1971. afirma que, para o homem, a mulher é a hora da verdade e que, em relação ao gozo sexual, a mulher está em condição de pontuar a equivalência entre semblante e gozo. O ato em Lacan comporta algo de irreversível. Medeia e Madeleine contradizem, se podemos dizer, o desejo da mãe e buscam a castração do homem sacrificando a representação do falo por excelência, os filhos para a primeira, e as cartas de Gide, para a segunda. Leguil (2015)Leguil, C. (2015). Sur le genre des femmes selon Lacan. In C. Leguil e F. Fajnwaks (Orgs.), Subversion lacanienne des théories du genre (p. 47-86). Paris, FR: Edition Michèle. propõe que o ato deva ser tomado, neste caso, como um modo de fazer o outro entender que há uma mulher. A verdadeira mulher não se define portanto como mãe, mas antes como aquela que abre um buraco no ser do outro (Miller, 2012Miller, J-A. (2012). Mulheres e semblantes. In H, Caldas, A, Murta & C. O, Murta (Orgs.), O feminino que acontece no corpo: a prática da psicanálise nos confins do simbólico (p. 49- 90). Belo Horizonte, MG: Scriptum.).

Leguil (2015Leguil, C. (2015). Sur le genre des femmes selon Lacan. In C. Leguil e F. Fajnwaks (Orgs.), Subversion lacanienne des théories du genre (p. 47-86). Paris, FR: Edition Michèle.) lembra uma precisão feita por Miller a este respeito. Dizer que A mulher não existe não significa que o lugar da mulher não exista, mas que este lugar permanece essencialmente vazio. O que não impede de encontrar alguma coisa neste lugar. É precisamente porque A mulher não existe que as verdadeiras mulheres existem. Ou seja, existem mulheres que têm uma relação extrema com esse lugar de inexistência, uma relação mais próxima que outras com este não-lugar que, entretanto, existe. Podemos situar as modalidades desta relação com este lugar de inexistência sob o termo antigo de hibris. Uma verdadeira mulher é concernida em seu ser por uma forma de excesso que a coloca em perigo ao mesmo tempo que a conduz a experimentar sua feminilidade (Leguil, 2015Leguil, C. (2015). Sur le genre des femmes selon Lacan. In C. Leguil e F. Fajnwaks (Orgs.), Subversion lacanienne des théories du genre (p. 47-86). Paris, FR: Edition Michèle.).

Onde se situaria este verdadeiro, este excesso, em uma mulher? A partir deste percurso podemos tomar Medeia e Madeleine como figuras de uma verdadeira mulher por excelência. O sintoma histérico pode ser uma interrogação do sujeito acerca do que é ser uma mulher, como se pode ver em Dora. A histeria e sua identificação ao pai, a maternidade e sua parceria com o filho, ser o falo de um homem na relação amorosa são tão somente modos de revestir o feminino e sua falta a ser. Medeia e Madeleine não se definem nem pelo ter nem pelo ser, mas por um ato que, segundo a psicanálise, instaura um antes e um depois. O sacrifício do que há de mais precioso faz surgir a mulher para além da mãe, abrindo um buraco no Outro.

Referências

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  • 1
    Apoio e financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais ( FAPEMIG).
  • 4
    “Aussi bien je ne te désire pas. Ton corps me gêne et les possessions charnelles m’épouvantent”.
  • 5
    “Tu ne pars seul, n’est-ce pas?”.
  • 6
    “Ne me dis rien. Ne me dis plus jamais rien. Je prefere ton silence à ta dissimulation”.
  • 7
    “Après ton départ, lorsque je me suis retrouvée toute seule dans la grande mansion que tu abandonnais, sans personne sur qui m’appuyer, sans plus savoir quoi faire, que devenir [...] j’ai cru d’abord qu’il ne me restait qu’à mourir. Oui, vraiment, j’ai cru que mon cœur cessait de battre, que je mourais. J’ai tant souffert. J’ai brûlé tes letres pour faire quelque chose. Avant de les détruire, je les ai toutes relues, une à une [...] C’était ce que j’avais de plus précieux au monde”.
  • 8
    “J’ai cru mourir. Mais il faut que vous sachiez ce qu’étaient ces lettres [...] Ces letres étaient le trésor de ma vie, le meilleur de moi: à coup sûr, le meilleur de mon œuvre [...] Le plus pur de mon existence, le pur de mon cœur était là. [...] et solvente je me disais: ‘Tu peux mourir: [...] Ah, j’imagine ce que peut éprouver le père qui rentre chez lui, et à qui sa femme vient dire: ‘Notre enfant n’est plus, je l’ai tué’”.
  • 9
    “Mais l'Autre jouissance se révélerait dans certains actes 'insensés' passionnels, que témoignent d'une logique autre que la logique phallique du manque à avoir et du manque à être, et qui peut surgir avec une force capable d'annuler la logique phallique”.
  • 10
    “Dans sa vengeance de Jason, Médée agit donc en femme trahie et non en mère. En elle, la femme et la mère se disjoignent, et la féminité pas-toute subvertit la logique phallique maternelle, entraînant l'acte, irrésistiblement”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    25 Abr 2018
  • Aceito
    02 Nov 2018
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