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DA VIOLÊNCIA PSICOPOLÍTICA NA CONTEMPORANEIDADE: UMA ANÁLISE DAS DIMENSÕES AFETIVAS

DE LA VIOLENCIA PSICOPOLÍTICA EN LA CONTEMPORANCIA: UN ANALISIS DE DIMENSIONES AFECTIVAS

RESUMO

O presente artigo pretende explicitar as condições de possibilidade da violência psicopolítica na contemporaneidade. Trata-se de um tipo de violência exercido em níveis psíquicos, à medida que as pessoas exigem de si mesmas alta performance e resultados ótimos, cuja consequência é sua desestruturação subjetiva e seu autoesgotamento niilista. Objetiva-se inquirir pela dimensão afetiva gerada nas violências impostas aos outros e autoimpostas. Para tanto, este estudo de tipo teórico percorrerá duas dimensões da problemática escolhida: primeiramente, o jogo do mostrar, esconder e avaliar que se atualiza nas redes sociais. Em seguida, o estudo analisará os efeitos tristes advindos de uma organização socioeconômica capitalista indiferente à importância das relações sociais, dos afetos e da relação com a natureza. Em uma atitude predatória de si e dos outros, a subjetividade capitalística segue julgando e avaliando, ainda que tais práticas ganhem contornos violentos e destrutivos. Quais as possibilidades de barrar tal movimento, em larga medida sustentado pelas tecnologias de comunicação? Como resultado parcial, ressalta-se o desafio de inventar novos valores a partir dos quais a vida possa se expandir à revelia das amarras difundidas pelas avaliações meramente comunicacionais de fundamentação narcísica.

Palavras-chave:
Violência; subjetividade; resistência

RESUMEN

Este artículo pretende clarificar las condiciones de posibilidad de violencia psicopolítica en tiempos contemporáneos. Es un tipo de violencia ejercida en los niveles psíquicos, cuando las personas requieren de sí mismas un alto rendimiento y resultados óptimos, cuya consecuencia es su desorganización subjetiva y su auto agotamiento nihilista. El objetivo es investigar como la dimensión afectiva produce la violencia impuesta a otros y auto impuestas. Para ello, este estudio de tipo teórico recurre a dos dimensiones del problema: en primer lugar, evidencia el juego entre mostrar, ocultar y evaluar en las redes sociales. Entonces, el estudio examinará los efectos de una organización socioeconómica capitalista indiferente a la importancia de las relaciones sociales, de los afectos y la relación con la naturaleza. En una actitud depredadora a sí mismos y a otros, la subjetividad capitalista sigue juzgando y evaluando, aunque tales prácticas obtienen contornos destructivos y violentos. ¿Cuáles son las posibilidades de propagación de un tal movimiento en gran parte sustentado en tecnologías de la comunicación? Como resultado parcial, destacamos el desafío de inventar nuevos valores que puedan ampliar la vida sin la difusión de evaluaciones de únicamente narcisistas.

Palabras clave:
Violencia; subjetividad; resistencia

ABSTRACT

This article seeks to explain the conditions of possibility of psychopolitical violence in contemporary times. Such is a type of violence practiced in psychic levels when people demand from themselves high performance and optimal results, leading to the undermining of subjectivity and to its nihilistic burnout. Our purpose is to inquire for the affective dimension generated by the violences imposed on others and on the self. Therefore, this theoretical study will develop two settings of issues: firstly, the show-and-hide game and the ratting actualized in social media. Next, our study will analyze the sad effects originated by a capitalist socioeconomical organization indifferent to the importance of social relationships, affections and to the relationship with nature. Through a predatory attitude towards the self and the others, capitalist subjectivity continues to judge and evaluate, even though such practices became violent and destructive. What are the possibilities to shut down this movement, largely grounded on communication technologies? As a partial result, we stress the challenge of inventing new values able to expand life in spite of the boundaries diffused by mere communicational assessments grounded on narcissism.

Keywords:
Violence; subjectivity; resistance

Introdução

Se concordarmos com Byung-Chul Han (2015Han, B.-C. (2015). Sociedade do cansaço (Enio Paulo Giachini, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes ., 2017aHan, B.-C. (2017b). Topologia de la violência (Enio Paulo Giachini, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes .), vivemos em uma sociedade da transparência, mas também vivemos em uma sociedade do cansaço. Os dois termos dirigidos às sociedades contemporâneas, marcantemente neoliberais, não se contradizem: antes se complementam, formando um mesmo e inquietante diagnóstico. A sociedade neoliberal, à medida que é definida por Han como uma sociedade do cansaço e da transparência, não é uma sociedade onde prevalece um regime político democrático, que prioriza a participação política e, por conseguinte, uma vida agradável e realizável, senão realizada. Ela prioriza e incita as pessoas a darem o máximo de si, a otimizarem suas ações, suas performances, suas aparências, suas opiniões, até os limites do máximo esgotamento niilista.

Por estar pautada em idealizações, falamos então de uma prática irrealizável que, segundo Žižek (2012Žižek, S. (2012). Vivendo no fim dos tempos. São Paulo, SP: Boitempo. ), transforma o capitalismo em uma espécie de religião que conta com a adesão de um contingente populacional significativo. Assim, para o autor, há dois perigos notáveis em nosso tempo histórico: “[...] o capitalismo desenfreado e o fundamentalismo religioso [...]” que, uma vez combinados, destroem as possibilidades de uma vida pública e democrática (Žižek, 2012Žižek, S. (2012). Vivendo no fim dos tempos. São Paulo, SP: Boitempo. , p. 138).

Na obra A sociedade da transparência (2017a), Han observa que a exigência por transparência não aponta na direção de uma possibilidade democrática de respeito com a coisa pública, mas para um complexo fenômeno de desconfiança e de exacerbada exposição pública mediante a prestação de contas. É uma busca desenfreada por resultados que devem ser sempre mostrados às claras, do modo o mais devassado possível. Isto se dá, de forma mais óbvia, quando se pensa nas instituições e nos funcionários públicos. Tal cenário ficou bastante patente no Brasil atual quando se exigiu, em todas as instâncias estatais, a tão propalada transparência, ao ponto de ela se tornar um dever de qualquer instituição pública por lei - exatamente a lei 12.525 de novembro de 2011. Sabe-se que algumas instituições públicas até se anteciparam à lei, tornando acessíveis os dados profissionais de seus trabalhadores.

A transparência, no entanto, se exerce em outros âmbitos da existência social. A sociedade da transparência se faz notar pelo modo como vivemos uma cultura da exposição, calcada principalmente nas mídias digitais, de nossas opiniões e até de nossos preconceitos, de nossos gostos e mesmo de nossos corpos. Devassamo-nos de bom grado nos weblogs, facebooks, instagram, whatsapp e muitas outras ferramentas, por meio das quais escrevemos e postamos nossas imagens, sem qualquer pudor. Pelas mídias digitais, tornamo-nos verdadeiramente sem-vergonha. Mas toda esta ‘sem-vergonhice’ só se dá quando também nos sentimos protegidos, ainda que seja uma proteção muito bem cobrada: para ela, é fundamental que o que se expõe seja devidamente aceitável como performance de alto nível, com resultados ótimos. São postagens praticamente diárias, ou até mesmo constantes; aliás, envolve a manutenção ininterrupta de estado on line. A condição de estar o tempo todo conectado e disponível parece indicar, inicialmente, o estágio atual de uma sociedade regida pelo princípio da comunicação, da tecnologia e da informação. Nesse caso, porém, não é uma informação simples, mas de alto desempenho que implica, mais do que um acesso livre e transparente às informações, uma obrigatoriedade de se expor e de se fazer notável em níveis cada vez mais estressantes e sufocantes. Aliás, a sensação de sufocamento não advém nesses casos de sistemas opressivos pura e simplesmente, nos quais a inibição da existência e performance individual vêm de fora dos limites de sua subjetividade. Trata-se, em seu lugar, de um processo complexo de autocoerção em que o indivíduo exige cada vez mais de si mesmo, exaurindo e esgotando todas suas forças e potências criadoras.

Com base nesse cenário emergente, o presente estudo teórico tem por objetivo compreender os efeitos violentos advindos da ultraexposição dos sujeitos nas redes sociais e no cotidiano das relações capitalísticas (Guattari & Rolnik 1996Guattari, F., & Rolnik, R. (1996). Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes.), dando destaque às suas repercussões na coletividade social. Diversos estudos diagnósticos apontam para esse cenários (Han, 2014aHan, B.-C. (2014a). La agonía de Eros (Raúl Gabás, trad.). Barcelon, ES: Herder., 2014bHan, B.-C. (2014b). Psicopolítica: neoliberalismo y nuevas técnicas de poder (Alfredo Bergés, trad.). Barcelona, ES: Herder., 2015Han, B.-C. (2017a). A sociedade da transparência (Enio Paulo Giachini, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes ., 2017aHan, B.-C. (2015). Sociedade do cansaço (Enio Paulo Giachini, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes ., 2017bHan, B.-C. (2017b). Topologia de la violência (Enio Paulo Giachini, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes .; Žižek, 2012Žižek, S. (2012). Vivendo no fim dos tempos. São Paulo, SP: Boitempo. ). O diferencial abordado no presente artigo consiste em dar visibilidade especificamente à dimensão afetiva que é colocada em curso pela disseminação naturalizada de paixões tristes, tais quais definidas por Spinoza (2017Spinoza, B. (2017). Ética. Belo Horizonte, MG: Autêntica.). Para tanto, o estudo foi dividido em dois momentos. Primeiramente, será realizada uma exposição do que aqui denominamos como jogo entre o mostrar-se e o esconder-se nas redes sociais, evidenciando as formas emergentes de violência que tal jogo coloca em curso. Em seguida, abordaremos o cenário contemporâneo capitalista como um disseminador de paixões tristes, andando na contramão do enunciado tão presente no contemporâneo de que ‘dinheiro traz felicidade’.

Ao final deste trajeto, teremos acumulado argumentos para delinear o seguinte diagnóstico do presente: a violência psicopolítica que atravessa nosso cotidiano põe em evidência paixões humanas destrutivas, tornando nosso tempo histórico cada vez mais triste e niilista.

O jogo do mostrar e do esconder nas redes sociais: novas violências em curso

Tomemos um caso simples que, de algum modo, bem exemplifica o que argumentamos. Recentemente (dia 21 de agosto de 2017), uma professora de uma escola municipal de Indaial, cidade localizada no Vale do Itajaí, Santa Catarina, foi vítima de agressão física por um aluno. Um site de notícias (Tenente & Fajado, 2017Tenente, L., & Fajado, V. (2017). Arma, choque e socos: veja como a agressão na escola mudou a vida de professores. Recuperado de: Recuperado de: https://g1.globo.com/educacao/noticia/arma-choque-e-socos-veja-como-a-agressao-na-escola-mudou-a-vida-de-professores.ghtml , em19/05/2018
https://g1.globo.com/educacao/noticia/ar...
) de amplo alcance nacional divulgou o caso e, nos dias subsequentes, disponibilizou uma série de reportagens sobre o tema da agressão e da violência a que os professores no Brasil estão sujeitos no local de trabalho e durante o exercício da profissão. Na matéria divulgada no dia 22 do mesmo mês, o referido site de notícias divulgou uma matéria sobre o tema na qual relata que, segundo dados de 2013 da OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - o Brasil está no topo do ranking de violência contra professores.

O que por ora nos interessa é algo que se pode constatar na reportagem então publicada ainda no dia 21. Como é sabido, geralmente os textos noticiados podem ser objeto de comentário pelos internautas e leitores. No caso do site em questão, adverte-se desde o começo que os comentários não refletem a opinião editorial do jornal/site sendo, portanto, de responsabilidade exclusiva de seus autores, eximindo o jornal/site de qualquer responsabilidade sobre os mesmos. Para que esses comentários possam ser feitos, é necessário que o webleitor se cadastre no site, seja por uma conta de e-mail, por facebook ou por whatsapp. No caso do site, o comentário é viabilizado após um cadastramento ou pela via da conta de facebook, que permite a utilização de pseudônimos, ou por meio do que o site denomina de ‘apelidos públicos’. Até o dia 24 daquele mês, ou seja, após três dias da sua publicação, a notícia já havia recebido exatos 1.208 comentários. Uma parcela bastante considerável deles foi contra a professora, bem mais que a maioria simples. Boa parte dos comentários, inclusive, sugere que foram verificar a página de facebook da citada professora e que ela seria a responsável pela agressão sofrida, pelas suas convicções ideológicas. O curioso, neste caso, é o esforço de averiguar sobre a vida e as postagens de uma pessoa para imputar ou não, parcial ou completamente, a sua responsabilidade sobre as agressões por ela sofridas. O esforço é ainda maior quando se verifica a produção de novas postagens e novas agressões, desta vez, ‘virtuais’, que não só se somam àquelas físicas como produzem outros tantos efeitos nefastos: ataque à imagem e hombridade da pessoa e desqualificação pública a partir de informações autodisponibilizadas.

Outros casos semelhantes poderiam ser facilmente reportados aqui. Até porque eles proliferam diariamente. Diante das notícias, os webleitores se põem prodigamente a comentar e a emitir suas opiniões - em nome de uma concepção equivocada de direito à liberdade de expressão - muitas vezes carregadas de ódio e preconceito, instilando não apenas práticas violentas como também fazendo de sua postagem um exercício de violência; geralmente protegidos por um pseudônimo. Tem-se aí, pois, uma equação perigosa que carece de reflexão: se em tempos neoliberais, um dos motes que parece prevalecer é o do anseio por segurança, como é que ele também acaba por permitir o exercício e a proliferação de um ato violento, mesmo que ‘apenas’ por palavras? Há aparentemente um paradoxo nessa prática. Afinal, a busca por segurança se coloca como relevante se, de algum modo, justificadamente ou não, um cenário de fato ou de possível ameaça e violência também se coloca: queremos estar em segurança na exata medida que encaramos tal condição como forma de proteção das ameaças que sofremos ou podemos sofrer. Então, como, uma vez protegidos, permitimo-nos, gratuita e voluntariamente, agir violentamente por meio de palavras escritas e postagens? Como pretensamente protegidos por pseudônimos (o que é falso já que todo computador dispõe de uma identidade IP que permite sua pronta rastreabilidade e, assim, saber quem foi seu usuário) agredimos, instilamos ódio e incitamos à agressão?

Ora, a internet e as redes sociais em geral se configuram como novos ‘lugares’ para o exercício da violência. Configuram aquilo que Han denomina de uma nova topologia da violência (2017bHan, B.-C. (2017b). Topologia de la violência (Enio Paulo Giachini, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes .). Mas, o intrigante nesta nova topologia é que ela se estrutura sobre uma contradição que lhe é inerente. Diversamente de outras formas e lugares de exercício da violência, neste caso ocorre uma contradição entre o objeto e o objetivo da violência.

Certamente, quando atentamos às postagens e seus tons ofensivos e agressivos, em uma palavra, violentos, é patente qual é o objeto de tais práticas. No que tange ao objeto da violência como alvo, como algo sobre o qual e contra o qual se volta, com todas as forças disponíveis, temos um sujeito contra o qual toda a violência verbal foi postada. Daí a razão pela qual as pessoas investigaram as postagens nas redes sociais daquela professora. Mas quem investigou? Todos? Ou apenas alguns, sendo que os demais acreditaram nas informações e as replicaram indiscriminadamente? O objetivo, nesses casos, não parece coincidir com o objeto. No caso das postagens que aludimos acima como exemplares, claro está que o alvo, o objeto de violência foi a professora. Mas tais violências não visavam a ela; em certo sentido, a referida professora era irrelevante, ela ocupa um espaço vazio passível de ser preenchido por qualquer outro objeto ou alvo e, por isso, a violência não é pessoal: é contra um dado alvo, mas não se destina específica e somente a ele.

Neste sentido, ainda que os ataques sofridos atinjam a uma pessoa, sua honra e dignidade, não se tratam de ataques realmente pessoais, pois o alvo poderia ser qualquer um, desde que atendesse determinados traços de identificação como objeto de agressão. Qual é então o objetivo neste caso? Consiste em chamar a atenção sobre si, para si. Chamar a atenção para o executor da violência, seja por likes ou dislikes, pouco importa, ou mesmo por comentários dirigidos, a favor ou contra - podendo inclusive entrar em um redemoinho de novos ataques e violências, dessa vez feitos por outros - o comentário violento ou ofensivo original. Em outras palavras, se o objeto da violência era a professora, o objetivo era chamar a atenção sobre si como agressor, como agente da violência, ainda que falsamente escondido sob um pseudônimo (o que é outro nível de contradição que lhe é inerente). Para aquilo que aqui nos interessa, significa dizer que as postagens enunciadoras de ódio, de preconceito, de ataques à pessoa-objeto da agressão, têm como finalidade atender a uma demanda narcisística do agressor - cujo sucesso esperado é a atenção que outros dedicam às suas postagens, sejam elas a favor ou contra. O valor da interação em rede de postagens é, na verdade, tão irrelevante quanto o foco da agressão dessas postagens. O que interessa é o registro da atenção obtida. Ela funciona como uma caixa registradora do sucesso ou insucesso de quem posta mensagens avaliativas ou julgadoras, inclusive as que ganham dimensões agressivas e violentas. Žižek (2012Žižek, S. (2012). Vivendo no fim dos tempos. São Paulo, SP: Boitempo. ) caracteriza tais ações como um ‘ressentimento universalizado’ que traz como efeito a disserminação sistemática de uma violência destrutiva e predatória.

A demanda narcisística de atenção por parte do agressor evidencia muito da psiquê de violência que lhe é própria. Ela não é mais uma violência apenas devotada ao outro como seu negativo e foco de seus ataques e investidas. Ela é também um ataque direto à demanda de alto desempenho que tal indivíduo anseia e busca. Quando afirmamos a indiferença objetual do agente de postagens violentas, significa dizer que tal agente corresponde ao que Han denomina de o sujeito de desempenho pós-moderno (Han, 2017bHan, B.-C. (2017b). Topologia de la violência (Enio Paulo Giachini, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes .), que não se depara com a negatividade opositiva do outro, ainda mais no mundo virtual:

O mundo virtual é pobre em alteridade e em seu caráter de resistência. Nos espaços virtuais o ego pode se movimentar sem precisar lidar com o ‘princípio de realidade’, que seria o princípio do outro e da resistência. Nos espaços imaginários da virtualidade o ego narcísico encontra sobretudo a si mesmo. A virtualização e a digitalização estão fazendo desaparecer cada vez mais o real, que se faz sentir, acima de tudo, por seu caráter de resistência (Han, 2017bHan, B.-C. (2017b). Topologia de la violência (Enio Paulo Giachini, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes ., p. 71).

Ora, se não ocorre uma coincidência entre objeto e objetivo da agressão em redes virtuais de comunicação, se nos deparamos com uma agressão que, paradoxalmente, ainda que tenha objeto, não é objetual, o que prevalece é a finalidade da agressão como forma de autopromoção e de busca de resultados ótimos de performance violenta e agressiva, compartilhada em rede virtual. Se, em hipótese, tais resultados não são obtidos, o desdobramento psíquico é a frustração performática; e mesmo que obtida a contento, sempre se busca mais, em uma autoconcorrência absoluta e sem intermediações, podendo até mesmo ser fatal, pois denota um alto traço de autoagressividade, impondo-lhe cada vez mais uma superexposição até a implosão de seu ‘eu’, de sua subjetividade, reduzida a performances de alto desempenho. Ela se alimenta de si mesma e consome a si própria até se exaurir completamente, ou arranjar outro alvo para gerar novos ataques. Neste caso, o que interessa é a sobrevivência performática do agressor como tal, por seus atos de violência, tomando o objeto como irrelevante, ainda que possa parecer o contrário. Ora, nas topologias antigas e mesmo nas modernas, o outro é totalmente relevante, uma vez que, em geral, ele também se dá a notar como violento. Posso igual e reciprocamente ser tão atacado pelo outro assim como o ataco. A novidade que agora se introduz - não necessariamente substituindo aquela topologia, mas se sobrepondo e se somando a ela - é que pela ausência de objeto, pela ausência do outro, só existe o meu ‘Eu’ projetado e idealizado por minha performance violenta. Han reconhece a presença de um jogo de idealização nesse processo.

[...] o projetar-se para o eu ideal [...] é visto como um ato de liberdade. Em vista do fato de que o eu ideal se torna inalcançável, ele se considera deficitário, fracassado, sobrecarregado com suas autorreprimendas. A partir do fosso que se abre entre o eu real e o eu ideal desenvolve-se uma autoagressividade crescente. O eu combate e decreta guerra ao si mesmo. A sociedade da positividade, que acredita se libertar de todas as coerções alheias, vê-se enredada em autocoerções destrutivas. As doenças psíquicas como burnout ou depressão - as principais doenças do século XXI - revelam traços de autoagressividade. A própria pessoa provoca a autoviolência e se autoexplora. Em lugar da violência causada de fora para dentro, há uma violência gerada por si próprio; esta é muito mais fatal do que aquela, pois a vítima dessa violência imagina ser livre (Han, 2017bHan, B.-C. (2017b). Topologia de la violência (Enio Paulo Giachini, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes ., p. 81).

Mas, não se pode entender daí que o efeito autodestrutivo só ocorra quando a performance é frustrada em seus objetivos de autoafirmação pública. A autoconstituição dessa subjetividade narcísica e autocentrada, como que basta, ao ponto de refratar a mínima fantasmagoria de alteridade - ainda que esvaziada de conteúdo objetivo e afetivo (o outro para o qual se dirige a violência não é real e subjetivamente odiado, mas ignorado e negligenciado, seja como um ‘outro-outro’, seja como um ‘outro-eu’).

A autodestruição de si se dá também pelo esgotamento diante do almejado e desejado reconhecimento da comunidade de expectadores virtuais que disponibilizam likes e dislikes. Ela se dá como uma overdose, cada vez mais necessitada, até que nada mais é suficiente, até atingir um nível de colapso. Diz Han,

O sujeito da sociedade de desempenho [...] é marcado por uma autorrelacionalidade narcisista. Em virtude da falta de gratificação por parte do outro, ele se vê obrigado a produzir sempre mais e cada vez com melhor desempenho. Também a negatividade do outro, onde ainda habita a relação de concorrência, é um elemento que falta ao sujeito de desempenho, pois, em última instância, ele está concorrendo consigo e procura se superar. Isto acaba desembocando em uma corrida competitiva fatal e também em um círculo infinito ‘em torno de si mesmo’, que, em algum momento, acabará ruindo (Han, 2017bHan, B.-C. (2017b). Topologia de la violência (Enio Paulo Giachini, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes ., p. 101, grifo do autor).

Em certa medida, tal ideia coincide com aquela de Žižek (2003Žižek, S, (2003). Bem-vindo ao deserto do real! São Paulo, SP: Boitempo. ) sobre o que ele expressamente reconhece como alusão de mau gosto, mas que não deixa de ter seu sentido bastante preciso e instigante: “[...] quero afirmar que o modo liberal dominante de subjetividade hoje é o Homo otarius: ao tentar manipular e explorar os outros, acaba sendo ele o verdadeiro explorado” (Žižek , 2003Žižek, S, (2003). Bem-vindo ao deserto do real! São Paulo, SP: Boitempo. , p. 90). E assim, o sujeito agindo individualmente ou em uma espécie de coletividade massiva (é como parecem atuar os internautas que replicam em escala viral postagens que não leem e muito menos aferem sua veracidade), tem a si próprio como seu inimigo. Não um inimigo irreal. Mas um inimigo perniciosamente efetivo porque invisível e irreconhecível a si mesmo como tal (Žižek, 2003Žižek, S, (2003). Bem-vindo ao deserto do real! São Paulo, SP: Boitempo. ).

Cabe compreender, então, em que medida a organização socioeconômica capitalista vigente participa do delineamento e da disseminação desses componentes subjetivos violentos que têm como condição de possibilidade os processos de idealização, o narcisismo e a expectativa por reconhecimento social a qualquer custo.

O capitalismo e a disseminação das paixões tristes

Outro ângulo por meio do qual a violência psicopolítica pode ser analisada é menos evidente, ainda que amplamente difundido socialmente: ele pode ser encontrado em um enunciado bastante comum nos diferentes estratos socioeconômicos de nosso país: ‘O dinheiro não traz felicidade, manda buscar’. Pela frequência com que é proferido, nota-se uma espécie de crença coletiva na vinculação naturalizada entre felicidade e capital. E, diante dela, questionamos: A que estaria servindo essa idealização tão disseminada e naturalizada do capital em nosso tempo histórico? Quais dimensões da existência participam da consolidação desse tipo de crença

O que defenderemos nesta seção é a ideia de que o capital, para além das comodidades e conhecimentos que possibilitou aos humanos ao longo de sua consolidação histórica, trouxe também uma série de afetos tristes nem sempre tão evidentes ou, pelo menos, nem sempre tão reconhecidos em sua vertente destrutiva, bruta e despotencializadora (Sassen, 2016Sassen, S. (2016). Expulsões: brutalidade e complexidade na economia global. Rio de Janeiro, Paz e Terra.). Quem nos acompanha nessa argumentação é Spinoza (2017Spinoza, B. (2017). Ética. Belo Horizonte, MG: Autêntica.) que, em diversos momentos de sua obra Ética, apresenta análises minuciosas acerca dos afetos e paixões humanos denunciando, de maneira veemente, a disseminação das paixões tristes como responsáveis pela diminuição da potência do existir. Abordando especificamente a tristeza, o filósofo faz a seguinte consideração:

A tristeza diminui ou refreia a potência de agir do homem, isto é, o esforço pelo qual o homem se esforça por perseverar em seu ser. Portanto, ela é contrária a esse esforço; e tudo pelo qual se esforça o homem afetado de tristeza é por afastá-la. Ora, quanto maior é a tristeza, tanto maior deve ser a parcela de potência de agir do homem que ela contraria (Spinoza, 2017Spinoza, B. (2017). Ética. Belo Horizonte, MG: Autêntica., p. 123).

Nota-se que as paixões tristes enredam o humano em um esforço duplo: 1) uma tentativa de livrar-se do que é triste, gastando tempo e energia para isso; e, ao mesmo tempo, 2) uma diminuição da potência de viver que poderia estar investida na alegria e nos encontros favoráveis à existência, mas que se volta para o combate da tristeza.

Como essa consideração de Spinoza se cruza com a disseminação dos valores capitalistas aqui compreendidos como entristecedores? Em um curso sobre a obra deste filósofo, ministrado em Vincennes entre os anos de 1978 e 1981, Deleuze esclarece: “[...] quando estou envenenado, meu poder de ser afetado é realizado completamente, mas é realizado de tal maneira que minha potência de agir tende a zero; isto é, ela é inibida” (2009, p. 40). Ora, não seria precisamente essa inibição da potência do viver que aparece colada aos valores capitalistas, dentre os quais destacamos aqui a competitividade, a segurança e o acúmulo inconsequente? Nosso argumento vai nessa direção. Mas, o argumento nos coloca a tarefa de demonstrar como isso ocorre. Isso porque a competitividade, a segurança e o acúmulo inconsequente não são facilmente associados à tristeza. Ao contrário, como seus efeitos imediatos implicam o acesso à certas satisfações que estão diluídas no cotidiano, fica mais difícil associá-los à tristeza. Cabe demonstrar, então, como essas satisfações se efetuam.

Deleuze (2009Deleuze, G. (2009). Curso sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Fortaleza, CE: EdUECE., p. 161) explica que se trata de “[...] alegrias estranhamente compensatórias [...]” que tomam a cena diante de uma tristeza de base. A tristeza de base inerente a cada uma dessas práticas difundidas pelo mercado pode ser encontrada nos impedimentos, restrições, métricas e até mesmo ofensas cruzadas (como as relatadas na primeira parte deste artigo) que elas estabelecem como obrigações a serem cumpridas. Assim, as promessas de felicidade, carregadas que são pelas “[...] alegrias do ódio, por imensas que sejam, nunca suprimirão a pequena e suja tristeza da qual vocês partiram; essas alegrias são alegrias de compensação” (Deleuze, 2009Deleuze, G. (2009). Curso sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Fortaleza, CE: EdUECE., p. 161) .

Vejamos como isso acontece, primeiramente, na competitividade. Para além de uma satisfação advinda da potência de transformar a natureza, o conhecimento e as relações sociais, que poderia ser alcançada no contexto do trabalho, a competitividade exige uma comparação infinita com o outro trabalhador, com o mercado e, em alguns casos, consigo mesmo. A definição de metas a serem alcançadas e superadas distancia-se, assim, de um exercício ativo da potência no trabalho criador, enredando profissionais de diferentes segmentos em uma busca desenfreada pela superação de si e do outro, tendo a meta como referência. Para fomentar isso, algumas organizações chegam a criar programas internos de competitividade, expondo tanto quem supera as metas quanto quem não as alcança, cabendo a esses últimos a exigência por um esforço maior ou, em casos mais radicais, levando à situações de humilhação, assédio ou desemprego (Forrester, 1997Forrester, V. (1997). O Horror econômico. São Paulo, SP: Editora Unesp.).

A superação de si e do outro, entretanto, não implica experimentação de um corpo capaz de surpreender, saborear e explorar as intensidades dos encontros, que deixaria em aberto a questão spinozana (Spinoza, 2017Spinoza, B. (2017). Ética. Belo Horizonte, MG: Autêntica., p. 101) sobre “[...] o que pode um corpo”. A superação, ao contrário, é aqui programada e pré-definida pelas metas organizacionais que visam exclusivamente a exploração sistemática do humano. Os meios para alcançar as metas também culminam em paixões tristes, uma vez que as ações realizadas podem ser amplamente questionadas em suas dimensões éticas e políticas, levando a traições, conflitos, vinganças e manipulações entre os pares. Aí estão as ‘alegrias miseráveis’ apontadas por Deleuze (2009Deleuze, G. (2009). Curso sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Fortaleza, CE: EdUECE.). E ele continua sua análise descrevendo o que nomeia como homem do ódio e do ressentimento, a saber, “[...] aquele cujas alegrias estão envenenadas pela tristeza de partida” (Deleuze, 2009, p. 161). É nesse sentido que ele alerta: “[...] quando você tem o sentimento de ódio, procure sempre a tristeza de base, isto é, sua potência de agir foi diminuída, foi impedida” (Deleuze, 2009Deleuze, G. (2009). Curso sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Fortaleza, CE: EdUECE., p. 161) . O que seria esse ódio no cenário competitivo do mercado? Harvey o descreve da seguinte maneira:

[...] os que acumulam mais rapidamente tendem a expulsar do negócio aqueles que acumulam em uma velocidade mais lenta. Isso implica um incentivo eterno para os capitalistas individuais aumentarem a velocidade de acumulação por meio da exploração crescente no processo de trabalho relativo à velocidade social média da exploração. As implicações disso para o trabalhador são inúmeras (Harvey, 2013Harvey, D. (2013). Os limites do capital. São Paulo, SP: Boitempo., p. 77).

Não há dúvidas de que as intervenções da organização socioeconômica capitalista trouxeram conquistas à humanidade, fomentando a tecnologia e a mobilidade, por exemplo. Entretanto, seus efeitos subjetivos danosos, apesar de serem marcantes e violentos, ainda são pouco reconhecidos e analisados a partir de uma abordagem crítica dos afetos. Eles evidenciam as paixões tristes difíceis de serem acolhidas e superadas.

Um desdobramento da paixão competitiva, altamente presente no contexto laboral, mas também fora dele, dissemina-se pelo cotidiano das relações sociais e comporta a busca de segurança. A expectativa por garantir uma estabilidade, seja no emprego, mas também nas relações amorosas, nos negócios, nas amizades, dentre tantos outros aspectos da existência, coloca em evidência um humano que nega a vida em sua potência de variação, de ruptura e de acaso. A tentativa, também idealizada, de evitar riscos, o obriga a conceber o futuro de modo esquadrinhado e planejado, abrindo espaço para emergência de vidas cansadas, desqualificadas e niilistas (Carvalho, 2014Carvalho, P. R. (2014). Tédio: o cansaço do viver. Londrina, PR: Eduel.). Afinal, sob o ponto de vista da segurança paranoide, nada pode dar errado. Nesse ideal de controle, marcado pela busca constante de estabilidade e segurança, o cansaço e a desqualificação se instalam frente a um mundo fluído. Precisamente por não sabermos o que pode um corpo, a experimentação dos encontros não comporta tal planejamento, o que converte a paixão pela segurança em medo e ódio pelo indefinido, pelo ‘em aberto’ e pelo inusitado.

Deleuze (2009Deleuze, G. (2009). Curso sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Fortaleza, CE: EdUECE.) lembra que a potência está distante do planejamento, ela existe ‘em ato’ e está diretamente ligada às forças presentes a cada instante da existência e àquilo que é possível fazer com elas a cada momento. A pretensão de dominar essas forças e pré-definir a potência é, no mínimo, onipotente e, novamente, abre caminhos para instalação de outras paixões tristes como o ressentimento frente a fluidez da existência, mas também à ambição de controle sobre as forças da vida que agem ao acaso dos encontros. Na tentativa de controlar o que é incontrolável, a saber, a variação dos afetos nos encontros cotidianos, “[...] sou subtraído de uma parte de minha potência, ela não está mais em minha posse” (Deleuze, 2009Deleuze, G. (2009). Curso sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Fortaleza, CE: EdUECE., p. 163).

O que vemos se configurar, então, é uma energia gasta com protocolos, agendas, avaliações, sistemas de segurança e tecnologias de monitoramentos sobre si e sobre o outro que, além de exigirem tempo de trabalho para conquistar o aporte financeiro que os sustentaria, deixa o sujeito o tempo todo conectado aos riscos e perigos do existir - incluindo aí os riscos de ser citado negativamente em redes sociais. Em nome do medo, a desqualificação de si e do outro acontecem de maneira recorrente e se estende para outros domínios: diversos especialistas acabam sendo convocados e autorizados a falar pelo sujeito, geralmente em nome da segurança biopolítica, definindo o que deve ou não ser feito a cada instante.

Em nome da segurança, também o consumo se dissemina pelos quatro cantos do planeta, sem qualquer análise sobre seus efeitos sobre a natureza. Chegamos, assim, ao último elemento de violência psicopolítica que aqui elencamos para analisar as paixões tristes evocadas pelo capitalismo: o acúmulo desenfreado de bens e serviços. No que se refere aos bens, é evidente a onipotência humana para explorar a natureza sem que os efeitos dessa exploração sejam, sequer, minimamente considerados. Essa exploração avança de maneira brutal no desmatamento de nossas florestas, na poluição de rios e mares, na extinção de animais e na poluição sistemática do ar. Estamos em vias de destruir as condições básicas de existência: alimentos, água e ar. Sem isso, porém, a vida humana é simplesmente impedida.

Cientistas das mais diferentes áreas de conhecimento fazem incessantes alertas sobre os limites e prejuízos dessa exploração sem, entretanto, obter sucesso (Marques, 2015Marques, L. (2015). Capitalismo e colapso ambiental. São Paulo, SP: Editora da Unicamp.). É como se as “[...] pequenas alegrias de compensação [...]”, ressaltadas por Deleuze (2009Deleuze, G. (2009). Curso sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Fortaleza, CE: EdUECE., p. 167), disseminassem uma espécie de cegueira diante da catástrofe anunciada por diferentes vozes (Beck, 2013Beck, U. (2013). Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo, SP: Editora 34.; Stengers, 2015Stengers, I. (2015). No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima (Eloisa Araújo Ribeiro, trad.). São Paulo, SP: Cosacnaify.; Sassen, 2016Sassen, S. (2016). Expulsões: brutalidade e complexidade na economia global. Rio de Janeiro, Paz e Terra.). Pelo desdobramento de paixões tristes, como a ambição, a ganância e a onipotência, estamos cada vez mais distantes dos efeitos que nossas ações produzem na natureza e, por extensão, nos humanos, insistindo em não exagerar o quão necessário seria “[..] encontrar as doses [...] fazer seleções [...] encontrar, por experiência, com quais relações as minhas se compõem, e daí tirar as consequências” (Deleuze, 2009Deleuze, G. (2009). Curso sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Fortaleza, CE: EdUECE., p. 175). Cegos, insistimos nas “[...] alegrias do marketing” (Deleuze, 1992Deleuze, G. (1992). Diálogos. São Paulo, SP: Editora 34 ., p. 226) e aderimos às paixões do consumo que só aumentam o desgaste do planeta.

Se no decorrer do século XX e início do XXI, fomos capazes de produzir um modo de vida tão marcado pelas paixões tristes capitalistas e se, ao mesmo tempo, criamos diferentes dispositivos para que tais paixões fossem disseminadas como vantagem e traduzidas como felicidade a ser comprada (ainda que essa compra envolva as três violências aqui abordadas) estamos, no mínimo, diante de um impasse spinozano: como reverter esse quadro de violência psicopolítica, buscando na alegria e na potencialização dos encontros sociais novos modos de expressão e vinculação?

Considerações finais

A tristeza que advém da violência psicopolítica operada pelo capitalismo, obviamente, não se reduz às três dimensões aqui elencadas. O que nos interessou, com esse recorte, foi demonstrar que a equação felicidade-avaliação-consumo está politicamente mais próxima da liquidação da existência e do planeta do que da consolidação de uma vida potente. A dificuldade de visualizar os desdobramentos brutais de tal equação já é um componente subjetivo que, conforme alertam Guattari e Rolnik (1996Guattari, F., & Rolnik, R. (1996). Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes.), foi construído e modelado por um contexto capitalístico voltado para produção de modos de vida individualizados e julgadores.

O termo capitalístico empregado pelos autores traz ao mesmo tempo uma singularidade e um alerta: não estamos falando apenas de uma organização econômica. Trata-se de uma abordagem mais ampla que envolve componentes de subjetivação que se ancoram na tristeza e que, pela vida do investimento desejante, são capazes de engendrar atrocidades sem quaisquer implicações éticas e políticas com a vida.

Exigir de si mesmo e dos outros a alta performance, pretender alcançar resultados ótimos em todas as esferas da existência, colocar cada situação vivida em processo de julgamento e avaliação na engrenagem midiática e projetar-se a partir de opiniões polêmicas, com seus likes e dislikes, traz como consequência a desestruturação subjetiva e o autoesgotamento niilista. O que vemos nesse cenário é que a contemporaneidade capitalista, com sua incitação a performances de alto desempenho e resultado, acaba por produzir novas formas e lugares para o exercício da violência para além daqueles, outrora, já existentes e conhecidos. Seu resultado mais patente é a tristeza. Por um lado, ela é um efeito da violência psicopolítica; por outro, entretanto, ela é a própria prática cotidiana da violência, uma vez que esta é a despotencialização do existir, reduzido a performances a serem continuamente visualizadas, aplaudidas ou vaiadas. A tristeza, neste caso, é a própria despotencialização porque é um movimento de violência autoinfligido, impetrado pelo sujeito a si próprio.

Tal violência não se dá às escuras, discretamente. Ao contrário, ela se exerce sustentada por um complexo, sutil e desejado sistema recíproco de comunicação, transparência, super e sobrexposição, principalmente de si mesmo, como forma (ilusória) de garantia de segurança e proteção diante da possível ameaça do outro, mas requerendo o reconhecimento alheio como forma de autoafirmação de si. Por isso, ela é uma violência que só pode ser definida como obscena ou pornográfica (Han, 2017aHan, B.-C. (2017a). A sociedade da transparência (Enio Paulo Giachini, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes ., 2017bHan, B.-C. (2015). Sociedade do cansaço (Enio Paulo Giachini, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes .), afinal ela se caracteriza pela sobrexposição performativa do eu que, como vimos, de um jeito ou de outro, seja pelo risco do desinteresse do outro como espectador, seja pela demanda excessiva de autoexposição, leva à angústia. Mas, é um novo tipo de angústia, marcada pelo cansaço tedioso e depressivo, que pode levar ao colapso fatal.

Nesse sentido, talvez Žižek (2012Žižek, S. (2012). Vivendo no fim dos tempos. São Paulo, SP: Boitempo. ) tenha razão ao anunciar que o fim dos tempos será marcado pela barbárie operada contra si, contra os outros humanos e também contra a natureza. Situação esta que, para o autor, já está em curso. Cabe-nos o desafio de inventar novos valores a partir dos quais a vida possa se expandir sem as amarras difundidas pelas avaliações meramente comunicacionais de fundamentação narcísica.

Referências

  • Beck, U. (2013). Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade São Paulo, SP: Editora 34.
  • Carvalho, P. R. (2014). Tédio: o cansaço do viver Londrina, PR: Eduel.
  • Deleuze, G. (2009). Curso sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981) Fortaleza, CE: EdUECE.
  • Deleuze, G. (1992). Diálogos São Paulo, SP: Editora 34 .
  • Forrester, V. (1997). O Horror econômico São Paulo, SP: Editora Unesp.
  • Guattari, F., & Rolnik, R. (1996). Micropolítica: cartografias do desejo Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Han, B.-C. (2014a). La agonía de Eros (Raúl Gabás, trad.). Barcelon, ES: Herder.
  • Han, B.-C. (2014b). Psicopolítica: neoliberalismo y nuevas técnicas de poder (Alfredo Bergés, trad.). Barcelona, ES: Herder.
  • Han, B.-C. (2017a). A sociedade da transparência (Enio Paulo Giachini, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes .
  • Han, B.-C. (2015). Sociedade do cansaço (Enio Paulo Giachini, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes .
  • Han, B.-C. (2017b). Topologia de la violência (Enio Paulo Giachini, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes .
  • Harvey, D. (2013). Os limites do capital São Paulo, SP: Boitempo.
  • Marques, L. (2015). Capitalismo e colapso ambiental São Paulo, SP: Editora da Unicamp.
  • Sassen, S. (2016). Expulsões: brutalidade e complexidade na economia global Rio de Janeiro, Paz e Terra.
  • Spinoza, B. (2017). Ética Belo Horizonte, MG: Autêntica.
  • Stengers, I. (2015). No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima (Eloisa Araújo Ribeiro, trad.). São Paulo, SP: Cosacnaify.
  • Tenente, L., & Fajado, V. (2017). Arma, choque e socos: veja como a agressão na escola mudou a vida de professores Recuperado de: Recuperado de: https://g1.globo.com/educacao/noticia/arma-choque-e-socos-veja-como-a-agressao-na-escola-mudou-a-vida-de-professores.ghtml , em19/05/2018
    » https://g1.globo.com/educacao/noticia/arma-choque-e-socos-veja-como-a-agressao-na-escola-mudou-a-vida-de-professores.ghtml
  • Žižek, S, (2003). Bem-vindo ao deserto do real! São Paulo, SP: Boitempo.
  • Žižek, S. (2012). Vivendo no fim dos tempos São Paulo, SP: Boitempo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    26 Maio 2018
  • Aceito
    12 Mar 2019
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