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Psicologia, saúde e território: experiências na Atenção Básica

Psicología, salud y territorio: experiencias de atención básica en salud

RESUMO.

A saúde mental é um nó-crítico para a gestão da Atenção Básica, convocada diariamente a acolher o sofrimento psíquico individual e coletivo contando com equipes mínimas. Pouco antes da VIII Conferência Nacional de Saúde, que estabeleceria bases para um novo sistema brasileiro de saúde, estruturava-se na periferia da cidade de Porto Alegre-RS um serviço de saúde comunitária antecipatório à Estratégia Saúde da Família, em que algumas equipes já contavam com psicólogos. Este artigo procura refletir acerca do atual lugar do psicólogo no nível primário de atenção, discutindo a experiência de mais de duas décadas de trabalho da psicologia como integrante de unidades de saúde daquele Serviço. Finalmente, discute o potencial da inserção da psicologia no nível primário ao considerar a complexidade de uma prática que envolve atenção, gestão, formação e participação, no processo de trabalho em equipe multiprofissional.

Palavras-chave:
Psicologia da saúde; psicologia comunitária; Sistema Único de Saúde

RESUMEN

La salud mental es un crítico-nodo para la gestión de la atención primaria de salud, convocado al día para recibir a la angustia psicológica individual y colectiva y contando con equipos mínimos. Justo antes de la Conferencia Nacional de Salud VIII, que establecería bases de un nuevo sistema de salud brasileño, un servicio de salud comunitario fue estructurado en las afueras de Porto Alegre-RS de anticipación a la Estrategia Salud de la Familia, en el que algunos equipos ya contaban con psicólogos. En este artículo se pretende reflexionar acerca del lugar del psicólogo en el ámbito de la atención primaria, basado en la experiencia de más de dos décadas de trabajo de la psicología como parte de los centros de salud de ese Servicio. Por último, se analiza el potencial de la inserción de la psicología en el nivel primario a considerar la complejidad de una práctica que implica la atención, gestión, formación y participación en el proceso de trabajar en equipos multiprofesionales.

Palabras clave:
Psicología de la salud; psicología comunitaria; Sistema Único de Salud

ABSTRACT.

Mental health is a critical node for the management of Primary Health Care, convened daily to welcome the individual and collective psychological distress and counting on minimum teams. Shortly before the VIII National Health Conference, which would establish foundations for a new Brazilian health system, a community health service was structured on the periphery of Porto Alegre-RS anticipatory to the Family Health Strategy, in which some teams already counted on psychologists at that time. This article seeks to reflect on the psychologist’s current place in the primary care level, based on more than two decades of experience work in psychology as part of the health care facilities of that service. Finally, it discusses the potential of the psychology’s insertion at the primary level when considering the complexity of a practice that involves attention, management, training and participation in the process of working in multi-professional teams.

Keywords:
Health psychology; community psychology; Unified National Health System

Introdução

A psicologia não se inscreve totalmente no campo da saúde, seja como ciência ou como profissão. O processo histórico que a diferenciou da filosofia e a delimitação de seus objetos de conhecimento pelo paradigma cientificista tornou-a plural. A complementaridade da formação para dar conta do campo profissional torna-se comum ao psicólogo. Os programas recentes de Residências e algumas Especializações costumam acolher demandas de preparação para o trabalho quando o fazer do psicólogo deve se situar no setor da saúde.

A psicologia passou a integrar equipes de saúde apenas nas últimas décadas do século passado. Teve de contar com a formação que estava a sua disposição: graduação acadêmica e, eventualmente, formação em institutos psicanalíticos. Como a psiquiatria, que em dado momento de sua história se apropriou de elementos da psicanálise para o enriquecimento de sua prática, a psicologia também a adaptou como terapia de orientação psicanalítica. Em ambos os casos, o uso instrumental revelou que a transposição da práxis da psicanálise para servir à lógica da terapia produziu resultados equivocados (Figueiredo, 2004Figueiredo, A.C. (2004). Vastas confusões e atendimentos imperfeitos: a clínica psicanalítica no ambulatório público. Rio de Janeiro, RJ: Relume-Dumará.).

A psicologia passa a ser convocada ao trabalho em equipes multiprofissionais para ações em saúde mental no nível primário, em meados dos anos 80 (Jimenez, 2011Jimenez, L. (2011). Psicologia na atenção básica à saúde: demanda, território e integralidade. Psicologia e Sociedade, 23(n. spe.), 129-139.; Camargo-Borges & Cardoso, 2005Camargo-Borges C., & Cardoso C. L. (2005). A psicologia e a estratégia de saúde da família: compondo saberes e fazeres. Psicologia e Sociedade, 17(2), 26-32.). Como atividades comuns, o psicodiagnóstico, a psicoterapia analítica para adultos, a orientação e o aconselhamento para grupos (Tanaka & Ribeiro, 2009Tanaka, O. U., & Ribeiro, E. L. (2009). Ações de saúde mental na atenção básica: caminho para ampliação da integralidade da atenção. Ciência e Saúde Coletiva, 14(2), 477-486.). Dificuldades de ressignificação de settings clínicos tradicionais para o território vivo, distanciamentos culturais - entre profissional e usuários - e conceituais - entre a prática psicológica e valores do SUS, além do incipiente trabalho em equipe, estabeleceram alguns dos fatores que resultaram na baixa resolutividade das ações de saúde mental no nível primário (Jimenez, 2011Jimenez, L. (2011). Psicologia na atenção básica à saúde: demanda, território e integralidade. Psicologia e Sociedade, 23(n. spe.), 129-139.).

Esses fatos, somados à questão do baixo financiamento e outras opções de modelo de atenção, contribuíram para que o psicólogo não tenha integrado a equipe da Estratégia da Saúde da Família em seu primeiro projeto, ainda como programa (Brasil, 1994Brasil. (1994). Programa de Saúde da Família (PSF). Brasília, DF.), apesar da grande demanda de situações de saúde mental. Será apenas em 2008, com a criação do NASF (Núcleo de Apoio à Saúde da Família) que o profissional da psicologia volta a ser previsto como possível integrante de equipe multiprofissional da Atenção Básica (AB) em saúde (Portaria nº 154, 2008Portaria Portaria GM/MS nº 154, de 24 de janeiro de 2008. (2008). Cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família. Brasília, DF.).

Este artigo tem por objetivo contribuir com uma reflexão acerca de aspectos da atuação do psicólogo no nível primário de atenção à saúde. Para tanto, procura problematizar experiências da psicologia em saúde por meio da expressividade de algumas cenas do trabalho do psicólogo como membro de equipe multiprofissional de um serviço de saúde comunitária em Porto Alegre-RS, cujas práticas são orientadas pelos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e pelas diretrizes da Atenção Primária em Saúde (APS). Tal material de análise é procedente do cotidiano de observações e vivências com as práticas de colegas, em especial as do próprio autor, realizadas por dez anos seguidos no período de 2003 a 2013. Por fim, discutirá como pode operar a inserção da psicologia na AB ao considerar a complexidade de sua atuação articulada entre atenção, gestão, formação e participação no processo de trabalho.

A psicologia no nível primário de atenção à saúde

Ao mesmo tempo em que a Reforma Sanitária instituía suas propostas por meio da VIII Conferência Nacional de Saúde e, posteriormente, pela Constituição Federal de 1988, que resultaria no estabelecimento do novo sistema brasileiro de saúde (SUS), movimentos sociais de bairros periféricos da cidade de Porto Alegre-RS conquistaram o direito de usufruir do serviço de unidades de saúde próximas as suas residências. Médicos comunitários, enfermeiros e, aos poucos, outros profissionais, passaram a atender as demandas de saúde mais comuns, sem que aquela população precisasse utilizar os serviços de emergência do hospital geral como única alternativa. Trinta anos depois, cerca de 110.000 habitantes, população equivalente a municípios de médio porte do Rio Grande do Sul, contam com unidades básicas de saúde, CAPS, Consultório na Rua e serviços de apoio em epidemiologia, educação em saúde e matriciamento, como componentes de um serviço de saúde comunitária bem estruturado.

A formação das equipes foi procedida de acordo com as necessidades dos territórios e negociada em conjunto pela população e profissionais envolvidos. A conquista das comunidades evoluiu para o estabelecimento de equipes multiprofissionais mais completas. Nos primeiros anos da década de 90, três unidades passaram a contar também com psicólogos, além de médicos, enfermeiras, dentistas, assistentes sociais e profissionais de nível técnico da enfermagem e odontologia.

A opção pelos princípios da APS como organizadores daquele serviço de saúde comunitária teve um papel importante na definição de processos de trabalho em equipe multiprofissional. A partir das realidades de cada território - tomado em seu sentido ampliado, o que inclui a consideração dos modos de vida, de usos dos espaços e as relações estabelecidas entre as pessoas - cada equipe foi definindo seus modos de operar pautados pelos princípios de primeiro contato, longitudinalidade, integralidade e coordenação do cuidado.

Ao repensar cânones acadêmicos que sustentavam seus raciocínio e prática para integrar-se àquela nova situação, a psicologia reconheceu a complexidade do que representa proceder ao cuidado integral em saúde realizado no território: a integralidade do cuidado não se resume na atenção à saúde dos usuários, mas implica atuar também nos registros da gestão, da formação e do controle social (Ceccim & Feuerwerker, 2004Ceccim, R. B., Feuerwerker, L. C. M. (2004). O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 14(1), 41- 65.).

Embora não seja uma prática vedada à APS, organizar o trabalho apenas sobre o agendamento de consultas constitui duplo equívoco. O primeiro está situado no nível da gestão, na medida em que as possibilidades de agendamento esgotam rapidamente ou as consultas costumam ser subutilizadas, seja pelo absenteísmo, seja por uma necessidade mal endereçada. O segundo equívoco é conceitual, pois os atendimentos ambulatoriais baseados na queixa-conduta não impactam indicadores de saúde, não trabalham com promoção e nem com o cuidado vigilante ao longo do tempo da saúde das famílias e indivíduos, como se espera dos cuidados primários.

Em meados dos anos 2000, todas as 12 equipes passaram a contar com psicólogos. Em um processo de educação permanente em serviço, os psicólogos do SSC/GHC foram apresentados a um modo de trabalhar que exigiu um esforço de adaptação de seus conhecimentos e de desenvolvimento de outras práticas mais integradas à lógica da APS nos territórios.

Como procedimento para cumprir os objetivos deste trabalho, após breve problematização acerca dos sentidos possíveis que ‘saúde’ e ‘saúde mental’ podem assumir no contexto de uma instituição estruturada pelo saber médico, serão apresentadas, em formato de cenas, algumas práticas desenvolvidas pela psicologia no referido serviço de saúde comunitária para evidenciar efeitos da construção do lugar do psicólogo no contexto da APS e permitir algumas conclusões a respeito.

Os cenários de práticas

A APS estabeleceu suas bases por meio de um processo histórico que data oficialmente do encontro mundial de Alma-Ata sobre cuidados primários em saúde, em 1978, pelas necessidades dos países desenvolvidos de prover sustentabilidade a seus sistemas de saúde, especialmente por conta da ruptura do capitalismo dos anos 70.

A compreensão construída ao longo dos anos sobre APS não é única. Tanto pode ser entendida como conjunto de práticas médicas de saúde básica, como organizadora de um sistema de saúde (Muldoon, Hogg, & Levitt, 2006Muldoon, L. K., Hogg, W. E., & Levitt, M. (2006). Primary care (PC) and primary health care (PHC). What is the difference? Canadian Journal of Public Health Revue Canadienne de Sante Publique, 97(5), 409-411.). Assim, o fazer em APS não é absolutamente padronizado. O primeiro nível de atenção do sistema de saúde brasileiro é baseado nos princípios, diretrizes e valores da APS, embora assuma a denominação de Atenção Básica (AB) para marcar uma diferença promovida pelo discurso da saúde coletiva construído no processo de Reforma Sanitária.

A presença da saúde coletiva, problematizando paradigmas biologicistas com a determinação social dos fenômenos de saúde e doença (Ceccim, 2007Ceccim, R. B. (2007). Invenção da saúde coletiva e do controle social em saúde no brasil: nova educação na saúde e novos contornos e potencialidades à cidadania.Revista de Estudos Universitários, 33(1), 29-48.), não alterou definitivamente a organização programática do trabalho em equipe, a clínica, a prevenção e a vigilância em saúde, que frequentemente ainda se constroem sobre a racionalidade médica.

O fazer do psicólogo em saúde naquele serviço de saúde comunitária precisou se reinventar a partir dos efeitos do discurso médico - paradigmas biológicos e mecanicistas a respeito do corpo e da saúde - e do discurso da APS - primeiro contato, longitudinalidade, integralidade e coordenação do cuidado.

Porém, as necessidades em saúde específicas dos territórios e a multiprofissionalidade contribuíram para o estabelecimento de relações e práticas de trabalho renovadas. O que inicialmente aparecia como demandas ao psicólogo, a saber, questões ‘emocionais’ surgidas em consultas médicas, problemas de aprendizagem encaminhados pelas escolas e conflitos entre colegas de equipe no processo de trabalho, passaram a ser tomadas não apenas como objetos de terapia. Também se relativizou a naturalização de demandas como ‘psicológicas’, movimento que fez equipes reafirmarem o potencial de intervenção dos demais profissionais.

As duas cenas expressivas da prática do psicólogo em saúde, apresentadas a seguir, podem ser consideradas como resultado de construções e reinvenções de um trabalho que se estendeu ao longo de três décadas. Um fazer tributário da presença do profissional da psicologia na linha de frente dos territórios da saúde, no contexto do SUS, permeado pelos princípios da APS, bem como de duas grandes reformas, a saber, a sanitária e a psiquiátrica.

Cenas de formação e trabalho

Há duas demandas comuns que precisam ser trabalhadas pelo psicólogo para que seu modo de proceder não repita práticas pouco resolutivas na saúde. Uma delas provém do discurso hegemônico médico que costuma legislar sobre como e com quem o psicólogo deve intervir. Trabalhar a adesão a tratamentos médicos ou fazer terapia com paciente poliqueixoso, que nunca melhora, são exemplos. A outra, decorrente da primeira, é da própria construção social da demanda em saúde mental e do que seja o trabalho do psicólogo: aquele que resolve problemas cognitivos ou desajustes de comportamento que não sejam de ordem orgânica, por meio de alguma técnica de sugestão ou dinâmica terapêutica. É preciso indagar como a psicologia pode dar melhores respostas e colaborar no processo de cuidado integral em saúde?

É comum que profissionais da AB se sintam assoberbados pelas frentes de trabalho a que têm de corresponder. No entanto, ao constituírem uma espécie de desalienação das receitas paradigmáticas do trabalho compartimentalizado, podem perceber que operar articuladamente pelos quatro discursos do campo da saúde é essencial para a integralidade do cuidado e potencialização dos efeitos de suas práticas. O esclarecimento sobre os princípios da APS e a intimidade com o território e suas territorialidades também desempenham um papel decisivo no entendimento das especificidades da AB, por parte dos trabalhadores, e para a pertinência de seus atos cuidadores.

Primeira cena, primeiro ato

Entre tantos desafios advindos do modo peculiar com que os problemas se apresentam ao trabalho com o território vivo, uma das primeiras inquietações que levaram o autor a produzir atos como novo psicólogo de uma já antiga equipe foi o problema das longas filas a cada início de turno e do retorno de muitos usuários para suas casas sem obterem o que procuravam. A percepção da comunidade era de que faltavam médicos. Corria o ano de 2004 e a política do ‘acolhimento’ ainda não havia sido estabelecida nas unidades daquele serviço de saúde comunitária. Porém, já havia sensibilização para o problema do acesso que, sabidamente, não se restringia à consulta médica. Ao novo psicólogo parecera essencial ‘escutar’ aquela população a respeito de sua experiência em ‘acessar a unidade’, o que diz respeito à observância do primeiro princípio da APS: ser a porta de entrada do sistema de saúde, ou seja, o primeiro contato.

Em reunião do colegiado gestor da Unidade, o psicólogo propôs intervenção baseada na escuta da comunidade. A Unidade abriria meia hora antes do horário formal em cada turno e convidaria quem estivesse na fila a entrar, tomar um café e conversar sobre a experiência de ‘esperar’ seu atendimento. Conversar a respeito da espera’ tinha o efeito duplo de aprender sobre a experiência daquele sujeito que aguarda na porta da unidade de saúde, além de escutar uma dimensão do desejo implícita no sentido possível ao ato de quem ‘espera’ alguma coisa.

Durante duas semanas todos os profissionais da equipe, assim como residentes de medicina e estagiários de psicologia participaram, em duplas, de encontros em dois turnos com os usuários, o que permitiu levantar uma série de impressões sobre a equipe, o trabalho na unidade e levantar algumas ideias para a melhoria do acesso. O passo seguinte foi devolver à equipe a compilação de problemas e propostas à equipe para que pudesse realizar uma reformulação de seu processo de trabalho, inventando novos modos de receber os usuários e de reorientar modos de atender à população.

A descrição completa desse dispositivo que integrou elementos de gestão, atenção e participação, está em Medeiros, Iung e Comunello (2007Medeiros, R .H. A., Iung, A. M. B., & Comunello, L. N. (2007). A espera: projeto e ação de acolhimento a partir da escuta da população. PSICO, 38(1), 17-24.). Neste artigo, cabe resgatar um dos efeitos dessa tentativa de diagnosticar problemas do acesso aos cuidados básicos. Trata-se da relativização da ideia de que toda a fila representava demanda natural à medicina. Descobriu-se, fora do consultório, que nem todo o pedido se endereçava ao médico, mas que era costume da população marcar a consulta como meio para chegar a seu objetivo principal. Essa descoberta, confrontada com a percepção comum de que uma queixa pouco clara ou deslocada do âmbito médico por parte do paciente representaria falta de demanda, parece ser a condição suficiente da necessidade de estabelecer uma escuta que permitisse transformar a queixa do usuário em uma construção de demanda pelo atendimento. Ato fundamental, onde as filas são grandes e as agendas, curtas.

Segundo ato

O consultório que o psicólogo dividia com a colega do serviço social situava-se, naquele tempo, bem ao lado do balcão da recepção da Unidade. Era inevitável ouvir os modos como cada recepcionista dialogava com os usuários para orientá-los naquilo que buscavam. Uma delas apenas encaminhava os pedidos. A outra, perguntava os motivos.

O que talvez parecesse inadequado pelo suposto constrangimento aos usuários em revelar os motivos de sua visita, era na verdade um modo potente de operar para o melhor encaminhamento do próprio pedido que ali se manifestava apenas como um querer: “[...] quero consultar um doutor”. A pergunta incomum da recepcionista - por quê? - convocava o usuário a tentar colocar em palavras algo de seu desejo e parte de seu sofrimento. A sabedoria a respeito dos limites do agendamento e do fato de muitos casos serem resolvidos por outros profissionais que o médico, permitia àquela recepcionista ‘enxerida’ encaminhar certos pedidos sem perda de tempo ou gasto de recursos.

Um dispositivo que pudesse trabalhar a queixa para construir demandas de atendimento pareceu pertinente ao trabalho do psicólogo naquela Unidade. A experiência pregressa ensinava que abrir a agenda e atender a ‘demanda’ também se constituía em duplo engano: que tal conduta daria conta do volume de encaminhamentos à psicologia e que a demanda pelo atendimento já viesse construída no tempo da queixa, o que são coisas distintas.

Após o estudo sobre experiências da recepção em saúde mental, o autor instaurou como dispositivo de acesso à psicologia o ‘grupo de recepção’: espaço coletivo onde aqueles que manifestassem um pedido de escuta ao psicólogo seriam acolhidos para iniciar o processo de construção de uma demanda de atendimento. Espaço pouco comum que causara estranheza até mesmo a membros da equipe, que imaginavam como delicada a exposição de um sujeito supostamente vulnerável numa avaliação grupal ou, talvez, que terapia deva ser algo privado. É característica da estrutura neurótica a sobrevalorização de seu sintoma e é justificado o equívoco da equipe, e de alguns usuários, por julgarem que toda a prática profissional na saúde é semelhante ao modelo da consulta médica. O objetivo do grupo de recepção e a técnica de entrevistas iniciais diferenciavam-se de uma avaliação psicológica. Tratava-se de acolhimento e construção de uma demanda de atendimento com vistas ao projeto terapêutico. A clareza sobre essa diferença e o potencial de transformar queixas comuns em demandas endereçadas ao serviço ou ao psicólogo, passo fundamental para o início de qualquer tratamento, trouxe algumas mudanças significativas. Evitaram-se agendamentos desnecessários, as reservas de horas da agenda do psicólogo foram mais bem aproveitadas com a diminuição do absenteísmo e reduziram-se tempos de espera para o primeiro atendimento.

A criação de uma agenda aberta da psicologia, em que os próprios usuários reservavam seus horários e preenchiam uma ficha com seus dados e motivos da consulta - num primeiro esforço de enunciação de seu sofrimento - foi um dos primeiros produtos do dispositivo de recepção. Aos poucos, essa mesma agenda passou a ser utilizada pela própria equipe. A lógica de constituir um espaço de acolhimento aos pedidos endereçados à psicologia foi, dessa forma, estendida à discussão dos casos de encaminhamentos à psicologia, supervisão ou mesmo realizar consultas conjuntas com os demais colegas, revelando potencial clínico e de gestão da clínica.

Considerações finais

A experiência da psicologia, tal como apresentada nesse artigo, não se pretende paradigmática. O fato de a psicologia não se inscrever totalmente no campo da saúde lhe confere graus de liberdade para lidar com condições fundamentais: a problematização de linhas teóricas que suportam suas práticas e o potencial de lançar um olhar diferenciado acerca dos fenômenos de saúde e do adoecimento no território, bem como acerca dos processos institucionais. O interesse desse artigo está na reflexão acerca de problemas e caminhos possíveis para situar lugares potentes do psicólogo quando defrontado com os discursos da área da saúde.

As políticas públicas que ordenam a rede de atenção em saúde não têm fomentado o aumento da presença da psicologia no seu nível primário. O psicólogo brasileiro, hoje, está previsto como integrante de equipes de CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), de NASF (Núcleo de Apoio à Saúde da Família), de Consultórios na Rua ou outros equipamentos de nível secundário das Redes de Atenção Psicossocial (RAPS). Apesar da saúde mental constituir um dos nós-críticos da AB, o psicólogo está pelo menos um degrau afastado desse cenário. Se o processo da reforma psiquiátrica foi responsável pela criação de serviços substitutivos para o atendimento aos transtornos graves e persistentes e ao abuso de drogas, os menos graves - mas mais prevalentes, em especial a depressão e os problemas de aprendizagem e relacionamento social - ficaram ao encargo da equipe mínima da ESF.

Segundo as políticas para a AB, supõe-se que as funções do psicólogo mais próximas aos territórios são o apoio institucional e o matriciamento no registro do NASF. Como referido no início do artigo, a explicação para o resultado insatisfatório da inserção inicial da psicologia na AB recaiu especialmente nas confusões da adaptação da clínica psicanalítica para servir a propósitos terapêuticos, evidentemente cooptados pelo modelo médico de tratamento, bem como na impossibilidade de ter surgido naquele momento uma psicanálise sintonizada com as peculiaridades dos territórios e coletividades atendidas (Jimenez, 2011Jimenez, L. (2011). Psicologia na atenção básica à saúde: demanda, território e integralidade. Psicologia e Sociedade, 23(n. spe.), 129-139.). A base de apoio teórica das primeiras psicólogas que compuseram, nos anos 90, as equipes daquele serviço de saúde comunitária era psicanalítica. As psicólogas que chegaram na segunda metade dos anos 2000, sustentavam suas práticas na psicologia social e em pressupostos da saúde coletiva. No entanto, traços da psicanálise seguiam servindo aos atos de escuta em consultório.

Se faz importante pontuar que o trabalho do autor como psicólogo no contexto da saúde foi estruturado sobre sua formação psicanalítica. Esse aspecto é importante para estabelecer uma primeira proposição: não há uma linha teórica privilegiada para o sucesso do trabalho em saúde, nem práticas psicológicas mais apropriadas do que outras. Ao que parece, é a disponibilidade de deixar que a realidade dos territórios e os diferentes saberes interroguem suas racionalidades o que potencializa um fazer em psicologia.

Parece claro, também, que o trabalho do psicólogo experimentou vários âmbitos do campo da saúde. Essa característica talvez indique que dispositivos e ações construídos por meio da circulação e afetação recíproca da gestão, da formação, da participação, além da atenção, tenham maior potencial para conceber inovações e soluções ao trabalho coletivo em saúde (Ceccim & Feuerwerker, 2004Ceccim, R. B., Feuerwerker, L. C. M. (2004). O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 14(1), 41- 65.). Quando isso é possível, por implicar articulação entre os variados âmbitos de práticas em saúde, a complexidade do trabalho não se torna um fardo pesado, mas condição do seu potencial criativo.

Afetar-se pelas territorialidades e enriquecer a prática pelos outros olhares presentes na equipe auxiliam o fazer da psicologia na AB. Foi dessa forma que o entendimento acerca dos propósitos de trabalho na AB foi fundamental para que o psicólogo aprendesse sua especificidade e lugar na equipe. Os princípios, diretrizes e valores da APS, ao orientar práticas de todas as categorias profissionais presentes nas equipes daquele serviço de saúde comunitária, agem como um elemento que possibilita o diálogo interdisciplinar, na medida em que todos eram convocados a falar ao menos uma mesma língua, embora com dialetos distintos. O campo e os núcleos de saberes e práticas (Campos, 2000Campos, G. W. S. (2000). Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. Ciência e Saúde Coletiva, 5(2), 219-230.) passam a operar dialógica e colaborativamente.

Segundo Medeiros (2008Medeiros R. H. A. (2008). O procedimento do colecionador como fundamento da condição de transdisciplinaridade. Barbarói, 29(1), 9-23.), os princípios da APS podem servir inclusive como mediadores de discussões de casos clínicos em equipe multiprofissional, o que pode materializar práticas realmente transdisciplinares no trabalho em saúde. A educação permanente, que se solidificaria como diretriz de formação profissional (Brasil, 2009Brasil. Ministério da Saúde. (2009). Política nacional de educação permanente em saúde. Brasília, DF.), já estava presente nessa experiência que é tomada em análise: formação em serviço transformadora e produtiva de inovações no processo de trabalho (Ceccim, 2005Ceccim, R. B. (2005). Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 9(16), 161-197.).

Outra ilustração expressiva do potencial criativo da não dissociação entre gestão, clínica, formação e participação, aparece nos elementos fundamentais da proposta do ‘grupo de recepção’ da psicologia e de seus produtos, como a agenda aberta e as discussões de encaminhamentos ou consultas conjuntas com outras categorias profissionais. Aquele Tal dispositivo promoveu efeitos diretos não apenas na gestão do tempo do psicólogo, mas em processos de encontro interdisciplinar com vistas ao cuidado em saúde mental, além de atividades de formação a partir das discussões, supervisões ou atendimentos conjuntos.

O aspecto participativo daquele espaço de escuta se fazia presente pelo privilégio da fala e da experiência do usuário em relação ao saber técnico da psicologia. Após o trabalho de entrevistas iniciais, as orientações terapêuticas não se resumiam em encaminhamentos para uma terapia individual. A decisão do que fazer partia da escuta clínica, da construção conjunta com o usuário e eventualmente com o profissional que o encaminhou, mesmo de instituições como a Escola ou equipamentos da rede de assistência social. A construção da demanda e da orientação terapêutica facultava ao usuário optar pela permanência naquele grupo, pela participação em outras atividades de promoção e educação em saúde na unidade ou fora dela. O restabelecimento da rede de apoio, do lazer, realização de consultas com outros profissionais ou orientação para obter benefícios sociais, também perfaziam possibilidades de encaminhamentos, entre tantos possíveis, A desnaturalização da demanda como psicológica, a partir da escuta psicanalítica, neste caso, ampliava o potencial do cuidado integral ao não resumir as ações ao recorte da psicologia.

A história das práticas e do modo como o grupo de 12 profissionais da psicologia foi se entrosando e construindo elementos comuns de atuação na APS, apesar de mantidas diferenças conceituais, parece reforçar que o potencial de atuação da psicologia aumenta quando não se mantém rígida em suas bases teóricas e se permite compartilhar o fazer em saúde. O reconhecimento do processo histórico e das conquistas do movimento de reforma sanitária que modificou o acesso à saúde e incrementou os indicadores de qualidade de vida no Brasil, especialmente das comunidades periféricas dos grandes centros urbanos, compromete o psicólogo da rede de saúde a posicionar-se eticamente com respeito a seu lugar junto às equipes de AB ou nas práticas específicas da saúde mental. Essa posição crítica, adicionada à clareza sobre os objetivos e especificidades do trabalho na AB e às singularidades do território entendido como processo de relações e produção de modos de vida, inclui o psicólogo como promotor de saúde; o que excede o recorte técnico e especialista da saúde mental.

Profissionais de psicologia do referido serviço de saúde comunitária sustentam a mais de três décadas o trabalho integrado com a equipe nos territórios da saúde e, ao que parece, mostram a efetividade de sua presença neste nível de atenção. A circulação entre os quatro âmbitos do setor saúde, na medida em que muitos desempenharam diretamente o papel de preceptoria e supervisão de residentes e estagiários, assim como de gestores de Unidades, mais do que representar assoberbamento de funções, revelou o potencial do profissional da psicologia para o trabalho na linha de frente da AB. Em certo momento da década passada, pela acumulação de práticas e saberes, mais da metade das equipes componentes eram coordenadas por psicólogos, revelando outros tipos de competências no exercício de uma função natural ao médico ou ao enfermeiro.

A qualidade da relação que o psicólogo pode estabelecer com o restante da equipe, território e usuários, parece facilitar a aproximação de perspectivas sobre a saúde e estabelecer parcerias de trabalho. Essa qualidade opera melhor quando ele participa do cotidiano de trabalho de uma equipe, do que apenas em situações esporádicas de apoio ou matriciamento a ela, como atestam as recentes experiências (Leite, Andrade, & Bosi, 2013Leite, D. C., Andrade, A. B., & Bosi, M. L. M. (2013) A inserção da psicologia nos núcleos de apoio à saúde da família. Physis: Revista de Saúde Coletiva , 23(4), 1167-1187.). O agendamento de consultas conjuntas, discussão de encaminhamentos à psicologia ou estabelecimento de projetos terapêuticos singulares a partir do ‘grupo de recepção’, são exemplos de práticas afins ao matriciamento (Cunha & Campos, 2011Cunha, G. T., & Campos G. W. S. (2011). Apoio matricial e atenção primária em saúde. Saúde e Sociedade, 20(4), 961-970.), organizadas no próprio processo de trabalho em equipe. O mesmo trabalho é realizado hoje pela equipe do NASF, mas é insuperável o entrosamento entre profissionais que trabalham juntos cotidianamente e conhecem bem seu território e a cultura organizacional do trabalho da Unidade. Fatos que relativizam as decisões da política de localização estratégica do psicólogo na rede com respeito ao nível primário de atenção.

A psicologia na saúde apresenta alguns dilemas éticos, técnicos e aporias de caráter prático na condução do cuidado integral por parte dos profissionais que a experimentam. De um lado, a construção social do que é um psicólogo e a expectativa do setor saúde a respeito de seu fazer, conduzindo-o na direção de responder a todas as demandas com o conhecimento prévio de uma intocada filiação teórica. De outro, a crença que procedimentos técnicos pré-determinados possam ser aplicados independentemente da singularidade do território, especialmente nos casos em que a ênfase da queixa está situada no campo da saúde mental. A exemplo de algumas proposições de Spink (2003Spink, M. J. (2003). Os psicólogos na saúde: reflexões sobre os contextos da prática profissional. In Psicologia social e saúde: práticas, saberes e sentidos (p. 77-159). Petrópolis, RJ: Vozes.), afirma-se, finalmente, que a melhor situação do trabalho em psicologia da saúde pode ocorrer quando ela se encontra integrada com os demais saberes circulantes nas equipes, ora modulando certas práticas tradicionais e hegemônicas do setor, ora potencializando a promoção e a integralidade do cuidado em saúde em defesa da vida. A contribuição prática da psicologia na rede de atenção à saúde é inestimável quando ela consegue escapar ao discurso hegemônico que também a captura e, assim, desconstruir práticas promotoras das medicalizações, seja da saúde, seja dos modos de vida em sociedade.

Referências

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  • Brasil. Ministério da Saúde. (2009). Política nacional de educação permanente em saúde Brasília, DF.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2018
  • Aceito
    24 Jun 2020
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