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PSICÓLOGAS NOS SERVIÇOS ESPECIALIZADOS DE ATENDIMENTO ÀS MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA1 1 Apoio e financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).

PSICÓLOGAS EN LOS SERVICIOS DE ATENCIÓN ESPECIALIZADOS A LAS MUJERES EN SITUACIÓN DE VIOLENCIA

RESUMO.

Buscou-se mapear a presença e atuação de psicólogas em serviços especializados no atendimento a mulheres em situação de violência. Foi empregada a abordagem qualitativa exploratória descritiva. Os dados foram coletados via questionário on-line respondido por 30 psicólogas que atuam na rede especializada de atendimento a mulheres em situação de violência da Bahia e por meio de observação participante registrada em caderno de campo da pesquisadora. Destacaram-se as condições de trabalho, ressaltando a alta rotatividade de profissionais nos serviços, vínculos empregatícios frágeis e falta de estrutura apropriada para execução do trabalho; afetando as possibilidades de encaminhamento dessas mulheres a outros serviços, denotando as dificuldades pontuadas pelas profissionais em dar prosseguimento aos atendimentos, muitas vezes por falta de qualificação adequada para lidar com este contexto. Os principais desafios encontrados nessa atuação abrangeram a dificuldade de entendimento das profissionais sobre a política. Outros obstáculos de funcionamento da rede apontam para a falta de retorno dos encaminhamentos, a interrupção dos acompanhamentos em outros serviços, a má qualidade dos equipamentos e a revitimização das mulheres. Estas profissionais necessitam de maior aproximação do Movimento de Mulheres, além da reflexão sobre seu compromisso ético-político na desconstrução de desigualdades e garantias de direitos às usuárias de seus serviços.

Palavras-chave:
Violência contra as mulheres; psicologia; prática profissional

RESUMEN.

Se buscó mapear la presencia y actuación de psicólogas en servicios especializados en la atención a mujeres en situación de violencia. Se utilizó el enfoque cualitativo exploratorio descriptivo. Los datos fueron recolectados por intermedio de un cuestionario en línea respondido por 30 psicólogas que trabajan en la red de atención especializada para mujeres en situaciones de violencia en Bahía y mediante observación participante registrada en el cuaderno de campo del investigador. Se destacaron las condiciones de trabajo, resaltando la alta rotación de profesionales en los servicios, vínculos laborales frágiles y falta de estructura apropiada para la ejecución del trabajo; afectando las posibilidades de encaminamiento de esas mujeres a otros servicios, denotando las dificultades puntuadas por los profesionales en dar proseguimiento a las atenciones, muchas veces por falta de cualificación adecuada para lidiar con este contexto. Los principales desafíos encontrados en esta actuación abarcar la dificultad de entendimiento de los profesionales sobre la política. Otros obstáculos de funcionamiento de la red apuntan a la falta de retorno de los encaminamientos, la interrupción de los acompañamientos en otros servicios, la mala calidad de los equipos y la revictimización de las mujeres. Estas profesionales necesitan una mayor aproximación del Movimiento de Mujeres, además de una reflexión sobre su compromiso ético-político en la deconstrucción de desigualdades y garantías de derechos a las usuarias de sus servicios.

Palabras clave:
Violencia contra las mujeres; psicología; práctica profesional

ABSTRACT.

This study sought to map the presence and performance of psychologists in specialized care services for women victims of violence. This was a descriptive exploratory qualitative study. Data were collected via an online questionnaire completed by 30 psychologists attending in the specialized service network for women victims of violence in the State of Bahia and by means of participant observation transcribed in the researcher’s field notebook. The work conditions comprised the high turnover of professionals in services, weak employment contracts and lack of structure suitable for the work affect the chances of referring the victims to other services, denoting the difficulties indicated by the professional in continuing the care, often due to the lack of proper qualification to deal with this context. The main challenges found in this practice encompass the difficulty of professionals to understand the policy. Other obstacles to the well-functioning of the network point to the lack of feedback referral, the interruption of follow-up in other services, the poor quality of equipment and the subsequent victimization of women. These professionals need to get closer to the Women’s Movement and reflect on their ethical-political commitment in deconstructing inequalities and guaranteeing rights to users of their services.

Keywords:
Violence against women; psychology; professional practice

Introdução

A violência contra as mulheres promove diversos agravos à vida e à saúde da mulher podendo levá-la à morte: as taxas de feminicídio no Brasil hoje atingem uma média de 13 casos por dia (Instituto de Pesquisa Aplicada [IPEA] e Fórum Brasileiro de Segurança Pública [FBSP], 2019Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA] & Fórum Brasileiro de Segurança Pública [FBSP]. (2019). Atlas da violência 2019. Brasília: Rio de Janeiro, RJ.). Em muitos contextos o sofrimento é tão intenso que as mulheres chegam ao suicídio ou a comportamentos autolesivos. Ademais a situação de violência atinge a toda família e coloca em risco, sobretudo, sua prole (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2012bConselho Federal de Psicologia [CFP]. (2012b). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) em Programas de Atenção à Mulher em Situação de Violência. Brasília:CFP.).

Muitas mulheres são afetadas todos os dias pela violência. De acordo com o Atlas da violência 2019, 4.936 foram assassinadas só em 2017, o maior número já registrado desde 2007. Foram mortas 39,3% dentro de casa, havendo aumento de 29,8% da taxa de feminicídio dentro das residências com o uso de arma de fogo (IPEA & FBSP, 2019Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA] & Fórum Brasileiro de Segurança Pública [FBSP]. (2019). Atlas da violência 2019. Brasília: Rio de Janeiro, RJ.).

Estes dados estão diretamente relacionados a uma estrutura social patriarcal que constitui relações de poder hierarquicamente organizadas a partir das diferenças entre os sexos, e concede ao homem o domínio das relações, naturalizando processos de violência e objetificação das mulheres (Lucena et al., 2016Lucena, K. D. T., Deininger, L. S. C., Coelho, H. F. C., Monteiro, A. C. C., Vianna, R. P. T., & Nascimento, J. A. (2016). Análise do ciclo da violência doméstica contra a mulher. Journal of Human Growth and Development, 2(26). Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S010412822016000200003&script=sci_arttext&tlng=pt
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). Neste contexto, a categoria de gênero permeia todas as formas de poder, observa-se a exclusão das mulheres do funcionamento social, limitando-as às funções domésticas e entendendo-as como de menor importância. A violência aparece aí como uma estratégia relevante de manutenção da estrutura patriarcal (Neves & Nogueira, 2003Neves, S. & Nogueira, C. (2003). A psicologia feminista e a violência contra as mulheres na intimidade: a (re)construção dos espaços terapêuticos. Revista Psicologia & Sociedade, 2(15). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010271822003000200004&lng=en&nrm=iso&tlng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
; Narvaz & Koller, 2007Narvaz, M. G., & Koller, S. H. (2007). Feminismo e terapia: a terapia feminista da família - por uma psicologia comprometida. Psicologia Clínica, 2(19). Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652007000200009
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). Isso denota o quanto as divisões de gênero possuem efeitos de relação de poder que produzem violência contra as mulheres em diversas esferas: doméstica, institucional, psicológica, física, moral, patrimonial, racial e sexual. Dentre estas, a violência doméstica e intrafamiliar é hoje uma causa importante de morte de mulheres em todo o mundo, sobretudo, no Brasil (IPEA & FBSP, 2019; Lei nº 11.340Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006. (2006, 07 de agosto). Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília, DF: Presidência da República . Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm.
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, 2006Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006. (2006, 07 de agosto). Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília, DF: Presidência da República . Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm.
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).

Dentro da realidade supramencionada, observa-se que inúmeras ações, equipamentos e dispositivos têm sido criados desde a década de 1970 com intuito de produzir políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres. Essas políticas indicam a criação de equipamentos especializados e o fortalecimento dos serviços de atendimento às mulheres em situação de violência, para ampliar as estratégias e ações de enfrentamento a este contexto. Assim, é necessário que haja a constituição e a qualificação de equipes multiprofissionais, que incluem psicólogas, para a efetivação desses serviços.

A psicologia é convocada a estar nesse contexto propondo-se em atuar no empoderamento dessas mulheres sob a ótica de que este fenômeno está ligado ao sofrimento produzido pelas estruturas de poder constituídas socialmente antes que pela patologização da condição feminina. Busca-se, assim, desconstruir padrões estereotipados e discriminatórios e propor o engendramento de uma realidade individual e social para estas mulheres que preserve os seus direitos e a sua integridade (Neves & Nogueira, 2003Neves, S. & Nogueira, C. (2003). A psicologia feminista e a violência contra as mulheres na intimidade: a (re)construção dos espaços terapêuticos. Revista Psicologia & Sociedade, 2(15). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010271822003000200004&lng=en&nrm=iso&tlng=pt
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).

As psicólogas4 4 As autoras optaram por usar a linguagem no feminino, por constatar que a maioria da categoria é composta por mulheres (89%), bem como a maioria das participantes do presente estudo. têm sido cada vez mais demandadas nos serviços da rede de atendimento à violência doméstica, com as mais diversas configurações. Isso tem ocorrido, pois embora seu trabalho ainda seja visto como estritamente terapêutico e individual, a psicóloga atua no contexto de violência como facilitadora de mudanças subjetivas que promovem autonomia e, consequentemente, possibilidades de superação e transformação (Secretaria de Política para as Mulheres, 2011Secretaria de Política para as Mulheres(2011). Rede de enfrentamento à violência contra as mulheres. Brasília, DF.).

Nesse sentido, esta pesquisa tem por objetivo mapear a presença e atuação de psicólogas em serviços especializados no atendimento a mulheres em situação de violência, porque têm surgido muitas questões referentes à prática profissional de psicologia no enfrentamento à violência contra as mulheres, tais como o embasamento teórico-metodológico utilizado, as condições de trabalho, as possibilidades de encaminhamento, de funcionamento da rede e as dificuldades encontradas. É importante que as psicólogas entendam como se inserir nesses serviços, de modo a contribuir de maneira efetiva para o fortalecimento das políticas públicas de defesa dos direitos das mulheres.

Portanto, sua atuação profissional deve se embasar no fortalecimento do protagonismo das mulheres, reconhecendo o trabalho da equipe multiprofissional (CFP, 2012bConselho Federal de Psicologia [CFP]. (2012b). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) em Programas de Atenção à Mulher em Situação de Violência. Brasília:CFP.), que organiza sua prática de acordo com as técnicas que instrumentalizam cada fazer e que são próprias de seus campos de atuação (Hanada, D’Oliveira, & Schraiber, 2010Hanada, H., D’Oliveira, A. F. P. L., & Schraiber, L. B. (2010). Os psicólogos na rede de assistência a mulheres em situação de violência. Revista Estudos Feministas, 1(18). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2010000100003
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).

Método

Trata-se de um estudo qualitativo, exploratório, descritivo de frequência, no qual foram utilizados recursos quantitativos por meio de questionário on-line e qualitativos por meio de observação participante registrada em diário de campo. Nesse artigo foram apresentados resultados parciais da pesquisa ‘Atuação de Psicólogas nas políticas para o atendimento a mulheres em situação de violência’, realizada em 2017 no Estado da Bahia. O objetivo do presente texto foi mapear a presença e a atuação de profissionais de psicologia em serviços especializados de atendimento a mulheres em situação de violência neste contexto, caracterizando e registrando a experiência de psicólogas nessa política pública. Para isso foram distribuídos questionários on-line às profissionais que atuam nesses serviços via e-mail. E foram identificadas 30 profissionais que atuam nos diferentes tipos de serviços especializados no atendimento a mulheres em situação de violência distribuídos pela Bahia e vinculados aos seguimentos da saúde, assistência, jurídico e segurança pública. Atualmente, a rede Especializada de Atendimento a Mulheres em Situação de Violência do Estado da Bahia é composta por 65 serviços, que incluem 15 Delegacias da Mulher (DEAMs); 27 Centros de Referência de Atendimento à Mulher; cinco Núcleos de Atendimento à Mulher; duas casas-abrigo; duas Unidades Móveis de Acolhimento a Mulheres em situação de violência doméstica do campo, da floresta e das águas; quatro varas de violência doméstica; dois hospitais especializados; uma promotoria especializada; uma defensoria especializada; e seis Companhias Especializadas da Ronda Maria da Penha da Polícia Militar. Estes serviços foram identificados a partir de contatos com a Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres e diretamente com os serviços. As 30 psicólogas participantes desta pesquisa estão atuando em 26 deles.

Com essa população de profissionais, realizou-se um registro da atuação de psicólogas nos serviços especializados e na rede. As participantes da pesquisa responderam questões sobre a caracterização das psicólogas (dados sociodemográficos e formação); as condições de trabalho; o registro da prática das psicólogas; e informações sobre a articulação do trabalho com outros serviços.

Além disso, também foi possível permear essa análise com informações colhidas a partir de observação participante registradas em diário de campo durante visitas realizadas pela pesquisadora a centros de referência, núcleos de atendimento, defensoria especializada e promotoria especializada de seis municípios. O diário de campo teve a função de adensamento das informações obtidas a partir dos questionários, não sendo, portanto, o objeto da análise em si. Vale ressaltar ainda que, para garantia da ética em pesquisa, este projeto foi avaliado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, como parte de um projeto mais amplo e aprovado sob o CAAE 60401816.6.0000.5544.

Resultados

Atuação dos psicólogos nos serviços de atendimento

Algumas questões importantes puderam ser levantadas a partir dos dados colhidos nesta pesquisa que vão desde a caracterização dos profissionais, considerações sobre a formação e a prática profissional, desafios encontrados na relação com a rede e as possibilidades de práticas inovadoras.

A caracterização sociodemográfica das participantes demonstrou que há prevalência de mulheres (93,3%); no critério raça/cor/etnia predomina a categoria de negras (53,3%), seguida de brancas (43,3%); no quesito religião, a classificação é um pouco difusa, mas o maior percentual é de profissionais que se declararam católicas romanas (36,7%), seguida das que se intitulam sem religião (33,3%); na questão da idade, predomínio de profissionais jovens, faixa etária entre 21 e 40 anos (80%).

Quanto à formação, a maioria tem tempo de formação de até cinco anos (53,3%), cursada em Instituições de Ensino Superior (IES) privadas (76,7%), 63,3% possuem especialização, 13,3% possuem mestrado, 3,3% possuem doutorado e 23,3% possuem outros cursos de formação. Vale ressaltar, ainda, que apenas 20% delas relataram possuir formação no tema da pesquisa, consequentemente, na área que atuam.

Nesse sentido, é necessário refletir que uma parcela considerável das psicólogas participantes iniciou sua atuação em serviços especializados para o atendimento de mulheres em situação de violência, sem a devida preparação teórica e metodológica, adquirindo suas experiências nesse campo no decorrer de sua prática profissional. Portanto, cabe pontuar o vazio temático ainda existente nas universidades e ressaltar a importância que as discussões sobre gênero e violência contra as mulheres devem ter na formação em psicologia, considerando que essa categoria é composta em sua maioria por mulheres e que essa questão transversaliza vários campos de atuação da psicologia (Souza & Faria, 2017Souza, T. M. C., & Faria, J. S. (2017). Descrição dos serviços de psicologia em delegacias especializadas de atendimento às mulheres no Brasil. Revista Avance em Psicología Latino americana, 2(35). Recuperado de: https://revistas.urosario.edu.co/index.php/apl/article/viewFile/3687/3683
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).

No entanto, muitas psicólogas se deparam a primeira vez com esta temática quando vão para a prática, e, possivelmente, continuam reproduzindo padrões estereotipados de uma prática psicológica discriminatória e patologizante, ainda hegemônica na psicologia, que desconsidera as relações de poder pautadas em diferenças de gênero as quais adoecem e subalternizam as mulheres. Mais do que pautar componentes curriculares focadas na temática de gênero, é necessário pensar a formação da psicóloga na sua integralidade transversalizada por aspectos sociais estruturais e estruturantes que definem condições de privilégio para uns e de vulnerabilidades para outros (CFP, 2012aConselho Federal de Psicologia [CFP]. (2012a). Referências técnicas para a prática de psicólogas(os) no Centro de Referência Especializado da Assistência Social - CREAS. Brasília, DF.; Scott, 1995Scott, J. (1995). “Gênero: categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade [online], 2(20). Recuperado de: http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721/40667. ISSN 2175-6236
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).

No âmbito específico da prática profissional da psicologia, há ainda a dificuldade de entendimento desta no atendimento a mulheres em situação de violência e não existem muitos relatos publicados ou materiais organizados para orientar essa prática. No entanto, é necessário que as psicólogas compreendam as especificidades relativas à situação de violência contra mulheres concernentes à construção de gênero, patriarcado, machismo, desigualdades sociais, de raça/cor/etnia, dentre outros, bem como as nuances que afetam a subjetividade das mulheres que sofrem violências e as peculiaridades de cada serviço e setor existentes dentro da política de enfrentamento à violência contra as mulheres (assistência, saúde, justiça e segurança pública). Esses fatores são fundamentais para atuação das psicólogas nesse contexto, assim como para a criação de estratégias que podem ser utilizadas para auxiliar as mulheres no enfrentamento e superação da violência (Porto, 2008Porto, M. (2008). Intervenção psicológica em abrigo para mulheres em situação de violência: uma experiência. Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa, 3(24). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-37722008000300014&script=sci_abstract&tlng=pt
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).

Nesse sentido, uma prática tradicional da psicologia não se adequa, sendo necessário pensar outras formas de atuação (Porto, 2006Porto, M. (2006). Violência contra a mulher e atendimento psicológico: o que pensam os/as gestores/as municipais do SUS. Revista Psicologia, Ciência e Profissão, 3(26). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141498932006000300007&lng=pt&tlng=pt
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). Portanto, a psicóloga precisa buscar inovar suas práticas para ampliar o atendimento de demandas de outros setores da sociedade, apresentando um caráter heterogêneo em suas intervenções (Souza & Faria, 2017Souza, T. M. C., & Faria, J. S. (2017). Descrição dos serviços de psicologia em delegacias especializadas de atendimento às mulheres no Brasil. Revista Avance em Psicología Latino americana, 2(35). Recuperado de: https://revistas.urosario.edu.co/index.php/apl/article/viewFile/3687/3683
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). Assim, nota-se uma variedade de técnicas utilizadas para desenvolvimento do trabalho da psicóloga nos serviços especializados de atendimento a mulheres. Essa diversidade de práticas deve-se ao fato de a violência contra mulher ser um fenômeno social muito complexo, de forma que, utilizar apenas a intervenção no âmbito psicoterápico individual, pode incorrer no equívoco de desconsiderar fatores sociais importantes envolvidos nesse contexto (Souza & Sousa, 2015Souza, T. M. C., & Sousa, Y. L. R. (2015). Políticas públicas e violência contra a mulher: a realidade do sudoeste goiano. Revista da SPAGESP, 2(16). Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S167729702015000200006&lng=pt
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). Cabe aqui pontuar que mais que a abordagem, individual ou grupal ou familiar, importam as concepções subjacentes à intervenção. Pensar uma prática terapêutica feminista é fundamental nesse aspecto, uma vez que ela é construída com base numa crítica a uma sociedade patriarcal, pensando as relações de poder advindas das questões de gênero e seus impactos na construção da identidade das mulheres e de suas relações familiares. Nesse sentido, para além de focar nos sintomas decorrentes dos processos intrapsíquicos de cada mulher, é necessário auxiliá-las a identificar suas capacidades e suas competências para a criação de estratégias de enfrentamento e superação das violências sofridas e construção de sua autonomia. Portanto, se apropriar de uma psicologia feminista, que já vem sendo construída desde a década de 1970, é necessário nesse contexto não só no suporte direto a essas mulheres, como também na construção de uma prática comprometida com as mudanças sociais (Narvaz & Koller, 2007Narvaz, M. G., & Koller, S. H. (2007). Feminismo e terapia: a terapia feminista da família - por uma psicologia comprometida. Psicologia Clínica, 2(19). Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652007000200009
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). Isso não pode ser observado nesta pesquisa, mesmo com a variedade de práticas psicológicas identificadas.

Apesar de uma multiplicidade de métodos ter sido apontada pelas psicólogas respondentes, dois foram evidenciados como os mais utilizados: o atendimento individual e o acolhimento apareceram como técnicas bastante utilizadas na prática cotidiana. O acolhimento foi encontrado na pesquisa como sendo uma importante ferramenta de atuação da psicologia nos serviços de atendimento a mulheres em situação de violência. Há uma diversidade de equipamentos pertencentes a esta política com especificidades e funções diferentes, que requerem da psicóloga uma escuta inicial qualificada com intuito de acolher, aliviar a ansiedade imediata e identificar as demandas, para então pensar estratégias que possam atender ao contexto específico de cada mulher que busca o serviço.

Além de ser uma forma de garantir o acesso adequado dessa mulher ao serviço, essa prática também tem a função de identificar questões importantes para as psicólogas pensarem em ações de solução dos problemas apresentados, bem como o encaminhamento necessário. A depender da forma como se configura o acolhimento, ele se torna preponderante para a permanência da mulher no serviço e a persistência dela nas rotas traçadas pela rede de atendimento e enfrentamento à violência sofrida (CFP, 2012bConselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul [CRPRS]. (2012). A psicologia e o controle social. Revista Entrelinhas, 57. Recuperado de: https://issuu.com/crprs/docs/arquivo49
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; Krenkel, Moré, & Motta, 2015Krenkel, S., Moré, C. L. O. O., & Motta, C. C. L. (2015). The significant social networks of women who haveresided in shelters. Revista Paidéia, 60(25). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103863X2015000100125&script=sci_arttet
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).

O atendimento individual também aparece nos dados coletados com uma função relevante no trabalho voltado às usuárias, abrangendo não só o acolhimento já mencionado, como também, processos de triagem e/ou entrevistas iniciais. Conforme o tipo de serviço onde a psicóloga esteja inserida, é possível fazer mais atendimentos individuais do que apenas o acolhimento. Essa prática objetiva dar um apoio inicial à mulher e aos seus filhos, além de buscar mais informações que possam auxiliar em encaminhamentos mais eficazes para superação da situação de violação de direitos (CFP, 2012bConselho Federal de Psicologia [CFP]. (2012b). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) em Programas de Atenção à Mulher em Situação de Violência. Brasília:CFP.; Silva & Silva, 2017Silva, G. K. O. M., & Silva, F. M. S. M. (2017). Atenção psicológica clínica a mulheres em situação de violência: um estudo fenomenológico de uma experiência formativa. Revista Magaio Acadêmico, 1(2). Recuperado de: http://revistaadmmade.estacio.br/index.php/mangaio/article/view/2388
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).

Entretanto, é muito comum que as usuárias dos serviços, outros profissionais e, por vezes, as próprias psicólogas confundam o atendimento individual com psicoterapia clínica. É válido ressaltar que esse tipo de prática deve se pautar numa clínica ampliada de abordagem psicossocial direcionada para ações necessárias à superação da violência. Portanto, nos serviços de acolhimento às mulheres em situação de violência, o atendimento individual é uma prática psicológica que está para além da psicoterapia, pensando ações integradas ao plano de intervenção da equipe multiprofissional e seus objetivos (CFP, 2012bConselho Federal de Psicologia [CFP]. (2012b). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) em Programas de Atenção à Mulher em Situação de Violência. Brasília:CFP.; Hanada et al., 2010Hanada, H., D’Oliveira, A. F. P. L., & Schraiber, L. B. (2010). Os psicólogos na rede de assistência a mulheres em situação de violência. Revista Estudos Feministas, 1(18). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2010000100003
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).

As rodas de conversa também aparecem nos achados como técnica bastante utilizada, pois elas se configuram numa forma participativa de circulação de informações, pela criação de condições para um diálogo reflexivo acerca das questões que atravessam a realidade das mulheres em situação de violência (Afonso & Abade, 2008Afonso, M. L. M., & Abade, F. L. (2008). Para reinventar as rodas. Belo Horizonte, MG: Rede Cidadania Mateus Afonso Medeiros.). Nesse sentido, as rodas de conversa se apresentam como importante ferramenta a ser utilizada pelas psicólogas na desconstrução das estruturas patriarcais que mantêm as condições de submissão e vulnerabilidades das mulheres. Elas criam possibilidades de produção e ressignificação de sentidos sobre as experiências de violência vivenciadas, compartilhando -as entre si, o que proporciona maior compreensão das suas demandas e das possíveis estratégias que podem adotar para reconstruir a sua autonomia (Branco & Pan, 2016Branco, P. I., & Pan, M. A. G. S. (2016). Rodas de conversa: uma intervenção da psicologia educacional no curso de medicina. Psicologia: Teoria e Prática, 3(8). Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151636872016000300012
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).

Na observação da participante, era muito comum os atendimentos individuais, acolhimentos e rodas de conversa. Os serviços utilizavam a roda de conversa como forma de refletir sobre as questões envolvidas na violência contra mulher; propagar informações sobre os tipos de violência, as questões que mantêm muitas mulheres nessa condição e a rede de atendimento existente no município; abrir espaço para que as mulheres pudessem tirar suas dúvidas sobre esse tema e pedir ajuda às técnicas ali presentes. As rodas de conversa serviam de estratégia para apresentar o tema e a equipe para a comunidade, mas também funcionavam como espaços de acolhimento e apoio entre as mulheres.

Embora se tenha observado nos dados coletados a diversidade de atividades executadas por psicólogas nesses serviços, no geral, apenas as associadas ao contexto clínico são consideradas próprias da atuação psicológica. Nos outros espaços onde não se pode observar a delimitação nítida entre o papel da psicóloga e o de outras profissionais, há dificuldade de definição do lugar, das práxis e das possibilidades de intervenção das psicólogas. Essas variações das atividades dos profissionais de psicologia e de outras áreas deveriam apontar as possibilidades de um trabalho interdisciplinar, pelo compartilhamento de saberes das áreas diversas, em vez de dúvidas e incertezas acerca do lugar de atuação da psicologia (Hanada et al., 2010Hanada, H., D’Oliveira, A. F. P. L., & Schraiber, L. B. (2010). Os psicólogos na rede de assistência a mulheres em situação de violência. Revista Estudos Feministas, 1(18). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2010000100003
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). Em muitos casos, essa atuação mostra-se ambígua e contraditória, refletindo a diversidade e os conflitos internos na própria psicologia, que ainda demandam uma definição mais explícita de suas práticas não clínicas (Hanada et al., 2010Hanada, H., D’Oliveira, A. F. P. L., & Schraiber, L. B. (2010). Os psicólogos na rede de assistência a mulheres em situação de violência. Revista Estudos Feministas, 1(18). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2010000100003
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
; Souza & Faria, 2017Souza, T. M. C., & Faria, J. S. (2017). Descrição dos serviços de psicologia em delegacias especializadas de atendimento às mulheres no Brasil. Revista Avance em Psicología Latino americana, 2(35). Recuperado de: https://revistas.urosario.edu.co/index.php/apl/article/viewFile/3687/3683
https://revistas.urosario.edu.co/index.p...
).

O encaminhamento e a sensibilização da rede também aparecem como parte das técnicas utilizadas pelas psicólogas participantes. Essas estratégias são parte fundamental do trabalho a ser executado na Política de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher. Para a real efetivação da política, é de extrema relevância que haja articulação intersetorial, que coordenem serviços da rede geral. O encaminhamento e a sensibilização da rede aparecem como ações preponderantes, que podem ser desenvolvidas pelas psicólogas, capazes de atender os objetivos propostos pela política referentes à reestruturação da vida dessas mulheres, bem como a reconstituição de sua autonomia e superação da situação de violência (Hanada et al., 2010Hanada, H., D’Oliveira, A. F. P. L., & Schraiber, L. B. (2010). Os psicólogos na rede de assistência a mulheres em situação de violência. Revista Estudos Feministas, 1(18). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2010000100003
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
).

Nesse contexto de atuação é necessário pontuar também as condições de trabalho das psicólogas que afetam diretamente as possibilidades de intervenção dos profissionais. Estas puderam ser verificadas por meio de algumas informações levantadas pelos achados desta pesquisa. Constatou-se que 63,3% das psicólogas foram contratadas nos últimos três anos (2015, 2016, 2017), o que denota alta rotatividade de profissionais nos cargos, sobretudo, em períodos de mudança de gestão. Os vínculos empregatícios são frágeis: apenas 26,7% possuem vínculos estatutários, contratadas por meio de concurso público. As outras profissionais, em sua maioria, possuem contrato temporário, chegando a ter profissionais com vínculos voluntários ou sem vínculo formal. Algumas profissionais preferiram não responder quanto à forma de contratação, o que traz indicativos de processos seletivos escusos ou inexistentes.

Essas condições de trabalho prejudicam a consolidação das profissionais nos equipamentos, gerando baixa qualificação delas, além de uma consequente descontinuidade dos serviços prestados, ruptura dos vínculos com as usuárias dos serviços e instabilidade nas práticas desenvolvidas. Portanto, a precarização das relações de trabalho gera prejuízos não só à profissional, como também à qualidade dos serviços prestados, resultando na baixa efetividade da política e na continuidade do processo de violação dos direitos dessas mulheres.

Além disso, foi possível perceber a deficiência de capacitações na preparação das profissionais para atuar nos serviços especializados. Apenas 23,3% das psicólogas respondentes fizeram algum tipo de capacitação para esta atuação. Esta questão é de extrema relevância, uma vez que um serviço especializado indica a necessidade de recursos teóricos e técnicos que permitam compreender a complexidade da demanda, para que seja possível adotar medidas com embasamento metodológico adequado ao enfrentamento das questões apresentadas (CFP, 2012aConselho Federal de Psicologia [CFP]. (2012a). Referências técnicas para a prática de psicólogas(os) no Centro de Referência Especializado da Assistência Social - CREAS. Brasília, DF.).

A ausência dos processos de educação permanente, bem como dos processos de capacitação, demanda bastante atenção, pois a promoção de treinamentos isolados e a disseminação de informações não são suficientes para a mudança efetiva na qualidade do atendimento (Vieira & Hasse, 2017Vieira, E. M., & Hasse, M. (2017). Percepções de profissionais de uma rede intersetorial sobre o atendimento a mulheres em situação de violência. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 60(21). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141432832017000100052&script=sci_abstract&tlng=pt
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). É importante que se discutam, de forma permanente, quais conteúdos são necessários para efetivação da política, de modo a evitar a reprodução de práticas conservadoras que atrapalhem o acesso dessas mulheres à garantia de seus direitos e a preservação de suas vidas (CFP, 2012bConselho Federal de Psicologia [CFP]. (2012b). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) em Programas de Atenção à Mulher em Situação de Violência. Brasília:CFP.).

A composição das equipes em que as psicólogas respondentes atuam também se apresenta como fator importante na qualidade do trabalho executado. Pode-se notar que as técnicas de outras áreas que mais aparecem compondo as equipes, além das próprias psicólogas respondentes, são assistentes sociais, advogadas e educadoras. Isso ocorre, pois, estas profissionais, incluindo psicólogas, em geral, compõem as equipes técnicas mínimas dos Centros de Referência e demais serviços de assistência a mulheres em situação de violência (Lei nº 11.340, 2006Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006. (2006, 07 de agosto). Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília, DF: Presidência da República . Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

No atendimento às mulheres é importante que tanto os serviços como as equipes que os compõem sejam interdisciplinares. A violência contra a mulher é um contexto permeado de complexidades e em constante agudização, requer a atuação de profissionais com consciência crítica, capazes de desenvolver um trabalho interprofissional com visão integral dessas mulheres e suas realidades, propondo soluções de problemas mais assertivas e resolutivas. Desse modo, a articulação de profissionais dentro de uma rede socioassistencial e intersetorial, considerando a atuação interdisciplinar com ações integradas e complementares que atenda essas mulheres de forma não fragmentada, torna-se um desafio em constante processo de construção que deve ser superado (Salgado, 2015Salgado, F. F. (2015). O trabalho interdisciplinar na assistência social: análise da experiência de uma CRAS em Niterói - RJ. In Seminário Nacional de Serviço Social, Trabalho e Política Social. Recuperado de: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/180724
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). Nesse sentido, é necessário superar divergências em relação à concepção do problema e das formas de intervenção para evitar impasses e promover uma tecnologia assistencial integrada e complementar para as usuárias dos serviços (Hanada et al., 2010Hanada, H., D’Oliveira, A. F. P. L., & Schraiber, L. B. (2010). Os psicólogos na rede de assistência a mulheres em situação de violência. Revista Estudos Feministas, 1(18). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2010000100003
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).

Articular estes espaços de atuação, poder e estratégias de ação na execução de políticas públicas, além de ser bastante relevante, convoca as psicólogas a ocupar espaços que ainda causam estranhamento. O desempenho de papéis de gestão nas políticas e serviços tem sido cada vez mais presente no cotidiano da psicologia. Foi observada, nesta pesquisa, a prevalência de psicólogas e assistentes sociais coordenando os serviços.

A presença de muitas psicólogas e assistentes sociais ocupando as coordenações, ocorre por que o maior percentual de serviços de atuação das profissionais respondentes compõe o setor de assistência em comparação aos setores de saúde, justiça e segurança pública. No entanto, é necessário considerar a importância da discussão sobre a atuação de psicólogas como gestoras nas políticas públicas. Os debates sobre esse campo de atuação ainda são muito incipientes. Isto demonstra certa fragilidade da psicologia em ocupar os espaços das políticas públicas que têm uma relação muito forte com espaços políticos de atuação (Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul [CRPRS], 2012Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul [CRPRS]. (2012). A psicologia e o controle social. Revista Entrelinhas, 57. Recuperado de: https://issuu.com/crprs/docs/arquivo49
https://issuu.com/crprs/docs/arquivo49...
).

Na observação participante foi possível perceber as nuances envolvidas nesse papel. Não só pela falta de suporte teórico-metodológico para embasar a prática, como também pelas dificuldades externas de entendimento da psicologia nessa função. Ainda não é admissível, em muitos contextos, separar uma prática clínica, de acolhimento ou de acompanhamento direto das usuárias, de um papel mais matricial de gestão. Há sempre uma tendência das usuárias do serviço, das outras técnicas e até de atrizes sociais mais externas em demandarem da psicóloga gestora uma atuação mais clínica.

Para muitas profissionais ainda não é possível à psicóloga ocupar funções de gestão, uma vez que estas são funções políticas de formulação, regulação e controle, que não são entendidas como compatíveis com a atuação profissional das psicólogas. Contudo, este também é um espaço em que a psicologia deve estar inserida para intervir, através de seu saber, na criação de dispositivos que deem suporte a efetivação de políticas que possam garantir os direitos e a proteção das mulheres em situação de violência e a prevenção dos fatores que agravam esse contexto (Benevides, 2005Benevides, R. (2005). A psicologia e o Sistema Único de Saúde: quais interfaces?Revista Psicologia & Sociedade, 2(17). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822005000200004
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).

Desafios para a construção da rede

Muitas profissionais respondentes relataram encontrar dificuldades na relação com a rede. Nota-se que há dificuldade nos fluxos de atendimento entre os serviços, por uma série de motivos que geram consequências graves, culminando na permanência das mulheres na situação de violência e a morte de milhares delas (Vieira & Hasse, 2017Vieira, E. M., & Hasse, M. (2017). Percepções de profissionais de uma rede intersetorial sobre o atendimento a mulheres em situação de violência. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 60(21). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141432832017000100052&script=sci_abstract&tlng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141...
; Silva & Silva, 2017Silva, G. K. O. M., & Silva, F. M. S. M. (2017). Atenção psicológica clínica a mulheres em situação de violência: um estudo fenomenológico de uma experiência formativa. Revista Magaio Acadêmico, 1(2). Recuperado de: http://revistaadmmade.estacio.br/index.php/mangaio/article/view/2388
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).

Os obstáculos no funcionamento da rede, achados nesta pesquisa, apresentaram alguns fatores importantes: a falta de retorno dos encaminhamentos e a interrupção na continuidade dos acompanhamentos em outros serviços, além da ausência de qualificação profissional e má qualidade dos equipamentos, como sendo alguns dos fatores que dificultam a efetuação dos encaminhamentos. Essas condições afetam o andamento da rede e se estabelecem como barreira na efetivação das políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres. Além disso, notou-se durante a observação participante que há desconhecimento de muitas profissionais sobre o tema e a política, bem como dificuldade destas na construção dos processos intersetoriais. Assim, estabelecer rotinas bem definidas e criar estratégias para manter os fluxos de atendimento funcionando é de fundamental importância para manter a qualidade do trabalho em rede (Vieira & Hasse, 2017Vieira, E. M., & Hasse, M. (2017). Percepções de profissionais de uma rede intersetorial sobre o atendimento a mulheres em situação de violência. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 60(21). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141432832017000100052&script=sci_abstract&tlng=pt
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).

A baixa qualificação de profissionais observada na pesquisa gera outro fator importante: o processo de revitimização e culpabilização das mulheres. Em decorrência disso, as usuárias têm dificuldade em aderir aos serviços, pois entendem que, além de não serem ajudadas, podem ser violentadas novamente (Souza & Sousa, 2015Souza, T. M. C., & Sousa, Y. L. R. (2015). Políticas públicas e violência contra a mulher: a realidade do sudoeste goiano. Revista da SPAGESP, 2(16). Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S167729702015000200006&lng=pt
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). Diversas mulheres evitam procurar ou retornar aos dispositivos por não se sentirem acolhidas em suas demandas, em decorrência do despreparo das profissionais que não efetuam escuta humanizada, reproduzindo descaso, indiferença e omissão diante dos relatos apresentados (Tavares, 2015Tavares, M. S. (2015). Roda de conversa entre mulheres: denúncias sobre a Lei Maria da Penha e descrença na justiça. Revista Estudos Feministas, 2(23). Recuperado de:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2015000200547&lng=pt&tlng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
). Muitas profissionais têm uma visão simplista das questões envolvidas na condição de violência contra as mulheres. Desse modo, comprometem o estabelecimento de vínculos e diminuem as chances de que estas mulheres voltem a procurar os equipamentos que podem ampará-las, o que atrapalha o fortalecimento e a (re)construção de sua autonomia para superação da condição de violência (Souza & Sousa, 2015Souza, T. M. C., & Sousa, Y. L. R. (2015). Políticas públicas e violência contra a mulher: a realidade do sudoeste goiano. Revista da SPAGESP, 2(16). Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S167729702015000200006&lng=pt
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).

Essa visão reducionista também se apresenta na má conduta de alguns profissionais de saúde, outro fator dificultador relevante encontrado nas informações coletadas. Os serviços de saúde muitas vezes são a principal porta de entrada das mulheres em situação de violência na rede de atendimento. Contudo, esses equipamentos ainda se constituem de forma bastante limitada para atender a esse tema e o despreparo das profissionais de saúde se estabelece como um dos principais fatores. A prática dessas profissionais ainda se dá pelo modelo biologista, medicalizando a violência e desconsiderando fatores sociais importantes no cuidado a essas mulheres. Consequentemente, a assistência em saúde fica limitada, gerando a impossibilidade de articulações com outros setores que poderiam auxiliar conjuntamente no enfrentamento a violência (Hasse & Vieira, 2014Hasse, M., & Vieira, E. M. (2014). Como as profissionais de saúde atendem mulheres em situação de violência? Uma análise triangulada de dados. Revista Saúde Debate,102(38). Recuperado de:http://www.scielo.br/pdf/sdeb/v38n102/0103-1104-sdeb-38-102-0482.pdf
http://www.scielo.br/pdf/sdeb/v38n102/01...
).

As limitações dos serviços de saúde também refletem no atendimento dessas mulheres na área de saúde mental, outra informação encontrada nesta pesquisa. A vivência da situação de violência e as dificuldades de acesso à proteção e aos cuidados têm gerado grande adoecimento psíquico e levado muitas mulheres a necessitarem dos serviços de saúde mental por depressão, transtorno pós-traumático, ansiedade, suicídio, uso abusivo de substâncias psicoativas etc. Esses equipamentos possuem, assim, papel importante no enfrentamento a violência contra as mulheres. Contudo, percebe-se a dificuldade de encaminhamento das usuárias para esses serviços. Vale ressaltar, que muitas profissionais de saúde não estão preparadas para entender o adoecimento psíquico como consequência da vulnerabilidade social experenciada pelas mulheres em situação de violência (Pedrosa & Zanello, 2016Pedrosa, M., & Zanello, V. (2016). (In)visibilidade da violência contra as mulheres na saúde mental. Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa, 32 (n. esp.). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010237722016000500213&lng=pt&tlng=pt
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).

A falta de notificação compulsória é mais uma consequência da conduta inadequada dos profissionais de saúde, também apresentada nos dados coletados como fator limitante do funcionamento da rede. A notificação compulsória, no caso de violência contra mulher que for atendida em serviços de saúde tanto públicos como privados, é obrigatória de acordo com a Lei nº 10.778 (2003 Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003. (2003, 24 de novembro). Estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher quefor atendida em serviços de saúde públicos e privados. Brasília, DF: Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.778.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
). Para as psicólogas, além desta lei, há uma Nota Técnica de Orientação Profissional em casos de violência contra mulher, lançada pelo Conselho Federal de Psicologia, que orienta a obrigatoriedade da notificação compulsória, casos em que se deve proceder à comunicação externa e situações em que se deve guardar o sigilo (CFP, 2016Conselho Federal de Psicologia [CFP]. (2016). Nota Técnica de orientação profissional em casos de violência contra a mulher: casos para quebra de sigilo profissional. Brasília, DF.). No entanto, os equipamentos de saúde não aplicam a notificação de modo satisfatório, pois muitas profissionais ainda não compreendem a importância dessa ação. A baixa notificação dificulta a construção de base de dados que possibilita entender a dimensão da violência em cada região. Isso atrapalha o desenvolvimento de políticas de saúde, prevenção e assistência. Além disso, desarticula a rede, pois impossibilita que os outros serviços tenham acesso aos casos específicos e que possam chegar até cada mulher ofertando auxílio para a sua assistência e proteção (Pedrosa & Zanello, 2016Pedrosa, M., & Zanello, V. (2016). (In)visibilidade da violência contra as mulheres na saúde mental. Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa, 32 (n. esp.). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010237722016000500213&lng=pt&tlng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
; Campos, 2015bCampos, C. H. (2015b). Desafios na implementação da Lei Maria da Penha. Revista Direito GV, 2(11). Recuperado de:http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S180824322015000200391&script=sci_abstract&tlng=pt
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).

Muitas profissionais não conhecem o funcionamento da notificação compulsória e tendem a confundir esse mecanismo com denúncia ou comunicação externa (Pedrosa & Zanello, 2016Pedrosa, M., & Zanello, V. (2016). (In)visibilidade da violência contra as mulheres na saúde mental. Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa, 32 (n. esp.). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010237722016000500213&lng=pt&tlng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
). Nas visitas realizadas durante a observação participante, em situações de capacitação das técnicas dos serviços era evidente essa falta de reconhecimento da função da notificação compulsória, bem como a resistência de muitas profissionais em executar essa ação por entenderem que notificar era se expor sem necessidade.

Outros fatores relacionados à estruturação dos serviços e condições de funcionamento também foram relatados nos questionários. Questões como a demora nos atendimentos, escassez de profissionais, pouca divulgação e o sucateamento dos serviços especializados, a falta de preparo dos gestores e dificuldades com deslocamento, foram os problemas mais comuns pontuados. Isso demonstra a necessidade de aperfeiçoamento das condições de trabalho, da estruturação dos serviços e da quantidade de profissionais para melhor atender as demandas das mulheres em situação de violência e melhorar a efetivação da política de enfrentamento a violência contra as mulheres (Campos, 2015aCampos, C. H. (2015a). A CPMI da violência contra a mulher e a implementação da Lei Maria da Penha. Revista Estudos Feministas, 2(23). Recuperado de:2017, de Recuperado de:2017, de https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/38873
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref...
; Vieira & Hasse, 2017Vieira, E. M., & Hasse, M. (2017). Percepções de profissionais de uma rede intersetorial sobre o atendimento a mulheres em situação de violência. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 60(21). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141432832017000100052&script=sci_abstract&tlng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141...
; Silva & Silva, 2017Silva, G. K. O. M., & Silva, F. M. S. M. (2017). Atenção psicológica clínica a mulheres em situação de violência: um estudo fenomenológico de uma experiência formativa. Revista Magaio Acadêmico, 1(2). Recuperado de: http://revistaadmmade.estacio.br/index.php/mangaio/article/view/2388
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).

Na observação participante, em muitos municípios visitados, foi possível perceber essa dificuldade com a estruturação dos serviços: equipamentos sem profissionais e sem condições físicas para atender às usuárias adequadamente, delegacias fechadas, exame de corpo de delito que não é feito no município e falta de carro para deslocar as mulheres, além de Ministérios Públicos sem promotores.

O setor de segurança pública também aparece na pesquisa entre as limitações levantadas, tanto na precariedade de seu funcionamento quanto na dificuldade de diálogo com profissionais dessa área. Observa-se que a quantidade de profissionais é escassa e o acolhimento ofertado não é adequado, havendo despreparo no que se refere ao atendimento humanizado e à escuta qualificada (Campos, 2015aCampos, C. H. (2015a). A CPMI da violência contra a mulher e a implementação da Lei Maria da Penha. Revista Estudos Feministas, 2(23). Recuperado de:2017, de Recuperado de:2017, de https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/38873
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref...
). Além disso, há a ausência de profissionais de psicologia nas delegacias especializadas, visto que as profissionais dessa área não configuram a equipe mínima desses equipamentos (Souza & Faria, 2017Souza, T. M. C., & Faria, J. S. (2017). Descrição dos serviços de psicologia em delegacias especializadas de atendimento às mulheres no Brasil. Revista Avance em Psicología Latino americana, 2(35). Recuperado de: https://revistas.urosario.edu.co/index.php/apl/article/viewFile/3687/3683
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). Das 15 DEAMS existentes na Bahia, em apenas uma foi encontrada psicóloga em seu quadro de técnicas. Em algumas, encontrou-se o serviço psicológico ofertado por profissionais voluntárias ou atrelado a psicólogas de outros serviços que davam plantão esporadicamente nas delegacias. Por conta do mau funcionamento dos aparatos de segurança pública, as mulheres apresentam queixas referentes à falta de orientação sobre os trâmites processuais, a falta de resolução e a insegurança referente às possibilidades de aproximação do agressor, mesmo nos casos de medida protetiva (Tavares, 2015Tavares, M. S. (2015). Roda de conversa entre mulheres: denúncias sobre a Lei Maria da Penha e descrença na justiça. Revista Estudos Feministas, 2(23). Recuperado de:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2015000200547&lng=pt&tlng=pt
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).

A construção de práticas inovadoras na psicologia para o enfrentamento da violência contra as mulheres

O trabalho da psicóloga ainda é associado a uma prática mais clínica e com pouca relação com a atuação mais ampla em trabalhos interdisciplinares e na efetivação de políticas públicas. Portanto, a inserção destas profissionais no contexto de uma política pública ainda recente e com estratégias desafiadoras, conduz a psicologia a um lugar diferente do tradicional. Isto implica as profissionais na reflexão de fatores importantes sobre a assistência psicológica e as impele à construção de novas estratégias, técnicas, ações, métodos e teorias que podem representar práticas inovadoras, pois transforma sua atuação, questiona suas funções e as reconstrói (Hanada et al., 2010Hanada, H., D’Oliveira, A. F. P. L., & Schraiber, L. B. (2010). Os psicólogos na rede de assistência a mulheres em situação de violência. Revista Estudos Feministas, 1(18). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2010000100003
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).

Muitas são as conquistas, limitações e desafios enfrentados na efetivação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher. Apesar da grande expansão na criação de serviços especializados, estes ainda são muito poucos diante do tamanho da demanda. Além disso, há a resistência entre as mulheres em aceitar o trabalho executado nesses serviços por uma série de questões já mencionadas. Isso denota a complexidade do tema que abrange não só a mulher em situação de violência, como também a sua família, além de refletir em questões sociais profundas, afetando elementos emocionais, culturais e econômicos (Souza & Sousa, 2015Souza, T. M. C., & Sousa, Y. L. R. (2015). Políticas públicas e violência contra a mulher: a realidade do sudoeste goiano. Revista da SPAGESP, 2(16). Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S167729702015000200006&lng=pt
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
).

No entanto, é possível identificar nesta pesquisa que a atuação das psicólogas, em muitos aspectos, se encontra descontextualizada desta realidade, ofertando uma prática psicológica desvinculada das diretrizes preconizadas na política nacional, dos pressupostos do movimento de mulheres e de fatores sociais importantes que embasam as políticas públicas para as mulheres (Porto, 2008Porto, M. (2008). Intervenção psicológica em abrigo para mulheres em situação de violência: uma experiência. Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa, 3(24). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-37722008000300014&script=sci_abstract&tlng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010...
). Isso se reflete na efetivação da Política Nacional e do Pacto Nacional de enfrentamento a violência contra as mulheres que não estão devidamente implantados, nas articulações da rede que se encontram ainda muito fragilizadas, na baixa adesão das usuárias aos atendimentos psicológicos nos serviços especializados e na quantidade de mulheres que ainda morrem por feminicídio hoje no Brasil (Souza & Sousa, 2015Souza, T. M. C., & Sousa, Y. L. R. (2015). Políticas públicas e violência contra a mulher: a realidade do sudoeste goiano. Revista da SPAGESP, 2(16). Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S167729702015000200006&lng=pt
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
).

No cotidiano das visitas durante a observação participante, foi possível observar as dificuldades que muitas profissionais tinham em entender e colocar em prática as diretrizes contidas na política nacional, a maioria por falta de conhecimento do que propõe a política. As relações que as psicólogas estabelecem com as políticas públicas de enfrentamento a violência contra as mulheres aparentavam ser muito superficiais, fazendo com que, muitas vezes, se desresponsabilizassem do trabalho que deviam executar por não considerar como sendo parte da sua atuação profissional. Nesse sentido, colocavam a responsabilidade completa pela resolução desta questão como função do Estado e não se entendendo como parte desta solução, mesmo atuando em serviços especializados.

Muitas estratégias utilizadas pelas psicólogas nas políticas de enfrentamento a violência contra as mulheres são ações previstas pelas próprias políticas para o atendimento adequado e superação da condição de vulnerabilidade das usuárias. Contudo, diante de uma formação ainda tradicional e de uma categoria profissional que tem a sua prática voltada para questões sociais e para atuação em políticas públicas muito recente, pensar atuação nas políticas de enfrentamento a violência contra a mulher, significa conduzir as psicólogas a quebra de paradigmas, crenças, valores e regras, ao vivenciar experiências sociais impactantes. Isto faz com que estas profissionais se debrucem sobre a criação de novas realidades e (re)construam suas práticas para atender as demandas previstas na política, o que por si só já se constitui nas práticas inovadoras desenvolvidas por psicólogas. Nesse sentido, é relevante discutir não só a capacidade das psicólogas que trabalham em serviços especializados, como também, das que trabalham nos serviços não especializados para pensar o papel de cada uma no processo de enfrentamento a violência contra as mulheres e como compor o trabalho em rede (Hanada et al., 2010Hanada, H., D’Oliveira, A. F. P. L., & Schraiber, L. B. (2010). Os psicólogos na rede de assistência a mulheres em situação de violência. Revista Estudos Feministas, 1(18). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2010000100003
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)

Tudo isso reforça o sentido de inovação das práticas psicológicas para adequar a atuação dessas profissionais à efetivação das políticas de enfrentamento a violência contra as mulheres. Dessa forma, pensar a inovação de práticas, na atualidade, tem relação direta com os estudos das tecnologias e abarca a reflexão sobre a inclusão de novos atores e o conceito de rede na interatividade de diversas conexões entre os sujeitos e territórios, resultando na geração de novos processos. Para esse contexto, são necessárias a participação, a aprendizagem e, portanto, a dialogicidade, para quebrar fronteiras, abranger novos atravessamentos, deslocar territórios e construir novas formas de acolhimento e técnicas para atender aos diferentes tipos de sofrimento engendrados a partir das violências constituídas socialmente (Bosi et al., 2011Bose, M. L. M., Carvalho, L. B., Sobreira, M. A. A., Ximenes, V. M., Liberato, M. T. C. & Godoy, M. G. C. (2011). Inovação em saúde mental: subsídios à construção de práticas inovadoras e modelos avaliativos muldimensionais. Revista de Saúde Coletiva, 4(21). Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S01037331201100040000&lng=pt&tlng=pt
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).

Assim, as práticas inovadoras aqui salientadas e desenvolvidas pelas psicólogas nas políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres devem ser refletidas e (re)construídas cotidianamente para atender de forma adequada às necessidades das usuárias que buscam seus serviços, sejam especializados ou não. Para a construção de uma racionalidade da práxis fortalecida é importante que se pense um embasamento teórico metodológico pautado numa psicologia feminista que proponha novas formas de refletir sobre as relações de poder e garantia de direitos das mulheres.

Considerações finais

A psicologia na Bahia está presente na maioria dos serviços especializados destas políticas, mas ainda se observa a existência de equipamentos com a ausência dessas profissionais em seu quadro técnico, apesar da reconhecida importância. Vale ressaltar que há pouca cobertura de serviços especializados no Estado da Bahia, o que implica, também, na baixa quantidade de profissionais de psicologia que prestam serviços direcionados, exclusivamente, para o atendimento a mulheres em situação de violência. Nesse sentido, pode-se constatar, ainda, que há grande percentual de profissionais dos serviços não especializados que recebem usuárias nessa condição.

Há a necessidade premente na reflexão de psicólogas quanto ao seu posicionamento em relação à violência contra as mulheres, aspecto que deve permear a formação em psicologia, bem como maior capacitação das profissionais que atuam no campo, uma vez que a formação ainda é muito diversa e precária quanto a este tema, fato que pode ser detectado na caracterização das psicólogas no atendimento a mulheres em situação de violência.

Da mesma forma, faz-se necessário o estímulo aos registros dos relatos de experiências profissionais sobre o tema, inclusive as exitosas, maior aproximação do movimento de mulheres e participação nos espaços de controle social. Além disso, é importante discutir mais sobre as estratégias e dificuldades quanto à implementação da política e da rede.

Por fim, vale ressaltar que as práticas profissionais da psicologia ainda estão se constituindo de maneira a atender eficazmente a implantação e a efetivação da política de enfrentamento a violência contra a mulher. Assim sendo, há a racionalidade da práxis que precisa ser construída para pensar a política e a forma como a violência se institui socialmente a partir dos territórios e contextos de cada mulher. Isto torna a prática profissional, nessa conjuntura, inovadora, e denota que a psicologia tem se organizado para atender as diretrizes orientadas pela política.

Referências

  • 1
    Apoio e financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).
  • 4
    As autoras optaram por usar a linguagem no feminino, por constatar que a maioria da categoria é composta por mulheres (89%), bem como a maioria das participantes do presente estudo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2018
  • Aceito
    04 Out 2019
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