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ENTREVISTA COM PROFESSOR DR. RICARDO ANTUNES (UNICAMP - CAMPINAS-SP)1 1 Entrevista concedida pelo Professor Dr. Ricardo Antunes (UNICAMP - Campinas-sp), ao Laboratório Interinstitucional de Subjetividade e Trabalho - LIST, acerca do tema Trabalho, Política e Ação.

ENTREVISTA CON EL PROFESOR DR. RICARDO ANTUNES (UNICAMP-CAMPINAS-SP)

Entrevistador: Lucas Martins Soldera4 4 Esta é uma obra coletiva do LIST, que teve como entrevistador Lucas Martins Soldera .

O professor Ricardo Antunes esteve na Universidade Estadual de Maringá (UEM), em 2018, para proferir palestras a eventos elaborados em parceria com o Departamento de Psicologia (DPI) e o Laboratório Interinstitucional de Subjetividade e Trabalho (LIST). Nessa ocasião, se dispôs a conceder uma entrevista ao LIST, a qual segue transcrita e editada5 5 Ressaltamos que houve partes da entrevista que foram retiradas, no intuito de conferir maior fluidez ao texto, não alterando assim o conteúdo, nem a essência da entrevista. Tais alterações foram ponderadas pela equipe entrevistadora e entrevistado, com o propósito de atender aos conteúdos que se deseja passar e a política editorial da revista Psicologia em Estudo. .

Apresentação: Professor Titular de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. É professor convidado da Universidade de Veneza/Itália e Membro do Comitê Científico deste curso. Entre 1997 e 1998, foi Visiting Research Fellow na Universidade de SUSSEX, Inglaterra. Ministrou cursos de pós-graduação e graduação, além de conferências em várias universidades na Europa (Itália, Espanha, França, Inglaterra, Portugal, Suíça); na América do Norte (EUA) e América do Sul (Argentina, Uruguai, Chile, Venezuela, Equador, Colômbia, Guatemala, Costa Rica, Cuba), e na Ásia (China e Índia). Coordena as Coleções Mundo do Trabalho (Boitempo) e Trabalho e Emancipação (Expressão Popular). Recebeu o Prêmio Zeferino Vaz da Unicamp (2003), a Cátedra Florestan Fernandes da CLACSO (2002) e a Medalha (Comenda) do Tribunal Superior do Trabalho - TST (2013). Trabalha com temas como sociologia do trabalho; teoria social; ontologia do ser social; nova morfologia do trabalho; trabalho e centralidade; classe trabalhadora; ação e consciência; sindicalismo e movimento operário.

LIST: Nessa publicação, encontram-se referências ao escritor Albert Camus, dentre elas a ideia de privilégio de servidão. Como é possível entender essa ideia no cenário contemporâneo do trabalho?

RICARDO ANTUNES: Veja, um capítulo especial da história da criação de um livro é a elaboração de seu título. No caso desse meu último livro, como é um livro particular concebido originalmente de artigos que eu retrabalhei inteiramente, alguns publicados no exterior, outros não publicados, inéditos, outros que eu escrevi para o livro propriamente; eu tinha somente o subtítulo o novo proletariado de serviços da era digital (Antunes, 2018Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviço na era digital. São Paulo, SP: Boitempo.). Esse era o mote, no entanto, não tinha o título. Lendo o primeiro livro do Albert O primeiro homem (Camus, 1994Camus, A. (1994). O primeiro homem. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira.), nele tem uma passagem que diz assim: “[...] os trabalhadores (e ele está se referindo aos trabalhadores pobres da Argélia) só têm férias quando se acidentam no trabalho e a sua empresa tem seguro saúde”. Consequentemente, é para tratar de sua saúde que esses trabalhadores tiram férias, o que é uma aberração porque você tirar férias doente não é férias. Aí ele diz “[...] o trabalho se tornou martírio, o trabalho não é mais uma virtude, ele se tornou o privilégio da servidão” (Camus, 1994). A partir dessas questões foi que eu falei: “Achei o título do meu livro!”

Por quê? O que eu quero dizer com ele? Os jovens hoje - não estou falando no Brasil apenas, estou falando na Argentina, no Chile, nos Estados Unidos, na Itália, na França, Inglaterra, na Alemanha, na Holanda, na Índia, na China, alguns dos países que eu conheço, se tiverem sorte terão o privilégio de serem servos. O que é ser servo? Trabalhar sem direitos. Tem trabalho, trabalha e recebe. Não tem trabalho, fica esperando e não recebe. Se não tomar cuidado, só vai ter férias quando se acidentar. Contudo, o problema é que hoje muitas empresas não têm mais seguro saúde, porque se você for PJ (Pessoa Jurídica) as empresas são desobrigadas a arcar com esse ‘custo’. Então nasce, o que eu denomino no meu livro, uma massa de trabalhadores e trabalhadoras em serviços intermitentes globais que são flexibilizados, terceirizados, estão na informalidade. É claro que eu não estou falando da servidão da Idade Média, estou falando na servidão no sentido da sujeição, quer dizer, você perdeu o controle do trabalho, não tem mais nenhum direito que garanta uma longevidade no trabalho, assim é um candidato potencial ao desemprego na pior das hipóteses ou terá um subemprego numa hipótese mediana. É uma tragédia, uma vez que no Brasil temos hoje 13 milhões de desempregados, segundo índices oficiais, além disso mais 5 milhões de desempregados por desalento, mais 7 ou 8 milhões de desempregados com trabalhos intermitentes, denominados bicos ocasionais. Isso dá quase 30 milhões de situações de desemprego ou subemprego, em uma população economicamente ativa de um pouco mais de 100 milhões. É uma tragédia!

Na Itália, onde dou aula há 10 ou 12 anos, na universidade Kafoscaem Veneza (Itália), como professor visitante, ano passado dei uma aula magistral denominada ‘História da sociologia crítica’. Lá nenhum de meus alunos tinha certeza de que trabalho vão ter ou se vão ter trabalho, entende? Eles já sabem que se tiverem trabalho será um trabalho precarizado, ou cuidando de hotéis, ou cuidando de restaurante, ou em fast-food, ou em Veneza abrindo e fechando a porta dos vaporettos (ônibus coletivo característico de Veneza). Isto é uma tragédia mundial. Uma tragédia societal e uma tragédia brasileira também.

LIST: Diante do panorama brasileiro de reformas trabalhistas, terceirização e iminência na aprovação do projeto de reforma da previdência, qual perspectiva o senhor aventa que irá descortinar para a sociedade e para os trabalhadores?

RICARDO ANTUNES: Há uns três anos eu conheci a Índia, onde fui convidado a proferir algumas conferências na Universidade Nova Délhi (universidade pública). O que vi na Índia não tinha visto no Brasil e em nenhum outro país do mundo. Multidões! Multidões incontáveis de miseráveis. Não são pobres nem paupérrimos, são miseráveis! Pessoas na indigência, a mais brutal. Por exemplo: fiquei hospedado em um hotel perto da estação ferroviária de Nova Délhi, uma cidade imensa, a população chega do interior sem trabalho e senta nas ruas. Essas pessoas precisam de comida e o principal lugar para procurar é nas sarjetas. Se precisar ir ao banheiro, nós normalmente vamos ao banheiro, em casa. Mas as pessoas que moram na rua lá como fazem para irao banheiro? Eu vi cenas que me marcaram muito, em que a pessoa tira a calça e começar a fazer suas necessidades básicas na rua, à vista de todos, porque para ela é normal, não tem outro lugar para fazer.

Quando eu voltei ao Brasil, em 2015, acompanhando o movimento para a reforma trabalhista, a terceirização total, a PEC da previdência, a tragédia se anunciando no Brasil [...] qual país pode reduzir anualmente os gastos de saúde, educação e previdência numa população que não tem uma saúde pública decente, que não tem uma escola pública decente, que não tem previdência pública decente? Entende? Relembrando o que vi e me marcou na Índia, escrevi um artigo na Folha de São Paulo, algo no sentido ‘O Brasil caminha num célere processo de indianização’. Indianização no sentido do que eu vi na Índia e não no sentido do indígena. Porque na Índia existe grande número de pessoas que são tratadas como os animais, as quais não pertencem ao vasto e complexo sistema de raças e castas. Caminhamos para isso. Se você for hoje no centro de São Paulo, existe uma grande massa de indigentes, outro dia eu li que tem uma população que mora nos esgotos. Nos esgotos! Em Porto Alegre, na avenida central da cidade, há uma calçada inteira coberta, que é praticamente um hotel dos pobres, para lembrar uma frase do Albert Camus (1994Camus, A. (1994). O primeiro homem. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira.) - sobre aqueles que “[...] não têm mais nada a perder porque já perderam tudo”. Em Salvador, Recife, Rio de Janeiro, a situação se assemelha. Essa é a tragédia. Esse é o cenário em que nós seremos uma classe trabalhadora desempregada, quiçá, subempregada. A própria proposta do Bolsonaro em criar uma ‘carteira verde-amarela’, a partir da qual o trabalhador negocia individualmente seus direitos com o empregador. É evidente que nós estamos num processo de ‘indianização’.

LIST: Seria possível realizar uma análise crítica sobre a relação entre o culto ao empreendedorismo, a pejotização (PJ) e a informalidade dentro do cenário nacional?

RICARDO ANTUNES: Claro! Se você tem em torno de 20 milhões de desempregados, dados recentes do IBGE (2018Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE]. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2018). Recuperado de: https://www.ibge.gov.br
https://www.ibge.gov.br...
)6 6 Dados obtidos via site oficial do IBGE. , em relação a isso estava pensando que essa taxa só não é maior porque a Uber hoje emprega no Brasil, ou melhor, ela conecta hoje no Brasil um número próximo a 700 mil trabalhadores. Aliás, já utilizei esse serviço e vários motoristas me contaram que alugam o carro para trabalhar, porque não tem carro próprio. Então o motorista aluga o carro, trabalha em torno de 13 horas por dia, paga R$ 100,00 reais da locação do automóvel, além de todos os custos, porque os motoristas arcam com todos os custos: combustível, limpeza do carro, seguro, tudo. Para depois de mais ou menos 13 horas por dia conseguir o quê? O que é que sobra para ele? O que isso quer dizer? Como tem uma massa de desempregados você tem que criar os fetiches e os mitos: o empreendedorismo é o elixir do mundo desprovido de sentido. Então claro, o discurso é para você ser um empreendedor. Só que o problema é o seguinte [...] vamos supor uma situação hipotética: você perdeu o emprego no banco público, recebeu uma indenização de 50 ou 60 mil e investiu em uma lanchonete. Se essa lanchonete falir o problema é seu, meu amigo. Se recebeu 20 ou 30 mil de aposentadoria e comprou um carro de cachorro quente, se esse empreendimento quebrar, isso é estritamente você. Então é um mito, porque o empreendedor sonha que ele é o empresário de si próprio. Entretanto, ele também é o proletário de si próprio.

Aliás, essa ideia é uma adaptação livre de uma ideia do Marx, ao falar do trabalho pago por peça. Podemos pensar que o Uber é proprietário do meio de produção? Não! O motorista de Uber é dono do instrumento de trabalho, o que é bem diferente de ser dono do meio de produção. Meio de produção é riqueza, quem controla os meios de produção são os bancos, a indústria, a agroindústria, a grande agricultura e os grandes serviços. Agora, seria interessante um estudo, apesar das dificuldades para realizar algo nesse sentido, de quantos empreendedores ‘sobem’ e quantos se ‘arrebentam’.

A pejotização é uma falsificação, é uma forma mascarada de dizer que não é assalariado quem é assalariado. O governo Temer foi um governo terceirizado, vitorioso num golpe para iniciar a devastação das relações dos direitos sociais, previdenciários e trabalhistas. Então, o resultado disso é que a informalidade faz com que as empresas tratem os trabalhadores e as trabalhadoras como uma seringa: usa e descarta. O problema é que nós estamos criando uma sociedade desumana, brutal, antissocial, destrutiva e violenta. Por que agora vemos o aflorar de uma onda em que “[...] temos que acabar com a criminalidade”? Como acabar? Para acabar com a criminalidade no Brasil você tem que acabar com o narcotráfico, com o roubo pequeno, médio, grande. Você não acaba com isso sem educação, sem saúde, sem vida digna nas periferias e nos morros e sem trabalho. Se você não tem trabalho nos morros, o narcotráfico emprega. Não adianta botar exército para arrebentar tudo, porque morrem figuras que são inocentes, que não tem nada a ver com o narcotráfico, a população comum. Quando o tiroteio começa a rolar, a bala não escolhe em qual casa está o traficante e em qual ele não está. Nós caminhamos para uma sociedade da devastação. Tanto é que foi possível observar na reforma trabalhista do Temer - melhor, na contrarreforma - que até a justiça do trabalho foi reduzida, porque o capital não quer justiça do trabalho. A maneira de resolver isso é pela negociação direta entre a empresa e o trabalhador. Dessa forma, para que justiça do trabalho? Então PJ, empreendedorismo, informalidade são remendos de uma sociedade irremendável. Como um queijo suíço, os buracos vão crescer.

LIST: A revolução tecnológica vem criando um novo proletariado de serviços na era digital. O que caracterizaria o que o senhor chama de infoproletário e o dito precariado?

RICARDO ANTUNES: Na Europa, nos países avançados e aqui só se fala na indústria 4.0. Quem quiser pode ler com um pouquinho mais de calma sobre isso no livro. Fundamentalmente, é indústria 4.0 porque constitui o quarto ciclo de monumental avanço tecnológico da indústria. Dizem que o primeiro foi a Revolução Industrial, o segundo foi o Taylorismo e a indústria automotiva do século 20, o terceiro foi a partir de 1973 com a Revolução Digital informacional e o quarto é de agora em diante com esse novo salto. É criar a ‘internet das coisas’, por exemplo: estou com meu celular aqui do lado, desliguei porque senão não ia ter sossego para dar essa entrevista, mas o que eu vou fazer assim que a gente terminar? Ligar essa porcaria para ver o que eu tenho que fazer e o que eu não tenho que fazer. Já as empresas terão os algoritmos, elas terão a inteligência artificial, elas terão a automação e a robótica levada ao limite, à digitalização de tudo. O que é evidente que vai aumentar o emprego para uma camada pequena ultraqualificada. Entretanto, consequentemente, vamos ter demissões em massa de uma série de atividades que hoje existem, mas que vão desaparecer. O resultado disso será um precariado digitalizado, por isso infoproletariado ou cyber proletariado. A perspectiva é que não haja praticamente nenhum trabalho que não utilize o celular para intermediar essa relação. Alguém pode perguntar: “[...] mas você é contra a tecnologia?” Não, evidente. O problema é que a tecnologia hoje é guiada por uma lógica corporativista, completamente desprovida de sentido humano societal, porque há uma guerra entre as corporações. A Apple sabe que se descuidar a Samsung vai quebrá-la. E a Samsung sabe que se brincar a Nokia faz o mesmo. Então é uma guerra. É uma lei da selva, tanto é que no meu tempo de menino, ou você gostava da Brahma ou da Antártica. Décadas depois a Brahma e a Antártica se associaram e hoje elas já são outra coisa, AMBEV, que é a Brahma, a Antártica, mais cervejas belgas e outras numa corporação só. Então a lógica é isto. E ela para não quebrar tem que concorrer com as outras cervejarias, isso vale para o sistema de telefonia, para os automóveis.

Então, o quadro que nós temos é de expansão de um infoproletariado intermitente, sem direitos, precarizado, dando a alma, o que eu denomino de ‘escravismo digital’. Porque quando você vai para a casa o celular fica tocando, sempre tem alguém que liga a meia noite e diz “[...] olha, eu espero que esteja acordado porque eu tenho um problema e preciso que você resolva amanhã às seis da manhã”. Então o tempo borrou, borraram as diferenças entre tempo de vida no trabalho e tempo de vida fora do trabalho, isso é resultado desse infoproletariado.

O precariado é outro assunto, o qual desenvolvo no meu livro, e merece uma discussão particular. Especialmente na Europa, você teve um operariado que se expandiu durante o Welfare State (Bem-estar social), do pós-segunda guerra, em que o trabalhador trabalhava, mas podia comprar um carro, ter uma escola pública boa, uma boa assistência à saúde, conseguia ter sua casa e aposentar. No entanto, o que outrora fora denominado de Welfare State também está virando pó e você nota uma massa de trabalhadores jovens que já está sob o signo dessa deslegislação, dessa não legislação que não protege mais o trabalho. E esses trabalhadores jovens só encontram trabalho por salário pago a voucher (como na Itália), sem legislação trabalhista, com o ‘contrato zero hora’ (como na Inglaterra). Se um motorista adoecer e não tiver o seguro saúde, quem irá trabalhar por ele enquanto estiver doente? Ninguém. Quem vai pagar o salário que ele ganha apenas quando está efetivamente desempenhando o ato de trabalhar? Ninguém. Então é um infoproletariado, tem a aparência do mundo digital, mas também há uma corrosão dos seus direitos sociais. É um mito imaginar uma sociedade sem trabalho. Eu estou aqui com meu celular na mão, esse celular é uma máquina avançada, porém qual é a primeira atividade sem a qual esse celular não existe? A extração de minério feita na Ásia, na África, na América Latina, ou seja, mesmo o equipamento digital exige o mais brutal dos trabalhos manuais.

LIST: Segundo sua análise, quais seriam os desafios e tendências para os processos de resistência e emancipação hoje? Como pensar, por exemplo, as organizações coletivas e o sindicalismo.

RICARDO ANTUNES: O pressuposto que molda a minha análise é que esse sistema de valorização da riqueza das corporações financeiras globais tem como consequência inevitável a pauperização crescente da massa de trabalhadores. Bastaria pensar os imigrantes hoje que rodam o mundo desesperadamente atrás de qualquer trabalho, do norte para o sul, do sul para o norte, do leste para oeste, do oeste para o leste, do sul para o sul, do norte para o norte. Quer dizer, esse perambular desesperado. Aqui no Paraná, na região do corte de aves, bois e etc., você tem uma massa de trabalhadores haitianos, por exemplo, que foi incorporada, porque precisava trabalhar, em condições de trabalho que a gente pode imaginar. Porque, inclusive, é mais difícil para o haitiano filiar-se ao sindicato? É mais difícil até pela questão da língua, o haitiano não fala o espanhol, menos ainda o português, ele tem um dialeto próprio. Então como é que ele vai se associar a um sindicato, a um partido?

Veja, neste quadro, o desafio maior é que temos uma sociedade inconsertável. Nós temos que reconstruir um modo de vida em que a questão do trabalho seja garantidor de direito e dignidade. O trabalho hoje não tem menor dignidade para o capital, o trabalho é mero custo. “Tá caro, corta, e tchau”. Então nós temos que pensar uma nova sociedade, onde o modo de vida recupere o trabalho como valor e não como uma mercadoria que cria mais valia. Quatro ou cinco brasileiros hoje, isso foi citado pela Oxfam Brasil (2018)Oxfam Brasil. (2018) Oxfam Brasil. Recuperado de: https://www.oxfam.org.br/
https://www.oxfam.org.br/...
7 7 Dados obtidos via site oficial Oxfam Brasil. e outras pesquisa, ganham o que produzem 100 milhões de pessoas no Brasil. Lembrando Caetano cantando: “[...] alguma coisa está fora da ordem”.

Os momentos de crise são trágicos, mas são esses momentos que geram também as respostas. Nós temos que encontrar as respostas. Qualquer pessoa que estuda história verá que estamos numa era das trevas. E quem está dominando hoje no Brasil? Basta ver isso. Qualquer pessoa que sabe história percebe que o capitalismo não tem nem três séculos. O mercantilismo teve uns cinco séculos. O capitalismo, entre a sua pré-história - sua proforma - e o seu quadro atual contabiliza três séculos de vigência. O socialismo tentou e foi derrotado com a Revolução Russa, com a Revolução Chinesa, em várias revoluções do século XX. Mas o capitalismo também foi derrotado, na Revolução em Veneza no século XVI, na Revolução de Avis em Portugal, em 1783. Quer dizer, houve experimentos precoces burgueses que foram derrotados. Isso mostra que o capitalismo é um sistema totalizante e totalitário e derrotá-lo não é um empreendimento fácil. O que reforça a importância dos sindicatos, partidos, movimentos sociais. Essas são as ferramentas do mundo trabalho.

Agora, todas essas ferramentas têm que ser inteiramente reconcebidas. O sindicato, por exemplo, vive uma crise profunda. Apesar da reforma como o Temer impôs aos sindicatos, eles precisam recuperar o sentido de um sindicalismo de classe. Não estamos mais experienciando uma indústria taylorista-fordista vertical, hoje ela é horizontal. Por exemplo, o Walmart (hipermercado norte-americano de força global) tem milhares de fornecedoras e muitos outros milhares de subfornecedores cuja produção é feita no sul da China. Você tem uma cadeia produtiva imensa, hoje o mundo é de cadeias produtivas. Na Apple, o capital é norte-americano, contudo é a Foxconn quem produz os equipamentos na China. Essa última, é uma empresa que já chegou a ter mais de 1,5 milhão de trabalhadores, em 2010, e teve 17 tentativas de suicídio, 13 tragicamente se efetivaram. Você tem uma série de empresas hoje que só tem a marca, ela é a dona da marca, mas terceiriza tudo, a cadeia produtiva inteira.

Conhecer a China e a Índia foram vitais para mim. Quando fui participar de conferências na China há dois anos, peguei um avião cheio de empresários brasileiros de pequeno, médio e grande porte. Em um dado momento eu perguntei para alguns desses empresários, o que iriam fazer em Shanghai? Eles responderam que estavam indo para uma feira. E eu continuei: “[...] mas afinal, o que é que tem nessa feira de Shanghai?” O cara falou “Tudo! Tudo o que você precisa produzir lá vende e é barato”. Então um deles me contava, que produzia meias aqui - essas meias de grife - só que ele vendia por $80 o par, contudo, se ele comprasse essa meia na China ele gastava $2 por cada par. Ele falou: “[...] por que vou produzir no Brasil e gastar $10, $15?. Eu compro todo meu estoque de meia e eles entregam periodicamente”. Toda produção é chinesa. É por isso que a China, além de ter um mercado interno espetacularmente grande (cerca de 1,5 bilhões de pessoas), está produzindo para todas as partes do mundo e ainda tem se tornado dona de muita coisa no cenário internacional. Os sindicatos estão sendo obrigados e se repensar nessa cadeia produtiva.

Em um capítulo de meu livro, digo que nós temos três ferramentas: sindicatos, partidos e movimentos sociais. E aí eu faço uma provocação: qual é o mais importante? Depende. Já foram os partidos no século XX. Será que os partidos terão no século XXI a mesma importância? A tomar por hoje, certamente não. O que é que as rebeliões de 2013 mostraram? As rebeliões do mundo, as ações do mundo contemporâneo são muito anti-institucionais. A população descrê no sistema institucional hoje vigente. Então nós estamos obrigados a repensar o mundo. Como é que nós vamos fazer isso? A partir das lutas sociais e não a partir das cabeças de intelectuais.

LIST: Frente ao cenário traçado em seu livro O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital (2018) é possível perceber que a reestruturação do capitalismo, o qual se vivencia, tem causado dramáticas transformações para o trabalho. Consequentemente, o trabalhador tem sua saúde física e psíquica diretamente afetada. Apesar de sociólogo do trabalho, o senhor acumula uma experiência ímpar em sua carreira, por isso, fora tomada a liberdade de perguntar: como o senhor entende o papel da psicologia nessa conjuntura?

RICARDO ANTUNES: Claro que para mim é uma pergunta que não está no meu universo imediato, mas veja bem [...] quando eu estudei na FGV, tivemos a visão tradicional da psicologia organizacional. O psicólogo atuava para uma melhor adequação dos indivíduos que trabalham na estrutura organizacional, algo do gênero. Evidentemente que essa psicologia é uma psicologia tradicional e pouco crítica. O mundo do trabalho hoje é o mundo das doenças psíquicas, dos assédios morais, físicos, sexuais. Por exemplo: o Japão tem taxas de morte - o karoshi - e de suicídios no trabalho - o karojisatsu - entre as mais altas do mundo. O suicídio explodiu em países como a França, que não tem uma tradição de suicídio no trabalho como no Japão. Eu ouvia ontem, ou anteontem, na Folha de São Paulo, sobre o aumento no número de trabalhadores brasileiros que recorrem a tratamentos psiquiátricos. Isso porque o sistema não confere certeza se terá trabalho amanhã. Você se exaure para cumprir as metas infernais, se atingir as metas hoje, amanhã sua meta será maior, e a do dia seguinte maior que a do dia anterior, “[...] senão não tem graça” (ironia). Quem foge dessa regra está empatando e o capital não gosta de empate, ele gosta de 7x1. Gosta de arregaçar.

Então a psicologia, como a sociologia, como a assistência social, cada uma na sua especificidade, está sendo obrigada a repensar o mundo onde estamos inseridos e como vamos sobreviver nesse mundo profundamente destrutivo. Então eu só posso imaginar nessa conjuntura uma psicologia social do trabalho crítica, capaz de dizer que nesse quadro atual as equações não se resolvem simplesmente. Um psiquiatra poderia receitar aquelas pílulas para você dormir e relaxar, mas ainda que elas possam ser imprescindíveis em um determinado momento de crise, você não pode ficar restrito apenas a esse receituário, tem que ter uma equação social. O Freud (1930Freud, S. (1930). O mal estar na civilização. Rio de Janeiro, RJ: Imago.), que eu li décadas atrás, tem um belo ensaio denominado O mal-estar na civilização. Temos um mal-estar que é muito maior do que o abordado por Freud em seu tempo, um mal-estar que não é de uma psiquê isolada. Os psicólogos hoje necessitam de um olhar crítico, ao invés de um olhar neutro. É razoável, ao gerir pessoas, pensar que o primeiro objetivo dessas pessoas é trabalhar que nem loucas em um sistema de metas, que as faz enlouquecer seja no trabalho ou fora dele? É razoável pensar, como gestor de pessoas, que se essas pessoas não se adequarem a produtividade máxima são cartas fora do baralho? É razoável pensar, como fizeram na França, na France Telecom, quando trabalhadores eram demitidos porque não se adequaram e ao ganharem na justiça do trabalho o direito de retornar ao trabalho, serem olhados como espécies de animais, porque não se adequavam aos ideários da empresa? Não é possível.

A psicologia social do trabalho tem que analisar criticamente isso, olhar o mundo não com uma perspectiva neutra. Não há perspectiva neutra. Isso é vital para as ciências sociais e para todos os ramos das humanidades. A denominada ‘neutralidade’ do físico ou do matemático não faz sentido nessa conjuntura. Nós temos que ter uma concepção de ciências humanas onde a humanidade é o elemento vital e isso é decisivo também para a psicologia.

LIST: Agradecemos ao professor Dr. Ricardo Antunes pela entrevista. Que fique, então, registrada toda disponibilidade e atenção conferida a nós pelo professor.

Referências

  • Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviço na era digital São Paulo, SP: Boitempo.
  • Camus, A. (1994). O primeiro homem Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira.
  • Freud, S. (1930). O mal estar na civilização Rio de Janeiro, RJ: Imago.
  • Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE]. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2018). Recuperado de: https://www.ibge.gov.br
    » https://www.ibge.gov.br
  • Oxfam Brasil. (2018) Oxfam Brasil. Recuperado de: https://www.oxfam.org.br/
    » https://www.oxfam.org.br/
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    Entrevista concedida pelo Professor Dr. Ricardo Antunes (UNICAMP - Campinas-sp), ao Laboratório Interinstitucional de Subjetividade e Trabalho - LIST, acerca do tema Trabalho, Política e Ação.
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    Esta é uma obra coletiva do LIST, que teve como entrevistador Lucas Martins Soldera
  • 5
    Ressaltamos que houve partes da entrevista que foram retiradas, no intuito de conferir maior fluidez ao texto, não alterando assim o conteúdo, nem a essência da entrevista. Tais alterações foram ponderadas pela equipe entrevistadora e entrevistado, com o propósito de atender aos conteúdos que se deseja passar e a política editorial da revista Psicologia em Estudo.
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    Dados obtidos via site oficial do IBGE.
  • 7
    Dados obtidos via site oficial Oxfam Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    03 Jun 2019
  • Aceito
    27 Jun 2019
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