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IDENTIDADE QUILOMBOLA: ATUAÇÕES NO COTIDIANO DE MULHERES QUILOMBOLAS NO AGRESTE DE ALAGOAS 1 1 Apoio e financiamento: Universidade de São Paulo (USP).

IDENTIDAD QUILOMBOLA: ACTUACIONES EN EL COTIDIANO DE MUJERES QUILOMBOLAS EN EL AGRESTE DE ALAGOAS

RESUMO

O presente trabalho é parte de uma pesquisa de campo e caracteriza-se por um estudo de caso de caráter qualitativo exploratório, que teve por objetivo analisar a atuação da identidade quilombola no cotidiano de mulheres de um quilombo do agreste de Alagoas. A pesquisa foi realizada em quatro etapas sendo elas: 1- revisão bibliográfica; 2- inserção no campo de pesquisa; 3- coleta e análise das informações; 4- devolutiva da pesquisa às participantes e comunidade. As participantes da pesquisa foram três mulheres: uma jovem (20 anos), uma adulta (47 anos) e uma idosa (71 anos). Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com dois temas: as vivências do cotidiano enquanto mulheres negras quilombolas; e os sentidos produzidos pelas entrevistadas sobre a identidade quilombola. Após transcritas, as entrevistas foram submetidas à análise de conteúdo que permitiu a produção de duas categorias temáticas: a) as vivências de opressão de mulheres negras quilombolas; b) diversidade de sentido sobre a identidade quilombola. As narrativas das mulheres permitiram compreender o quilombo como lugar de afirmação de seus modos de vida enquanto mulher negra, bem como o espaço de reprodução de lógicas de opressão frente à interseccionalidade dos marcadores étnico-raciais e de gênero. Houve também diferença geracional quanto ao modo de compreensão da identidade quilombola na vida da jovem e da idosa participante. Cabe compreender as especificidades com que cada comunidade e seus membros interpretam a identidade quilombola em seu viver e fazer, no entendimento que ela pode atuar como um potencializador na afirmação destes territórios negros.

Palavras-chave:
Identidade étnica; cotidiano; mulheres

RESUMEN

El presente trabajo es parte de una investigación de campo y se caracteriza por un estudio de caso de carácter cualitativo exploratorio, que tuvo por objetivo analizar la actuación de la identidad quilombola en la cotidianidad de mujeres de un quilombo del agreste de Alagoas. La investigación fue realizada en cuatro etapas siendo ellas: 1- revisión bibliográfica; 2- inserción en el campo; 3- recolección y análisis de la información; 4- devolución de la investigación a las participantes y comunidad. Las participantes de la investigación fueron 03 mujeres: 01 joven (20 años), 01 adulta (47 años) y 01 anciana (71 años). Se realizaron entrevistas semiestructuradas con dos temas: las vivencias de lo cotidiano como mujeres negras quilombolas y los sentidos producidos por las entrevistadas sobre la identidad quilombola. Después de transcritas, las entrevistas fueron sometidas al análisis de contenido que permitió la producción de dos categorías temáticas: a) las vivencias de opresión de mujeres negras quilombolas; b) diversidad de producciones de sentido sobre la identidad quilombola. Las narrativas de las mujeres permitieron comprender el quilombo como lugar de afirmación de sus modos de vida como mujeres negras, así como, espacio de reproducción de lógicas de opresión frente a la interseccionalidad de los marcadores étnico-raciales y de género. También hubo una diferencia generacional en cuanto al modo de comprensión de la identidad quilombola en la vida de la joven y de la anciana participante. Cabe comprender las especificidades con que cada comunidad y sus miembros interpretan la identidad quilombola en su vivir y hacer, en el entendimiento que ella puede actuar como un potencializador en la afirmación de estos territorios negros.

Palabras clave:
Identidad étnica; cotidiano; mujeres

ABSTRACT.

The present study is part of a field research and is characterized by a qualitative, exploratory case study, whose objective was to analyze the performance of the quilombola identity in the daily life of women from a quilombo in the agreste of the State of Alagoas. The research was conducted in four stages: 1 - literature review; 2- insertion in the research field; 3 - collection and analysis of information; 4- feedback of the research to the participants and the community. The participants were 03 women: 01 young (20 years), 01 adult (47 years) and 01 elderly (71 years). Semi-structured interviews were conducted with two themes: daily life experiences as black quilombola women; and the meanings produced by interviewees about the quilombola identity. After transcription, the interviews were analyzed by content analysis methods and produced two thematic categories: a) experiences of oppression of black quilombola women; b) diversity of meaning about quilombola identity. Women understand the quilombo as a place of affirmation of their ways of life as black women, as well as a place of reproduction of logics of oppression against the intersectionality of ethnic-racial and gender markers. There was also a generational difference as to the way of understanding the quilombola identity in the life of the young woman and the elderly participant. It is necessary to understand the specificities with which each community and its members interpret the quilombola identity in their lives and activities, in the understanding that it can work as an enhancer in the affirmation of these black territories.

Keywords:
Ethnic identity; daily; women

Introdução

Sobre os quilombos há uma diversidade de discursos sociais e políticos, cada qual proferido por um determinado grupo, localizado em um tempo e locus social, que determina interpretações e ações diferenciadas diante de sua compreensão. Para os senhores de engenho do período colonial, o quilombo era compreendido como lugar de negros fugidos. Para as negras que buscavam liberdade, o quilombo era compreendido como lugar de luta e resistência, território coletivo de apropriação de terras que lhes possibilitava a igualdade entre seus pares. Para o movimento negro o quilombo pode ser significado como a organização de comunidades negras que sobre tradições e histórias específicas resistem em seus territórios e buscam a garantia de seus direitos e a terra frente ao Estado brasileiro. Já para alguns cientistas sociais, o quilombo é definido como território de uso comum que possibilita ao exercício de uma vida comunitária em laços possíveis de solidariedade entre seus moradores.

Todos estes discursos contribuem para a produção do quilombo no imaginário social brasileiro, discursos que não atuam apenas como representações do que seria um quilombo, mas como práticas interpretativas que inventam e reinventam o quilombo no cotidiano.

Assim, encontra-se o primeiro impasse a ser enfrentado pela população quilombola, que é o direito de afirmar sua identidade a partir de si, de seu modo de vida e não por meio de um outro: Estado, saber científico ou discursos oligárquicos. Contra uma reflexão ingênua, entende-se que a afirmação de sua identidade passa pelos processos tanto de negociação, quanto de disputa frente a estes setores de poder, ora buscando alguns como aliados, ora enfrentando outros para a legitimidade do reconhecimento de sua identidade e garantia de seus direitos. O tensionamento entre políticas de identidade e afirmação identitária está presente em diferentes povos tradicionais e em luta por território (Leite & Dimenstein, 2010Leite, J. F., & Dimenstein, M. (2010). Movimentos sociais e produção de subjetividade: o mst em perspectiva. Psicologia & Sociedade, 22(2), 269-278.).

A luta política das comunidades quilombolas apresenta-se em um campo de ambiguidades entre a possibilidade do acesso a terra e afirmação de sua identidade, e ao mesmo tempo, a tutela de seus modos de vida pelo Estado, e a objetificação de suas vidas pelo mercado que capitaliza modos de viver tradicionais na forma de produtos comercializáveis (Santos, Massola, Silva, & Svartman, 2016Santos, A. O., Massola, G. M., Silva, L. G. G., & Svartman, B. P. (2016). Racismo ambiental e lutas por reconhecimento dos povos de floresta da Amazônia. Global Journal of Community Psychology Practice, 7.). É neste campo ambíguo que a luta e a garantia de direitos às comunidades quilombolas é gestada.

Como afirma Brah (2006Brah, A. (2006). Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, (26), 329-376.), são os grupos minoritários os responsáveis pelo dinamismo das relações políticas em uma determinada sociedade. As minorias políticas, com suas experiências coletivas e seus modos de vida diferenciados, é que abrem campos de ruptura aos modelos sociais instituídos, permitindo a emergência de alteridades antes não vislumbradas, ou impedidas de reconhecimento. Esta luta não marca apenas o reconhecimento do grupo social marginalizado, mas localiza em seu contraponto, em uma dialética da opressão, o grupo social hegemônico e as relações de dominação que este estende à sociedade.

A luta dos grupos minoritários insere na dinâmica da vida social a alteridade, a qual exige das estruturas dominantes que atuam sobre um modo de vida que se pretende humano universal, outras formas de viver, possíveis e necessárias a serem afirmadas e contempladas à dignidade humana. Tal dignidade necessita da diversidade para existir, para não recair sobre um enquadre universalizante que violenta e busca subjugar os modos de vida que não compartilham de seu ideário (Brah, 2006Brah, A. (2006). Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, (26), 329-376.).

Estes outros modos de viver impõem emergentes produções subjetivo-políticas, entendidas não como uma subjetividade individualizada e circunscrita ao sujeito, mas como campo que se erige pelas experiências de opressão cotidianas e coletivas. As produções subjetivo-políticas buscam desmistificar as vivências de opressão traduzindo-as em dominação, em relações assimétricas de poder, recursos e ações, as quais devem ser superadas pelas táticas de resistência produzidas pelos grupos sociais marginalizados, que sobre a vida de opressão buscam inventar seus modos de viver e resistir.

Assim, os processos de dominação se efetuam para além do dinamismo da economia política, e enredam mecanismos psicossociais que atuam nas produções intersubjetivas do cotidiano de modo desigual, por meio do não reconhecimento dos grupos oprimidos, na negação de suas necessidades e de suas formas específicas de viver e interpretar o mundo. O que leva à violação de seus direitos e em consequentes práticas de violência física e simbólica.

São sobre estas relações de dominação que as comunidades quilombolas produzem seu fazer e viver. A definição do que é uma comunidade quilombola passa por um enredo político e histórico de longa data e não ocorre de forma linear e pontual. Como fenômeno social, sua definição acompanha as conjunturas políticas de determinado tempo histórico, sendo ressemantizada a cada uso e modificada pelos variados discursos que a incorporam e a enunciam (Arruti, 2009Arruti, J. M. (2009). Políticas públicas para quilombos: terra, saúde e educação. In M. Paula & R Heringer (Orgs.), Caminhos convergentes: Estado e sociedade na superação das desigualdades raciais (p. 75-109). Rio de Janeiro, RJ: Fundação Heinrich Boll.).

As quilombolas são camponesas negras, porém a sua definição não está atrelada apenas a forma de ser camponesa, ela está vinculada às categorias étnico-racial e de gênero. As experiências de desigualdade vividas pelas mulheres quilombolas e a negação de seus direitos básicos são cotidianamente atravessados por esta intersecção racial e de gênero, bem como as suas formas de expressão socioculturais e modos políticos de resistência, que permitem sua organização coletiva e insurgências subjetivas. A formação dos quilombos do período colonial ao contemporâneo está vinculada às violências derivadas de uma ideologia racista que desumaniza a(o) negra(o) e a(o) localiza como uma categoria infra-humana, que justifica e autoriza a violência, que fixa políticas identitárias e promove a apropriação de seus territórios enquanto mercadoria (Fernandes & Santos, 2016Fernandes, S. L., & Santos, A. O. (2016). Itinerários terapêuticos de mulheres quilombolas de Alagoas, Brasil. Interfaces Brasil/Canadá, 16, 137-153.).

Após a legislação da Constituição Federal de 1988, com o art. 68 e seus avanços no ano de 2003 com o Decreto presidencial 4.4887/2003, que formaliza a garantia do direito a terra e o reconhecimento às comunidades quilombolas por meio de sua autoatribuição, alavancam-se os processos de reconhecimento das comunidades quilombolas por todo o país, tendo no ano de 2006 seu auge com o reconhecimento de 400 comunidades. Com os processos de reconhecimento encampam-se as lutas das comunidades pela soberania de seus territórios e a garantia de acesso aos seus direitos básicos (Fernandes & Santos, 2016Fernandes, S. L., & Santos, A. O. (2016). Itinerários terapêuticos de mulheres quilombolas de Alagoas, Brasil. Interfaces Brasil/Canadá, 16, 137-153.).

Neste percurso político de luta pela terra e de garantia aos direitos fundamentais, as comunidades quilombolas deixam de expressar apenas um lugar folclórico, no qual a cultura deve ser preservada, e tornam-se protagonistas políticos que requerem seu território, seu devido reconhecimento e as condições materiais para que seus modos de vida possam seguir curso. Passam a um ativismo que congrega junto a outros movimentos sociais um cenário nacional de luta política na garantia de sua cidadania com os sem-terra, os sem-teto, os indígenas e o movimento negro (Arruti, 2009Arruti, J. M. (2009). Políticas públicas para quilombos: terra, saúde e educação. In M. Paula & R Heringer (Orgs.), Caminhos convergentes: Estado e sociedade na superação das desigualdades raciais (p. 75-109). Rio de Janeiro, RJ: Fundação Heinrich Boll.).

Identidade política e luta por reconhecimento

De acordo com Fernandes e Munhoz (2013Fernandes, S. L., & Munhoz, J. M. (2013). Políticas públicas quilombolas e produções identitárias: percursos históricos e conflitos políticos. In J. F. Leite & M. Dimenstein (Orgs.), Psicologia e contextos rurais. (p. 357-384). Natal, RN: EDUFRN.), diante dos direitos conquistados após a Constituição Federal de 1988, a construção da identidade quilombola apresenta-se enquanto processo político de ressignificação do conceito de quilombo para o momento histórico do presente, com uma releitura que atualiza as disputas políticas do passado à realidade local das comunidades quilombolas atuais, revelando estes territórios como lugares de resistência marcados por trajetórias históricas de luta contra a opressão. O reconhecimento presente no art. 68 da Constituição Federal de 1988 desencadeia a recriação dos territórios negros rurais, que apesar de já existentes, são agora interpelados pela categoria quilombo, que os modificam na forma de pensar sua própria existência e suas relações.

A continuidade e sobrevivência dos quilombos contemporâneos passam pela necessidade de busca por respeito e dignidade, na formação de uma identidade que se produz no transcorrer do enfrentamento político. Uma identidade que não é dada a priori, mas modificada de acordo com as necessidades políticas que se encontram em jogo. O conceito de identidade que entra em cena não é aquele que se define apenas pelas relações endógenas, circunscrita aos sujeitos que desta comunidade participam. Ao contrário, o processo identitário que se trata aqui é construído como um fenômeno antagônico à dominação vivida, o qual se produz sobre certos determinantes históricos, políticos e sociais. Ou seja, a identidade quilombola define-se pelas relações de poder que se lançam sobre os quilombos, como necessidade política de construir para si formas de enfrentamento às forças hegemônicas.

Os modos pelos quais cada comunidade quilombola se apropria do conceito de quilombo é determinante na maneira como elas gerenciam sua identidade e vida comunitária. Não há uma identidade dada às comunidades quilombolas, há sim uma tentativa de construção de um plano comum que congreguem suas formas de ser e existir na luta por direitos. A identidade pode ser definida como processo que possibilita ao sujeito, na relação com seus pares, definir referências simbólicas e intersubjetivas que quando compartilhadas entre si, como afirma Melluci (2004)Melucci, A. (2004). O jogo do eu: a mudança de si em uma sociedade global. São Leopoldo, RS: Ed. da Unisinos., permitem processo de diferenciação frente a outros grupos, e de identificação com seus pares, em um sentimento de grupo que distingue um nós e um eles. Assim, o encontro da categoria quilombola à vida nas comunidades quilombolas torna-se uma força organizante para as formações identitárias das comunidades negras rurais, na configuração da identidade quilombola como campo político de afirmação das diferenças e das necessidades de certo grupo étnico-racial frente a outros.

Cabe compreender a identidade para além do papel social que é incutido ao sujeito em seus processos de socialização, que vêm desde as relações nas unidades familiares às instituições onde ele se insere e participa. Na compreensão que propomos aqui, a identidade adquire caráter político, como instância que se produz e é produzida frente às relações de poder que se impõem aos sujeitos e coletivos de seu pertencimento; e, são sobre estas relações que os significados e os sentidos das identidades são produzidos e compartilhados pelos seus pares (Castells, 2008Castells, M. (2008). O poder da identidade. São Paulo, SP: Paz e Terra.). No caso das comunidades negras rurais, as formas de apropriação da identidade quilombola se apresentam como categoria política que está relacionada às variadas forças históricas, estratégias de dominação e relações de poder que incidem sobre seu território, sua comunidade e seu grupo.

Como afirma Fernandes e Munhoz (2013Fernandes, S. L., & Munhoz, J. M. (2013). Políticas públicas quilombolas e produções identitárias: percursos históricos e conflitos políticos. In J. F. Leite & M. Dimenstein (Orgs.), Psicologia e contextos rurais. (p. 357-384). Natal, RN: EDUFRN.), a identidade apresenta-se como campo inventivo político, como lugar de criação dos despossuídos, que na luta por seu reconhecimento inventam outros modos de existência. Não se descobre uma identidade política, ela se faz e refaz frente aos condicionantes históricos que a sobrepujam e ao desejo de transformação dos que dela participam.

De acordo com Santos (2003Santos, B. S. (2003). Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In B. S Santos . Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural (p. 427-462). Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.), quem clama por identidade são os grupos que são dela despossuídos, que necessitam por meio dela buscar seu reconhecimento, enfrentar uma ordenação hegemônica, que pensada como universal impede a emergência de outros projetos possíveis de sociedade. Assim, a identidade política pode ser definida como a emergência em coletivos e grupos minoritários destes projetos possíveis de sociedade, que para além da subjetivação de suas identidades sociais, produzem um enredo político coletivo que permite o enfrentamento da ordem social hegemônica na criação e na invenção de outras realidades.

Gênero, raça-etnia e vida no campo: condições e vida e enfrentamentos cotidianos da mulher quilombola

De acordo com Fernandes e Santos (2016Fernandes, S. L., & Santos, A. O. (2016). Itinerários terapêuticos de mulheres quilombolas de Alagoas, Brasil. Interfaces Brasil/Canadá, 16, 137-153.), as precárias condições de vida nos quilombos devem-se as formas estruturais de exclusão vividas por estas comunidades no Brasil, as quais são negligenciadas de modo persistente o acesso aos seus direitos fundamentais. Tais violações estruturais dos direitos aumentam os níveis de vulnerabilidade da população quilombola, dispondo as mesmas de poucos recursos para solução de seus problemas, que consequentemente levam a repostas menos resolutivas as problemáticas enfrentadas em seus cotidianos.

Estas condições de vulnerabilidade tornam-se ainda mais presentes quando se trata da vida das mulheres quilombolas, já que estas carregam consigo, ao menos, dois marcadores de opressão que determinam suas experiências de desigualdades: ser mulher e negra. As categorias de gênero e raça-etnia incidem nas vivências das mulheres quilombolas, por vezes, invisibilizando suas experiências de opressão, por naturalizar os papéis exercidos por elas socialmente no seio de suas comunidades, papéis como o de ser mãe, esposa, de trabalhar nos afazeres domésticos, nos roçados, na criação de animais, nos cuidados à saúde de seus familiares, entre outros. Esta multiplicidade de atividades sociais não é vislumbrada como trabalho realizado pelas mulheres, mas enquanto obrigações socializadas desde a infância na sua condição social de ser mulher no quilombo (Fernandes & Santos, 2016Fernandes, S. L., & Santos, A. O. (2016). Itinerários terapêuticos de mulheres quilombolas de Alagoas, Brasil. Interfaces Brasil/Canadá, 16, 137-153.).

Somado à naturalização dos papéis sociais exercidos pelas mulheres quilombolas em suas comunidades, como afirma Riscado, Oliveira e Brito (2010Riscado, J. L. S., Oliveira, M. P. B., & Brito, A. M. B. B. (2010). Vivenciando o racismo e a violência: um estudo sobre as vulnerabilidades da mulher negra e a busca de prevenção do HIV/aids em comunidades remanescentes de Quilombos, em Alagoas. Saúde e Sociedade, 19(2), 96-108.), há também a banalização das vivências de violência vivida por estas mulheres, que passam a ser compreendidas na comunidade como problemas intradomiciliares e domésticos, sendo desconsiderados os fatores sociais e coletivos que determinam estas experiências de sofrimento.

Assim, os marcadores sociais de gênero e de raça/etnia incidem sobre as vivências de desigualdade das mulheres quilombolas, sobrepondo sobre suas vidas alguns marcadores sociais de opressão que configuram sua condição de vida entre experiências raciais e de gênero. Para se pensar de forma crítica as vivências destas mulheres, negras, campesinas, deve-se lançar mão do conceito de interseccionalidade, como uma compreensão que traz o aprofundamento das experiências de opressão vivida pelos sujeitos no cotidiano na sobreposição de marcadores sociais de desigualdade que incidem sobre suas vidas no acesso a bens, recursos e direitos (Wane, 2013Wane, N. (2013). Uncovering the well: black feminism in Canada (p. 3-22). In N. Wane, J. Jagire & Z. Murad. Ruptures: anti-colonial & anti-racist feminist theorizing. Toronto, CA: Sense Publishers.).

A interseccionalidade desestrutura a compreensão ideológica e universalista de humano, no momento em que pluraliza a experiência dos sujeitos diante dos diversos marcadores sociais que incidem no modo destes viverem e se relacionarem na vida social. Portanto, não há um humano de referência para as formas de viver e existir quando se tem como norteador a interseccionalidade, ao contrário, prioriza-se visibilizar as diferentes experiências humanas de opressão que se encontram delineadas na teia das relações da vida cotidiana.

Esta compreensão interseccional apresentada por Wane (2013Wane, N. (2013). Uncovering the well: black feminism in Canada (p. 3-22). In N. Wane, J. Jagire & Z. Murad. Ruptures: anti-colonial & anti-racist feminist theorizing. Toronto, CA: Sense Publishers.) vem ao encontro dos relatos da vida cotidiana das mulheres quilombolas brasileiras, como afirmam Souzas (2015Souzas, R. (2015). Liberdade, violência, racismo e discriminação: narrativas de mulheres negras e quilombolas da mesorregião centro-sul da Bahia/Brasil. Revista da ABPN, 7(16), 89-102.), Souza e Araújo (2014), as quais são marcadas por uma tripla jornada de trabalho doméstico, agrícola e em atividades remuneradas nas cidades; nas responsabilidades do cuidado com a família, com a criação e na manutenção afetiva e econômica da casa. Estas variadas atividades tornam-se invisíveis ao serem inscritas de forma naturalizadas no seio da comunidade. Além destas naturalizações, a mulher negra quilombola enfrenta, tanto na vivência comunitária como fora dela, experiências de preconceito e discriminação raciais, como afirmam Riscado, Oliveira e Brito (2010Riscado, J. L. S., Oliveira, M. P. B., & Brito, A. M. B. B. (2010). Vivenciando o racismo e a violência: um estudo sobre as vulnerabilidades da mulher negra e a busca de prevenção do HIV/aids em comunidades remanescentes de Quilombos, em Alagoas. Saúde e Sociedade, 19(2), 96-108.), que as vulnerabilizam no acesso aos bens e recursos.

Esta invisibilidade produz uma contradição na vida das mulheres e na realidade dos quilombos, já que o seu modo de viver é nodal para o gerenciamento e a manutenção do cotidiano das famílias e da vida comunitária nos quilombos, que perpassam aspectos: políticos, econômicos, sociais e do cuidado à vida. Como afirma Souza e Araújo (2014Souza, P. B., & Araújo, K. A. (2014). A mulher quilombola: da invisibilidade à necessidade por novas perspectivas sociais e econômicas (p. 163-182). In J. T. Esteves, J. L. A. Barbosa & P. R. L Falcão . Direitos, gênero e movimentos sociais II. Florianópolis, SC: Conpedi.), no campo político as mulheres quilombolas apresentam-se como lideranças comunitárias e chefes de família; quanto à manutenção econômica elas produzem nos roçados, na criação de animais e nos trabalhos fora da comunidade; é por meio delas que se perpetua a cultura e os conhecimentos locais ao transmitirem a outros membros da comunidades estes saberes adquiridos no dia a dia da vida comunitária; e ainda, elas garantem o cuidado da saúde dos seus familiares e vizinhos, por meio das práticas tradicionais de saúde passadas de geração à geração.

Com base nestas variadas atividades que exercem e no conhecimento que detêm sobre a vida do quilombo, que as mulheres apresentam-se como agentes na luta pela garantia dos direitos fundamentais, pois é no cotidiano que elas enfrentam situações que necessitam resolubilidade e estratégias para a superação dos problemas vividos. Além disso, são as mulheres as agentes que se vinculam aos equipamentos e aos serviços públicos que se instalam no território quilombola, como unidade básica de saúde, escolas de tempo integral e centros referência de assistência social. Diante destas variadas experiências carregam consigo conhecimentos capazes de ação política crítica para a reflexão e para a transformação das comunidades quilombolas as quais pertencem (Souza & Araújo, 2014Souza, P. B., & Araújo, K. A. (2014). A mulher quilombola: da invisibilidade à necessidade por novas perspectivas sociais e econômicas (p. 163-182). In J. T. Esteves, J. L. A. Barbosa & P. R. L Falcão . Direitos, gênero e movimentos sociais II. Florianópolis, SC: Conpedi.).

Diante destas contradições vividas pelas mulheres quilombolas, entre a invisibilidade das funções exercidas na vida comunitária e pela importância de suas atuações políticas para a manutenção do viver do quilombo, é que a presente pesquisa busca compreender como a identidade quilombola é subjetivada pelas mulheres de um quilombo do agreste de Alagoas.

Caminhos para o desenvolvimento da pesquisa

O presente estudo é parte de uma tese de doutorado e caracteriza-se por uma pesquisa qualitativa descritiva exploratória em uma comunidade quilombola do agreste de Alagoas, reconhecida a mais de cinco anos, com associação quilombola ativa, uma Unidade Básica de Saúde e uma Escola de Tempo Integral instaladas em seu território. A comunidade tem como atividade laboral central a agricultura, o plantio da mandioca, do feijão e do fumo, que são para consumo próprio e venda nas feiras locais.

A pesquisa foi realizada em quatro etapas, sendo elas: 1- revisão bibliográfica, realizada por meio do portal de periódicos Capes via CAFe, tendo como palavras-chave quilombos, identidade e comunidades quilombolas, identidade; 2- inserção no campo de pesquisa, realizada no início do ano de 2015, com o objetivo de dialogar sobre a proposta do estudo com as lideranças comunitárias e com as moradoras que frequentavam a associação comunitária do quilombo; 3- coleta e análise das informações, que teve início em meados de 2015, por meio de diário de campo e entrevistas semiestruturadas. As entrevistas foram realizadas com três mulheres da comunidade: uma jovem de 20 anos, uma adulta de 47 anos e uma idosa de 71 anos. A busca pelas informantes-chave teve como critérios de seleção: diferenças geracionais entre as participantes e a participação política ativa das mesmas na comunidade; 4- devolutiva da pesquisa às participantes e comunidade, realizada em meados de 2016, feita a cada participante e de forma mais ampliada em reunião na associação comunitária com proposta de discussão temática sobre as análises da pesquisa.

O instrumento utilizado para a produção das informações foi entrevista semiestruturada que tinha como questões disparadoras elementos sobre as vivências do cotidiano enquanto mulheres negras quilombolas e os sentidos produzidos pelas entrevistadas sobre a identidade quilombola. As três entrevistas realizadas foram transcritas e submetidas à análise com orientações da análise de conteúdo que permitiu a produção de duas categorias temáticas: a) as vivências de opressão de mulheres negras quilombolas: interseccionalidade entre gênero, raça e etnia; b) diversidade de compreensões e produções de sentido sobre a identidade quilombola.

No processo de pesquisa as participantes do estudo foram esclarecidas sobre os objetivos, procedimentos e o instrumento da pesquisa. A entrevista foi realizada após a assinatura em duas vias, do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e o estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de São Paulo nº: 30892514.0.0000.5561.

Resultado e discussão

As vivências de opressão de mulheres negras quilombolas: interseccionalidade entre gênero, raça e etnia.

A presente categoria temática emergiu no começo do processo de entrevista, no momento em que iniciava a conversa com as entrevistadas, perguntando a elas: como era viver naquela comunidade, como viam a sua vida naquele território, como era seu cotidiano. Estas perguntas suscitavam memórias, histórias do passado e cenas cotidianas de vivências enquanto mulheres negras quilombolas. Discursos variados surgem diante destas experiências, mas que apresentam um campo de ligação em comum: a interseccionalidade das opressões de gênero e raça-etnia vividas pelas participantes; a fim de resguardar o anonimato das participantes, todos os nomes adotados na análise são fictícios.

Estão marcadas as narrativas das cenas experienciadas no cotidiano das entrevistadas pela interseccionalidade entre raça-etnia e gênero, diante das afirmações que ser mulher na comunidade é ser responsável por muitos afazeres que são naturalizados e impostos ao trabalho da mulher. Estas responsabilizações vão repercutir em limitações na autonomia das escolhas das mulheres em seu dia a dia e em consequente adoecimentos, como narrado por Antônia (47 anos):

Hoje se a gente for analisar a história da mulher aqui na comunidade, tem muita mulher doente, adoecendo até o corpo, porque a cabeça não aguenta, porque são mães solteiras, outras são casadas e é quem assume toda a responsabilidade da casa, da roça, do dia a dia da família. O pior que ninguém acha que isso é trabalho. Muitas preocupações, hoje elas têm pressão alta, desenvolveram diabetes, doenças dos nervos.

Como complementa a narrativa de Josefa de 71 anos sobre os adoecimentos vividos e suas vivências enquanto mulher: “Tenho tal do diabetes, e o meu é dos mais inquietos, que é dos nervos. Tive isso de tanta coisa que vivi. Não é fácil ser mulher. Quando tenho raiva, desgosto. Aí bota pra morrer [risos]. Eu passo muito nervoso”.

Essas vivências de desigualdade são destacadas também na narrativa de Débora (20 anos), jovem da comunidade, que traz consigo um discurso político que desmistifica as relações de opressão racial e de gênero presentes na comunidade:

Aqui no sítio o povo tem o negócio do machismo. ‘O homem não pode lavar prato, o homem não pode varrer a casa’. Porque aqui a mulher vai pra roça, lava prato, cuida dos filhos. Já os homens não, só vão pra roça. A mulher nunca para. Além de pensar que mulher negra é forte, resiste a tudo e pode fazer muito mais. Aqui a mulher é mulher e homem, duas vezes. Além dos casos de violência que a mulher sofre, que aqui no sítio é comum ficar sabendo (grifo nosso).

Diante das narrativas apresentadas, ser mulher é lançar-se a um enquadre social que a obriga a ser ‘mulher e homem, duas vezes’. O machismo não é vivido apenas nas atividades a serem executadas, ele encontra-se como uma estrutura que organiza a vida destas mulheres quilombolas, de modo a normatizar seus afazeres e responsabilidades. Ela torna-se objeto e instrumento que deve cuidar da família, do marido, dos afazeres domésticos e laborais. Tal racionalidade busca impedir a autonomia sobre sua vida.

As narrativas apontam para vivências interseccionais de opressão e de violência experienciada pela mulher negra no quilombo, como tendo um corpo mais forte capaz de aguentar mais atividades e outros afazeres. Tais concepções naturalizantes tornam a mulher negra quilombola instrumento de uma racionalidade que justifica a violência sofrida e, ainda, como afirma Débora (20 anos), a culpabiliza pelos problemas vividos na família e na vida comunitária:

Se ela faz o papel do homem duas vezes, acho que a saúde dela não fica muito bem, não vai muito bem. Muitas mulheres aqui sofrem de problema de nervo. Se o filho faz alguma coisa que não deveria, as mães colocam aquilo na cabeça e se preocupam, já os pais não, colocam a culpa todinha na mãe. Se na casa tem algo errado a culpa é da mãe. Se o marido fica mal também. Aqui no sítio toda a culpa é da mãe.

A objetificação e instrumentalização da mulher destacam-se de forma expressiva na narrativa de Débora (20 anos) quando restringe o papel da mulher na comunidade ao de mãe, como se ser mulher fosse sinônimo de ser mãe. Tal redução é interpretada na cultura branca a partir da imposição do mito do amor materno (Badinter, 1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira.), categoria que não é suficiente para pensar os modos de vida da mulher negra quilombola atravessados pelo racismo, violência e empobrecimento. Na fala de Débora e de outras mulheres do quilombo, a objetificação do corpo como aparato reprodutivo ocorre desatrelado do ideal de que a maternidade expressa a realização de um amor incondicional vinculado a uma família nuclear, pois as redes de cuidado das crianças possuem forte enraizamento comunitário. Deve-se atentar que se de um lado, a redução da mulher quilombola à maternidade denota sua instrumentalização patriarcal como aquela que garante a descendência biológica e a transmissão cultural intergeracional no quilombo, de outro, aponta, paradoxalmente, para uma ruptura com o legado patriarcal colonialista que reserva às mulheres negras o papel de ‘mães pretas’ (Gonzalez, 2008Gonzalez, L. (2008). “Mulher negra”. In E. L. Nascimento, (Org.), Guerreiras de natureza: mulher negra, religiosidade e ambiente (p. 29-47). São Paulo, SP: Selo Negro.) que cuidam dos filhos das elites agrárias. Estas mulheres veem-se num cenário ambivalente e adoecedor que as deslocam do papel de ‘mães pretas’, mas as mantêm submetidas à maternidade compulsória no contexto de relações patriarcais violentas de opressão sexista (Riscado, Oliveira & Brito, 2010Riscado, J. L. S., Oliveira, M. P. B., & Brito, A. M. B. B. (2010). Vivenciando o racismo e a violência: um estudo sobre as vulnerabilidades da mulher negra e a busca de prevenção do HIV/aids em comunidades remanescentes de Quilombos, em Alagoas. Saúde e Sociedade, 19(2), 96-108.). Dessa forma, a imposição da maternidade compulsória leva ao adoecimento das mulheres do quilombo e repercute diretamente na saúde destas mulheres que relatam casos de ‘doenças dos nervos’. A maternidade compulsória integra um modo de organização social patriarcal baseado na exploração do corpo das mulheres num exercício cotidiano de ‘pedagogias da crueldade’ (Segato, 2016Segato, R. (2016). Patriarcado: del borde al centro. Disciplinamiento, territorialidad crueldad en la fase apocaliptica del capital. In R. Segato, Rita. La guerra contra las mujeres (p. 91-108). Madrid, ES: Traficantes de Sueños.).

A naturalização da opressão de gênero vivida pelas mulheres negras no quilombo estudado é semelhante ao das mulheres de um quilombo do centro-oeste da Bahia investigado por Souzas (2015Souzas, R. (2015). Liberdade, violência, racismo e discriminação: narrativas de mulheres negras e quilombolas da mesorregião centro-sul da Bahia/Brasil. Revista da ABPN, 7(16), 89-102.), que mostra que as violências e discriminações vividas são compreendidas como parte de suas vidas, como um papel a ser exercido e tolerado. Esta compreensão se faz presente também no estudo de Silva (2016Silva, L H. R. (2016). Os sentidos atribuídos às identidades de mulheres quilombolas na escola de educação quilombolas (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-graduação em Educação, Cultura e Identidades da Universidade Federal Rural de Pernambuco e Fundação Joaquim Nabuco, Recife.), que afirma ainda ser necessário às mulheres quilombolas pesquisadas a necessidade de superação das relações de opressão presentes na vida familiar.

Identidade quilombola: a construção de um duplo vínculo e as diferenças geracionais entre as mulheres quilombolas

Quando a entrevista entrava nas discussões sobre as definições identitárias e a autoatribuição das entrevistadas enquanto quilombolas, uma compreensão comum era apresentada: a construção de um duplo vínculo com o território e com a identidade quilombola. Este duplo vínculo é identificado quando elas ao mesmo tempo em que afirmam, que o discurso da identidade quilombola é o que possibilitou a elas: um campo de reconhecimento político para a expressão de suas diferenças, e, como pontua Aguiar (2018Aguiar, M. A. (2018). Políticas culturais e os direitos de acesso e participação: análise dos discursos de identidade no Quilombo Sítio do Meio (MA). Brazilian Aplie Science Review, 2(5), 1783-1797.), processo de afirmação de seus saberes comunitários e de luta pela garantia de seus direitos; porém, este vínculo e pertencimento identitário é identificado como lugar que as lança às experiências de desigualdade, frente aos olhares alheios que as objetificam e as definem racialmente de forma pejorativa. Tais experiências de preconceito e discriminação são reconhecidas pelas participantes que as inserem em suas narrativas ambivalentes de luta por afirmação como quilombolas.

Eu vejo assim, dois momentos. No primeiro momento você morar na comunidade negra e que o preconceito era muito forte, como o pessoal chamava ‘terra de nego’, mas mesmo assim em nenhum momento eu me lembro de ter dito que não gostava de morar aqui, até porque na verdade, é neste lugar que me fiz gente e quem sou hoje, quilombola (Antônia, 47 anos, grifo nosso).

A ambivalência entre a afirmação como quilombola e o preconceito racial aparece de forma expressiva na narrativa de Josefa (71 anos), que no decorrer da entrevista, apresentava conflitos e tentativas de negociação sobre os modos de compreensão da identidade quilombola em sua vida, diante de variadas experiências de humilhação e discriminação vividas por pertencer ao território negro.

Aí no começo eu não queria ser negra quilombola. Agora, se eu tô dizendo que eu não queria ser negra, eu tô dizendo o quê? Eu tô botando a minha qualidade pra trás, né? É difícil. É difícil sabe por quê? Por que eu vejo aqui na televisão o que é que o povo faz com o negro. Tem um lugar que até matar, mata os negros. Tá vendo? E tem muitas coisas que vivi - como é que diz? - que as pessoas dizem, fazer pouco do outro […] Preconceito (Josefa, 71 anos).

Suas vivências apresentam-se cerceadas por esta duplicidade de vidas, que ora retomam o seu pertencimento étnico-racial e territorial como possibilidade de reconhecimento junto aos seus iguais, como lugar de recursos que possibilita a reprodução da vida e invenção de seus modos de ser e existir, e ao mesmo tempo, este mesmo pertencimento, quando interpelado por relações de dominação/opressão, os lançam em experiências de desigualdade que estão marcadas em suas memórias.

Como afirma Martins (2010Martins, J. S. (2010). A sociabilidade do homem simples: cotidiano e a história na modernidade anômala. São Paulo, SP: Contexto.), a história das trabalhadoras do campo é marcada por atos de violência, formas de desigualdades e práticas de marginalização oriundas do homem branco que, por meio de seus aparatos tecnológicos e jurídicos, lhes impõem um projeto civilizatório que deve ser seguido, como exigência para que estas populações sejam aceitas. Esta vida construída entre conflitos, desigualdades estruturais e exigências à aceitação no mundo dos brancos, pode gerar nestas populações uma vida de duplicidade e ambiguidades que trazem consigo a marca da hegemonia branco ocidental. Porém, como afirma Rivera-Cusicanqui (2010Rivera-Cusicanqui, S. (2010). Ch’ixinakax utxiwa una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores (E. Tinta Limón, ed.). Buenos Aires, AR: Tinta Limón.), estas tentativas de dominação nunca se totalizam por completo, os submetidos às lógicas da dominação produzem táticas de resistência que não respondem apenas aos mandos dos dominadores, mas às necessidades e capacidades emergentes de suas populações e realidades a se reinventarem diante dos parâmetros que os buscam colonizar.

De acordo com Rivera-Cusicanqui (2010Rivera-Cusicanqui, S. (2010). Ch’ixinakax utxiwa una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores (E. Tinta Limón, ed.). Buenos Aires, AR: Tinta Limón.), os povos latino-americanos têm seu modo de viver forjado no encontro com um projeto colonial que se pretende hegemônico, mas que nunca se efetivou por completo. As comunidades latino-americanas produzem um espaço de conjugação de seus horizontes políticos que, apesar de encontrar-se com o projeto colonial, não é produto final dele. Ao mesmo tempo que conjugam as lógicas coloniais as fazem em um movimento tático de subversão destas racionalidades manejando-as ao seu modo. Uma produção que não deve ser confundida com um sincretismo linear, mas enquanto processo que apresenta rupturas e usos diversos à afirmação de seu viver, ao mesmo tempo em que também se configura como processo no qual desaparecem as diferenças e distinções.

Apesar deste elemento comum narrado pelas três entrevistadas quanto à produção de um duplo vínculo no modo de vivenciar a identidade quilombola, há diferenças geracionais marcantes entre as narrativas de Débora (20 anos) e de Antônia (47 anos) frente o discurso de Josefa (71 anos) no modo como a categoria identitária quilombola subjetivou as suas práticas políticas e de enfrentamentos cotidianos.

Débora (20 anos) e Antônia (47 anos) narram que os processos identitários produzidos pela categoria quilombola configurou em seu modo de viver um campo psicopolítico que permitiu as mesmas: reinterpretar o seu território, refazer a leitura da história de sua comunidade, afirmar sua identidade étnico-racial e lutar pela garantia de seus direitos. Como segue nos trechos das entrevistas:

Depois que a comunidade foi reconhecida como quilombola as coisas mudaram por aqui. Na escola mesmo têm projetos de afirmação da identidade negra. Agora sabemos de nossos direitos. Quando vou para cidade, só vou para estudar, não é um lugar que eu quero ficar. Eu mesmo estou estudando para ser professora aqui. Não tenho planos de casar cedo como outras meninas, quero ser professora quilombola (Débora, 20 anos).

Hoje eu sinto orgulhosa de ser mulher quilombola, desta terra. Somos assim, um povo negro e temos nossos direitos. Direito de falar de nossa comunidade. Uma vez um aluno falou a professora daqui: ‘o ano todo, de vez em quando, você fala em negro’ e a professora respondeu: ‘Você se matriculou nessa escola, em uma comunidade negra, vai ouvir falar de negro, essa temática vai estar sempre presente, faz parte da sua e da nossa história’ (Antônia, 47 anos, grifo nosso).

De modo diverso, a narrativa de Josefa (71 anos) apresentou-se com certas resistências quanto à identificação com o termo quilombo, que para a mesma remetia ao período da escravidão e da vergonha de fazer parte de um grupo étnico-racial que viveu este processo interpretado por ela de forma humilhante. Porém, suas interpretações não fogem às ambiguidades e contradições geradas pelos discursos políticos identitários do quilombo enquanto território de resistência e afirmação da luta da população negra. Discursos estes que a fazem repensar seu modo de viver enquanto mulher negra, que produz contradições e tensionamentos para possibilidades à afirmação de sua identidade étnico-racial.

Como eu falei, não foi fácil esta coisa de pensar que aqui do sítio somos quilombola. Essa coisa de quilombola lembra mais os tempo da escravidão. É difícil ter orgulho de ser escravo. Ter orgulho desse meu cabelo, num é fácil. Não sei como essas menina de hoje tem coragem. Agora, se eu fosse nova, eu ia fazer quiném elas, botar um cabelo desse tamanho na minha cabeça e sair por aí [risos]. Ia ser lindo (Josefa, 71 anos).

Estas diferenças geracionais sobre a identidade quilombola vêm ao encontro do estudo de Valentim e Trindade (2011Valentim, R. P. F., & Trindade, Z. (2011). Modernidade e comunidades tradicionais: memória, identidade e transmissão em território quilombola. Psicologia Política, 11 (22).), realizado em uma comunidade quilombola do Espírito Santo, mostram que o contato com as discussões sobre identidade quilombola não modificaram de forma expressiva os modos como os idosos desta comunidade compreendem a realidade política de seu território. Já de forma oposta ocorre com os jovens e os adultos que subjetivam a identidade quilombola enquanto um processo necessário à garantia de direitos a sua comunidade, na afirmação de sua história, cultura e pertencimento étnico-racial.

A concepção de geração de Mannhein (1993Mannhein, K. (1993). El problema de las geraciones. Revista Española de Investigaciones Sociológicas (REIS), (62), 193-242.) pode auxiliar no entendimento desta diferente narrativa marcada pelo pertencimento geracional das entrevistadas. Para o autor, as transformações geracionais não são frutos apenas de um mero fenômeno natural ligado à idade e ao tempo retilíneo de nascimento, e muito menos, formações produzidas apenas pela realidade cultural de uma época. Elas se encontram no plano das relações entre forças sociais e políticas de sujeitos e coletivos, que ao nascerem em determinado tempo apresentam-se disponíveis a diferentes condições históricas, equipamentos, tecnologias, contextos culturais, que ora limitam, e ora abrem possibilidades à interpretação de suas experiências sobre a realidade.

As transformações geracionais não podem ser reduzidas simplesmente à determinação biológica do nascimento, mas da intersecção deste evento aliado à posição social e aos tensionamentos políticos que atravessam os sujeitos e as coletividades em uma determinada época. Tais atravessamentos podem possibilitar aos sujeitos e grupos manterem ou romperem com suas tradições, crenças e valores.

Assim, a identidade quilombola aciona dispositivos subjetivo políticos diversos nas entrevistadas, condicionado sobre as posições geracionais ocupadas por cada uma delas, as quais ora compreendem ser quilombola como a necessidade de reconhecimento da sua identidade étnico-racial, e com ela a luta pela garantia de direitos fundamentais às mulheres quilombolas; e ora identificam a menção ao quilombo aos sofrimentos vividos no passado, que para a idosa não se encontra tão distante das vivências experimentadas em sua vida enquanto mulher negra. Porém, a narrativa da identidade quilombola presente na comunidade insere no discurso da idosa um campo de tensionamento, capaz de produzir rupturas ao modelo racialmente hegemônico. No momento em que ela menciona a possibilidade de afirmar seu cabelo afro e, consequentemente, sua identidade negra quilombola, como as jovens e adultas da comunidade estão fazendo.

A categoria quilombola atualiza nas mulheres negras identidades políticas que exigem uma releitura dos processos de dominação étnico-raciais vividos pelas comunidades negras rurais. A conquista dos direitos às comunidades quilombolas, legitimadas pelo art.68 da Constituição Federal de 1988 e nos desdobramentos do decreto nº 4.887/2003, possibilitaram emergências destas identidades políticas, que reinterpretaram os territórios negros rurais, no reconhecimento e afirmação da identidade étnico-racial desta população.

Considerações finais

A presente pesquisa permitiu compreender nas narrativas das entrevistadas que o quilombo é descrito como lugar ambíguo, aquele possível à produção de seu modo de vida enquanto mulher negra e que apresenta em seu cotidiano relações de opressão que se perfazem, por meio da interseccionalidade entre os marcadores étnico-raciais e de gênero. Marcadores estes que buscam delimitar suas experiências enquanto mulheres negras violando o acesso aos seus direitos, negligenciando o respeito de sua autonomia e naturalizando os papéis de gênero exercidos no cotidiano da comunidade.

Uma diferença marcante foi o modo de subjetivar a identidade quilombola entre as diferentes gerações, sendo que para a jovem e para a adulta participantes, ser quilombola foi atribuído o sentido de afirmação de sua negritude e da luta pela garantia dos direitos às mulheres negras. Já a idosa apresentou ambiguidades na sua identificação enquanto quilombola, identificando a esta identidade as dificuldades e sofrimentos vividos enquanto mulher negra do campo. Porém, tal posição não se fez linear e estanque, ao contrário ela apresentou-se com negociações e contradições, que mesmo diante das ambiguidades apresenta posições do desejo de afirmação da identidade negra e quilombola.

Cabe questionar quais recursos estão disponíveis a cada sujeito que os permitam desmistificar as experiências de desigualdade vividas, para diante de sua realidade ressignificar seu modo de viver, em atuações que busquem afirmar suas necessidades e transformar a realidade em vias de integrar estas vivências dúbias na totalidade da vivência cotidiana.

A luta por reconhecimento não se finda na conquista da afirmação identitária quilombola, mas por meio desta permitir, mesmo diante dos tensionamentos e contradições, traçar objetivos políticos que garantam a efetividade dos direitos e a visibilidade dos modos de vida das mulheres negras quilombolas.

Referências

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    Apoio e financiamento: Universidade de São Paulo (USP).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    22 Out 2018
  • Aceito
    28 Maio 2019
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