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RESSONÂNCIAS POLÍTICO-CLÍNICAS DO IDEAL DE INCLUSÃO NOS CENTROS DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL1 1 O presente ensaio é um desdobramento da pesquisa de mestrado intitulada Psicose e CAPS: entre a metapsicologia, a clínica e a política. 2 2 Apoio e financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).

RESONANCIAS POLÍTICAS Y CLÍNICAS DEL IDEAL DE INCLUSIÓN EN EL CENTROS DE ATENCIÓN PSICOSOCIAL

RESUMO

Buscamos, neste ensaio, analisar as ressonâncias políticas e clínicas da presença de um ideal de inclusão do louco no tratamento oferecido pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Para tanto, num primeiro momento, fizemos um breve percurso pelo movimento da reforma psiquiátrica brasileira levando em consideração a sua principal influência, qual seja: a psiquiatria democrática italiana. Assim, partimos do pensamento paradigmático de Franco Basaglia, visando, com isso, esclarecer como se constitui o que denominamos de ideal de inclusão no CAPS. Posteriormente, pelo esforço teórico que perpassou a psicanálise e a política, analisamos, detidamente, as consequências político-clínicas de se tomar a inclusão social como horizonte final de um tratamento destinado, predominantemente, à psicose. Aqui, os conceitos de ideologia, ideal do eu e mal-estar foram de suma importância. Por fim, procuramos indicar algumas questões importantes para uma clínica possível no CAPS, que seja atinente à política e que alie a atenção dada ao sujeito e a busca por transformação social.

Palavras-chave:
Psicanálise; saúde mental; psicose

RESUMEN

Buscamos, en este ensayo, analizar las resonancias políticas y clínicas de la presencia de un ideal de inclusión del loco en el tratamiento ofrecido por los Centros de Atención Psicosocial (Centros de Atención Psicosocial - CAPS). Para ello, en un primer momento, se hiso un breve recorrido por el movimiento de la Reforma Psiquiátrica brasileña llevando en consideración su principal influencia: la Psiquiatría Democrática italiana. Así, partimos del pensamiento paradigmático de Franco Basaglia, buscando, con ello, aclarar cómo se constituye lo que llamamos ideal de inclusión en el CAPS. Posteriormente, por intermedio de un esfuerzo teórico que atravesó el psicoanálisis y la política, analizamos detenidamente las consecuencias políticas y clínicas de tomar la inclusión social como horizonte final de un tratamiento destinado, predominantemente, a la psicosis. Aquí, los conceptos de ideología, ideal del yo y el malestar, fueron de suma importancia. Por último, buscamos indicar algunas cuestiones importantes para una clínica posible en el CAPS, que sea atinente a la política y que alíe la atención dada al sujeto y la búsqueda por transformación social.

Palabras clave:
Psicoanálisis; salud mental; psicosis

ABSTRACT.

In this essay, we sought to analyze the political and clinical resonances of the presence of an ideal of inclusion of the insane in the treatment offered by Psychosocial Care Centers (Centros de Atenção Psicossocial - CAPS). To do so, in the first moment, we made a brief analysis of the Brazilian Psychiatric Reform movement taking into consideration its main influence, namely: the Italian Democratic Psychiatry. Thus, we started from the paradigmatic thinking of Franco Basaglia, in order to clarify how such an ideal is constituted. Subsequently, through a theoretical effort that went through psychoanalysis and politics, we have analyzed in detail the political and clinical consequences of taking social inclusion as the final horizon of a treatment predominantly for psychosis. Here, the concepts of ideology, ego ideal and discontent were of paramount importance. Finally, we tried to indicate some important issues for a possible clinic at CAPS, which is related to politics and that combines the attention given to the subject and the search for social transformation.

Keywords:
Psychoanalysis; mental health; psychosis

Introdução: reforma psiquiátrica brasileira e construção do ideal de inclusão

Como se sabe, a Reforma Psiquiátrica remete a um movimento político ocorrido no Brasil, tendo seu início no fim da década de 1970. Largamente influenciado por um movimento semelhante ocorrido na Itália - a denominada Psiquiatria Democrática italiana, cujo principal representante é Franco Basaglia -, o movimento brasileiro culminou em uma profunda transformação no modo de a sociedade se relacionar com a loucura (Amarante, 1995Amarante, P. (Coord.). (1995). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil(2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz.).

Poderíamos muito bem dedicar páginas à descrição do que foi e de que como se constituiu, historicamente, tal movimento que veio a dar origem aos serviços substitutivos aos manicômios, conhecidos como Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Estamos falando de operadores político-institucionais, cujos pressupostos são derivados de dois movimentos sociais articulados, denominados de reforma psiquiátrica brasileira e luta antimanicomial. Consideramos, porém, que o aspecto histórico de tal processo político já foi suficientemente descrito e analisado por outros autores, dos quais podemos citar a título de exemplo: Amarante (1995Amarante, P. (Coord.). (1995). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil(2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz.), Lobosque (2013Lobosque, A. M. (2013). Saúde mental no âmbito do SUS. In: W. Melo, F. M. Lopes, M. F. Ramos, F. A. Bueno & D. R. Matos (Orgs.), Universidade e sistema de saúde: a democratização do conhecimento (p. 33-43). Rio de Janeir, RJ: Espaço Artaud.), Figueiredo (2015Figueiredo, A. C. (2015). Psicanálise e práticas institucionais na saúde mental: o estado da arte. In V. A. Darriba & R. M. M. de Barros (Orgs.), Psicanálise e saúde: entre o Estado e o sujeito (p. 125-134). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.), Yasui e Barzaghi (2018Yasui, S., & Barzaghi, N. (2018). História, memória e luta: a construção da Reforma Psiquiátrica no Brasil Convención Internacional de Salud, Cuba Salud..), entre outros. Assim, pretendemos nos deter, no presente ensaio, a extrair o que há de mais fundamental na crítica basagliana - partindo da premissa de que o pensamento de Basaglia é paradigmático no que se refere à reforma. Nossa pretensão, com isso, é explicar como se articula a crítica desse movimento à ideologia manicomial, à clínica de um modo geral (seja ela psiquiátrica, psicológica ou psicanalítica) enquanto prática ‘terapêutico-orientadora’ de opressão5 5 Sobre isso, ver Basaglia (1985) e Dunker e Kyrillos Neto (2015). e, principalmente, como se dá a constituição do que aqui denominamos de ideal de inclusão.

Antes de mais nada, é preciso ressaltar o que consideramos ser o ponto nevrálgico da crítica de Basaglia (1985Basaglia, F. (Coord.). (1985). A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro, RJ: Graal.) à instituição psiquiátrica: a percepção de que a violência e a exclusão que permeiam o cotidiano dos hospitais psiquiátricos é reflexo de relações de mesmo tipo presentes na sociedade como um todo. Basta lembrar a maneira como Basaglia aborda a problemática dos manicômios no capítulo ‘As instituições da violência’, presente no livro A instituição negada (1985), que relata a experiência-modelo no hospital psiquiátrico de Gorizia. Nesse texto, antes de imprimir, de fato, sua crítica ao manicômio, Basaglia descreve relações de violência e opressão ocorridas em diversas instituições, como a família, a escola, a indústria etc. Desse modo, isso, que Basaglia já sutilmente indicava no próprio estilo do texto, culmina na afirmação, agora enfática, de que o que ocorre no manicômio é fruto da maneira como são estabelecidas as relações na sociedade como um todo, “[...] organizada a partir da divisão radical entre os que têm (os donos no sentido real, concreto) e os que não têm” (Basaglia, 1985Basaglia, F. (Coord.). (1985). A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro, RJ: Graal., p. 101), ou seja, é fruto da divisão de classes.

Daí o psiquiatra italiano afirmar, em conferências realizadas no Brasil, que “[...] a lógica terapêutica e a lógica da luta de classes são duas coisas muito próximas, e só com um avanço na luta de classes se pode criar um novo código para uma nova ciência” (Basaglia, 1979Basaglia, F. (1979). Psiquiatria alternativa: contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática. São Paulo, SP: Brasil Debates., p. 32). É isso que nos permite afirmar que há, em Basaglia, uma expressiva crítica da ideologia manicomial, pois sua experiência prática e de pensamento denuncia o quão ingênuo é pensar o louco e o hospital psiquiátrico como evidências, ignorando todo processo histórico e social que os sobredetermina. Disso decorre seu esforço de pensar o louco e o manicômio - representado por seus profissionais, na maioria das vezes, pelos psiquiatras, “[...] os novos administradores da violência no poder” (Basaglia, 1985Basaglia, F. (Coord.). (1985). A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro, RJ: Graal., p. 102) - em um contexto mais amplo, da sociedade capitalista dividida em classes.

Como podemos ver, Basaglia faz jus a influência de Marx em seu pensamento. Afinal, como nos explica Eagleton (1996Eagleton, T. (1996). A ideologia e suas vicissitudes no marxismo ocidental. In S. Zizek (Org.), Um mapa da ideologia (p. 179-226). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto., p. 182), a política marxista, lida de certa maneira, implica em uma análise que perceba uma situação histórica específica como remetendo a uma totalidade que a determina: “[...] alguns grupos e classes precisam inscrever sua própria condição num contexto mais amplo, se pretendem modificar essa condição”. E no que tange a tal influência, talvez possamos afirmar que sua crítica da ideologia se realiza ao modo do marxismo humanista de Lukács6 6 O que estamos indicando é uma semelhança e não, necessariamente, uma referência direta de Basaglia a Georg Lukács. Aliás, nos textos basaglianos utilizados neste ensaio, a única referência direta, ainda que sutil, a um teórico marxista (além, é claro, do próprio Marx) é a seu conterrâneo Antonio Gramsci. Acreditamos que tal escassez de referências teóricas diretas no texto de Basaglia é indicativa de que seu principal objetivo era prático e não ‘acadêmico’. que, como observa Eagleton, trabalha com a perspectiva de ‘totalização’ da ordem social, ou seja, com a capacidade de remeter a experiência parcial a um todo como forma de reflexão possível que vise à emancipação. Como nos diz o autor:

[...] nossa consciência rotineira é em si intrinsecamente ‘ideológica’, simplesmente em virtude de sua parcialidade. Não é que as afirmações que fazemos nessa situação sejam necessariamente falsas; trata-se, antes, de que elas só são verdadeiras de um modo superficial e empírico, pois são julgamentos sobre objetos isolados, que ainda não foram incorporados em seu contexto pleno (Eagleton, 1996Eagleton, T. (1996). A ideologia e suas vicissitudes no marxismo ocidental. In S. Zizek (Org.), Um mapa da ideologia (p. 179-226). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto., p. 184, grifo do autor).

A partir disso se articula a ‘negação’ realizada pelo grupo liderado por Basaglia (1985Basaglia, F. (Coord.). (1985). A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro, RJ: Graal.): negação da terapêutica-orientadora que buscava adaptar o louco à situação de opressão a que era submetido no manicômio; negação do diagnóstico psiquiátrico, tendo em vista seu caráter ideológico de rotulação; negação da opressão e violência presentes no hospital psiquiátrico; e, enfim, negação da própria instituição. O objetivo, portanto, era de que a negação e a consequente tomada de consciência, pelo psiquiatra, de sua posição como opressor, permitisse ao louco a tomada de consciência de seu papel de oprimido.

A crítica de Basaglia, nesse sentido, se direciona à alienação acarretada pelo mecanismo de desconhecimento ideológico que, como atenta Safatle (2008Safatle, V. (2008). Cinismo e falência da crítica. São Paulo, SP: Boitempo., p. 67), indica “[...] entre outras coisas, a incapacidade de compreensão da totalidade das estruturas causais historicamente determinadas que suportam a reprodução das relações sociais em todas as suas esferas de valores [...]” - aqui, vale lembrar a célebre fórmula marxista que traduz o mecanismo ideológico: ‘eles não sabem, mas o fazem’. Daí a sua proposta prática ser a de uma espécie de ‘desalienação’ tanto do louco, como do médico, por intermédio daquilo que Safatle (2008Safatle, V. (2008). Cinismo e falência da crítica. São Paulo, SP: Boitempo., p. 67) designa como a “[...] apropriação autoreflexiva dos pressupostos determinantes da ação”.

Em suma, é assentado sobre esse modelo de análise e crítica das relações até então vigentes entre a loucura e a sociedade - haja vista que o hospital psiquiátrico, como lembra Basaglia (1979Basaglia, F. (1979). Psiquiatria alternativa: contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática. São Paulo, SP: Brasil Debates.), responde a uma estratégia de controle social - que se deduz o apego ao ‘ideal de inclusão do louco’ na apropriação do pensamento de Basaglia pelo movimento da reforma psiquiátrica brasileira. Aqui, poderíamos dizer que a tônica a partir da qual os CAPS são instituídos se traduz na seguinte advertência do psiquiatra: “[...] além de ser um corpo, o homem é produto de lutas. Além de um corpo orgânico, o homem é um corpo social. E é sobre esse corpo social que a nova medicina deve atuar” (Basaglia, 1979Safatle, V. (2008). Cinismo e falência da crítica. São Paulo, SP: Boitempo., p. 60), atuação esta que vê na inclusão/reinserção social do louco uma espécie de ideal de cura.

Resta dizer ainda que, no presente ensaio, partindo dos pressupostos basaglianos assumidos pela reforma psiquiátrica brasileira, valemo-nos da psicanálise em extensão para a construção de um discurso analisante acerca das ressonâncias políticas e clínicas do ideal de inclusão presente nos serviços substitutivos em saúde mental. Aqui, quando falamos em construção de um discurso analisante, estamos nos referindo ao que comenta Dunker (2013Dunker, C. I. L. (2013). Sobre a relação entre teoria e clínica em psicanálise. In C. I. L. Dunker. A psicose na criança: tempo, linguagem e sujeito (p. 63-73). São Paulo, SP: Zagodoni.) sobre como deve se orientar o pesquisador em psicanálise, que em seu método/percurso de pesquisa, deve levar em conta algumas características necessárias a um discurso de analisante: a ‘recordação’, “[...] um discurso que possa se guiar pela história e pelas filiações e contingências que ela implica [...]”; a ‘implicação’, “[...] um discurso que possa se interrogar eticamente sobre as formações de estranhamento com as quais se depara [...]”; e a ‘transferência’, “[...] um discurso que se articule em relação a uma suposição de saber, que se faça, portanto, pelo menos intenção de diálogo” (Dunker, 2013Dunker, C. I. L. (2013). Sobre a relação entre teoria e clínica em psicanálise. In C. I. L. Dunker. A psicose na criança: tempo, linguagem e sujeito (p. 63-73). São Paulo, SP: Zagodoni., p. 71).

Em suma, características que, em um processo analítico, implicam na ‘sustentação de um posicionamento subjetivo diante do desejo ($)’. Afinal, como vemos com Rosa (2016Rosa, M. D. (2016). A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. São Paulo, SP: Escuta/Fapesp.), as contribuições da psicanálise ao campo social e político possuem a peculiaridade de possibilitar a investigação do que escapa aos outros campos, a saber: a dimensão inconsciente. Assim sendo, implica o movimento inaugurado por Lacan de colocação do sujeito em questão. É a partir da problematização entre sujeito e laço social, que nos lançamos na “[...] perspectiva da ‘psicanálise implicada’, aquela em que as teorizações sobre desejo e gozo incluem o modo como os sujeitos são capturados e enredados na máquina do poder” (Rosa, 2016Rosa, M. D. (2016). A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. São Paulo, SP: Escuta/Fapesp., pp. 28-29, grifo do autor). Ou seja, ainda que tenhamos um fenômeno sociopolítico como objeto de pesquisa, continuamos tendo como foco a subjetividade.

Isso de modo algum implica numa perspectiva individualista, haja vista que a constituição do sujeito, para a psicanálise, não pode ser dissociada da dimensão (social) da alteridade. Tendo isso em mente, buscaremos, a seguir, mapear as ressonâncias políticas e clínicas da constituição de um ideal de inclusão nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

Ressonâncias políticas

Quais as implicações políticas de o CAPS pretender a inclusão social do louco como horizonte a ser alcançado a partir do tratamento oferecido? Na verdade, o problema em si não é que se almeje tal inclusão, e sim que o tratamento parta de um objetivo positivamente definido, determinado. Em outros termos, o problemático está no fato de que o CAPS, ao partir de tal ideal de cura (ou melhor, ao partir de um ideal de cura qualquer), acaba por se identificar, pelos trabalhadores de saúde mental responsáveis pelo tratamento, com a figura que metapsicologicamente vem a encarnar tal posição de ideal: o ideal do Eu. Afinal, o que denominamos de ideal de inclusão implica na idealização de um ’estado’ a ser alcançado pelo louco (incluir-se) advinda do Outro (encarnado no profissional do CAPS ou, se quisermos ir mais longe, na sociedade como um todo em seu processo civilizatório). Aqui falamos em identificação, pois como vemos com Lacan (2010Lacan, J. (2010). O seminário, livro 8: a transferência (2a ed.). Rio de Janeir, R: Zahar. Original proferido em1960-1961.), tal posição de ideal é sempre suposta ao analista (ou seja, qual for a instância que represente o tratamento). Cabe, assim, a ele decidir por assumir ou recusar tal posto.

Dito isso, acreditamos ser importante analisar quais são as ressonâncias políticas e clínicas de a instância responsável pelo tratamento se identificar com tal posição de saber/poder que lhe é suposta pelo sujeito que chega ao serviço - principalmente se tivermos em vista as peculiaridades da psicose. No que se refere, primeiramente, ao campo político, será necessário nos enveredar em questões ideológicas. Quanto a isso, aliás, Dunker e Kyrillos Neto (2015Dunker, C. I. L., & Kyrillos Neto, F. (2015). Psicanálise e saúde mental. Porto Alegre, RS: Criação Humana. ), asseveram que a crítica da reforma pode acabar por ser tão ideológica quanto a ideologia manicomial, apesar de se tratarem de projetos radicalmente opostos.

Aqui, a premissa subjacente à crítica da ideologia zizekiana que propõe analisá-la em seu caráter dialético é de suma importância (Zizek, 1992Zizek, S. (1992). Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., 1996aZizek, S. (1996a). O espectro da ideologia. In: S. Zizek(Org.), Um mapa da ideologia (p. 7-38). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto., 1996bZizek, S. (1996b). Como Marx inventou o sintoma? In S. Zizek(Org.), Um mapa da ideologia (p. 297-331). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto., 2017Zizek, S. (2017). Além da análise do discurso. In R. Butler & S. Stephens (Orgs.), Interrogando o real (p. 263-275). Belo Horizonte, MG : Autêntica.). Pois, quando o movimento da reforma em sua crítica da ideologia manicomial pauta seu projeto político em contraposição direta ao projeto/ideologia criticado, ele acaba realizando a advertência de Zizek (1996a,Zizek, S. (1996a). O espectro da ideologia. In: S. Zizek(Org.), Um mapa da ideologia (p. 7-38). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. p. 9) de que: “Quando um processo é denunciado como ideológico por excelência, pode-se ter certeza de que seu inverso é não menos ideológico”. Afinal, por ser um processo dialético, é necessário que se tenha em vista que cada polo do antagonismo é inerente ao seu oposto, de modo que reduzir a crítica a assunção de um dos polos é tão ideológico quanto ocupar o polo criticado. A metáfora do pêndulo, apresentada por Safatle (2008Safatle, V. (2008). Cinismo e falência da crítica. São Paulo, SP: Boitempo., p. 202), pode ser interessante para entender tal processo: ora, o pêndulo, ao ter seu movimento reduzido de um polo ao outro, acaba por produzir um movimento que mantém e conserva o mesmo centro. E neste ponto, Safatle é contundente: “Ir de um polo a outro é apenas uma maneira mais complicada de não andar”.

Assim sendo, qual seria, então, esse centro que se conserva em projetos tão radicalmente opostos: em um polo o projeto asilar de ‘exclusão’ via manicômio e no outro o projeto da reforma de ‘inclusão’ via CAPS? Em ambos os casos, trata-se de uma tentativa de tamponamento do que Freud (2011cFreud, S.. (2011c). O mal-estar na civilização. São Paulo, SP: Penguin Classics Companhia das Letras. Original publicado em 1930.) denominou de ‘mal-estar’ inerente à civilização e, portanto, inerente ao campo social - em termos zizekianos, tentativa de tamponamento do ‘real do antagonismo social’7 7 Vale comentar que Zizek (2017, p. 263-264, grifo do autor) ‘importa’ o conceito de antagonismo social de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Como ele nos diz: “[...] o campo sociossimbólico é concebido como um campo estruturado em torno de determinada impossibilidade traumática, de determinada fissura que ‘não pode’ ser simbolizada. Em suma, Laclau e Mouffe reinventaram, por assim dizer, a noção lacaniana do Real como impossível, eles a tornaram útil como ferramenta para análise social e ideológica”. . Isto é, em ambos os projetos/ideologias, há uma espécie de recalque do real antagônico.

A ideologia manicomial ‘varre os loucos das ruas’ por meio do internamento, de modo que o louco enquanto elemento que causa transtorno social é excluído e a Ordem social é protegida. Já a ideologia da reforma idealiza uma sociedade que acolha o louco a ponto de este não ser mais visto como perturbação da Ordem (no escopo deste artigo não abordaremos as políticas públicas sobre álcool e outras drogas). Como podemos ver, os dois projetos fantasiam um estado de completo ‘bem-estar’ social, ou seja, nos dois casos há um ideal de sociedade harmônica, isenta de antagonismo, isenta de mal-estar. Aqui, fica evidente a estrutura fantasística da ideologia (Zizek, 1992Zizek, S. (1992). Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., 1996aZizek, S. (1996a). O espectro da ideologia. In: S. Zizek(Org.), Um mapa da ideologia (p. 7-38). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto., 1996bZizek, S. (1996b). Como Marx inventou o sintoma? In S. Zizek(Org.), Um mapa da ideologia (p. 297-331). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto., 2017Zizek, S. (2010). Como ler Lacan. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), pois esse ideal de harmonia social nada mais é que uma tentativa de velar a inconsistência do grande Outro8 8 Em se tratando de psicanálise lacaniana, o conceito de grande Outro é central e repleto de ressonâncias teóricas. No que concerne a este artigo, uma forma interessante de compreendê-lo é partir da seguinte definição presente no Dicionário de psicanálise: “[...] o sujeito é determinado, segundo Lacan, por uma ordem simbólica designada como ‘lugar do Outro’ e perfeitamente distinta do que é ‘do âmbito de uma relação com o outro’” (Roudinesco & Plon, 1998, p. 559, grifo do autor). Porém, há um ponto em que o sujeito não se conforma completamente a essa ordem simbólica, ponto em que ela não consegue determiná-lo por completo, e este ponto se expressa no fato de tal ordem, isto é, do Outro ser inconsistente. .

O fato de a ideologia ter a estrutura de uma fantasia é de suma importância para a nossa análise, pois demonstra que ela implica não só um processo ‘simbólico’ de sobredeterminação significante, mas também um núcleo ‘real’ de gozo - lembremos que a fórmula lacaniana da fantasia conjuga o sujeito e o objeto mais-gozar: $ <> a. É por isso, aliás, que Zizek (1992Zizek, S. (1992). Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 122, grifo do autor) propõe dois métodos complementares de crítica da ideologia:

[...] um é discursivo, é a ‘leitura sintomal’ do texto ideológico que traz a ‘desconstrução’ da experiência espontânea de seu sentido, isto é, que demonstra como um dado campo ideológico é o resultado de uma montagem de ‘significantes flutuantes’ heterogêneos, de sua totalização por intermédio da intervenção de alguns ‘pontos de basta’; o outro visa extrair o núcleo de ‘gozo’, a articular o modo como, além do campo da significação, mas, ao mesmo tempo, no interior desse campo, uma ideologia implica, manipula e produz um gozo pré-ideológico estruturado na fantasia.

Assim, ao conjugar o conceito marxista de ideologia com o psicanalítico de fantasia, Zizek consegue explicar essa função ideológica por excelência de sutura do antagonismo, isto é, de mascaramento do gozo enquanto insígnia de um real inerente ao mundo simbólico. A fantasia ideológica, nesse sentido, seria encobridora do que gera inconsistência, de modo que sua crítica denuncia a instabilidade do social e desmascara sua suposta homogeneidade. Em outros termos, uma crítica da ideologia que se preze deve atentar não só para os determinantes sociais de um fenômeno, mas também para a sua função de velamento do mal-estar.

Dito isso, acreditamos que o fenômeno social da loucura não deixa de ser, em alguma medida, sintoma do processo civilizatório, “[...] no sentido de uma mensagem codificada, de um signo, de uma representação deturpada do antagonismo social” (Zizek, 1992Zizek, S. (1992). Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 123). Diante de tal sintoma, a resposta social historicamente percebida tendeu a ser totalitária, configurando-se pela exclusão do louco como se ele fosse a fonte do antagonismo social, quando na verdade o antagonismo é imanente à civilização. Aqui, a ideologia manicomial se aproxima da ideologia antissemita em que, como atenta Zizek (1992Zizek, S. (1992). Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.), o judeu (no nosso caso, o louco) vem encarnar a figura do antagonismo sendo, portanto, uma espécie de ‘bode-expiatório’. Não é à toa que Basaglia (1979Basaglia, F. (1979). Psiquiatria alternativa: contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática. São Paulo, SP: Brasil Debates.) viu no Hospital Colônia de Barbacena uma versão dos campos de concentração nazistas.

Porém, justamente por concordarmos com Zizek (1992Zizek, S. (1992). Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.) que a crítica da ideologia se dá em ‘dois tempos’, que acreditamos que a ‘crítica basagliana da ideologia’ abrange somente o primeiro método. Assim, Basaglia acertadamente percebe que o louco é ‘sintoma’ de uma cisão referente à sociedade como um todo (a divisão de classes). Ao perceber isso, ele faz o que se deve fazer frente a um sintoma: interpretá-lo. Sua interpretação nós já conhecemos: a loucura é determinada por uma série de processos históricos e sociais. Mas como já dissemos, a ideologia possui a estrutura de uma fantasia e, como nos lembra Zizek (1992Zizek, S. (1992). Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 123, grifo do autor): “[...] a fantasia não deve ser interpretada, mas apenas ‘atravessada’”. Esse é o segundo método da crítica da ideologia, momento de travessia da fantasia social. Ao ignorá-lo, Basaglia acaba recaindo em outra fantasia que continua não acolhendo o real antagônico, o núcleo de gozo da ideologia. Curiosamente, esse real antagônico ignorado por Basaglia é justamente o que se apresenta nas manifestações de um sujeito que não se conforma à suposta homogeneidade do social. Em outros termos: a loucura é de fato uma construção social, tal como previa Basaglia. Não obstante, ela também é insígnia de uma condição singular: seja enquanto sujeito que é mais do que um mero reflexo do social, seja enquanto psicótico com suas peculiaridades subjetivas e estruturais.

Para nós é neste ponto que se encontra o valor político da clínica psicanalítica - em contraponto à clínica enquanto prática de opressão, criticada por Basaglia - e seu potencial de diálogo com os pressupostos basaglianos. Afinal, ela se configura como uma clínica do atravessamento da fantasia, em que se busca justamente acolher o antagonismo a partir da assunção de que o grande Outro é barrado, de que a Ordem sociossimbólica, longe de ser homogênea, é inconsistente.

Quando somos confrontados com os sintomas do paciente, temos primeiro que interpretá-los, que penetrar através deles na fantasia fundamental, como núcleo do gozo que bloqueia o movimento progressivo da interpretação, e depois temos que realizar a etapa crucial de atravessar a fantasia, de nos colocarmos à distância e de vivenciar como a formação fantasística só faz mascarar um certo vazio, uma falta no Outro (Zizek, 1992Zizek, S. (1992). Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 168).

Ao acolher o antagonismo, a psicanálise se demonstra precavida quanto aos ideais de harmonia, pois acreditamos que é justamente nisso, nessa postura crítica a princípios de homeostase, que reside a principal contribuição da psicanálise para o campo da saúde mental.

Ressonâncias clínicas

Como era de se esperar, o oferecimento pelo CAPS de um tratamento direcionado a um ideal de inclusão do louco produz não só consequências políticas, como também clínicas. Aliás, como já indicado no início deste artigo, a inclusão apresenta-se como um ideal de cura e, nesse sentido, pode acabar por ocupar o lugar de uma clínica possível. Há, nessa perspectiva, uma confusão entre política de saúde mental e clínica no CAPS, tendo como efeito a redução do tratamento a uma política de incentivo à cidadania. Como nos diria Quinet (2015Quinet, A. (2015). Saúde mental e psicanálise: os foracluídos na cidade dos discursos. A peste, 7(2), 103-128.), o furor curandis, já criticado por Freud (2010bFreud, S. (2010b). Observações sobre o amor de transferência. In: S. Freud. Obras completas (Vol. 10, p. 159-172). São Paul, SP: Companhia das Letras. Original publicado em 1915.), é substituído na política de saúde mental brasileira por um furor includenti. Ironicamente, tal confusão implica na dissociação entre clínica e política. Em outros termos: a confusão indica, paradoxalmente, rompimento. Ora, foi percebendo um rompimento desse tipo - principalmente no que se referia à escola americana de psicanálise conhecida como Psicologia do Ego - que Lacan (1998bLacan, J. (1998b). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In J. Lacan. Escritos (p. 591-652). Rio de Janeiro, RJ: Zahar . Obra original publicada em 1958.) não se furtou de refletir sobre os princípios de poder envolvidos no processo analítico, afinal, a posição do analista não é dissociada de uma política que se expressa na clínica enquanto ‘estratégia’ de manejo transferencial e ‘tática’ de intervenção.

Aqui, vale comentar que quando falamos em dissociação entre clínica e política, não estamos, de modo algum, afirmando não haver intervenções de caráter clínico nos CAPS. Um exemplo de técnica interventiva desse tipo se apresenta no ‘Projeto Terapêutico Individual’, que deve considerar a pergunta sobre o que é possível e desejável obter deste paciente no decorrer do tratamento (Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais, 2006Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. (2006). Linha guia de atenção em saúde mental. Belo Horizonte, MG.). Nesse sentido, nossa crítica busca incidir sobre o pressuposto ético (e suas ressonâncias políticas, clínicas e metapsicológicas) que embasa tais intervenções e que pode, porventura, atentar contra a soberania do sujeito em nome de certa logística social.

Nisso, percebe-se que nossa análise continua girando em torno do ideal de inclusão, isto é, em torno de seu representante metapsicológico, o ideal do Eu (isso será desenvolvido e aprofundado teoricamente adiante). Porém, aqui há uma especificidade que não deve ser ignorada: a de que o CAPS enquanto serviço substitutivo ao hospital psiquiátrico acolhe, de uma maneira geral, sujeitos psicóticos - reiterando que não estamos nos referindo ao CAPS AD (álcool e outras drogas), nem ao CAPS I (infantil). Vejamos, então, as ressonâncias clínicas do ideal de inclusão, haja vista a peculiaridade da clínica e da metapsicologia da psicose.

Neste ponto, é necessário que façamos uma breve incursão pela clínica da psicose, mais especificamente, no que diz respeito à relação com a alteridade e, consequentemente, à constituição do sujeito psicótico frente a ela. Basicamente, no que diz respeito à peculiar incidência do Supereu na psicose, comparada à neurose.

Comecemos, porém, pelo conceito de ideal do Eu, para então pensá-lo a partir da psicose. Freud (2010aFreud, S. (2010a). Introdução ao narcisismo. In S. Freud. Obras completas(Vol. 12, p. 13-50). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Original publicado em 1914., 2011bFreud, S. (2010b). Observações sobre o amor de transferência. In: S. Freud. Obras completas (Vol. 10, p. 159-172). São Paul, SP: Companhia das Letras. Original publicado em 1915.) postula três termos distintos no que tange à teorização do Supereu, termos estes que são apresentados de maneira um tanto confusa, ora indicando que há uma distinção entre eles, ora denotando uma mesma categoria, quais sejam: Supereu; ideal do Eu e Eu ideal. Com Lacan, tais termos passam a se diferenciar de maneira precisa, de modo que

[...] eu ideal designa a autoimagem idealizada do sujeito (a maneira como eu gostaria de ser, a maneira como eu gostaria que os outros me vissem); ideal do eu é a agência cujo olhar eu tento impressionar com minha imagem do eu, o grande Outro que me vigia e me impele a dar o melhor de mim, o ideal que tento seguir e realizar; e supereu é essa mesma agência em seu aspecto vingativo, sádico, punitivo. O princípio estruturante subjacente a esses três termos é claramente a tríade de Lacan imaginário-simbólico-real: o eu ideal é imaginário, o que Lacan chama de o pequeno outro, a imagem especular idealizada de meu eu; o ideal do eu é simbólico, o ponto de minha identificação simbólica, o ponto no grande Outro a partir do qual eu observo (e julgo) a mim mesmo; o supereu é real, a agência cruel e insaciável que me bombardeia com exigências impossíveis e depois zomba de minhas tentativas canhestras de satisfazê-las (Zizek, 2010Zizek, S. (2010). Como ler Lacan. Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 99-100).

É justamente neste ponto que as coisas começam a se complicar, pois, conforme demonstraremos em seguida, o estatuto do Supereu na psicose não é tão claro. É importante lembrarmos que Freud (2011bFreud, S.. (2011b). O eu e o id. In: S. Freud. Obras completas (Vol. 16, p. 9-64). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Original publicado em 1923., p. 33), ao sistematizar o conceito de Supereu, afirma ser ele “[...] herdeiro do complexo de Édipo”. Ora, mas a psicose, nos explica Lacan (1988Lacan, J. (1988). O seminário, livro 3: as psicoses (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Original proferido em1955-1956.), configura-se como um posicionamento subjetivo marcado justamente pela não travessia do Édipo a partir da negação radical da castração, expressa no mecanismo da foraclusão (Verwerfung). O que isso quer dizer - tendo em vista que a instância moral que viria a desembocar no conceito de Supereu, como nos diz Freud (2010a), condiciona e exige o recalque (Verdrängung), mecanismo de defesa próprio à neurose em contraposição à foraclusão? De modo algum quer dizer que não haja Supereu na psicose, mas que sua incidência é peculiar.

O ideal do Eu, como podemos ver, remete a uma instância moral e normativa por excelência, instância constituída através da identificação simbólica que, como nos mostra Zizek (1992Zizek, S. (1992). Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.), se dá com a incidência do ponto de basta na cadeia significante. Ora, para Lacan (1988Lacan, J. (1988). O seminário, livro 3: as psicoses (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Original proferido em1955-1956.), o que é foracluído na psicose é justamente o significante que se apresenta como ponto de basta, que, no caso da neurose, enlaça significante e significado e impede, assim, que o deslizamento metonímico da cadeia significante seja incessante. Esse significante primordial ele cunhou de Nome-do-Pai, pois surge pela identificação com a função paterna enquanto lei simbólica. Desse modo, podemos dizer que o ideal do Eu, enquanto produto da introjeção da figura paterna, seria da ordem desse Supereu que Freud (2011bFreud, S.. (2011b). O eu e o id. In: S. Freud. Obras completas (Vol. 16, p. 9-64). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Original publicado em 1923.) afirma ser herdeiro do complexo de Édipo. Nesse sentido, ele estaria, a princípio, ausente na psicose - como nos diz Calligaris (2013Calligaris, C. (2013). Introdução a uma clínica diferencial das psicoses (2a ed.). São Paulo, SP: Zagodoni.), na psicose o Pai encontra-se no real, visto que não é simbolizado.

Ao falarmos que o CAPS, apregoando um ideal de inclusão, identifica-se com o ideal do Eu, estamos demonstrando, metapsicologicamente, o que alguns autores - como Calligaris (2013Calligaris, C. (2013). Introdução a uma clínica diferencial das psicoses (2a ed.). São Paulo, SP: Zagodoni.) e Dunker e Kyrillos Neto (2015Dunker, C. I. L., & Kyrillos Neto, F. (2015). Psicanálise e saúde mental. Porto Alegre, RS: Criação Humana. ) - atentam como sendo uma tentativa de ‘neurotização’ do psicótico na reforma psiquiátrica. Assim, o ideal de inclusão aparece ao psicótico como um imperativo impossível. Resta saber, enfim, quais são as ressonâncias clínicas desse posicionamento superegóico da instituição.

Acreditamos poder pensar em duas ressonâncias clínicas importantes e, para isso, a distinção entre os três termos propostos por Freud na teorização da psicose nos será cara. Isso porque, no impasse enfrentado pelo psicótico em se haver com o termo ‘simbólico’ (o ideal do Eu, o Outro representante da Lei), a incidência do imperativo de inclusão se dará através dos outros dois termos: seja pela via da instância ‘real’ do Supereu terrível e sádico; seja através da instância ‘imaginária’ do Eu ideal enquanto autoimagem idealizada do Eu. Ora, é difícil não ver em tais ressonâncias, respectivamente, dois dos tipos clínicos da estrutura psicótica: a esquizofrenia e a paranoia. Vejamos isso de maneira mais detida.

Na primeira consequência clínica, referente à esquizofrenia, o CAPS se apresenta ao psicótico como um Outro absoluto e gozador que, como tal, goza do sujeito. Isso porque, como nos lembra Lacan (1998aLacan, J. (1998a). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: JLacan. Escritos (p. 537-590). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Original publicado em 1957-1958., p. 564), na psicose, “[...] no ponto em que [...] é chamado o Nome-do-Pai, pode pois responder no Outro um puro e simples furo [...]”, o que acaba por acarretar no desencadeamento da crise psicótica, levando ao que Lacan (1988Lacan, J. (1988). O seminário, livro 3: as psicoses (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Original proferido em1955-1956., p. 59, grifo do autor) denomina de dissolução imaginária. Nesse caso, o célebre aforismo lacaniano de que “[...] ‘o que foi rejeitado no simbólico reaparece no real’ [...]” tem a sua expressão clínica, pois a não simbolização da castração do Outro implica em seu retorno no real da alucinação enquanto figura absoluta, enquanto Outro não barrado. Aqui, a relação do sujeito ao significante, como nos mostra Quinet (2015Quinet, A. (2015). Saúde mental e psicanálise: os foracluídos na cidade dos discursos. A peste, 7(2), 103-128.), é marcada pelo mecanismo de ‘dispersão’ esquizofrênica, que, como o próprio nome já indica, implica em fragmentação, isto é, um radical desmantelamento da realidade do sujeito, desde o seu corpo até o mundo externo. Tudo perde a consistência imaginária e o sujeito se vê em uma completa falta de sentido.

Já a paranoia é caracterizada pela ‘retenção’ (Verhaltung9 9 Verhaltung não é um termo, em si, psicanalítico, e sim um conceito utilizado por Lacan em sua tese de doutorado e tomado do psiquiatra alemão Ernst Kretschmer (Quinet, 2015). ). Assim, de maneira inversa, o que ocorre é uma excessiva consistência imaginária, em que tudo ganha um sentido autorreferente. Se na esquizofrenia há esquize, cisão radical; na paranoia há ilusão de unidade e onipotência (Quinet, 2015Quinet, A. (2015). Saúde mental e psicanálise: os foracluídos na cidade dos discursos. A peste, 7(2), 103-128.). Assim sendo, a segunda consequência clínica se refere à incidência da ideologia da reforma haja vista a especificidade da subjetividade psicótica. Isso porque o psicótico tenderia a aceitar incondicionalmente o saber ideológico oferecido pela instituição. Nessa situação, ocorre que, ao sujeito marcado pela falta de um significante primordial (S1) - falta decorrente do mecanismo de foraclusão - é oferecido um S1 representante dos significantes caros à instituição (Dunker & Kyrillos Neto, 2015Dunker, C. I. L., & Kyrillos Neto, F. (2015). Psicanálise e saúde mental. Porto Alegre, RS: Criação Humana. ). Ora, como vimos com Quinet, o mecanismo de retenção paranoica é caracterizado, justamente, por implicar na fixação do sujeito a um significante (mestre) ideal que o determina.

Aliás, tal mecanismo acaba por ser homólogo ao processo de interpelação ideológica, tal como proposto por Althusser (1996Althusser, L. (1996). Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado: notas para uma investigação). In S. Zizek (Org.), Um mapa da ideologia (p. 105-142). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. Original publicado em 1970.). Aqui, vale um rápido desvio de rota, para que entendamos a consonância do conceito do filósofo marxista com a metapsicologia psicanalítica. A interpelação ideológica e, consequentemente, a noção de Aparelhos Ideológicos de Estado são postulados por Althusser na busca de repensar o conceito de ideologia em sua raiz material, em contraposição ao que ele denominava de esquema idealista, predominante na análise da ideologia. Assim, o autor inverte a vulgata de que ‘ideias inspiram atos’, propondo que a ideologia deveria ser pensada em seu caráter material, enquanto ideias vinculadas a atos materiais, derivados de práticas materiais, organizadas por rituais materiais que, como tais, seriam determinados por um aparelho ideológico material. Disso se deduz o axioma de que “[...] a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos” (Althusser, 1996Althusser, L. (1996). Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado: notas para uma investigação). In S. Zizek (Org.), Um mapa da ideologia (p. 105-142). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. Original publicado em 1970., p. 131), de modo que o sujeito seria sujeitado, constituído por um aparelho ideológico. Assim, partindo da perspectiva lacaniana da relação imaginária, Althusser propõe que o sujeito, através da interpelação, se constituiria especularmente frente a um Outro Sujeito Absoluto. Por exemplo: “[...] só pode haver tal multidão de possíveis sujeitos religiosos sob a condição absoluta de que haja um Outro Sujeito Absoluto, Único, isto é, Deus” (Althusser, 1996Althusser, L. (1996). Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado: notas para uma investigação). In S. Zizek (Org.), Um mapa da ideologia (p. 105-142). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. Original publicado em 1970., p. 136).

Ora, não é justamente isso o que é proposto em Psicologia das massas e análise do eu (Freud, 2011aFreud, S. (2011a). Psicologia das massas e análise do eu. In: S. Freud. Obras completas (Vol. 15, p. 9-100). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Original publicado em 1921.) como o ponto crucial para a constituição de uma massa a partir da figura de seu líder enquanto ideal do Eu dos sujeitos que a compõem? E, como nos mostra Zizek (1992Zizek, S. (1992). Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.) em sua leitura política da constituição do sujeito em Lacan (para ser mais exato, do grafo do desejo), a teoria da ideologia althusseriana se inscreveria justamente no ponto em que se dá o surgimento do ideal do Eu via identificação simbólica - momento este que ele denomina de basteamento ideológico.

Fica evidente, agora, a homologia entre a retenção paranoica e a interpelação ideológica, pois em ambos os casos, com a injunção vinda de um Outro absoluto e consistente, o sujeito acaba por se fixar ao significante mestre por ele oferecido, o que implica em uma completa e imediata identificação com a imagem especular (o Eu ideal). O paranoico, nesse sentido, é

[...] quem acredita em sua identidade imediata consigo mesmo, quem não é capaz de um distanciamento dialeticamente mediado de si mesmo, como um rei que pensa ser rei, que toma seu ser-rei por uma propriedade imediata, e não por um mandato simbólico que lhe é imposto por uma rede de relações intersubjetivas da qual ele faz parte (Zizek, 1996bZizek, S. (1996b). Como Marx inventou o sintoma? In S. Zizek(Org.), Um mapa da ideologia (p. 297-331). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto., p. 323).

Voltando, assim, para a nossa questão central, podemos dizer que a identificação do CAPS com o ideal do Eu, ao apregoar um ideal de inclusão, implica nas duas ressonâncias clínicas comentadas: ou o psicótico se vê frente a um Outro gozador (esquizofrenia), ou ele se defronta com um Outro interpelador (paranoia). Uma saída possível diante deste cenário seria o manejo transferencial - afinal, estamos tratando aqui da relação do psicótico com a alteridade -, por parte do trabalhador de saúde mental, em que ele evite se colocar numa posição intervencionista, superegóica, dando espaço para que o sujeito constitua seu processo de cura através de sua própria produção subjetiva. Em suma, a estratégia clínica sugerida por Lacan no Seminário 3 (1988Lacan, J. (1988). O seminário, livro 3: as psicoses (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Original proferido em1955-1956.), de que os analistas sejam ‘secretários do alienado’.

Aqui, a importância política da clínica psicanalítica pode ser mais uma vez ressaltada, pois manejar a transferência possibilita a percepção desta dimensão que, como nos lembra Zizek (1996bZizek, S. (1996b). Como Marx inventou o sintoma? In S. Zizek(Org.), Um mapa da ideologia (p. 297-331). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto., p. 322), está para além da interpelação, em que vemos que o Outro, longe de ser consistente, é barrado e faltante.

Essa é a dimensão desconsiderada na explicação althusseriana da interpelação: antes de ser captado na identificação, no reconhecimento/desconhecimento simbólico, o sujeito ($) é captado pelo Outro através de um paradoxal objeto-causa do desejo em meio a isso, (a), mediante o segredo supostamente oculto no Outro: $ <> a - a fórmula lacaniana da fantasia.

Essa dimensão para além da interpelação ideológica e que pressupõe a travessia da fantasia social (espécie de horizonte final de análise) é o que nos permite pensar que o sujeito não é o simples reflexo de normas sociais, que ele não é completamente determinado por um grande Outro institucional, como nos faz crer o ‘sujeito sujeitado’ de Althusser.

Isto é, tal dimensão subjetiva para além da interpelação ideológica - seja qual interpelação for: a que reduz o sujeito ao estigma da loucura, a que o reduz a um código diagnóstico, ou mesmo a um cidadão - é constatada a partir da clínica. Por isso advogamos que o CAPS não pode prescindir da clínica enquanto operador ético de escuta, independente da modalidade técnica de intervenção: seja o acompanhamento terapêutico, o trabalho psicológico grupal, as oficinas, o acolhimento, entre outras.

Considerações finais: a escuta do sujeito psicótico entre a clínica e a política

Jacques Lacan (1998aLacan, J. (1998a). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: JLacan. Escritos (p. 537-590). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Original publicado em 1957-1958.) deixa claro que a questão preliminar para todo tratamento possível da psicose deve partir da assunção de que esta é marcada pelo mecanismo da foraclusão (na seção anterior vimos os riscos de se ignorar esse princípio) e que implica, enfim, na profunda singularidade que caracteriza tal experiência humana. O interessante é que, apesar da originalidade da elaboração teórica do psicanalista francês - que provocou transformações consideráveis no campo psicanalítico -, a premissa de sua proposta clínica para a psicose acaba por se expressar numa fórmula simples: “[...] convém escutar aquele que fala” (Lacan, 1998aLacan, J. (1998a). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: JLacan. Escritos (p. 537-590). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Original publicado em 1957-1958., p. 581), é a sua recomendação. E se pensarmos no histórico de silenciamento da loucura em nossa sociedade, a sutil sugestão de Lacan aparece de maneira ainda mais potente. Afinal, escutar apresenta-se, nesse caso, como um ato, ao mesmo tempo, clínico e político.

E no que tange a essa escuta, Lacan (1988Lacan, J. (1988). O seminário, livro 3: as psicoses (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Original proferido em1955-1956.), como já comentamos, faz do que antes era uma injúria direcionada aos alienistas impotentes diante dos alienados, uma estratégia clínica: secretariar o louco no que ele tem a testemunhar de sua existência, isto é, de sua singular relação com a linguagem e com o gozo. É nesse sentido que acreditamos que as formas de estabilização da psicose propostas por Lacan, que passam pela clínica e que valorizam e destacam a produção autônoma do sujeito, configuram-se como contraponto a qualquer terapêutica normativa que idealize uma cura (e, nesse sentido, uma norma a ser seguida) para o louco.

Faz-se importante afirmar, neste ponto, a riqueza que a manutenção do sujeito em seu meio de pertença - possibilitada pelo movimento da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial no Brasil - traz para a clínica da psicose. Se antes a clínica enquanto acolhimento da loucura através de um operador de escuta era impraticável, tendo em vista o contexto opressor e violento do hospital psiquiátrico, hoje, diante das mudanças ocorridas na saúde mental brasileira, nos é permitido pensar em uma clínica possível para o CAPS, visto que os sujeitos psicóticos estão em contato com a alteridade, contato este possibilitado por sua circulação no laço social.

Não é a toa que disso surja, no Brasil, essa prática político-clínica tão cara ao campo da saúde mental denominada de ‘clínica ampliada’ (Figueiredo, 2017Figueiredo, A. C. (2017). A clínica ampliada. In C. E. Lang, J. S. Bernardes, M. A. T. Ribeiro & S. V. Zanotti (Orgs.), Clínicas: pesquisas em saúde, psicanálise e práticas psicológicas (p. 33-56). Maceió, CE: Edufal/Ufal.)10 10 Dada a importância da clínica ampliada como prática no campo da saúde mental, optamos por fazer uma referência a ela, ainda que seja impossível aprofundarmos as diretrizes desta proposta no escopo deste artigo, que tem tão somente a pretensão de proceder a uma discussão teórica tendo em vista questões políticas, clínicas, metapsicológicas e éticas no campo da saúde mental. . E no que se refere a uma político-clínica, a recomendação lacaniana de que sejamos secretários do louco, ao inverter o lugar de intervenção que passa para o lado do analisante, permite ao analista evitar ocupar um lugar de poder sobre o sujeito. E não foi esse, como demonstramos, o grande objetivo da reforma: romper radicalmente com a posição de alienação (derivada do ambiente asilar) a qual o louco se encontrava diante dos médicos detentores do poder? Além disso, tal recomendação é de suma importância no que diz respeito ao manejo da transferência com o psicótico que, como vimos, tende a esperar do Outro (por vezes, visto como absoluto) uma intervenção determinante (para não dizer interpeladora). Em outras palavras, a recomendação de Lacan previne a instância de tratamento de se enredar em uma tentativa de adequação do louco aos valores sociais vigentes (a inclusão a todo custo pode facilmente converter-se nisso). Pois, como ele nos diz:

Que essa psicose revele-se compatível com a chamada boa ordem é coisa de que não se duvida, mas tampouco é o que autoriza o psiquiatra, ainda que psicanalista, a se fiar em sua própria compatibilidade com essa ordem para se acreditar de posse de uma ideia adequada da ‘realidade’, da qual seu paciente se mostraria discrepante (Lacan, 1998aLacan, J. (1998a). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: JLacan. Escritos (p. 537-590). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Original publicado em 1957-1958., p. 583, grifo do autor).

Ademais, vale comentar que, ao indicarmos as ressonâncias político-clínicas do ideal de inclusão no CAPS, acabamos por indicar também, em certa medida, as possibilidades do que denominamos de uma político-clínica - uma política atenta à clínica e, inversamente, uma clínica atenta à política. Tais possibilidades passam, como já comentamos, pelo acolhimento do que é da ordem do mal-estar, do antagonismo e, que nesse sentido, além de constituir-se como uma crítica da ideologia - ao ir na contramão do velamento ideológico do antagonismo social -, acaba por acolher a loucura em sua faceta de irredutibilidade fundamental ao laço social (o que faz dela uma das representantes por excelência do mal-estar do coletivo).

É por tudo isso que afirmamos já ser a sugestão clínica feita por Lacan no Seminário 3 (1988Lacan, J. (1988). O seminário, livro 3: as psicoses (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Original proferido em1955-1956.) um operador ético-político - apesar de ele só vir a elaborar uma ética da psicanálise de maneira mais sistemática três anos mais tarde, no Seminário 7 (2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Original proferido em1959-1960.). Assim, ser secretário do louco é uma maneira do analista não se conformar a isso que Lacan (2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Original proferido em1959-1960.) denominou de ‘serviço dos bens’11 11 Lacan (2008, p. 368) aproxima o serviço dos bens de uma moral fundada “[...] inteiramente numa ordem certamente arrumada, ideal [...]”, isto é, uma “[...] moral do mestre, feita para as virtudes do mestre, e vinculada a uma ordem dos poderes”. , não se conformar, enfim, em ser um ideal a ser seguido pelo analisante. Pois, se o ideal do Eu é definido por Lacan (2008, p. 279), nesse seminário, como “[...] representando o poder de fazer o bem [...]”, o ideal de inclusão o qual criticamos no CAPS pode ser resumido em sua fala irônica: “O que quero é o bem dos outros, contanto que permaneça à imagem do meu” (Lacan, 2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Original proferido em1959-1960., p. 224).

Nesse sentido, ao fazer uma crítica ao tratamento que parte de um ideal positivamente determinado; ao apostar na clínica enquanto possibilitadora de manifestação subjetiva e emancipação política (já que implica em um para além das ideologias e ideais que nos constrangem); e vislumbrar na escuta um operador político-clínico, buscamos asseverar o que diz Lacan (1998bLacan, J. (1998b). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In J. Lacan. Escritos (p. 591-652). Rio de Janeiro, RJ: Zahar . Obra original publicada em 1958.) ao afirmar que o psicanalista deve dirigir o tratamento, mas de modo algum o paciente.

Assim, concluímos o presente ensaio na esperança de que a partir da discussão empreendida seja possível pelo menos vislumbrar o que viria a ser uma questão preliminar de uma político-clínica possível para o CAPS. Afinal, ser secretário do louco implica, em última análise, no que Lacan (1998bLacan, J. (1998b). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In J. Lacan. Escritos (p. 591-652). Rio de Janeiro, RJ: Zahar . Obra original publicada em 1958., 2010Lacan, J. (2008). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Original proferido em1959-1960.) propõe que seja a posição do analista por excelência: não só uma posição ocupada diante do trabalho do sujeito, mas um empréstimo subjetivo, empréstimo radical do próprio corpo. Posição que prevê uma espécie de dessubjetivação, um luto de si mesmo que, ao desvelar a inconsistência do grande Outro - acolhendo, portanto, o mal-estar, o antagonismo -, possibilita que a loucura enquanto subjetividade seja posta enfim em questão.

Referências

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  • 1
    O presente ensaio é um desdobramento da pesquisa de mestrado intitulada Psicose e CAPS: entre a metapsicologia, a clínica e a política.
  • 2
    Apoio e financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).
  • 5
    Sobre isso, ver Basaglia (1985) e Dunker e Kyrillos Neto (2015).
  • 6
    O que estamos indicando é uma semelhança e não, necessariamente, uma referência direta de Basaglia a Georg Lukács. Aliás, nos textos basaglianos utilizados neste ensaio, a única referência direta, ainda que sutil, a um teórico marxista (além, é claro, do próprio Marx) é a seu conterrâneo Antonio Gramsci. Acreditamos que tal escassez de referências teóricas diretas no texto de Basaglia é indicativa de que seu principal objetivo era prático e não ‘acadêmico’.
  • 7
    Vale comentar que Zizek (2017, p. 263-264, grifo do autor) ‘importa’ o conceito de antagonismo social de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Como ele nos diz: “[...] o campo sociossimbólico é concebido como um campo estruturado em torno de determinada impossibilidade traumática, de determinada fissura que ‘não pode’ ser simbolizada. Em suma, Laclau e Mouffe reinventaram, por assim dizer, a noção lacaniana do Real como impossível, eles a tornaram útil como ferramenta para análise social e ideológica”.
  • 8
    Em se tratando de psicanálise lacaniana, o conceito de grande Outro é central e repleto de ressonâncias teóricas. No que concerne a este artigo, uma forma interessante de compreendê-lo é partir da seguinte definição presente no Dicionário de psicanálise: “[...] o sujeito é determinado, segundo Lacan, por uma ordem simbólica designada como ‘lugar do Outro’ e perfeitamente distinta do que é ‘do âmbito de uma relação com o outro’” (Roudinesco & Plon, 1998,Roudinesco, E., & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de janeiro, RJ: Zahar. p. 559, grifo do autor). Porém, há um ponto em que o sujeito não se conforma completamente a essa ordem simbólica, ponto em que ela não consegue determiná-lo por completo, e este ponto se expressa no fato de tal ordem, isto é, do Outro ser inconsistente.
  • 9
    Verhaltung não é um termo, em si, psicanalítico, e sim um conceito utilizado por Lacan em sua tese de doutorado e tomado do psiquiatra alemão Ernst Kretschmer (Quinet, 2015).
  • 10
    Dada a importância da clínica ampliada como prática no campo da saúde mental, optamos por fazer uma referência a ela, ainda que seja impossível aprofundarmos as diretrizes desta proposta no escopo deste artigo, que tem tão somente a pretensão de proceder a uma discussão teórica tendo em vista questões políticas, clínicas, metapsicológicas e éticas no campo da saúde mental.
  • 11
    Lacan (2008, p. 368) aproxima o serviço dos bens de uma moral fundada “[...] inteiramente numa ordem certamente arrumada, ideal [...]”, isto é, uma “[...] moral do mestre, feita para as virtudes do mestre, e vinculada a uma ordem dos poderes”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    08 Out 2018
  • Aceito
    14 Maio 2019
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