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MÁQUINA E REALIDADE: CIBERNÉTICA, AUTOPOIESE E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE EM FÉLIX GUATTARI

MÁQUINA Y REALIDAD: CIBERNÉTICA, AUTOPOIESIS Y PRODUCCIÓN DE SUBJETIVIDAD EN FÉLIX GUATTARI

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo abordar o conceito de máquina e a consequente apropriação do mesmo nas discussões sobre a subjetividade. É um estudo teórico na interface entre psicologia, filosofia, física e biologia. Nesse sentido, ele se inicia apresentando que, na modernidade, a analogia à máquina foi estendida à compreensão do universo como sendo um relógio preciso e geometricamente previsível em seu funcionar. E se, até o século XVIII, a vida, o corpo e o cosmos foram significados, pela ciência emergente, como uma máquina mecânica (de movimento calculável em sua previsibilidade), no século XIX estes passaram igualmente a serem compreendidos como uma máquina térmica, com seus desdobramentos na física da termodinâmica e na cibernética. No final do século XX, a partir dos trabalhos dos biólogos Francisco Varela e Humberto Maturana, o conceito de máquina autopoiética ganhou relevância nos estudos sobre a vida e sobre a cognição, sendo este apropriado por Félix Guattari no desenvolvimento de seu conceito de produção de subjetividade e suas problematizações em torno dos processos de subjetivação. Assim, o conceito de máquina saiu das limitações de uma leitura mecânica e termodinâmica da realidade, para uma abordagem existencial, processual e inventiva da subjetividade.

Palavras-chave:
Subjetividade; máquina; realidade

RESUMEN

El presente artículo tiene como objetivo abordar el concepto de máquina y la consiguiente apropiación del mismo en las discusiones sobre la subjetividad. Es un estudio teórico en la interfaz entre Psicología, Filosofía, Física y Biología. En ese sentido, se inicia presentando que, en la modernidad, la analogía a la máquina se extendió a la comprensión del universo como un reloj preciso y geométricamente previsible en su funcionamiento. Y si, hasta el siglo XVIII, la vida, el cuerpo y el cosmos fueron significados, por la ciencia emergente, como una máquina mecánica (de movimiento calculable en su previsibilidad), en el siglo XIX estos pasaron igualmente a ser comprendidos como una máquina térmica, con sus desdoblamientos en la física de la termodinámica y en la cibernética. A finales del siglo XX, a partir de losestudios de los biólogos Francisco Varela y Humberto Maturana, el concepto de máquina autopoiética ganó relevancia en los estudios sobre la vida y sobre la cognición, siendo éste apropiado por Félix Guattari en el desarrollo de su concepto de producción de subjetividad y sus problemasen torno a los procesos de subjetivación. Así, el concepto de máquina salió de las limitaciones de una lectura mecánica y termodinámica de la realidad, hacia un enfoque existencial, procesal e inventivo de la subjetividad.

Palabras clave:
Subjetividad; máquina; realidad

ABSTRACT

This article aims to address the concept of machine and its consequent appropriation in the discussions on subjectivity. It is a theoretical study at the interface among Psychology, Philosophy, Physics and Biology. In this sense, it starts showing that in the modernity, the analogy to the machine was extended to the understanding of the universe as a precise and geometrically predictable functioning clock. And if, until the eighteenth century, life, body and cosmos were signified by the emerging science as a mechanical machine (of calculable motion in its predictability), in the nineteenth century they also came to be understood as a thermal machine, with its developments in the thermodynamics physics and cybernetics. In the late twentieth century, the concept of autopoietic machine gained relevance in the studies of life and cognition, based on the works of the biologists Francisco Varela and Humberto Maturana, which is appropriated by Félix Guattari for the development of his concept of the production of subjectivity and its problematizations around the subjectivation processes. Thus, the concept of machine has gone beyond the limitations of a mechanical and thermodynamics reading of reality, to an existential, procedural and inventive approach of the subjectivity.

Keywords:
Subjectivity; machine; reality

Introdução

“Os valores são imanentes às máquinas.”

(Guattari, 1992Guattari. F. (1992). Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro, RJ: Editora 34., p. 68)

Parece ter se construído paulatinamente na história humana uma espécie de encanto pelas máquinas. Tal encanto conferiu forma, no decorrer dos últimos quatro séculos, a concepções que entendiam tanto os corpos orgânicos quanto o universo como organizados em engrenagens a traduzirem, em seu funcionar, padrões universais de constância, estabilidade e harmonia. No século XVII, por exemplo, René Descartes assumiu que os seres orgânicos podiam ser abordados como sendo autômatos com engendramentos mecânicos mais complexos do que qualquer outra máquina que pudesse ser idealizada pelos seres humanos. Tal fato

[...] não parecerá de maneira alguma estranho a quem, sabendo quão diversos autômatos, ou máquinas móveis, a indústria dos homens pode produzir, sem aplicar nisso senão pouquíssimas peças, em comparação à grande quantidade de ossos, músculos, nervos, artérias, veias e todas as outras partes existentes no corpo de cada animal, considerará esse corpo uma máquina que, tendo sido feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente mais bem organizada e capaz de movimentos mais admiráveis do que qualquer uma das que possam ser criadas pelos homens (Descartes, 2004Descartes, R. (2004). Discurso do método (Coleção Pensadores). São Paulo, SP: Nova Cultural., p. 81).

Àquela época, Deus era a referência para o ordenamento cósmico e, trazendo consigo esse marcador de ordem e de sistematização a medir as constâncias da natureza, a matemática foi assumida por Galileu (2004Galileu, G. (2004). Galileu Galilei: vida e obra (Coleção Pensadores). São Paulo, SP: Nova Cultural.) como sendo a linguagem de Deus. Nesse contexto, a ciência nascente entre os séculos XVII e XVIII veio articulada à crescente ‘mecanização’ e matematização da natureza, amparada em figuras como Descartes, Galileu e, principalmente, Isaac Newton. Este último realizou, no final do século XVII, o grande projeto de postular matematicamente, em seus estudos de óptica, mecânica e gravitação universal, leis gerais da natureza que prescindiam das idiossincrasias humanas. O universo, a partir de então, foi compreendido - apesar de Newton nunca ter feito tal analogia - como um grande relógio; uma máquina com engrenagens perfeitas e harmônicas a seguir um destino pré-estabelecido pelo ‘geômetra cósmico’ que era Deus (Gleiser, 1997Gleiser, M. (1997). A dança do universo: dos mitos de criação ao Big-Bang. São Paulo, SP: Companhia das Letras.).

Contudo, na passagem do século XIX para o século XX, a imagem do relógio como a principal analogia do funcionamento do universo perdeu sua hegemonia. Isso porque, em meados dos anos 1800, a Revolução Industrial trouxe consigo a imponência das máquinas térmicas a transmutarem calor em movimento. A transformação social que progressivamente tais máquinas produziram não tardou a transformar também os modos de conceber a vida e o universo, sendo que, de acordo com Balandier (1997Balandier, G. (1997). A desordem. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil., p. 53),

O relógio - imitação de uma natureza autômata cuja ordem é imutável por sua conformidade às leis do movimento -, o século XIX substitui pela máquina a vapor, evocadora de um mundo onde a transformação do calor em movimento se efetua com um desperdício irreversível, onde se revela a obra de um poder ao mesmo tempo criador e destruidor. De mecânica, a natureza passa a ser termodinâmica.

Essa mudança de modelo de referência - do relógio à máquina a vapor - se torna significativa na construção tanto de outros modos de problematizar a ordenação e o fluir do universo, quanto também de outros modos de pensar o indivíduo e a sociedade. E no século XX que vivenciava novos avanços tecnológicos (como os aviões, carros, eletricidade, armas de destruição em massa) as novas descobertas da física quântica, o rompimento de velhas certezas, intensificou-se, especialmente, na Europa e nos Estados Unidos pós-Segunda Guerra Mundial, o questionamento de modelos de realidade que defendiam cadeias lineares e relações causais. Novos modos de pensar sustentavam a compreensão de diferentes fenômenos como articulados a processos não mais parciais e sim resultantes da interação entre diferentes elementos. Foi nesse contexto de revoluções que, por exemplo, surgiram as concepções teóricas advindas da cibernética.

A natureza termodinâmica

Etimologicamente, cibernética é uma palavra derivada do grego kubernetes (Κυβερνήτης) e vem a significar ‘piloto’, ‘timoneiro’. É uma concepção que tem como um de seus principais idealizadores o matemático Norbert Wiener, que a partir da década de 1940 se propôs a compreender o ‘funcionamento’ sistêmico do vivente a partir da dinâmica computável das máquinas. Wiener considerava que ambas as entidades - o ser humano e a máquina - compartilhavam de uma mesma essência funcional: a capacidade de processar informações e computar dados. Nas palavras do referido autor,

[...] quando dou uma ordem a uma máquina, a situação não difere essencialmente da que surge quando dou uma ordem a uma pessoa. [...] O processo de receber e utilizar informação é o processo de nosso ajuste às contingências do meio ambiente e de nosso efetivo viver nesse meio ambiente (Wiener, 1968Wiener, N. (1968). Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos (2a ed.). São Paulo, SP: Cultrix., p. 16 e 18).

Assim, na cibernética o ser vivo e as máquinas não possuiriam diferenças funcionais, sendo que quanto maior fosse a qualidade da informação recebida (quanto mais sensíveis fossem os filtros captadores do vivente e/ou da máquina), maior seria também a qualidade da organização do sistema, uma vez que a informação iria apresentar pouca dispersão, pouco ruído, sendo mais claramente computada. Portanto, o vivente e a máquina se aproximam funcionalmente pela capacidade que ambos possuem de feedback3 3 Refere-se à capacidade de ajustar a conduta futura em função do desempenho pretérito. Um site de internet, como o amazon.com, ‘aprende’ com as escolhas de compras realizadas por seus usuários, e passa a fazer sugestões de consumo a partir das escolhas pretéritas dos mesmos. Isto caracteriza uma dinâmica de retroalimentação ou feedback. , corrigindo os ruídos e perdas das mensagens, melhor traduzindo as informações advindas do meio e se adaptando de maneira eficiente à realidade do mundo externo. Porém, consideramos importante ressaltar que a proposta de Norbert Wiener não foi a de meramente reduzir a expressão viva à máquina cibernética, mas apontar pontos de confluência entre esses dois processos. Por isso, cremos ser necessário reproduzir aqui a seguinte ressalva:

Quando comparo o organismo vivo como tal à máquina, nem por um momento pretendo dizer que os processos físicos, químicos e espirituais, específicos da vida, tal como a conhecemos habitualmente, sejam os mesmos que os das máquinas simuladoras de vida. Quero simplesmente dizer que ‘ambos podem exemplificar localmente processos anti-entrópicos’, que talvez possam ser exemplificados de muitas outras maneiras que, naturalmente, não chamaremos nem de biológicas nem de mecânicas (Wiener, 1968Wiener, N. (1968). Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos (2a ed.). São Paulo, SP: Cultrix., p. 33, grifo nosso).

Nessa ressalva, o matemático apresenta a perspectiva de que outro ponto de união entre as máquinas e os seres vivos reside no fato de que ambos respondem a uma grandeza física denominada entropia. Enquanto grandeza da termodinâmica, a entropia se refere à quantidade de perda de calor (energia) necessária ao equilíbrio térmico: equilíbrio este que significa a cessação das trocas de calor. Se a primeira lei da termodinâmica afirma que a energia/calor do universo se conserva; a segunda lei, a da entropia, sustenta que a dispersão do calor, em um ‘sistema isolado ou fechado’4 4 Entendendo aqui um ‘sistema fechado’ como sendo aquele que se encontra isolado das interferências do meio ambiente; como, por exemplo, a dinâmica de reagentes dentro de um recipiente específico. , tenderá, com o tempo, a atingir seu nível máximo, ou seja, o equilíbrio térmico. Assim, no aumentar seu grau de dispersão, um sistema termodinâmico igualmente se encontra numa condição em que há maior número de microestados acessíveis às partículas que o compõem. Portanto,

Quanto mais trocas de energia ocorrerem, maior será a entropia, e isto é possível a partir do momento que esta energia é distribuída de maneira mais dispersa, o que leva à interpretação da entropia como sendo a tendência natural a uma maior dispersão da energia, ou uma maior variedade na distribuição da energia conforme a transformação espontânea ocorre. A entropia é entendida, portanto, como uma medida da dispersão da energia. [...] Além disso, o cálculo da variação da entropia para alguns processos, como a expansão de um gás num vácuo e as transições de fase sólido-líquido e líquido-vapor, ajudou a sedimentar, entre estudantes e professores, o entendimento da variação da entropia como o aumento da desordem (Cavalcanti, Ferreira, Abrantes, & Cavalcanti, 2018Cavalcanti, H. L. B., Ferreira, E. A., Abrantes, P. G., & Cavalcanti, G.N. (2018). As muitas interpretações da entropia e a criação de um material didático para o ensino da interpretação probabilística da entropia. Revista Química Nova na Escola, 40(3), 169-177., p. 2).

Quando, porém, pensa-se em termos termodinâmicos para se explicar os sistemas orgânicos (e inclusive sociais) - que são sistemas abertos, não isolados e em constante interação com o meio no qual praticam sua existência - deparamo-nos com um paradoxo. Como a concepção entrópica clássica se baseia no entendimento da natureza como um sistema fechado, regido por um fluxo em direção a uma máxima entropia ou ‘desordem’, o surgimento da vida (enquanto organização) seria uma impossibilidade. Tal impossibilidade se daria porque os processos organizados e a evolução dos organismos mais simples para os mais complexos se apresentariam como uma improbabilidade termodinâmica, uma vez que o universo tenderia à desorganização, a um aumento de probabilidade de estados possíveis (e, por sua vez, a uma maior dispersão) e não à organização, que significa a diminuição da probabilidade de estados.

Todavia, o enigma que sustenta esse improvável processo organizativo que é a vida desaparece ao se considerar que a linearidade entrópica (de tendência ao crescente aumento da dispersão) só se mantém em sistemas isolados e não em sistemas abertos, dentro dos quais se enquadram os seres vivos. Segundo o biólogo Ludwig von Bertalanffy, há uma entropia negativa (negentropia) nos sistemas viventes, no momento em que estes

[...] conservam-se em uma troca mais ou menos rápida de seus componentes, em meio à degeneração e regeneração, catabolismo e anabolismo. [...] Assim, o organismo multicelular mantém-se diante à troca das células, a célula conserva-se pela troca das estruturas celulares, estas por sua vez pela troca dos compostos químicos que as constituem, etc. (Bertalanffy, 1973Bertalanffy, L.V. (1973). A teoria geral dos sistemas. Petrópolis, RJ: Vozes., p. 216).

Portanto, temos que os sistemas vivos - pensados em referência às máquinas termodinâmicas - são sistemas abertos que, por praticarem trocas constantes com o meio circundante, assim como por promoverem contínua renovação celular, mantêm-se distantes do ‘equilíbrio térmico’, uma vez que há diminuição da entropia e aumento da organização. Desta maneira,

[...] a entropia seria a passagem de uma situação de maior ordem para uma situação mais desordenada, uma ‘tendência ao caos’. Tal interpretação alçou a entropia a um status (não necessariamente desejado) de ferramenta capaz de explicar até mesmo fenômenos das ciências sociais (Cavalcanti et al., 2018Cavalcanti, H. L. B., Ferreira, E. A., Abrantes, P. G., & Cavalcanti, G.N. (2018). As muitas interpretações da entropia e a criação de um material didático para o ensino da interpretação probabilística da entropia. Revista Química Nova na Escola, 40(3), 169-177., p. 2, grifo do autor).

E foi na ambição de levar a entropia à dimensão explicativa do social que, no caso em questão da cibernética, Norbert Wiener considerava a informação como sendo uma forma de ‘energia térmica’, abordando as máquinas cibernéticas, os seres vivos e as dinâmicas sociais como obedecendo a processos de trocas de informações com o ambiente. Quanto maior a entropia informacional (dispersão da informação) menores seriam as condições de coerência organizativa de um sistema e este tenderia a não mais conseguir se organizar em um ambiente. E, da mesma maneira que as máquinas computavam o mundo que as envolvia e reagiam ao mesmo em um movimento de retroalimentação, os sistemas sociais seriam, para Wiener, também organizados dentro desse mesmo empenho em processar corretamente as informações advindas do meio, reagir às mesmas de forma organizada e, assim, diminuir os perigos de aumento do ruído e da dispersão entrópica.

Desta forma, buscando preservar sua coerência e sua identidade frente às trocas informacionais, um sistema social seria regido por uma dinâmica homeostática5 5 Tende a um equilíbrio nas suas interações com o meio ambiente onde está inserido. , reorganizando-se frente às interferências que sofre, na busca pela manutenção de sua constância funcional. Assim, a cibernética de Wiener mantinha viva a dicotomia entre mundo externo/mundo interno, a qual sustentava a existência de uma realidade objetiva e independente do observador e que necessitava ser destrinchada e traduzida pelo desenvolvimento de recursos informacionais cada vez mais elaborados.

Ainda que reconhecendo o valor do trabalho de Norbert Wiener, Bertalanffy postulou que a cibernética - assim como a teoria da informação da qual ela se utilizava - é “[...] mais uma extensão do que a substituição da concepção mecanicista e da teoria das máquinas” (Bertalanffy, 1973Bertalanffy, L.V. (1973). A teoria geral dos sistemas. Petrópolis, RJ: Vozes., p. 43). Nesse sentido, o autor questionou a validade da utilização do conceito de máquina para descrever uma organização viva, anunciando que, apesar de seus sucessos, o modelo do organismo respondendo à lógica das máquinas informacionais continha suas dificuldades e limitações. Tais limitações se tornavam patentes principalmente no que se referia ao fato de que

O organismo vivo mantém-se numa contínua troca de componentes. O metabolismo é uma característica básica dos sistemas vivos. Temos, por assim dizer, uma máquina composta de combustível que ‘se consome continuamente e, no entanto, se conserva a si própria’. Máquinas dessa natureza não existem na tecnologia atual. Em outras palavras, uma estrutura do organismo do tipo das máquinas não pode ser a razão última da ordem dos processos vitais porque a própria máquina é mantida por um fluxo ordenado de processos. ‘Por conseguinte, a ordem primordial deve encontrar-se no próprio processo’ (Bertalanffy, 1973Bertalanffy, L.V. (1973). A teoria geral dos sistemas. Petrópolis, RJ: Vozes., p. 193, grifo nosso).

Considerando que os seres vivos experienciam processos muito diferentes daqueles das máquinas mecânicas, Bertalanffy rejeitou a redução explicativa das dinâmicas dos viventes àquelas contidas em uma máquina cibernética, embora tanto as concepções de Wiener quanto as de Bertalanffy tratassem da interação e da complexidade. Este último considerou que o enfoque cibernético preservava um modelo mecânico cartesiano do organismo, o qual ainda não correspondia à complexidade auto-organizadora apresentada pelo vivente.

Entretanto, como se respondendo a Bertalanffy, outro modelo para o entendimento do ser vivo, que não se reduzia exclusivamente a processos mecânicos, às lógicas da cibernética ou a concepções dualistas de realidade, começou a se configurar na década de 1960. Tal modelo não se furtou de utilizar a concepção do vivo como sendo uma máquina, porém uma máquina que não respondia a linearidades mecanicistas, informacionais ou representacionais da realidade. Tais máquinas vivas eram dinamizadas em processos aos quais se definiu como autopoiéticos.

Máquinas autopoiéticas

Bertalanffy não via na máquina um modelo eficiente para representar o vivente e, criticando o uso abusivo do conceito de máquina para explicar os fenômenos biológicos e sociais, denunciou que, com a descoberta de organelas cada vez mais específicas dentro das células, a questão da ‘máquina’ foi estendida inclusive à biologia celular, sendo que quando se abordam as

[...] mitocôndrias como ‘usinas de energia’ da célula, isto significa que estruturas semelhantes às máquinas no nível molecular determinam a ordem das reações enzimáticas. Igualmente é uma micromáquina que transforma ou traduz o código genético do DNA dos cromossomos em proteínas específicas e, finalmente, em um organismo complexo (Bertalanffy, 1973Bertalanffy, L.V. (1973). A teoria geral dos sistemas. Petrópolis, RJ: Vozes., p. 192, grifo do autor).

Curiosamente, apesar das críticas de Bertalanffy, foi a partir dessa apropriação da célula como sendo uma micromáquina que, na década de 1960, os biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela cunharam outro modelo interpretativo para o entendimento não apenas da célula, mas também da própria produção de realidade: o modelo autopoiético.

Partiram eles do pressuposto de que a vida assume suas primeiras ritmações na célula - entidade considerada por muitos biólogos como a mínima unidade vivente - na qual se engendram complexos processos bioquímicos através dos quais o ser vivo se autocria. Assim, cada unidade celular seria uma pequena máquina a fabricar seus próprios componentes; um sistema que se encarrega de produzir as condições de organização de seu próprio universo. É nesse sentido que Maturana e Varela (1997Maturana, H., & Varela, F.(1997). De máquinas e seres vivos: autopoiese - a organização do vivo. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.) capturaram do conceito de máquina não o seu aspecto de serialização mecânica, mas seu aspecto de produção, de fabricação e funcionamento. Explicando, pois, as concepções de Humberto Maturana e Francisco Varela, Thompson (2007Thompson, E. (2007).Mind in life. Cambridge: Harvard University Press., p. 98, tradução nossa, grifo do autor)6 6 “The cell is a thermodynamically open system, continually exchanging matter and energy with its environment. Some molecules are imported through the membrane and participate in processes inside the cell, whereas other molecules are excreted as waste. Throughout this exchange, the cell produces a host of substances that both remain within the cell (thanks to its membrane) and participate in those very same production processes. In other words, a cell produces its own components, which in turn produce it, in an ongoing circular process. The word ’autopoiesis’ was coined to name this kind of continual self-production”. apresenta que

A célula é um sistema termodinamicamente aberto, trocando continuamente matéria e energia com o meio. Algumas moléculas são importadas através da membrana e participam dos processos dentro da célula, de onde outras moléculas são excretadas como resto. Através dessa troca, a célula produz um conjunto de substâncias que tanto se mantêm dentro da célula (graças a sua membrana) quanto participam daqueles mesmos processos produtivos. Em outras palavras, a célula produz seus próprios componentes os quais, por sua vez, a produzem, em um processo circular contínuo. A palavra ‘autopoiese’ foi cunhada para nomear esse tipo de autoprodução.

É essa dinâmica de autoprodução que justifica o nome de ‘autopoiese’ oferecido a esse processo, uma vez que ‘auto’ vem a significar ‘si mesmo’ e se refere à autonomia dos sistemas auto-organizadores; e ‘poiese’ - que compartilha da mesma raiz grega com a palavra ‘poesia’ - significa ‘criação’, ‘construção’, ‘fabricação’. Portanto, autopoiese significaria ‘autocriação’ ou ‘autofabricação’. É graças a essa característica de máquina autoprodutiva que a célula é considerada uma entidade vivente: um microuniverso capaz tanto de se autoproduzir, reproduzir e de se reinventar nessa produção. A partir dessa leitura, entende-se que os sistemas vivos são sistemas autoprodutores que geram e especificam as suas próprias fronteiras e, consequentemente, suas próprias ‘referências’ de mundo.

Por sua vez, em Maturana e Varela (1997Varela, F. (1997). Prefácio de Francisco J. García Varela. In H. Maturana, & F. Varela. De máquinas e seres vivos: autopoiese - a organização do vivo (p. 35-63). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.), uma máquina autopoiética como a célula igualmente não ‘processaria a informação’ do meio, sendo que tal informação seria ressignificada dentro das coerências internas da célula; coerências estas advindas de seu próprio processo de autoprodução. Deste modo, na relação de autocriação com o meio, a célula só pode experimentar mudanças que não interfiram na coerência de sua autoprodução e que mantenham sua organização.

Marcadas, então, por uma dinâmica autoprodutiva, tais máquinas celulares possuem uma identidade sustentada pela constância de sua organização autopoiética, mesmo que a dinâmica de suas estruturas se modifique7 7 ORGANIZAÇÃO (Grego: organom = instrumento): se refere às relações entre os componentes que definem um sistema como unidade. Logo, para definir um sistema como unidade é necessário e suficiente mostrar sua organização, que determina suas propriedades e especifica o domínio no interior do qual ele poderá interagir como um todo. Quando a unidade perde sua organização acontece uma mudança destruidora. ESTRUTURA (Latim: struere = construir) componentes concretos e operações efetivas que estes elementos devem travar para constituir esta unidade. Determina o espaço dentro do qual o sistema existe e pode ser perturbado. Nas mudanças de estado a estrutura pode mudar sem que a organização se modifique. . Assim, se o meio onde estão inseridas pode vir a produzir perturbações no sistema, as maneiras como reagem a essas perturbações não se desdobram em uma mera linearidade ‘causa-efeito’ e dependem da dinâmica pela qual as células maquinam sua estabilidade autopoiética. A essa característica do funcionamento celular em relação ao meio,Varela (1997Varela, F. (1997). Prefácio de Francisco J. García Varela. In H. Maturana, & F. Varela. De máquinas e seres vivos: autopoiese - a organização do vivo (p. 35-63). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.) denominou de ‘clausura operacional’. Todavia, é importante pontuar que tal clausura ou fechamento autopoiético não significa isolamento, sendo o resultado das maquinações dentro das fronteiras de um sistema: sistema este aberto às interações, mas fechado no que concerne aos modos como ‘pratica’ as perturbações que sofre no contexto em que está imerso. Logo, ‘fechado’ e ‘aberto’ não estão aqui em oposição, sendo que o termo ‘fechado’ se refere às características de auto-organização e recursividade dos sistemas complexos. Desta maneira, Kastrup anuncia que, na perspectiva autopoiética,

A noção de clausura operacional guarda, então, uma complexidade. Sob um primeiro aspecto, ela dá conta da operação de uma unidade autônoma, coerente e distinta. Nesse sentido, ela generaliza a noção clássica de estabilidade de um sistema e é aí que encontramos a dimensão cibernética dos sistemas autopoiéticos. Mas, sob um segundo aspecto, e aí é marcada sua diferença, trata-se de uma unidade emergente a partir de uma rede de relações, ela mesma autopoiética. Nesse caso, torna-se histórico o que a cibernética considera dado. O único invariante é a própria organização autopoiética, ou seja, a rede de relações da qual emerge a clausura operacional (Kastrup, 2008Kastrup, V. (2008). Autopoiese e subjetividade: sobre o uso da noção de autopoiese por G. Deleuze e F. Guattari. In V. Kastrup, S. Tedesco, & E. Passos (Orgs.), Políticas da cognição (p. 46-63). Porto Alegre, RS: Sulina., pp. 54-55).

Graças a tal clausura, Varela propõe que o mundo que a célula ‘observa’ é um mundo significado a partir da própria autofabricação celular, ou seja, não existe uma realidade externa completamente independente da história autopoiética do organismo. A partir dessas considerações, os autores propõem a seguinte ‘equação’, ampliando a problematização da bioquímica celular para um nível ontológico no qual: ‘viver = fazer = conhecer’. Ou seja, o vivente se define em sua prática, em sua produção/fabricação, na qual inaugura um modo de conhecer.

Diante de tal ponderação, não faz muito sentido ficar a debater quem surge primeiro: o ambiente ou o organismo. Para Varela (1997Varela, F. (1997). Prefácio de Francisco J. García Varela. In H. Maturana, & F. Varela. De máquinas e seres vivos: autopoiese - a organização do vivo (p. 35-63). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.), organismo e meio emergem conjuntamente em um movimento de codeterminação, sendo que o organismo ‘pratica’ o mundo que habita; e este, por sua vez, oferece condições para que o organismo exista. Portanto, no mesmo ato que um fazer cria uma realidade, uma realidade igualmente cria um fazer, havendo, assim, uma inventiva recursividade. Frente a tais considerações, Varela abstrai da dinâmica autopoiética uma importante conclusão:

Toda interação da identidade autopoiética acontece não somente em termos de sua estrutura físico-química, mas também quanto unidade organizada, isto é, em referência a sua identidade autoproduzida. Aparece de maneira explícita um ponto de referência nas interações e, portanto, surge um novo nível de fenômenos: a constituição de significados. ‘Os sistemas autopoiéticos inauguram na natureza o fenômeno interpretativo’ (Varela, 1997Varela, F. (1997). Prefácio de Francisco J. García Varela. In H. Maturana, & F. Varela. De máquinas e seres vivos: autopoiese - a organização do vivo (p. 35-63). Porto Alegre, RS: Artes Médicas., p. 47, grifo nosso).

Enveredamo-nos, pois, pela perspectiva de que os sistemas autopoiéticos, em seu funcionar, não são um reflexo ou uma ‘re-apresentação’ do mundo exterior; o que fazem é responder às perturbações do meio externo a partir de como inventam um mundo no qual praticam seu viver. Nesse contexto, para além de uma mera descrição sobre o vivo, Maturana e Varela (1997Varela, F. (1997). Prefácio de Francisco J. García Varela. In H. Maturana, & F. Varela. De máquinas e seres vivos: autopoiese - a organização do vivo (p. 35-63). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.) construíram uma nova proposta epistemológica para o entendimento não apenas da célula, mas também do processo de produzir ‘a’ realidade.

Subjetividade autopoiética

Mas apesar de, no início de seus estudos, Maturana e Varela (1997Varela, F. (1997). Prefácio de Francisco J. García Varela. In H. Maturana, & F. Varela. De máquinas e seres vivos: autopoiese - a organização do vivo (p. 35-63). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.) considerarem o conceito de máquina autopoiética como estando restrito a dinâmica celular, o mesmo foi apropriado por outros campos de conhecimento. A respeito dessa ampliação de perspectivas, Varela (1993Varela, F. (1993). Francisco Varela. In R. Costa (Org.), Limiares do contemporâneo: entrevistas. São Paulo, SP: Escuta., p. 80-81) considerou que

[...] o que me interessava era o problema da autonomia de qualquer sistema, da autonomia no biológico e não só no sistema mínimo autopoiético. Isso significa que o que havíamos expressado em termos de autopoiese se aplicava também à estrutura do ser vivo inteiro, aplicava-se ao sistema nervoso, ao sistema imunológico, aplicava-se quiçá - e isso eu não deixava fechado, mas tampouco me metia - a sistemas maiores, sistemas complexos de comunicação, etc. [...] A ideia chave é dizer que a autonomia vem dessa noção que chamo clausura operacional, isto é, da recursividade de todo o sistema em sua própria organização.

Entre os que se utilizaram do conceito autopoiese para problematizar as dinâmicas sociais e os sistemas relacionais, Félix Guattari foi um autor que fez do conceito de ‘máquina autopoiética’ uma ferramenta para o entendimento da realidade cotidiana como autoprodução de modos de existência. Contudo, antes mesmo da popularização das reflexões de Humberto Maturana e Francisco Varela, Guattari já havia se debruçado sobre a questão da máquina para discutir a subjetividade. Distanciado de concepções mecanicistas, o conceito de máquina surge em seus trabalhos a partir de um artigo denominado ‘Máquina e Estrutura’, no qual, envolvido em discursividades psicanalíticas e marxistas, Guattari (1976) Guattari. F. (1976). Psicoanalisis y transversalidad. Buenos Aires, AR: Siglo XXI. propôs uma abordagem da máquina não como uma mera amarração de engrenagens, mas como sendo instância conectiva e ‘desterritorializante’. Nesse sentido, o movimento que Félix Guattari tentou empreender naquele trabalho:

[...] consiste em uma estratégia para opor a máquina ao perigo da estruturação e da conversão da organização revolucionária em aparato de estado. [A máquina] Constitui, assim mesmo, um conceito não identitário, que serve para inventar novas formas de concatenação das singularidades (Raunig, 2008Raunig, G. (2008). Mil máquinas: breve filosofia de las máquinas como movimiento social. Madrid, ES: Traficantes de Sueños., p. 37, tradução nossa)8 8 “[...] consiste en una estrategia para oponer la máquina al peligro de estructuralización y a la conversión de la organización revolucionaria en aparato de Estado. [La máquina] Constituye, asimismo, un concepto no-identitario, que sirve para inventar nuevas formas de concatenación de las singularidades”. .

Enquanto dimensão conectiva, o conceito de máquina foi trabalhado por Guattari durante todo seu envolvimento intelectual com o filósofo Gilles Deleuze, e logo no começo do primeiro livro que construíram juntos, já anunciavam que “[...] há tão somente máquinas em toda parte, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com seus acoplamentos, suas conexões [...], sempre fluxos e cortes” (Deleuze & Guattari, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O antiédipo. São Paulo, SP: Editora 34., p. 11). Porém, por máquina compreenderam não um ‘objeto’, mas a trama das relações, sendo que

O que chamamos de maquínico é precisamente essa síntese de heterogêneos enquanto tal. Visto que esses heterogêneos são matérias de expressão, dizemos que sua própria síntese, sua consistência ou sua captura, forma um ‘enunciado’, uma ‘enunciação’ propriamente maquínica. As relações variadas nas quais entram uma cor, um som, um gesto, um movimento, uma posição, numa mesma espécie ou em espécies diversas, formam outras tantas enunciações maquínicas (Deleuze & Guattari, 1997Deleuze, G., & Guattari, F. (1997). Mil platôs (Vol. 4). São Paulo, SP: Ed. 34., p. 143, grifo do autor).

Assim, para os referidos autores, os processos maquínicos não se restringiriam a artifícios mecânicos, informacionais e entrópicos. A Guattari, inclusive, desagradava a recuperação da noção de entropia no campo das ciências sociais, uma vez que, para ele, a dimensão do social não tendia a uma máxima dispersão, mas ao multiplicar de diferentes, conflitantes e inventivos modos de organização (Guattari & Rolnik, 2005Guattari, F., & Rolnik, S. (2005). Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: Editora Vozes.). Desta maneira, nas conexões que realizou entre os processos de produção de subjetividade e a autopoiese, Guattari não teve o objetivo de fazer uma transposição do universo físico-químico da matéria à complexidade do universo social. Ele se aproximou da autopoiese pela força processual que tal conceito possui, compreendendo que as significações sobre as dinâmicas de subjetivação que tramavam diferentes concepções de realidade só podiam ser entendidas enquanto processos autorreferentes em uma rede conectiva a engendrar modos de viver e maneiras de pensar. Segundo Guattari (1992Guattari, F., & Rolnik, S. (2005). Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: Editora Vozes., p. 52),

De fato, a qualificação de autopoiética é reservada por Varela ao domínio biológico; dela são excluídos sistemas sociais, as máquinas técnicas [...]. Parece-me, entretanto, que a autopoiese merecia ser repensada em função de entidades evolutivas, coletivas e que mantêm diversos tipos de relações de alteridade, ao invés de estarem implacavelmente encerradas nelas mesmas. Assim as instituições como as máquinas técnicas que, aparentemente, derivam da alopoiese, consideradas no quadro dos agenciamentos maquínicos que elas constituem com os seres humanos, tornam-se autopoiéticas ipso facto.

Portanto, em analogia à forma como Humberto Maturana e Francisco Varela entenderam a unidade celular como uma maquinação autoprodutora a se fazer simultaneamente a seu meio, Guattari pensou as produções de subjetividade como emergentes de agenciamentos produzidos em (e produtores de) uma dobra autopoiética; uma dobra que é ela própria o praticar de uma maneira de existir. Todavia, é importante salientar que ‘subjetividade’, em Guattari, não se refere a uma dimensão individualizada e ou íntima, mas à produção - sempre coletiva - de sensibilidades, de sentidos, de corpos, musicalidades, de linguagens, de gêneros, de estéticas, de valores, dentre outros. Assim, ele assume a subjetividade como agenciamento continuamente conectivo no urdir de diferentes elementos: subjetividade autopoiética, pois ela é produzida em processos maquínicos autoprodutores de seus próprios componentes de subjetivação.

Essa maneira de considerar a produção de subjetividade faz com que o conceito de ‘agenciamento maquínico’ se torne um importante operador. Isso porque “[...] o agenciamento se torna a realização da máquina graças às conexões que possibilita” (Dosse, 2010Dosse, F. (2010). Gilles Deleuze e Félix Guattari: biografia cruzada. Porto Alegre, RS: Artmed., p. 203), o que faz com que esse agenciar se comprometa com o entendimento de que os processos de vida estão envolvidos em encontros e intensificações (de políticas, sujeitos, sabores, saberes, temporalidades, dentre outros) que, não estando necessariamente em anastomose, podem favorecer a produção do inédito: seja em termos do modo como os sujeitos praticam suas vidas ou como comunidades inteiras realizam cotidianamente sua experiência social.

Pensando, pois, o movimento autopoiético para além da dobra celular e o ressignificando como processo ativo de uma dobra de subjetivação, Guattari propôs que os seres humanos fabricam as realidades - tanto individuais quanto coletivas - que orientam o seu caminhar. Ou seja, vitalizados em agenciamentos a produzirem diferentes universos de sentido, sujeitos e comunidades são, numa dobra autopoiética, também por eles significados em meio aos contágios que efetuam entre elementos tecnológicos, estéticos, midiáticos, sonoros, históricos, gustativos, linguísticos, artísticos, políticos... Estes, envolvidos em (des)conexões diversas, gestam mundos plurais, produzem sentidos contingentes aos processos articulados e, consequentemente, oportunizam práticas e intervenções. Nesse sentido, os agenciamentos maquínicos a fabricarem realidades impõem não uma verdade, mas uma experimentação (Deleuze & Guattari, 1977Deleuze, G., & Guattari, F.(1977). Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro, RJ: Imago.), diferentes possíveis, em um exercício que convoca à invenção.

Era, pois, imerso nessa abordagem conectiva e maquínica de produzir realidades que Guattari (1992Guattari. F. (1992). Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro, RJ: Editora 34., p. 44) considerava que

[...] é preciso se afastar de uma referência única às máquinas tecnológicas, ampliar o conceito de máquina para posicionar essa adjacência da máquina aos universos de referência incorporais (máquina musical, máquina matemática [...]).

Assim sendo, uma dimensão maquínica se articula em uma composição heterogênea de relações, como quando, numa máquina epidemiológica, o vírus HIV se agencia a células humanas, à indústria farmacêutica, à sexualidade, às religiosidades, às indústrias de entretenimento, às políticas de saúde coletiva, à produção de prazer, à indústria do narcotráfico, à mídia, às formas de morrer. Por sua vez, diferentes arranjos na trama entre todos esses fatores partejam dobras de subjetivação produtoras de (e produzidas em) novas maneiras de existir e atuar na sociedade, no sexo, nos prazeres, nas relações conjugais, nas religiões, nos modos de se higienizar, dentre outras composições. Portanto, na concepção proposta por Guattari, as máquinas sociais jamais funcionam isoladamente, mas por agenciamentos coletivos que colocam em movimento tanto diferentes modos de produzir a vida, quanto também intensificações desorganizadoras do já estabelecido. Fomentam modos de viver, pensar e sonhar que podem tanto justificar, reforçar e naturalizar instituições sociais (divisões de classe, diferenças de gênero, sistemas de trocas monetárias e de poderes) quanto também potencializar fluxos (des)territorializantes a inaugurarem outras sensibilidades tanto problemáticas quanto criativas nas intensificações coletivas.

Contudo, quando Guattari se refere a ‘coletivo’9 9 Em Guattari, o conceito de coletivo “[...] não se reduz ao social totalizado e que seu funcionamento não pode ser apreendido através das dinâmicas das relações interindividuais ou grupais, uma vez que estas acontecem entre seres já individuados. A noção de agenciamento é a que nos parece mais apropriada para definir seu funcionamento. Agenciar é estar no meio, sobre a linha de encontro de dois mundos” (Escóssia & Kastrup, 2005, p. 303). não o está considerando apenas em termos de grupos espacialmente situados, mas em termos de redes de processos autorregulados a agenciarem intensidades partícipes das e nas mais variadas dobras de subjetivação. Dobras que, por analogia, correspondem a uma clausura operacional autopoiética (Varela, 1997Varela, F. (1997). Prefácio de Francisco J. García Varela. In H. Maturana, & F. Varela. De máquinas e seres vivos: autopoiese - a organização do vivo (p. 35-63). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.) e compõem diferentes sistemas singulares de produção de realidades; diferentes modos possíveis de produzir sentido. Portanto, cada dobra de subjetivação, a se compor como fabricação singular numa mesma cena social, diferentemente de ser uma maneira de ‘estar no mundo’, compreenderia ‘estar com um mundo’; o que nos leva à concepção de que se habitamos um ‘uni-verso’, esteé apenas um entre outros ‘versos’ de mundos a existirem de maneiras tão amplas, legítimas e complexas quanto são as realidades engendradas nos agenciamentos maquínicos ativados em diferentes dobras de subjetivação.

Agenciadas, maquinadas, fabricadas..., as realidades, em Guattari, emergem como ação, como prática, como (auto)poiesis, como processos de subjetivação em inusitada invenção de sucessivos abortamentos e/ou abertura a novos, estranhos - mas ainda assim legítimos - mundos.

Referências

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  • Wiener, N. (1968). Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos (2a ed.). São Paulo, SP: Cultrix.
  • 3
    Refere-se à capacidade de ajustar a conduta futura em função do desempenho pretérito. Um site de internet, como o amazon.com, ‘aprende’ com as escolhas de compras realizadas por seus usuários, e passa a fazer sugestões de consumo a partir das escolhas pretéritas dos mesmos. Isto caracteriza uma dinâmica de retroalimentação ou feedback.
  • 4
    Entendendo aqui um ‘sistema fechado’ como sendo aquele que se encontra isolado das interferências do meio ambiente; como, por exemplo, a dinâmica de reagentes dentro de um recipiente específico.
  • 5
    Tende a um equilíbrio nas suas interações com o meio ambiente onde está inserido.
  • 6
    “The cell is a thermodynamically open system, continually exchanging matter and energy with its environment. Some molecules are imported through the membrane and participate in processes inside the cell, whereas other molecules are excreted as waste. Throughout this exchange, the cell produces a host of substances that both remain within the cell (thanks to its membrane) and participate in those very same production processes. In other words, a cell produces its own components, which in turn produce it, in an ongoing circular process. The word ’autopoiesis’ was coined to name this kind of continual self-production”.
  • 7
    ORGANIZAÇÃO (Grego: organom = instrumento): se refere às relações entre os componentes que definem um sistema como unidade. Logo, para definir um sistema como unidade é necessário e suficiente mostrar sua organização, que determina suas propriedades e especifica o domínio no interior do qual ele poderá interagir como um todo. Quando a unidade perde sua organização acontece uma mudança destruidora. ESTRUTURA (Latim: struere = construir) componentes concretos e operações efetivas que estes elementos devem travar para constituir esta unidade. Determina o espaço dentro do qual o sistema existe e pode ser perturbado. Nas mudanças de estado a estrutura pode mudar sem que a organização se modifique.
  • 8
    “[...] consiste en una estrategia para oponer la máquina al peligro de estructuralización y a la conversión de la organización revolucionaria en aparato de Estado. [La máquina] Constituye, asimismo, un concepto no-identitario, que sirve para inventar nuevas formas de concatenación de las singularidades”.
  • 9
    Em Guattari, o conceito de coletivo “[...] não se reduz ao social totalizado e que seu funcionamento não pode ser apreendido através das dinâmicas das relações interindividuais ou grupais, uma vez que estas acontecem entre seres já individuados. A noção de agenciamento é a que nos parece mais apropriada para definir seu funcionamento. Agenciar é estar no meio, sobre a linha de encontro de dois mundos” (Escóssia & Kastrup, 2005Escóssia, L., & Kastrup, V.(2005). O conceito de coletivo como superação da dicotomia indivíduo-sociedade. Psicologia em Estudo, 10(2), 295-304., p. 303).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    22 Nov 2018
  • Aceito
    15 Mar 2019
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