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Entre a benesse e o direito: as políticas de atendimento à população em situação de rua na América Latina

Entre el favor y el derecho: las políticas de asistencia a la población en la situación de calle en Latinoamérica

RESUMO

O presente trabalho analisou a literatura científica sobre políticas sociais e população em situação de rua nos países latino-americanos. Foram analisados 51 artigos buscados nas bases de dados Scielo, Lilacs e Redalyc, a partir da palavra-chave ‘População em Situação de Rua’, que apresentam experiências e reflexões acerca do atendimento a esse segmento na Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e Cuba. Identificou-se que, apesar de perfis semelhantes, trata-se de um segmento bastante heterogêneo. As principais ênfases sobre as políticas sociais foram nas áreas da assistência social e saúde, e estas ainda tendem para o assistencialismo. Contudo, houve avanços na criação de legislações, serviços e políticas para a garantia de direitos. Enfim, nota-se a necessidade de aprofundar a discussão acerca da determinação produtora da desigualdade social e o avanço na implementação de políticas sociais que visem possibilitar o real acesso aos direitos sociais por esta população.

Palavras-chave:
População em situação de rua; políticas sociais; América Latina

Keywords:
Population in street situation; social policies; Latin America

RESUMEN

En el estudio se analizó la literatura científica sobre políticas sociales y población en situación de calle en los países latinoamericanos. Se analizaron 51 artículos buscados en las bases Scielo, Lilacs y Redalyc, a partir de la palabra clave ‘Población en Situación de Calle’, presentando experiencias y reflexiones acerca de la atención a ese segmento en Argentina, Brasil, Chile, Colombia y Cuba. A pesar de perfiles similares, se trata de un segmento bastante heterogéneo. Los principales énfasis fueron en las áreas de la asistencia social y salud, y éstas todavía tienden hacia el asistencialismo. Hubo avances en la creación de legislaciones, servicios y políticas para la garantía de derechos. En fin, se nota la necesidad de profundizar la discusión sobre la determinación productora de la desigualdad social y el avance en la implementación de políticas sociales que apunte a permitir el verdadero acceso a los derechos sociales por esta población.

Palabras clave:
Población en situación de calle; políticas sociales; Latinoamérica

ABSTRACT.

The present study analyzed the scientific literature on social policies and the homeless population in Latin American countries. We analyzed a total of 51 articles from a search in the databases Scielo, Lilacs and Redalyc using the keyword ‘População em Situação de Rua’, presenting experiences and reflections about the service to this segment in Argentina, Brazil, Chile, Colombia and Cuba. Despite similar profiles, it is a very heterogeneous segment. The main emphases on social policies were in the areas of social assistance and healthcare, and these still tend towards welfarism. However, progress has been made in the creation of legislation, services and policies for guaranteeing rights. Finally, there is a need to deepen the discussion about the productive determination of social inequality and the progress in the implementation of social policies that aim to enable real access to social rights by this population.

Keywords:
Population in street situation; social policies; Latin America

Introdução

A pobreza e a concentração de renda são fenômenos arraigados ao modo de produção capitalista, que se intensificam em determinados períodos históricos e ganham contornos perversos nos países periféricos. Dados da organização internacional Oxfam (2017)Oxfam. (2017). Uma economia para os 99%. Recuperado dehttps://www.oxfam.org.br/sites/default/files/economia_para_99-relatorio_completo.pdf
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, relativos ao ano de 2016, apontam que apenas oito homens bilionários possuíam a mesma riqueza que as 3,6 bilhões de pessoas mais pobres do mundo. Tais dados explicitam a ‘questão social’5 5 A questão social aqui é entendida como “[...] conjunto dos problemas políticos, sociais e econômicos postos pela emergência da classe operária no processo de constituição da sociedade capitalista. Em outras palavras, trata-se da manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição capital-trabalho” (Yamamoto & Oliveira, 2014, p. 23). , oriunda do processo de desigualdade na distribuição diferenciada dos bens socialmente produzidos, intensificada no modo de produção capitalista com a expansão e generalização da pobreza, ao mesmo tempo em que ocorre aumento da capacidade de produção de riquezas (Netto, 2006 P-Netto, J. P Netto . (2006). O capitalismo contemporâneo. In J. P-neto Netto & M. Braz(Orgs.), Economia Política: uma introdução crítica (p. 211-241). São Paulo, SP: Cortez.).

Um reflexo disto é como a história da América Latina é marcada por exploração e violência desde a colonização dos europeus sobre os povos nativos, gerando exclusão socioeconômica e político cultural, concentrações de terras, renda, expulsão e massacre dos indígenas e africanos escravizados. De acordo com Mattei (2015Mattei, L. (2015). Políticas sociais de enfrentamento da pobreza na América Latina: uma análise comparada entre Brasil e Argentina. Revista Katálysi, 18(2), 222-230. doi: 10.1590/1414-49802015180200008
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), os colonizadores europeus destinaram a esse espaço geográfico apenas a função de produção e suprimento de bens primários necessários ao atendimento dos interesses das metrópoles. Tal lógica colonizadora, além de formar e estabelecer uma estrutura socioeconômica voltada ao exterior, deixou marcas econômicas e sociais ainda presentes nos países latino-americanos, entre elas a pobreza e desigualdade social.

Ao longo do século XX, a América Latina passou por processos ditatoriais violentos que contribuíram para consolidar elites econômicas intimamente vinculadas ao sistema de representação política e ao aparelho burocrático do Estado. Pase e Melo (2017Pase, H. L., & Melo, C. C. (2017). Políticas públicas de transferência de renda na América Latina. Revista de Administração Pública, 51(2), 312-329. doi: 10.1590/0034-7612150770
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) apontam que após o período de redemocratização dos países latino-americanos nas décadas de 1990 e 2000, com a eleição de presidentes reformistas e, com políticas mais populares, se instaura na região a possibilidade de construção de políticas públicas como materialização da correlação de forças políticas presentes na sociedade.

Frente a este contexto, percebe-se que entre as diversas expressões da ‘questão social’ que marcam a vida nas cidades latino-americanas, encontra-se o fenômeno da População em Situação de Rua (PSR), grupo populacional que vive em condição de extrema pobreza e vivencia uma série de violências e violações de direitos sociais em seu cotidiano. Silva (2009Silva, M. L. L. (2009). Trabalho e população em situação de rua no Brasil. São Paulo, SP: Cortez.) aponta que a PSR é uma expressão radical da questão social, sendo um dos grupos que expressa mais fortemente a materialização da violência imposta pelo sistema capitalista sobre as vidas humanas.

Trata-se de um fenômeno complexo, urbano, internacional e que possui múltiplas determinações. A história da PSR não é recente, mas paralela à história das cidades. Para desvelar fenômeno tão complexo faz-se mister considerar os fatores econômicos, políticos e sociais que determinam sua historicidade. Bursztyn (2000Bursztyn, M. (2000). No meio da rua: nômades, excluídos e viradores. Brasília, DF: Garamond., p. 19) afirma que “[...] viver no meio da rua não é um problema novo. Se não é tão antigo quanto à própria existência das ruas na vida urbana, remonta, pelo menos, ao renascimento das cidades, no início do capitalismo”.

No Brasil, assim como na maior parte dos países latino-americanos, foram criadas, desde o período colonial, ações voltadas para o atendimento das populações que viviam nas ruas, sobretudo crianças e jovens mestiços, filhas e filhos ilegítimos de senhores de engenho com indígenas ou africanas escravizadas, que eram abandonadas e acolhidas por instituições católicas, que seguiam a lógica de docilização e domesticação dos povos nativos pela via da conversão ao cristianismo (Faleiros, 2004Faleiros, V. P. (2004). Infância e adolescência: trabalhar, punir, educar, assistir, proteger. Revista Ágora: Políticas Públicas e Serviço Social, 1(1), 1-9.). Além das ações filantrópicas, a repressão ao longo dos séculos marcou a história das ações voltadas para a PSR.

Nas ruas das grandes e médias cidades de diversos países da América Latina há contingentes cada vez maiores de pessoas que, por diversas situações, encontram nas ruas o espaço mais significativo de sociabilidade, trabalho e/ou moradia. São homens, mulheres, idosos, crianças e adolescentes, famílias inteiras, desempregados, egressos do sistema penitenciário, sujeitos com/em sofrimento e/ou transtorno mental, representantes de grupos étnicos, migrantes, profissionais do sexo, entre outras populações invisibilizadas socialmente quem compõem o grupo heterogêneo de pessoas em situação de rua.

Acerca da situação de rua, Prates, Prates e Machado (2011Prates, F. C., Prates, J. C., & Machado, S. A. (2011). Populações em situação de rua: os processos de exclusão e inclusão precária vivenciados por esse segmento. Revista Temporalis, 11(22), 191-215. doi: 10.22422/2238-1856.2011v11n22p191-216
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) mostram a existência do processo de ‘rualização’, que explicita o caráter de diversidade, pluralidade e movimento vivenciado nas ruas. Os autores explicam que a ‘rualização’ não é um estado, mas um movimento de aproximação/vinculação com a rua, um processo contínuo de imbricação nesse espaço, tornando-o elemento importante de referência para constituição da identidade, que vai se construindo progressivamente na rua.

Diante de tamanha diversidade e da gravidade das violações de direitos vivenciadas pela PSR, é possível dimensionar o desafio que se põe para a criação e execução de políticas sociais de atendimento a tal segmento, bem como para a garantia do acesso das pessoas que vivem nas ruas às políticas públicas e aos seus direitos. Apesar de existirem algumas ações filantrópicas voltadas ao atendimento da PSR desde a colonização dos países latino-americanos, é recente a atenção a tal segmento por políticas executadas pelo Estado a partir de uma perspectiva de reconhecimento dos mesmos como sujeitos de direitos. Da mesma forma, são recentes as pesquisas e estudos acerca de tais políticas, ainda que o segmento populacional a que se destinam se constitua como um fenômeno antigo. Silva (2009Silva, M. L. L. (2009). Trabalho e população em situação de rua no Brasil. São Paulo, SP: Cortez., p. 32-33) afirma que o fenômeno PSR, ainda não dimensionado quantitativamente pelos censos oficiais, chama atenção e inquieta governos, pesquisadores e cidadãos comuns. “Entretanto, apesar de provocar inquietações, as pesquisas e produções teóricas sobre o assunto ainda são incipientes. Cercá-lo teoricamente, para compreendê-lo, ainda é um desafio”.

Assim, este artigo tem como objetivo analisar o que vem sendo produzido cientificamente sobre as políticas sociais de atendimento à PSR na América Latina, visando desvelar a concepção de PSR subjacente às discussões empreendidas, as principais ações e articulações no atendimento a tal segmento populacional e as semelhanças, divergências e principais desafios na execução destas políticas nos países latino-americanos.

Método

O presente estudo consiste em uma revisão integrativa de literatura acerca das políticas sociais de atendimento à PSR na América Latina. A revisão integrativa de literatura tem a intenção de reunir e sintetizar resultados de estudos, tanto empíricos como teóricos, de maneira sistemática, visando à síntese do estado do conhecimento acerca do tema pesquisado.

A revisão integrativa de literatura, de acordo com Mendes, Silveira e Galvão (2008Mendes, K. D. S., Silveira, R. C. C. P., & Galvão, C. M. (2008). Revisão integrativa: método de pesquisa para a incorporação de evidências na saúde e na enfermagem. Texto & Contexto - Enfermagem, 17(4), 758-764. doi: 10.1590/S0104-07072008000400018
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), vem sendo relatada em estudos desde a década de 1980, e consiste em seis principais etapas: identificação do tema e seleção da questão de pesquisa, estabelecimento de critérios para inclusão/exclusão de estudos, categorização dos estudos, avaliação das pesquisas incluídas na revisão integrativa, interpretação dos resultados e apresentação da revisão/síntese do conhecimento.

Para a realização desta revisão integrativa acerca do atendimento à PSR nos países latino-americanos foram selecionados artigos científicos nas bases de dados Scielo, Lilacs e Redalyc. Foi utilizado como descritor a palavra-chave ‘população em situação de rua’.

Assim, os critérios de inclusão utilizados foram os seguintes: artigos disponibilizados na íntegra e gratuitamente, que tratassem de ações e políticas voltadas para a população adulta em situação de rua em países da América Latina, em periódicos indexados nas bases de dados onde foram realizadas as buscas, e que estivessem em língua portuguesa ou espanhola. Já os critérios de exclusão foram artigos repetidos nas bases de dados, que tratassem de crianças ou idosos em situação de rua, visto que tais segmentos possuem legislações e políticas específicas na maior parte dos países latino-americanos, e artigos com abordagem exclusivamente biológica ou epidemiológica.

A partir da pesquisa realizada, no mês de setembro de 2017, nas bases de dados com a palavra-chave mencionada, foram encontrados 239 artigos. Com a aplicação dos critérios de exclusão foram selecionados 51 artigos, que foram lidos e analisados nesta revisão integrativa de literatura. Na seleção dos artigos foram encontradas publicações entre os anos 2007 a 2017. Dentre os artigos selecionados, foram contemplados estudos empíricos e teóricos, com uso de metodologias quantitativas, qualitativas e mistas. Os artigos selecionados apresentam experiências e reflexões acerca do atendimento à PSR em cinco países latino-americanos: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e Cuba.

Após a seleção, foi realizada a leitura e interpretação dos artigos e a organização dos dados que foram agrupados em categorias analíticas. Com a leitura, compilação e interpretação dos dados dos 51 artigos acerca do atendimento à PSR por políticas sociais na América Latina, foram criadas três categorias analíticas: ‘Quem é essa gente que vive na rua?’, ‘Na periferia do centro ou no centro da periferia?’ e ‘No fio da navalha: entre garantia de direitos e higienização social no atendimento à população em situação de rua’. Tais categorias serão apresentadas a seguir.

Resultados e discussões

Quem é essa gente que vive na rua?

Foram encontrados 14 artigos que discorrem sobre o perfil sociodemográfico da PSR. A maior parte dos artigos selecionados para esta revisão de literatura introduz experiências ou reflexões teóricas sobre as políticas de atendimento à PSR a partir da contextualização deste segmento populacional. Nesse sentido, são apresentadas as principais características e definições encontradas nestes artigos, com destaque para os estudos realizados em São Paulo (Brasil), Cali (Colômbia) e Havana (Cuba), que mostram em detalhes a realidade dessa população.

Barata, Carneiro Júnior, Ribeiro e Silveira (2015Barata, R. B., Carneiro Júnior, N., Ribeiro, M. C. S. A., & Silveira, C. (2015). Desigualdade social em saúde na população em situação de rua na cidade de São Paulo. Saúde e Sociedade, 24(suppl. 1), 219-232. doi: 10.1590/S0104-12902015S01019
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) realizaram estudo socio-demográfico sobre a PSR na cidade de São Paulo e encontraram o seguinte perfil: homens, não brancos, baixa escolaridade, trabalhadores informais e eventuais, renda menor que meio salário mínimo mensal. Os autores destacaram que as pessoas que vivem em situação de rua estão entre os grupos mais marginalizados da sociedade e que seus problemas ultrapassam a falta de moradia.

Acerca da realidade da população colombiana que vive em situação de rua, Hernandéz-Carrilo, Alvaréz-Claros e Osório-Sabogal (2015Hernandéz-Carrilo, M., Alvaréz-Claros, K. E., & Osório-Sabogal, I. A. (2015). Consumo autoreportado de sustancias psicoactivas ilegales en una población habitante de calle de Cali-Colombia. Revista de Salud Pública, 17(2), 217-228. doi: 10.15446/rsap.v17n2.30016
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) encontraram o seguinte perfil em estudo empírico desenvolvido na cidade de Cali: homens, com idade média de 40 anos, solteiros, baixa escolaridade, trabalho informal (principalmente com reciclagem), metade passou por serviços de reabilitação, uso/abuso de substâncias psicoativas. Já Barroso e Lopes (2014Barroso, B. A., & Lopes, A. G. (2014). Problemas relacionados con el alcohol en personas con conducta deambulante de La Habana. MediSur, 12(2), 451-455. Recuperado dehttp://scielo.sld.cu/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1727-897X2014000200014
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), em pesquisa realizada em Cuba, apontam que a PSR no referido país apresenta vulnerabilidade social com ausência de produtividade, problemas de moradia, conflitos familiares e de saúde mental. Além disso, parte significativa destas pessoas faz uso/abuso de substâncias psicoativas, principalmente do álcool.

Nesses três estudos percebe-se que o fenômeno tem uma cara, e ela é feia: a da pobreza, do desemprego, do isolamento, da face mais perversa da ‘questão social’. Raupp e Adorno (2015Raupp, L., & Adorno, R. C. F. (2015). Territórios psicotrópicos na região central da cidade de Porto Alegre, RS, Brasil. Saúde e Sociedade, 24(3), 803-815. doi: 10.1590/S0104-12902015127672
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) explicitam que pelo histórico de pobreza e pelas precárias condições de vida, este segmento se torna mais exposto às doenças e violências, o que acaba reduzindo a expectativa de vida do grupo. Ainda sobre o perfil da PSR, Serafino e Luz (2015Serafino, I., & Luz, L. C. X. (2015). Políticas para a população adulta em situação de rua: questões para debate. Revista Katálysi, 18(1), 74-85. doi: 10.1590/1414-49802015000100008
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) destacam a precariedade da dimensão sociofamiliar e de emprego, o isolamento e a solidão.

Apesar da heterogeneidade que marca a PSR, tal grupo enfrenta, de um modo geral, problemas comuns, que em muitos casos se entrelaçam e acabam desembocando na situação de rua. Flores, Contreras, Hernandez, Levicoi e Vargas (2015Flores, M. A., Contreras, C. R., Hernandez, Y. A., Levicoi, Y. V., & Vargas, C. M. (2015). Ocupación e identidad social en personas en situación de calle de La Ciudad de Punta Arenas. Revista Chilena de Terapia Ocupacional, 15(2), 1-16. doi: 10.5354/0717-5346.2015.38159
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) classificam tais problemas entre causas estruturais - situação econômica do país, trabalho, legislação e institucionalidade social, políticas de reinserção de egressos do sistema penitenciário etc., e causas biográficas - que geralmente têm como base a história de pobreza e vulnerabilidade social. Já Nascimento e Justo (2014Nascimento, E. C., & Justo, J. S. (2014). Andarilhos de estrada e os serviços sociais de assistência. Psico-USF, 19(2), 253-263. doi: 10.1590/1413-82712014019002002
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), em estudo realizado com andarilhos de estradas e usuários de serviços socioassistenciais no Brasil, apontam fatores socioeconômicos, socioafetivos e psicossociais na determinação do fenômeno da PSR, dentre eles desemprego, ausência de moradia, problemas familiares, desilusão amorosa e divórcio, morte dos pais, desejo por liberdade, transtornos mentais, uso de substâncias psicoativas, entre outros.

Além dos fatores que levam as pessoas a viverem em situação de rua, os artigos apontam que a vinculação com a rua tem diversas formas e ritmos, ocorrendo em um movimento que vai de transitório a permanente na ocupação dos espaços públicos: chegar, viver e ser da rua (Flores et al., 2015Flores, M. A., Contreras, C. R., Hernandez, Y. A., Levicoi, Y. V., & Vargas, C. M. (2015). Ocupación e identidad social en personas en situación de calle de La Ciudad de Punta Arenas. Revista Chilena de Terapia Ocupacional, 15(2), 1-16. doi: 10.5354/0717-5346.2015.38159
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). Sobre o processo de vinculação com as ruas, Alcântara, Abreu e Farias (2015) explicam que se trata de processo gradual e agudo de desvinculação social e que a PSR se encontra no centro do limiar entre a pobreza e a miséria, ou seja, são pessoas que não possuem os mínimos existenciais, tais como alimentação, vestuário, acesso à água, descanso, proteção da chuva, do frio, e das condições ambientais, entre outras condições básicas que assegurem sua sobrevivência. Por tal situação, por vezes se usam de estratégias de ‘manguear’6 6 O significado da palavra ‘manguear’ é usar de artifícios para se obter o que se deseja; engodar, iludir. É muito usada pela PSR para expressar um modo de conseguir, usando a conversa, subsídios para sobreviver, seja comida ou dinheiro, por exemplo. e pedir esmolas, além de se envolver com atividades ilícitas, o que corrobora para construção de identidade social de ‘acharcador’7 7 Acharcar se refere ao ato de pedir dinheiro, alimentos ou itens de necessidade pela PSR, a partir de diálogos e explicações sobre suas condições de vida. . Nesse sentido, Silva (2013Silva, S. A. (2013). População em situação de rua no Rio de Janeiro: novos tempos, velhos métodos. Revista de Psicologia Política, 13(27), 337-350. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-549X2013000200009&lng=pt&tlng=pt
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) aponta que representações sociais sobre a PSR oscilam entre pena e indiferença, entre medo e eliminação, o que tem impacto nas políticas direcionadas a tal segmento social.

Apesar da histórica invisibilidade social e dos poucos dados acerca da PSR, os artigos estudados apontam a realização de censos e levantamentos municipais, estaduais e nacionais, realizados principalmente no último decênio, acerca deste segmento populacional. No Brasil foi publicado no ano de 2008, pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome [MDSMinistério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2008). Sumário executivo: pesquisa nacional sobre a população em situação de rua. Brasília, DF: MDS. Recuperado dehttp://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/PainelPEI/Publicacoes/Pesquisa%20Nacional%20sobre%20a%20Popula%C3%A7%C3%A3o%20em%20Situa%C3%A7%C3%A3o%20de%20Rua.pdf
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], um levantamento nacional sobre PSR. Na ocasião, foram identificadas 31.922 pessoas adultas em situação de rua nos 71 municípios em que a pesquisa foi aplicada (capitais e cidades com mais de 300 mil habitantes) e foi estimado, em âmbito nacional, um número de aproximadamente 50.000 pessoas nesta situação. A partir das características apontadas pelo levantamento do MDS (2008) foi construída a definição de PSR utilizada pelo governo federal:

Grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e áreas degradadas como espaço de moradia e sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória (Decreto nº 7.053, 2009Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. (2009, 24 de dezembro). Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF., p. 1).

No ano de 2016 foi publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEAInstituto de Pesquisa Econômica Aplicada [Ipea]. (2016). Estimativa da população em situação de rua no Brasil. Brasília, DF: Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Recuperado dehttp://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/7289/1/td_2246.pdf
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] uma estimativa da PSR no Brasil a partir de dados disponibilizados por 1.924 municípios via Censo do Sistema Único de Assistência Social (Censo Suas). Na referida publicação, estimou-se que existiam, no ano de 2015, 101.854 pessoas em situação de rua no Brasil.

Em relação à PSR no Chile, Flores et al. (2015Flores, M. A., Contreras, C. R., Hernandez, Y. A., Levicoi, Y. V., & Vargas, C. M. (2015). Ocupación e identidad social en personas en situación de calle de La Ciudad de Punta Arenas. Revista Chilena de Terapia Ocupacional, 15(2), 1-16. doi: 10.5354/0717-5346.2015.38159
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) apontam que o Ministerio de Desarrollo Social realizou levantamento nacional em 2012 e cadastrou 12.255 pessoas em situação de rua, estimando uma população de 15.000 habitantes vivendo em tal situação no país. Os autores utilizaram a definição de PSR construída pela Red Calle e Hogar de Cristo, instituições do Terceiro Setor ligadas à Igreja Católica que historicamente atendem a essa população no país.

[…] todo individuo que se encuentre en una situación de exclusión social y extrema indigencia, específicamente no que se refiere a la carencia de hogar y residencia, y a la vez, presencia de una ruptura de los vínculos con personas significativas (familias, amigos) y con redes de apoyo (Flores et al., 2015Flores, M. A., Contreras, C. R., Hernandez, Y. A., Levicoi, Y. V., & Vargas, C. M. (2015). Ocupación e identidad social en personas en situación de calle de La Ciudad de Punta Arenas. Revista Chilena de Terapia Ocupacional, 15(2), 1-16. doi: 10.5354/0717-5346.2015.38159
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, p. 3).

Por fim, cabe ressaltar nesta seção uma questão sobre a caracterização da PSR abordada em alguns artigos: a vivência de rua como violação de direitos sofrida pela PSR, mas também como processo de ruptura com os padrões do capitalismo e busca por liberdade. Nesta direção, Raupp e Adorno (2015Raupp, L., & Adorno, R. C. F. (2015). Territórios psicotrópicos na região central da cidade de Porto Alegre, RS, Brasil. Saúde e Sociedade, 24(3), 803-815. doi: 10.1590/S0104-12902015127672
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) ressaltam que estar na rua é um modo diferente de vivenciar a sociedade capitalista, pois o reconhecimento dos sujeitos não está em sua capacidade produtiva, mas no desenvolvimento de estratégias adequadas de sobrevivência, com culturas de rua, códigos e comportamentos partilhados.

Na periferia do centro ou no centro da periferia?

A segunda categoria construída, a partir da leitura dos artigos selecionados para esta revisão de literatura, congrega questões relacionadas ao uso dos espaços urbanos pela PSR e os processos de higienização social direcionados a este segmento populacional. Entre estas informações, destaca-se a observação de que muitos grupos de pessoas que vivem em situação de rua se concentram no centro das cidades. Treze artigos trataram dessa temática espraiados pela Colômbia (Cali, Bogotá), Brasil (São Paulo, Santos, Rio de Janeiro), Chile (Valparaíso e Viñadel Mar) e Argentina (Rosário, Buenos Aires).

Hernandéz-Carrilo et al., (2015Hernandéz-Carrilo, M., Alvaréz-Claros, K. E., & Osório-Sabogal, I. A. (2015). Consumo autoreportado de sustancias psicoactivas ilegales en una población habitante de calle de Cali-Colombia. Revista de Salud Pública, 17(2), 217-228. doi: 10.15446/rsap.v17n2.30016
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) apontam, em seu artigo, que o centro da cidade de Cali vem se convertendo lentamente em um lugar de habitação para pessoas em situação de pobreza, que estabelecem culturas urbanas com regras próprias de convivência e, sobretudo, de sobrevivência. Os referidos autores apontam, ainda, que tais espaços ocupados pela PSR no centro das cidades acabam sendo caracterizados como espaços de uso de substâncias psicoativas, sendo denominados de ‘ollas’ ou ‘fumaderos’.

Em São Paulo, maior cidade latino-americana, a região central que é ocupada por pessoas em situação de rua e que fazem uso de substâncias psicoativas é conhecida pejorativamente por ‘Cracolândia’. De acordo com Raupp e Adorno (2015Raupp, L., & Adorno, R. C. F. (2015). Territórios psicotrópicos na região central da cidade de Porto Alegre, RS, Brasil. Saúde e Sociedade, 24(3), 803-815. doi: 10.1590/S0104-12902015127672
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), nas duas décadas do crack no Brasil, as cracolândias se apresentam como palcos de disputas de propostas e interesses. Segundo os autores, existem cracolândias em várias cidades brasileiras, locais de vendas e uso de substâncias psicoativas, à margem da cidade, que são permeadas em seu cotidiano por repressão policial e estigma social.

Ainda sobre estes espaços que constituem cenas de uso do crack, Raupp e Adorno (2015Raupp, L., & Adorno, R. C. F. (2015). Territórios psicotrópicos na região central da cidade de Porto Alegre, RS, Brasil. Saúde e Sociedade, 24(3), 803-815. doi: 10.1590/S0104-12902015127672
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) alertam que, em vez de denunciar a degradação urbana e social das cidades brasileiras, as autoridades focam o problema nos sujeitos que fazem uso e/ou na substância em si. A partir de tal foco, são planejadas e executadas políticas públicas que reforçam estigmas negativos sobre grupos historicamente presentes nos centros das cidades e os abordam a partir de olhares e práticas repressivas e de criminalização.

Os principais fatores que atraem a PSR para o centro da cidade, conforme relataram Serafino e Luz (2015Serafino, I., & Luz, L. C. X. (2015). Políticas para a população adulta em situação de rua: questões para debate. Revista Katálysi, 18(1), 74-85. doi: 10.1590/1414-49802015000100008
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), em pesquisa desenvolvida no centro do Rio de Janeiro, se relacionam às condições de sobrevivência. Os autores apontaram que em tais espaços, onde o comércio é intenso, existem maiores possibilidades de ‘bicos’8 8 Gíria utilizada no Brasil para denominar trabalhos de pequena duração. e oportunidades de trabalho. Além disso, os centros das cidades possuem prédios abandonados e sem uso social, que muitas vezes são ocupados pela PSR e por pessoas que lutam pelo direito à moradia. Ainda, destaca-se neste estudo que a maior parte dos serviços socioassistenciais voltados para as pessoas que vivem em situação de rua, também estão nas regiões centrais.

Nas cidades chilenas de Valparaíso e Viña Del Mar, Berrota e Muñoz (2013) pesquisaram os usos e significados do espaço público para pessoas em situação de rua, e encontraram uma relação permeada pelas estratégias de sobrevivência, com fatores negativos (violência) e positivos (liberdade). Os autores mapearam os locais utilizados pela PSR nos centros das referidas cidades e observaram durante o dia a circulação por espaços de comércio e grande circulação de pessoas visando trabalhos e alimentação, e a noite locais periféricos nos centros, de pouca circulação, visando menor exposição aos preconceitos e violências. Por fim, este estudo destacou a criação de barreiras arquitetônicas, novas formas de construir e organizar espaços públicos de modo a expulsar a PSR, que por sua vez responde com novas e criativas táticas de ocupação.

Sobre a ocupação dos espaços dos centros das cidades pela PSR na Argentina, dois artigos (Bufaranni, 2012Bufaranni, M. (2012). Vivir en el espacio público: consideraciones sobre las políticas de control urbano. Nómadas (Col), (37), 231-239. Recuperado dehttp://www.redalyc.org/articulo.oa?id=105124630017
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; Thomasz, 2009Thomasz, A. G. (2009). Debajo de la alfombra de los barrios del sur: derecho a la ciudad o nuevas formas de higienismo. Intersecciones en Antropología, 11(1), 15-27. Recuperado de http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=179515632002
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) discutem o controle sobre esta população a partir dos interesses do capital. Em pesquisa realizada na cidade de Rosário, Bufaranni (2012) observou políticas de remoções, em que a guarda municipal levava colchões, objetos e até documentos das pessoas em situação de rua. Sobre tais práticas, a autora alerta que as mesmas ocorreram durante a gestão de um governo socialista, que avançou na implementação de políticas sociais, mas que não sustentava a extrema pobreza explicitada pela PSR no coração da cidade, atuando, portanto, a partir de políticas de controle para esconder os vestígios da pobreza nas áreas nobres. A autora aponta, ainda, que a partir do discurso de rua como lugar de passagem, não de habitação, uma série de conflitos e disputas de sentido sobre usos adequados e usuários legítimos dos espaços públicos se colocam, girando em torno da cidade como mercadoria e do direito à cidade.

Thomasz (2009Thomasz, A. G. (2009). Debajo de la alfombra de los barrios del sur: derecho a la ciudad o nuevas formas de higienismo. Intersecciones en Antropología, 11(1), 15-27. Recuperado de http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=179515632002
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) realizou estudo em uma praça no centro da cidade de Buenos Aires, e apontou a região como espaço urbano residual relegado a seres considerados residuais pela sociedade e poder público. Na região estudada havia albergues, centros de acolhida, entre outros serviços de assistência social e saúde, e foram registrados protestos da vizinhança, que se mobilizou para retirar tais serviços da região a partir do incômodo causado pela circulação da PSR usuária dos mesmos. Nesse sentido, o artigo apontou que o centro da cidade é um espaço de comércio, história e contradições, e gerou o questionamento ‘quem tem direito à centralidade?’.

Ainda no artigo de Thomasz (2009Thomasz, A. G. (2009). Debajo de la alfombra de los barrios del sur: derecho a la ciudad o nuevas formas de higienismo. Intersecciones en Antropología, 11(1), 15-27. Recuperado de http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=179515632002
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), é apresentado o conceito de gentrificação, que se refere à expulsão dos setores de baixos recursos de áreas centrais e nobres, gerando segregação socioespacial e processo de guetização. A cidade, concebida como mercadoria, precisa ser atrativa para novos investimentos, e para isso deve ser moderna, cosmopolita e esconder ‘para debaixo do tapete’ seus problemas sociais. Assim, a autora defende que as políticas focalizadas para a PSR constituem novas modalidades de higienização das cidades para invisibilizar a miséria.

As zonas de deterioração urbana da cidade de Bogotá foram correlacionadas por Gongorá e Suarez (2008Gongorá, A., & Suarez, C. J. (2008). Por una Bogotá sin mugre: violencia, vida y muerte en la cloaca urbana. Universitas Humanística, 66(66), 107-138. Recuperado dehttp://www.redalyc.org/articulo.oa?id=79111102003
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) aos principais pontos nos mapas de homicídio da capital colombiana. Neste estudo foi constatada a ausência de inquéritos e estatísticas oficiais sobre vítimas da limpeza social, e explicitado como a violência regula as relações sociais, sendo a PSR um grupo que caracteriza um tipo de pobreza não aceitável pela sociedade. De acordo com os referidos autores, o “[...] medo da contaminação e contágio com a marginalidade faz com que o desaparecimento da PSR chegue a ser desejado” (Gongorá & Suarez, 2008, p. 136, tradução nossa)9 9 “[...] el temor a la contaminación y al contagio de la marginalidad y la maldad, que explica el miedo hacia los habitantes de la calle que implica que su desaparición llegue a ser deseada”. .

Ainda neste contexto, Silva (2013Silva, S. A. (2013). População em situação de rua no Rio de Janeiro: novos tempos, velhos métodos. Revista de Psicologia Política, 13(27), 337-350. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-549X2013000200009&lng=pt&tlng=pt
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) aponta em seu artigo a ação de criminalização da pobreza diante dos megaeventos e as ações de choque de ordem realizadas pela prefeitura do Rio de Janeiro, retirando a PSR da cidade e enviando-a para abrigos municipais lotados a partir de métodos violentos. A autora questiona tais ações, que comunicam que a miséria deve ser eliminada, como se as próprias condições sub-humanas de existência, onde se sobrevive como se pode, não fossem produzidas e reproduzidas na sociedade capitalista, e denuncia que não há preocupação em resolver os problemas sociais, mas camuflá-los.

No fio da navalha: entre a garantia de direitos e a higienização social no atendimento à população em situação de rua

O atendimento à PSR, por meio de políticas sociais na América Latina historicamente, ocorreu por instituições de caridade e filantropia ligadas à Igreja Católica. Na atualidade, muitos serviços continuam ligados a instituições cristãs, mas em alguns países já existem legislações e equipamentos públicos destinados ao acompanhamento deste segmento populacional. A maior parte dos artigos encontrados nesta revisão de literatura apresenta experiências e reflexões acerca de políticas para a PSR no Brasil, sendo que os serviços e políticas apresentados neste país são públicos e se inserem, sobretudo, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Cabe ressaltar que dentro da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) brasileira existe a previsão de financiamento público para as entidades do terceiro setor que executam serviços socioassistenciais.

Os artigos com trabalhos desenvolvidos em Cuba e na Argentina também retratam o atendimento das pessoas em situação de rua por políticas sociais executadas pelo Estado. Já na Colômbia e no Chile, a maior parte dos artigos retrata o acolhimento e acompanhamento da PSR por Organizações Não Governamentais (ONGs) e instituições do terceiro setor. Acerca da realidade colombiana, Rativa, Rojas, Reina e Felizzola (2007Rativa, Z. G., Rojas, C. L., Reina, C. T., & Felizzola, O. L. P. (2007). Construcción de una red institucional de apoyo para la población habitante de la calle: tejiendo redes. Revista de la Facultad de Medicina, 55(2), 96-104. Recuperado dehttp://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0120-00112007000200003&lng=en&tlng=
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) apresentaram artigo sobre as instituições que atendem PSR no país e apontaram que 72% destas instituições são privadas e 52% religiosas, com bases cristãs que “[...] embasam sua intervenção quase que exclusivamente na palavra de Deus”10 10 “Otras no lohacen por basarsu intervención, casi exclusivamente, em la palabra de Dios”. (p. 100, tradução nossa).

Otolvargo e Arango (2009), em estudo realizado na cidade de Medellín, destacam as políticas mistas de atenção à PSR, como no caso da saúde, em que, ao apresentar certificado de indigência, o município custeia as despesas de saúde deste público em estabelecimentos privados. Apesar da disponibilização deste atendimento, os autores enfatizam o preconceito e as barreiras de acesso da população a estes serviços, o que fez com que 76% da PSR participante da pesquisa reconhecesse seu direito à saúde, mas a maior parte acreditasse que o acesso à saúde não é gratuito/garantido.

Em pesquisa acerca da atenção socioassistencial à PSR na Argentina, Seidmann, Di Lorio, Azzollini e Rigueiral (2015Seidmann, S., Di Lorio, J., Azzollini, S., & Rigueiral, G. (2015). Sociabilidades en los márgenes: prácticas y representaciones sociales de personas en situación de calle en la ciudad de Buenos Aires. Anuario de Investigaciones, 22, 253-261. Recuperado de http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=369147944025
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) encontraram serviços e entidades de diferentes naturezas: governamentais e não governamentais, religiosas, comunitárias, entre outras, e observaram que estes se organizam a partir de duas lógicas distintas: tutelar e restaurativa. A primeira se embasa em uma concepção de PSR como objeto de caridade e em uma ética moralista, já a segunda compreende as pessoas que vivem em situação de rua como sujeitos que devem ter seus direitos restituídos a partir de um ideal de ética relacional. Tais lógicas coexistem e tensionam as diferentes concepções da atenção socioassistencial voltada para as pessoas que vivem nas ruas do país.

Outro ponto central destacado nos artigos selecionados para esta revisão é o das legislações, em geral recentes, que orientam o atendimento à PSR e a garantia de direitos sociais a este segmento. No Brasil, apenas no ano de 2009, foi promulgada a Política Nacional de População em Situação de Rua. Já no Chile, de acordo com Alvaréz, Alvaréz, Berrocal, Miranda e Olivares (2015Alvaréz, N. B., Alvaréz, K. S., Berrocal, C. B., Miranda, M. C., & Olivares, D. A.(2015). Rol de los terapeutas ocupacionales en el trabajo con personas en situación de calle em chile: aportes y dificultades desde la disciplina. Una revisión bibliográfica. Revista Chilena de Terapia Ocupacional, 15(1), 135-146. doi: 10.5354/0719-5346.2015.37137
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), foi apenas no ano de 2005 que o governo federal reconheceu a PSR como questão de Estado. No ano de 2014 foi criado o Programa Rua Chile Solidário, com o objetivo de melhorar as condições de vida da PSR nas áreas consideradas mais significativas em relação a este segmento populacional.

As áreas prioritariamente abordadas nos artigos revisados tratam de serviços e políticas de saúde e assistência social. Sobre as primeiras, Paiva, Lira, Justino, Miranda e Saraiva (2016Paiva, I. K. S., Lira, C. D. G., Justino, J. M. R., Miranda, M. G. O., & Saraiva, A. K. M. (2016). Direito à saúde da população em situação de rua: reflexões sobre a problemática. Ciência & Saúde Coletiva, 21(8), 2595-2606. doi: 10.1590/1413-81232015218.06892015
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) apontam a necessidade de superar o modelo biomédico e medicalizador nos atendimentos em saúde. De acordo com as referidas autoras, grande parte da produção científica associa processo saúde-doença da PSR a dermatites, hematoses e aos sofrimentos psíquicos, e os relaciona a estilos de vida da PSR, o que, apoiado em uma lógica de meritocracia, gera culpabilização individual e mascara a relação de determinação dos processos saúde-doença e condições de vida e trabalho das pessoas que vivem nas ruas, que em geral têm seus corpos como principais instrumentos de subsistência.

Continuando a discussão sobre as políticas de saúde para a PSR no âmbito do SUS, Engstrom e Teixeira (2016Engstrom, E. M., & Teixeira, M. B. (2016). Equipe “Consultório na Rua” de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Ciência & Saúde Coletiva, 21(6), 1839-1848. doi: 10.1590/1413-81232015216.0782016
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) reportaram a existência de barreiras de acesso e cuidados em saúde para este segmento, que acaba sendo invisível ao sistema. Os autores apontaram que a PSR tem dificuldade em usar atenção primária em saúde (APS) e, acaba buscando os serviços de emergência já em situações graves e com risco de vida. Para a superação de tais dificuldades é apontada a necessidade de processos de trabalho criativos e singularizados de acordo com as necessidades da clientela, e de não apenas controlar sintomatologias, mas de uma atuação profissional que vise o exercício pleno da cidadania e apoio social, com clínica ampliada e compartilhada na perspectiva de preservação da vida.

Acerca das condições de saúde da PSR da cidade de Salvador/BA, Aguiar e Iriart (2012Aguiar, M. M., & Iriart, J. A. B. (2012). Significados e práticas de saúde e doença entre a população em situação de rua em Salvador, Bahia, Brasil. Caderno de Saúde Pública, 28(1), 115-124. doi: 10.1590/S0102-311X2012000100012
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) observaram melhores condições de saúde entre as pessoas em situação de rua que eram usuárias de albergues e unidades de acolhimento. Para os autores, tal fato se deve possivelmente ao maior acesso à higiene e alimentação por parte dos que acessam as instituições. Apesar da inegável importância dos serviços socioassistenciais para a oferta dos mínimos existenciais, como alimentação, higiene e descanso, tais serviços apresentam graves problemáticas.

Nesse sentido, Kunz, Heckert e Carvalho (2014Kunz, G. S., Heckert, A. L., & Carvalho, S. V. (2014). Modos de vida da população em situação de rua: inventando táticas nas ruas de Vitória/ES. Fractal: Revista de Psicologia, 26(3), 919-942. doi: 10.1590/1984-0292/1192
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), em estudo sobre unidades de acolhimento para PSR na cidade de Vitória/ES, chegaram à conclusão de que tais instituições apresentam altos custos e baixa efetividade. Em tais espaços, a PSR é tratada de forma infantilizada, com excesso de regras, desindividualizada, e, por tal razão, muitas pessoas que vivem nas ruas conhecem as políticas públicas, mas nem sempre as utilizam, preferindo construir redes de cuidado com grupos de PSR e demais moradores da cidade. Na mesma direção, Biscoto, Jesus, Silva, Oliveira e Merigui (2016), em estudo realizado com mulheres em situação de rua no Estado de Minas Gerais, observaram que, em relação às políticas públicas sociais, no Brasil, o albergue configura-se como a principal estratégia destinada ao abrigo e atendimento às necessidades da PSR, entretanto, apesar de tal equipamento social ser importante e valorizada por parte desta população, existe insatisfação pelas regras rígidas e violações de direitos ocorridas dentro destas instituições.

Ainda sobre os serviços de assistência social, Souza, Silva e Caricari (2007Souza, E. S., Silva, S. R. V., & Caricari, A. M. (2007). Rede social e promoção da saúde dos “descartáveis urbanos”. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 41(spe), 810-814. doi: 10.1590/S0080-62342007000500012
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) apontaram para práticas isoladas, assistencialistas, centralizadas que sustentam e cronificam a situação de rua. Já, Nascimento e Justo (2014Nascimento, E. C., & Justo, J. S. (2014). Andarilhos de estrada e os serviços sociais de assistência. Psico-USF, 19(2), 253-263. doi: 10.1590/1413-82712014019002002
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) observaram o clientelismo assistencial e refletiram em seu artigo sobre a política de assistência social como ‘administração da miséria’, e a homogeneização dos indivíduos em uma massa de miseráveis. Os autores defendem que as estratégias sociopolíticas do Estado sobre essas vidas devem ser questionada se não são os serviços socioassistenciais básicos oferecidos.

Sobre o fluxo de atendimento da PSR entre o SUS e o SUAS no Brasil, Borysow e Furtado (2014Borysow, I. C., & Furtado, J. P. (2014). Acesso e intersetorialidade: o acompanhamento de pessoas em situação de rua com transtorno mental grave. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 23(1), 33-50. doi: 10.1590/S0103-73312013000100003
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) apontam que este segmento se encontra no limbo entre os dois sistemas. Tal hipótese é reforçada a partir da argumentação de que, se por um lado os trabalhadores da saúde apresentam reservas em relação à PSR, vista como portadora de ‘questões sociais’, objetos de cuidados e serviços do SUAS, por outro, os trabalhadores da assistência social se sentem pouco familiarizados e sobrecarregados ao acolher indivíduos em sofrimento mental e que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas. Os autores observaram que os serviços socioassistenciais se vêem forçados, em muitas situações, a realizarem acolhimentos indiscriminadamente e de maneira isolada, visto que acabam sendo a única alternativa para atendimento da PSR, inclusive para pessoas com transtornos mentais graves, e, ainda, que existe maior discriminação nos serviços de saúde, que atuam como se a PSR não tivesse outras necessidades além daquelas ligadas ao uso/abuso de substâncias psicoativas.

Acerca deste foco no consumo de substâncias psicoativas como principal problema da PSR, Hallais e Barros (2015Hallais, J. A. S., & Barros, N. F. (2015). Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Caderno de Saúde Pública, 31(7), 1497-1504. doi: 10.1590/0102-311X00143114
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) consideram equivocada relação direta ‘drogas-rua’ que embasa ações e políticas públicas direcionadas à PSR, visto que se trata de fenômeno complexo, permeado por diversas determinações que se entrelaçam. Em pesquisa que acompanha o trabalho de equipes do Consultório na Rua (CnaR), as autoras apontaram algumas questões principais que impactam a saúde deste segmento: doenças, variações climáticas, insalubridade, escassa alimentação, violência policial etc., e defendem como estratégia política a hipervisibilidade das linhas de cuidado para situações impostas pela vida na rua e a construção de vínculos terapêuticos desconstrutores da prática estigmatizante.

O CnaR foi criado em 1999 na forma de projeto de extensão vinculado à Universidade Federal da Bahia (UFBA), e era nomeado como Consultório de Rua (CR). Posteriormente, foi adotado nacionalmente como política do SUS. Desde sua implementação, foi categorizado como serviço ligado à saúde mental, especialmente para os cuidados das pessoas que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas. Após revisões, houve a mudança de nomenclatura - CR para CnaR - e tornou-se um serviço ligado à Atenção Básica do SUS. Dentre seus principais pressupostos e propostas de ação estão o acolhimento e estabelecimento de vínculos para a posterior construção de projetos terapêuticos, mapeamento da rede, territorialização, e acompanhamento dos fluxos e migrações da PSR, maior flexibilidade nas regras de acesso aos serviços de saúde, respeito ao tempo e aos conhecimentos dos usuários, ênfase na interdisciplinaridade e na educação popular em saúde.

Além da experiência do CnaR, foram encontrados outros artigos com relatos de projetos de extensão desenvolvidos por Instituições de Ensino Superior (IES) voltados à PSR. Nesse sentido, Canônico et al. (2007Canônico, R. P., Tanaka, A. C. D., Mazza, M. M. P. C., Souza, M. F., Bernat, M. C., & Junqueira, L. X. (2007). Atendimento à população de rua em um Centro de Saúde Escola na cidade de São Paulo. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 41 (n. esp.), 799-803. doi: 10.1590/S0080-62342007000500010
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) abordaram a ação de extensão ‘A gente na rua’, desenvolvida pela Escola de Saúde da Universidade de São Paulo (USP) com objetivo de busca ativa para tratamento de tuberculose entre catadores de materiais recicláveis e PSR. Tal projeto foi desenvolvido como resposta a reivindicações da PSR no ato denominado Grito dos Excluídos, que aconteceu no dia 23 de julho de 2003 na cidade de São Paulo/SP, e contou com enfermeiros e agentes de saúde, que junto com estudantes e professores, conseguiram aumentar os índices de adesão e conclusão de tratamentos de tuberculose.

Por fim, Barros, Galvani, Almeida e Soares (2013Barros, D. D., Galvani, D., Almeida, M. C., & Soares, C. R. S. (2013). Cultura, economia, política e saber como espaços de significação na terapia ocupacional social: reflexões sobre a experiência do ponto de encontro e cultura. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional,21(3), 583-594. doi: 10.4322/cto.2013.060
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) descreveram atividades de extensão universitária realizadas no Ponto de Encontro e Cultura (PEC) na cidade de São Paulo. O PEC sediou vários projetos e acompanhou movimentos sociais, inclusive o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR). De acordo com os autores, tratava-se de um espaço de significação, expressão artística, cultural, política, agenciamentos coletivos e produções pessoais mais singularizadas. No PEC foram realizadas formações políticas de lideranças e construção conjunta de projetos entre estudantes e militantes do MNPR, dentre eles a Revista Ocas e o projeto do Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Materiais Recicláveis (CNDDH). Neste trabalho foi enfatizado o respeito e diálogo que devem ocorrer entre as IES e o conhecimento/cultura popular, e a importância dos projetos de extensão na formação de profissionais que atuarão com a PSR no campo das políticas públicas.

Considerações finais

O estudo analisou a literatura científica que aborda as políticas sociais e a PSR nos países latino-americanos. Constatou-se, nos diferentes países abordados, o perfil análogo das pessoas em situação de rua no que diz respeito a características como preconceitos, estigmas e violências sofridas, ausência de trabalho ou trabalho precarizado/informal, além da falta de moradia, evidenciando a noção apontada de que tal segmento é a expressão nua e crua da ‘questão social’. Do mesmo modo, podemos perceber que a PSR é integrada por pessoas com características diversas, histórias particulares e diferentes formas de estar e se relacionar com o espaço urbano. Nas cidades, os territórios centrais e degradados surgem como principais locais de sobrevivência e serviços de atendimento à PSR. Um espaço de contradição que ao mesmo tempo aproxima, segrega e expulsa pessoas em situação de rua.

Além disso, das recentes políticas públicas criadas que visam garantir direitos, destaca-se que o fio da navalha invariavelmente acaba por cortar para o lado do assistencialismo, e mesmo da criminalização, ranços históricos do tratamento dado pelos Estados latino-americanos a este segmento populacional desde o processo de colonização dos países da região pelos europeus. Por outro lado, é imprescindível o reconhecimento dos avanços na criação de legislações, serviços e políticas que atuam com a PSR a partir do viés da garantia de direitos, sendo fundamental que esse caminho continue sendo percorrido, ou que se ‘aponte a navalha para este lado’.

As principais ênfases encontradas nos estudos sobre a PSR foram nas áreas da assistência social e saúde. Poucos trabalhos abordaram as políticas de habitação, educação e trabalho/renda para o segmento. Nesse sentido, faz-se necessário o questionamento sobre a existência de políticas de habitação para as pessoas em situação de rua, ou como o Estado aborda essa temática, que deve ser central no atendimento a este segmento social. Da mesma forma, poderíamos questionar a ausência de estudos e políticas sociais que abordem o trabalho para esse segmento, sendo que a categoria trabalho é basilar na estruturação das pessoas e da sociedade.

A maior parte dos estudos que abordam a temática da PSR e políticas públicas foram produzidos no Brasil. A maioria das garantias implementadas para o segmento no contexto brasileiro é decorrente da organização, pressão e ocupação pelo MNPR em diferentes espaços instituídos e instituintes de participação/controle social que deliberam sobre as políticas públicas. Assim, propõem-se estudos que analisem, compreendam e fortaleçam o MNPR como espaço coletivo de mobilização, garantia de direitos e transformação social para as pessoas em situação de rua.

Ademais, nos estudos sobre PSR observam-se poucas referências e citações entre os países latino-americanos, em contrapartida, a maior parte das citações é proveniente de estudos estadunidenses e europeus. Nesse sentido, destaca-se a importância de novos estudos sobre o assunto, preferencialmente que compartilhem experiências entre os países do continente latino-americano.

Assim, com o avanço da agenda neoliberal, urge a necessidade de aprofundar a discussão acerca da determinação produtora da desigualdade social, visando superá-la e avançar na construção de modos de sociabilidade mais justos e em que as pessoas possam acessar direitos sociais para uma vida com dignidade. É fundamental, ainda, o avanço na implementação de políticas sociais que visem possibilitar o real acesso aos direitos sociais pela PSR.

É possível ver que existe ainda uma contradição entre os ganhos com o avanço nas políticas sociais voltadas para a PSR, e o fato de que elas ainda são preferencialmente assistencialistas. Além disso, permanece uma fragilidade nessas garantias e, nestes tempos de instabilidade e de avanço neoliberal na conjuntura política e econômica nos países da América Latina, o impacto sobre a PSR conduz à piora de condições já terríveis de negação de direitos. Nesse sentido, a mobilização e luta pela conquista destes, da forma que vêm acontecendo nos últimos anos, deve ser sustentada, mostrando que o que está em jogo não é o apelo por benesse dos governos, mas a busca por direitos historicamente negados.

Referências

  • Aguiar, M. M., & Iriart, J. A. B. (2012). Significados e práticas de saúde e doença entre a população em situação de rua em Salvador, Bahia, Brasil. Caderno de Saúde Pública, 28(1), 115-124. doi: 10.1590/S0102-311X2012000100012
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  • 5
    A questão social aqui é entendida como “[...] conjunto dos problemas políticos, sociais e econômicos postos pela emergência da classe operária no processo de constituição da sociedade capitalista. Em outras palavras, trata-se da manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição capital-trabalho” (Yamamoto & Oliveira, 2014Yamamoto, O. H., & Oliveira, I. F. (2014). Definido o campo de estudo: as políticas sociais brasileiras. In I. F. Oliveira & O. H. Yamamoto (Orgs.), Psicologia e políticas sociais: temas em debate (p. 21-45). Belém, PA: Ed. UFPA., p. 23).
  • 6
    O significado da palavra ‘manguear’ é usar de artifícios para se obter o que se deseja; engodar, iludir. É muito usada pela PSR para expressar um modo de conseguir, usando a conversa, subsídios para sobreviver, seja comida ou dinheiro, por exemplo.
  • 7
    Acharcar se refere ao ato de pedir dinheiro, alimentos ou itens de necessidade pela PSR, a partir de diálogos e explicações sobre suas condições de vida.
  • 8
    Gíria utilizada no Brasil para denominar trabalhos de pequena duração.
  • 9
    “[...] el temor a la contaminación y al contagio de la marginalidad y la maldad, que explica el miedo hacia los habitantes de la calle que implica que su desaparición llegue a ser deseada”.
  • 10
    “Otras no lohacen por basarsu intervención, casi exclusivamente, em la palabra de Dios”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2018
  • Aceito
    06 Abr 2020
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