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O SER HUMANO É ASSIM, SOFRE, MAS ALGUNS DIAS SÃO PIORES: A PERCEPÇÃO DOS PACIENTES PARA O INÍCIO DO USO DOS MEDICAMENTOS PSICOTRÓPICOS

EL SER HUMANO ES ASÍ, LA GENTE SUFRE, PERO ALGUNOS DÍAS SON PEORES: PERCEPCIÓN DE LOS PACIENTES PARA INICIAR EL USO DE MEDICAMENTOS PSICOTRÓPICOS

RESUMO.

O processo de medicalização da nossa sociedade, na atualidade, acontece em várias direções, indicando que todo e qualquer tipo de mal-estar pode ser tratado com medicamentos. O objetivo da pesquisa foi compreender o início do uso dos psicotrópicos para superar os problemas enfrentados no cotidiano. Entrevistas em profundidade foram realizadas com 19 pessoas sobre os problemas que levaram ao início do uso de medicamentos psicotrópicos. Este estudo utilizou os pressupostos filosóficos de Heidegger e o tratamento de dados conforme proposto por Max van Manen. A análise desvelou o tema ‘O ser humano é assim, a gente sofre, mas alguns dias são piores’, que diz respeito às dificuldades vividas que desencadearam os sentimentos de raiva, ansiedade, estresse, tristeza e angústia, levando ao uso dos medicamentos psicotrópicos. A vivência das dificuldades enfrentadas na vida foi apontada como principal motivo para o início do uso do medicamento, como forma de preservar a saúde mental.

Palavras-chave:
Medicalização; psicotrópicos; hermenêutica

RESUMEN.

El proceso de medicalización de nuestra sociedad, en la actualidad, ocurre en varias direcciones, indicando que todo y cualquier tipo de malestar puede ser tratado con medicamentos. El objetivo de la investigación fue comprender el inicio del uso de los psicotrópicos para superar los problemas enfrentados en el cotidiano. Se llevaron a cabo entrevistas en profundidad con 19 personas sobre las razones para comenzar a tomar medicamentos psicotrópicos. Este estudio utilizó los supuestos filosóficos de Heidegger y el tratamiento de datos según lo propuesto por Max van Manen. ‘El ser humano es así, la gente sufre, pero algunos días son peores’, que se refiere a las dificultades vividas que desencadenaron los sentimientos de rabia, ansiedad, estrés, tristeza y angustia, llevando al uso de los medicamentos psicotrópicos. La vivencia de las dificultades enfrentadas en la vida fueron identificadas como principal motivo para el inicio del uso del medicamento, como forma de preservar la salud mental.

Palabras clave:
Medicalización; psicotrópicos; hermenêutica

ABSTRACT:

The current process of medicalization in our society has occurred in several directions, indicating that any malaise can be treated with medicines. This study aimed to understand the beginning of the use of psychotropic medicines to overcome the problems faced in individuals’ daily lives. In-depth interviews were carried out with 19 individuals about their reasons to start taking psychotropic medicines. This study used Heidegger’s philosophical assumptions and data analysis as proposed by Max van Manen. The analysis revealed the theme, ‘Human beings are like that, we suffer. But some days are worse’, which refers to the difficulties experienced that triggered feelings of anger, anxiety, stress, sadness and anguish, leading to the use of psychotropic medicines. The experience of the difficulties faced in life was pointed out as the main reason to start using medicine to preserve individuals’ mental health.

Keywords:
Medicalization; psychotropic; hermeneutics

Introdução

Os psicotrópicos passaram a ser utilizados nas últimas décadas para diferentes fins, para a solução de conflitos relacionados às dificuldades da vida, às aflições, aos desejos insatisfeitos e às muitas formas de opressão. Uma generalização do uso cada vez mais distante de uma patologia propriamente dita, atendendo à expectativa de atingir um ideal de normalidade, o que evidencia a dificuldade de se lidar com o humano, para além do corpo físico, juntamente com a tendência a ignorar os sentidos ou significados outros que não os biológicos (Aguiar & Ortega, 2017Aguiar, M. P., & Ortega, F. J. G. (2017). Psiquiatria biológica e psicofarmacologia: a formação de uma rede tecnocientífica. Revista de Saúde Coletiva, 27(4), 889-910. doi:10.1590/S0103-73312017000400003
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201700...
; Filardi, Araújo, Nascimento, & Oliveira, 2017Filardi, A. F. R., Araújo, V. E., Nascimento, Y. A., & Oliveira, D. R. (2017). Use of psychotropics in everyday life from the perspective of health professionals and patients: a systematic review. Journal of Critical Reviews, 4(3), 1-8. doi: 10.22159/jcr.2017v4i3.17598
https://doi.org/10.22159/jcr.2017v4i3.17...
; Lopes, Clamote, Raposo, Pegado, & Rodrigues, 2012Lopes, N., Clamote, T., Raposo, H., Pegado, E., & Rodrigues, C. (2012). O natural e o farmacológico: padrões de consumo terapêutico na população portuguesa. Saúde & Tecnologia, 8, 5-17. doi:10.25758/set.504
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; Whitaker, 2017Whitaker, R. (2017). Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro, RJ: Editora Fiocruz.).

Os problemas não médicos passam a ser definidos e tratados como problemas médicos, geralmente em termos de doenças ou distúrbios. A tendência é abordar todo o processo saúde-doença pelo viés unicamente biológico, sem levar em conta o psiquismo e as relações sociais (Maturo & Conrad, 2009Maturo, A., & Conrad, P. (Eds.). (2009). La medicalizzazione della vita, salute e società. Bologna, IT: Franco Angeli.). Assim, o uso de medicamentos para lidar com os problemas da vida não constituiria somente um processo individual em que o futuro consumidor de cuidados de saúde se convence do que é ser normal, mas também de um fenômeno coletivo próprio às nossas sociedades, que estabelecem os padrões de normalidade (Cohen, McCubbin, Collin, & Pérodeau, 2001Cohen, D., McCubbin, M., Collin, J., & Pérodeau, G. (2001). Medications as social phenomena. Health, 5(4), 441-469. doi:10.1177/136345930100500403
https://doi.org/10.1177/1363459301005004...
; Freitas, 2011Freitas, F. L. (2011). Tristeza e depressão: análise do discurso dos médicos psiquiatras de um município de Santa Catarina (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Centro de Ciências da Saúde. Universidade Federal de Santa Catarina, Florinaópolis. Recuperado de:https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/95536
https://repositorio.ufsc.br/handle/12345...
).

Os médicos, por sua vez, questionam a adequação de suas respostas na prática, se estão tratando a depressão ou os efeitos das dificuldades da vida, as misérias da vida. Eles se perguntam sobre quem realmente é deprimido e quem está apenas cansado ou farto das dificuldades e das circunstâncias sociais (Macdonald et al., 2009Macdonald, S., Morrison, J., Maxwell, M., Munoz-Arroyo, R., Power, A., Smith, M., … Wilson, P. (2009). ‘A Coal Face Option’; GPs’ perspectives on the rise in antidepressant prescribing. British Journal of General Practice, 59(566), 299-307. doi: 10.3399/bjgp09X454106
https://doi.org/10.3399/bjgp09X454106...
; Schallemberger & Colet, 2016Schallemberger, J. B., & Colet, C. F. (2016). Assessment of dependence and anxiety among benzodiazepine users in a provincial municipality in Rio Grande do Sul, Brazil. Trends Psychiatry Psychother, 38, 63-70. doi:10.1590/2237-6089-2015-0041
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). Na vida, estamos sujeitos a situações desagradáveis ou eventos negativos que nos levam a vivenciar o luto, a tristeza e a sentir que seremos marcados por esses sentimentos para sempre. Certamente, o sofrimento humano e os sintomas concretos que levam ao diagnóstico da depressão existem, mas o diagnóstico passa a ser tão prevalente que a depressão às vezes tem sido denominada de ‘resfriado comum da psiquiatria’; o problema subjacente, nesse caso, é que nem sempre sabemos o que estamos tratando (Paris, 2010Paris, J. (2010). The use and misuse of psychiatric drugs: an evidence-based critique. Chichester, UK: Wiley-Blackwell.). Na prática, a querela do diagnóstico leva ao questionamento: seria uma depressão ou seriam os efeitos das dificuldades da vida, ‘as misérias da vida’? Quem realmente é deprimido e quem está apenas cansado ou sobrecarregado com as dificuldades e as circunstâncias sociais? Muitas pessoas passam por dificuldades na vida e há muitas que são infelizes, mas não necessariamente deprimidas (Soares & Caponi, 2011Soares, G. B., & Caponi, S. (2011). Depression in focus: a study of the media discourse in the process of medicalization of life. Interface-Comunicação, Saúde, Educação,15(37), 437-446. doi.org/10.1590/S1414-32832011005000006
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; Whitaker, 2017Whitaker, R. (2017). Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro, RJ: Editora Fiocruz.). Alguns autores argumentam também que, se por um lado, os pacientes deixam de receber tratamento para a depressão porque os sintomas não são reconhecidos pelos especialistas, por outro lado, a prescrição de antidepressivos para pacientes que não são depressivos é muito mais representativa (Jureidini & Tonkin, 2006Jureidini, J., &Tonkin, A. (2006). Overuse of antidepressant drugs for the treatment of depression. CNS Drugs, 20(8), 623- 632. doi: 10.2165/00023210-200620080-00002
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).

Esta pesquisa nasceu da necessidade de compreender os processos subjacentes em relação ao uso dos medicamentos psicotrópicos. Espera-se que tal compreensão possibilite ao profissional de saúde desenvolver uma prática de cuidado centrado no paciente, na qual se buscam soluções conjuntas para a resolução dos problemas. Este trabalho apresenta parte dos resultados de uma pesquisa de doutorado cujo objetivo foi compreender a experiência vivida com o uso de psicotrópicos, assim como os motivos que levaram ao início do uso, para superar as dificuldades cotidianas.

Método

Este estudo propôs investigar o uso cotidiano de psicotrópicos utilizando os pressupostos filosóficos de Heidegger (2012Heidegger, M. (2012). Ser e tempo. Campinas, SP: Editora da Unicamp.) e o método de análise temática proposto por Max van Manen (1990Manen, M. V. (1990). Researching lived experience: Human science for an action sensitive pedagogy. New York, NY: State University of New York Press., 2014Manen, M. V. (2014). Phenomenology of practice: meaning giving methods in phenomenology research and writing. California, CA: Walnut Creek.) para o tratamento dos dados empíricos. A fenomenologia de Heidegger, por um lado, está sempre associada com a hermenêutica. A existência nos coloca imediatamente em contato com o mundo, envolvidos em uma unidade indissolúvel, pessoa-mundo, constituída e constituindo-se a partir da própria experiência (Casanova, 2013Casanova, M. A. (2013). Compreender Heidegger. Petrópolis, RJ: Vozes.). A pesquisa qualitativa fenomenológica de van Manen, por outro lado, é um projeto específico para a compreensão da experiência humana (Adams & Manen, 2017Adams, C., & Manen, M. A. V. (2017). Teaching phenomenological research and writing. Qualitative Health Research, 27(6), 780-791. doi: 10.1177/1049732317698960
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; Ho, Chiang, & Leung, 2017Ho, K. H. M., Chiang, V. C. L., & Leung, D. (2017). Hermeneutic phenomenological analysis: the ‘possibility’ beyond ‘actuality’ in thematic analysis. Journal of Advanced Nursing, 73(7), 1757-1766. doi: 10.1111/jan.13255
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).

As mulheres e os homens entrevistados tomaram conhecimento da pesquisa através do panfleto de divulgação que foi distribuído em vários locais - uma sede administrativa de serviços públicos estaduais, um câmpus de universidade pública, um centro universitário privado, dois serviços públicos de saúde, todos localizados na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. No panfleto foi especificado o perfil esperado dos participantes: pessoas que usavam medicamentos psicotrópicos para lidar com as dificuldades da vida pessoal - estresse, tensão, irritação, ansiedade, medo, tristeza ou algum outro tipo de mal-estar. No panfleto, utilizou-se o termo ‘calmante’ associado ao termo ‘psicotrópico’, para melhor entendimento pelas pessoas.

Os que se apresentaram, por identificarem-se com a chamada da pesquisa, relataram utilizar psicotrópicos para superar determinadas dificuldades enfrentadas na vida. Não foi, portanto, estabelecido nenhum diagnóstico diferencial. Os entrevistados foram informantes chaves que passaram pela experiência estudada, pessoas da população em geral, de ambos os sexos, de várias idades e níveis de escolaridade. As entrevistas individuais foram agendadas no dia, local e horário de preferência dos participantes e realizadas em residências e salas de reuniões de uma universidade pública e da sede administrativa de serviços públicos estaduais.

A coleta de dados foi realizada com a técnica de entrevistas em profundidade. Estas foram conduzidas buscando a elucidação do mundo da vida, deixando que o fenômeno falasse por si mesmo, dentro da perspectiva das pessoas que usavam psicotrópicos. As entrevistas foram gravadas e transcritas literalmente. Os participantes assinaram previamente o termo de livre consentimento e seus dados de identificação foram resguardados para garantir o sigilo e o anonimato da participação. Para a apresentação dos dados, os participantes receberam nomes fictícios. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Minas Gerais (COEP/UFMG) (CAAE: 30244714.9.0000.5149).

A análise foi desenvolvida em dois tempos, revelando os aspectos temáticos do fenômeno. No primeiro momento do tratamento de dados foi realizada a abordagem holística, na qual a pesquisadora, primeira autora, durante a transcrição dos dados leu e releu inúmeras vezes o conteúdo das entrevistas. Essa leitura possibilitou desenvolver uma familiariedade com o significado que percorreu todas as falas, e a captura do sentido global, que correspondia ao texto como um todo. Nesse momento, o tema, o significado fundamental ou principal do texto na sua integralidade foi representado por uma frase. No segundo passo, foi detalhado o processo de análise estabelecendo os subtemas, subdivisões contidas na compreensão global. Nesse processo, foi realizada também a abordagem seletiva ou linha a linha - uma leitura detalhada que buscou as frases, as sentenças ou as afirmações que agregavam sentido e revelavam a experiência vivida. As narrativas foram interpretadas desvelando os motivos para o início do uso dos medicamentos psicotrópicos. O software NVIVO® (versão 11) foi utilizado para auxiliar no tratamento e na organização dos dados.

A primeira autora, responsável por conduzir e transcrever as entrevistas, é psicóloga clínica; as demais autoras são farmacêuticas. O estudo foi redigido em conformidade com os critérios consolidados para relatórios de pesquisa qualitativa (Tong, Sainsbury, & Craig, 2007Tong, A., Sainsbury, P., & Craig, J. (2007). Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-itemchecklist for interviews and focus groups. International Journal for Quality in Health Care, 19(6), 349-357. doi.org/10.1093/intqhc/mzm042
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).

Resultados

As entrevistas foram realizadas com 19 pessoas - 14 mulheres e cinco homens - que utilizavam medicamentos psicotrópicos para superar os problemas enfrentados na vida. O tempo total das entrevistas foi de 15h03min43s. A primeira autora foi responsável pela transcrição do conteúdo das gravações. As mulheres tinham idade máxima de 81 anos, mínima de 18 anos e idade média de 41 anos. O tempo máximo de uso do medicamento foi de 38 anos, tempo mínimo de um ano, tempo médio de nove anos. Já os homens tinham idade máxima de 65 anos, mínima de 32 anos e idade média de 48 anos, com tempo máximo de uso do medicamento de 27 anos, tempo mínimo de um ano, tempo médio de 13 anos.

Os participantes relataram, nas entrevistas, a vivência de problemas específicos, percebidos como maiores do que o conjunto dos problemas já vividos, quando começaram a usar os psicotrópicos. A análise temática realizada revelou que o medicamento foi necessário para retornar ao ponto de equilíbrio afetado em um dado momento, quando os problemas vividos passaram a ser reconhecidos com um alto grau de dificuldade, que ultrapassava a capacidade pessoal para a sua solução. Essa dificuldade, sentida como insuportável, levou à busca da ajuda médica e ao uso do medicamento psicotrópico.

‘O ser humano é assim, a gente sofre, mas alguns dias são piores’

O tema ‘O ser humano é assim, a gente sofre, mas alguns dias são piores’ diz da nossa condição humana e do sofrimento vivido. Os subtemas relacionam-se com os problemas enfrentados no cotidiano, no trabalho, na família, nas relações amorosas (namoro e casamento) e nos estudos, que desencadearam reações emocionais, sentimentos de raiva, ansiedade, estresse, tristeza e angústia. Além disso, ficou em evidência que o cotidiano de alguns participantes, tanto no âmbito do trabalho quanto da família, foi atravessado pela proximidade e a vivência de situações muito graves de pobreza e violência. O sofrimento é forte. A percepção, quando se está vivendo essas emoções, é que a vida está fora de controle, há o medo subliminar de enlouquecer ou de que as reações frente ao problema não sejam normais. Os determinantes para início do uso dos medicamentos psicotrópicos estão apresentados na Figura 1.

Figura 1
Determinantes para início do uso do psicotrópico.

Trabalho

O estresse no trabalho foi relatado pela maioria dos participantes como determinante para o início do uso do psicotrópico.

Natália (81 anos), desde os 18 anos já trabalhava com corte e costura; aos 34 anos tinha tantos clientes que, para dar conta do serviço, era preciso se desdobrar, trabalhar dia e noite.

Eu ficava nervosa! Um dia eu falei: ‘Não, eu vou ao médico para ver se eu tomo um medicamento, porque eu estou ficando ansiosa’. Eu queria servir, porque eu servia e ganhava! A profissão veio me provocando o estresse, porque eu ficava ansiosa para entregar a costura (Natália, grifo nosso).

Tábata (38 anos), professora de educação artística, relata os problemas que enfrentou na escola: “Eu comecei a tomar os remédios porque tive problemas com a direção da escola. Eu não estaria aguentando a pressão sem os remédios. Nossa, eu sofri demais principalmente com os problemas que enfrentei no trabalho”.

Sofia conta que trabalhava muito, de segunda à sexta-feira, das 8h às 18h, e à noite cursava a faculdade, chegando em sua casa aproximadamente às 23h. Aos sábados, muitas vezes fazia hora extra. Aos domingos, precisava dedicar seu tempo aos trabalhos da faculdade e à família que tinha poucos recursos financeiros. Por isso, enfrentava muitos problemas. Ela conta que teve uma crise de ansiedade.

Eu trabalhava o dia inteiro, fazia faculdade, trabalhava em um escritório de contabilidade. Então era muito intenso! Minha família morava em outra cidade, eu morava em Belo Horizonte. Eu tinha que dar conta da faculdade, do trabalho, da família e de mim mesmo (Sofia).

Murilo, técnico no serviço público federal, preparou durante seis meses, dispensando 12 horas de trabalho diário, um levantamento minucioso com sua equipe, como havia sido determinado pelos órgãos superiores. No entanto, o trabalho da equipe nem sempre satisfazia os prestadores de serviço, que recorriam às chefias superiores. A equipe técnica determinava um parâmetro, e o chefe solicitava alterações para atender aos pedidos políticos de diretores e deputados. Murilo então teve uma crise de raiva no trabalho. Desse dia em diante passou a utilizar medicamentos psicotrópicos.

Às 7 horas, a porta da minha sala já estava cheia de gente, diretores e deputados. Eu entrei e, na hora que olhei em cima da minha mesa aquela pilha de papel, processos, me deu um desespero tão grande! Na hora até comecei a chorar, passei a mão na mesa, joguei a pilha de processo no chão, me deu uma raiva! Eu fiquei xingando. Não eram nem 8 horas ainda, eu saí da minha sala com a consulta marcada com o médico (Murilo).

Na vida cotidiana, no âmbito do trabalho, alguns participantes vivenciaram situações de pobreza e violência, como nos contam as professoras Jaqueline (49 anos) e Rafaela (47 anos) e o auxiliar administrativo Vitor (59 anos), que trabalham em escolas públicas localizadas na periferia da capital do Estado de Minas Gerais, e o policial Walter (42 anos). Jaqueline já trabalhava na prefeitura há 20 anos e relata que não tomava nenhum medicamento porque se considerava muito calma. Ela começou a trabalhar em uma escola pública onde todas as suas colegas tomavam medicamentos psicotrópicos (clonazepam, fluoxetina, haloperidol) e estavam frequentemente de licença médica. As professoras diziam que não estavam suportando o trabalho na escola devido ao muito envolvimento de pessoas do bairro com o tráfico de drogas. Segundo Jaqueline, alguns homens entravam na escola e tiravam os meninos para bater e outros avisavam que matariam determinados meninos. Jaqueline achava tudo isso muito complicado, mas não sentia que a situação afetava a sua vida até presenciar um crime no seu ambiente de trabalho.

Os alunos me puxaram e eu caí, machucando a minha rótula. Eu pensei que estavam soltando fogos de artifício no bairro. Quando eu me levantei, três alunos foram assassinados pelos colegas da escola. Depois disso, eu fui ao médico e ele disse que eu deveria tomar uma fluoxetina (Jaqueline).

Rafaela, formada em biologia, passou no concurso da prefeitura de Belo Horizonte para ser professora e tomou posse no seu novo trabalho.

Quando eu cheguei na escola, foi um choque! Muita coisa ruim, muita coisa triste, muita criança pobre, criança molestada, criança violentada pelo pai e pela mãe. Essa realidade abalou a minha vida. Crianças que passavam fome, maltratadas, algumas crianças usavam blusa de frio no calor para esconder que foram espancadas em casa (Rafaela).

Vitor relatou que a escola enfrentava muitos problemas como a falta de respeito, de disciplina, e a violência dos alunos, que chegavam a ameaçar professores até mesmo com revólver. Ele disse ser respeitado pelos alunos citando, como exemplo, o fato de ser chamado pelos professores, quando esses se sentiam ameaçados, para impor disciplina. “Eu cansei de chegar e tomar revolver de menino [...] Ano que vem aposento, quero aposentar e ir embora, porque é constantemente perigoso” (Vitor).

Walter, 42 anos, trabalhando na polícia há 18 anos, relatou a sua experiência no trabalho como policial, as dificuldades dele e dos colegas para lidar com a violência do ambiente de trabalho.

Esse período todo, eu trabalhava na rua e na carceragem. Só lugares esquisitos. Eu detestava, passei maus bocados. Era terrível, ficava o dia inteiro ouvindo gritaria no ouvido. É gente usando droga e tentando fugir. E tinha que ficar de olho. Não tinha estrutura nem suporte de outros profissionais e também não conseguia ajudar ninguém. Era difícil! Alguns colegas usavam drogas para tentar esquecer, outros bebiam (Walter).

Família

Alguns participantes relataram também graves problemas familiares como desencadeadores para o início do uso do psicotrópico.

No caso de Elisangela, 52 anos, a violência foi vivida dentro do círculo familiar. Ela descobriu que a filha estava sendo abusada pelo pai, o que a levou a buscar ajuda médica e a iniciar o uso do psicotrópico para suportar o turbilhão de emoções que essa descoberta causara em sua mente.

Um dia cheguei do serviço e minha filha que ainda não tinha nem nove anos, estava com uma mordida na bunda. ‘Meu pai, brincando comigo me mordeu’. Eu descobri o pai estava abusando dela. Eu usei fluoxetina para controlar a ansiedade, a preocupação com esse problema, para conseguir me controlar (Elisangela).

Madalena, 38 anos, perdeu a filha em um acidente de carro. Pouco tempo depois, o genro levou o seu neto, impedindo o contato dele com a família materna. Para vê-lo, foi preciso entrar com o pedido de visita na Justiça.

No dia que minha filha morreu, o marido dela disse que deixaria o meu neto ficar comigo. Logo depois, ele viajou para a Bahia e levou a criança sem avisar. Eu quase fiquei louca. No retorno da viagem, ele comunicou que não devolveria mais o menino. A minha filha morreu em agosto, e no final do ano, eu perdi o convívio com o meu neto. Para conseguir revê-lo, eu precisei recorrer a justiça (Madalena).

Relacionamento amoroso: namoro e casamento

Para alguns entrevistados, o principal motivo para uso do psicotrópico foram os problemas no relacionamento amoroso.

Rafaela terminou um noivado de longos anos, na iminência do casamento, para começar um namoro conturbado com seu aluno, muitos anos mais jovem que ela. Ela disse: “O que mais pesou na minha vida foi o problema desse relacionamento, esse namoro”.

Andreia, nascida em uma família com poucos recursos financeiros, perdeu os pais ainda muito jovem e logo se casou. Segundo ela, o casamento nunca foi bom.

Eu tinha sete anos quando perdi minha mãe, na mesma semana em que ela morreu o meu pai sofreu um acidente e precisou amputar uma perna. Logo depois, nós nos mudamos para o interior, onde eu me casei ainda muito nova. Nessa época, eu ainda não tinha nenhuma experiência da vida. O meu marido sempre foi uma pessoa muito boa, nunca deixou faltar nada para mim, mas era muito ignorante [...] nunca foi carinhoso comigo. Eu era muito nervosa, quando eu ganhei o meu menino, o médico receitou o diazepam e a amitripitilina (Andreia).

Beatriz contou que a sua primeira experiência com o medicamento foi quando era bem jovem, por causa do término de um namoro. Mas foi, posteriormente, quando estava se separando do marido, que passou a fazer uso regular do psicotrópico. Ela relatou que “[...] estava em um período difícil de casamento, separação, de começar outro relacionamento, de ficar com outra pessoa. Isso tudo foi determinante” (Beatriz).

O medicamento psicotrópico começou a ser usado por Walter quando seu casamento acabou. Ele disse que, na época, casou-se porque a namorada estava grávida. Mas deu tudo errado, e eles se separaram: “Depois disso, eu comecei a ‘cair um pouco’. Eu creio que as complicações que aconteceram na minha separação me fizeram relembrar muitas situações ruins. Esse fato me desestruturou um pouco” (Walter).

Estudo

As dificuldades enfrentadas nos estudos foram relatadas por algumas participantes da pesquisa como motivo para o início ou a manutenção do uso do medicamento. Denise, Laura, Sofia, Tânia e Tábata correlacionaram o processo vivido com o uso do psicotrópico. Denise conta que o medicamento veio para acalmar, principalmente quando viu que não tinha passado no vestibular e sentiu-se muito irritada e angustiada. Para Laura, era muito pesado trabalhar e estudar para concurso. Às vezes, chegava muito cansada em casa, conforme relatou: “Não conseguia ‘render’, por isso, o psiquiatra não retirou totalmente o medicamento” (Laura). Para Sofia, a sobrecarga do trabalho e da faculdade foi responsável pela crise de ansiedade e o pelo início do uso dos medicamentos. A dificuldade de Tânia estava em concentrar-se para redigir o seu trabalho, momento em que a ansiedade e a desatenção aumentavam. Como consequência, “[...] o médico prescreveu um medicamento para esse período”. (Tania) Tábata relata que “[...] apresentar trabalho era um terror, ‘embolava tudo’, tinha muita ansiedade e desespero, esquecia o conteúdo” (Tabata). Por outro lado, com o uso do medicamento, já se sentia à vontade para apresentar o trabalho sozinha.

Ser normal

As falas dos participantes foram perpassadas pelo desejo de atingir a normalidade. O medo das emoções, das reações, do desequilíbrio, de ‘enlouquecer’ e de não conseguir suportar a pressão oriunda dos problemas vividos, refletia o medo de não ser uma pessoa normal. O sentimento reforçava a ideia de que era preciso usar o medicamento. O tema esteve presente em diversos momentos das entrevistas. A preocupação com a normalidade pode ser ilustrada nas falas de alguns participantes. Sofia enfatizou seu desejo de “[...] ser uma pessoa normal, ser uma pessoa controlada [...]”, assim como Tábata, que queria “[...] tentar ser uma pessoa normal”. Já Tânia relatou a sua preocupação com o seu humor que “[...] alterava muito, por motivos pequenos, mas com o medicamento, não estava uma ‘linha’, mas um pouco mais próximo da linha de normalidade” (Tânia). Porém, na experiência de Beatriz, não era mais possível bloquear as suas reações com medicamentos, como fazia anteriormente; para ela, hoje, se acontecer alguma coisa, vai ter uma reação, que é normal, e precisa saber lidar com isso.

Discussão

Os principais problemas relatados pelos participantes da pesquisa, homens e mulheres, como precipitadores para o início do uso dos psicotrópicos, relacionaram-se com dificuldades que têm forte correlação psicossocial: problemas no trabalho, na família, nas relações amorosas e nos estudos. O relato dos problemas vividos evidenciou também que o cotidiano de alguns participantes, mais especificamente a rotina de trabalho e a vida familiar, foi marcado por situações de pobreza e violência.

O estudo desenvolvido por Van Geffen et al. (2011Van Geffen, E. C. G., Hermsen, J. H. C. M., Heerdink, E. R., Egberts, A. C. G., Verbeek-Heida, P. M., & Van Hulten, R. (2011). The decision to continue or discontinue treatment: Experiences and beliefs of users of selective serotonin-reuptake inhibitors in the initial months - A qualitative study. Research in Social and Administrative Pharmacy, 7, 134-150. doi: 10.1016/j.sapharm.2010.04.001
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), em Amsterdam, apresentou resultados similares: apontou que todos os 18 participantes que usavam Inibidores Seletivos da Recaptação da Serotonina (ISRS) também relataram dificuldades na vida diária, no trabalho, na família ou no relacionamento afetivo com o parceiro, levando-os a se sentirem incapazes de lidar com seus problemas, antes de procurar ajuda médica. O uso dos psicotrópicos para lidar com problemas que ocorrem no cotidiano também foi descrito no estudo de Dias et al. (2011Dias, J. R. F., Araújo, C. S., Martins, E. R. C., Closi, A. C., Francisco, M. T. R., & Sampaio, C. E. P. (2011). Fatores predisponentes ao uso próprio de psicotrópicos por profissionais de enfermagem. Revista Enfermagem UERJ, 19(3), 445-451. Recuperado de:https://www.facenf.uerj.brv19n3/v19n3a18.pdf
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), no qual os resultados demonstraram que os profissionais de enfermagem utilizavam os medicamentos para lidar com o estresse da carga horária ocupacional, as cobranças e a insatisfação no ambiente de trabalho e ou familiar (Dias et al., 2011). Em outras pesquisas, o medicamento foi referido como forma de alívio do estresse diário tanto na perspectiva do médico como do paciente (Filardi et al., 2017Filardi, A. F. R., Araújo, V. E., Nascimento, Y. A., & Oliveira, D. R. (2017). Use of psychotropics in everyday life from the perspective of health professionals and patients: a systematic review. Journal of Critical Reviews, 4(3), 1-8. doi: 10.22159/jcr.2017v4i3.17598
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). Além disso, um estudo realizado em duas cidades do Estado de Goiás, Brasil, apresentou também alta prevalência do uso de psicotrópicos por membros da Polícia Militar, relacionada às atividades de trabalho (Costa et al., 2010Costa, S. H. N., Cunha, L. C., Yonamine, M., Pucci, L. L., Oliveira, F. G. F., Souza, C. G. ... Leles, C. R. (2010). Survey on the use of psychotropic drugs by twelve military police units in the municipalities of Goiânia and Aparecida de Goiânia, state of Goiás, Brazil. Revista Brasileira de Psiquiatria, 32(4), 389-395. doi: 10.1590/S1516-44462010005000023
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). E os resultados encontrados em um estudo realizado no nordeste da França, por Baumann et al. (2007Baumann, M., Spitz, E., Guillemin, F., Jean-Francois, R., Choquet, M., Falissard, B., & Chau, N. (2007) Associations of social and material deprivation with tobacco, alcohol, and psychotropic drug use, and gender: a population-based study. International Journal of Health Geographics, 6(50) 1-12. doi:10.1186/1476-072X-6-50
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), demonstraram forte relação entre a privação social e o uso de psicotrópicos para ambos os sexos.

Estudos realizados no Brasil apresentam como resultado que os medicamentos psicotrópicos ainda são uma estratégia amplamente privilegiada, utilizados de maneira acrítica, apesar da transição do modelo hospitalocêntrico para o tratamento em saúde mental comunitária (Campos et al., 2012Campos, R. T. O., Palombini, A. L., Silva, A. E., Passos, E., Octávio, E. M. L., Serpa J Júnior, ... Gonçalves, L. L. M. (2012). Multicenter adaptation of the guide for autonomous management of medication. Interface-Comunicação, Saude, Educação, 16(43), 967-980, doi:10.1590/S1414-32832012005000040
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; Santos, 2009Santos, D. V. D. (2009). Uso de psicotrópicos na Atenção Primária do Distrito Sudoeste de Campinas e sua relação com os arranjos da clínica ampliada: “uma pedra no sapato” (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.). Da mesma forma, em outros países, estudos demonstram a primazia dos medicamentos como primeira escolha de tratamento, frequentemente a única intervenção ofertada (Lacasse, Megan, Lietz, Rider, & Hess, 2016Lacasse, J. R., Megan, H. P., Lietz, C.A., Rider, A. & Hess, J. Z. (2016). The client experience of psychiatric medication: A qualitative study. Social Work in Mental Health, 14(1), 61-81. doi.10.1080/15332985.2015.1058312
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). Embora os benefícios dos medicamentos psicotrópicos possam ser demonstrados principalmente na fase inicial do seu uso, em linhas gerais, a recuperação do paciente pode ocorrer com ou sem os mesmos. Estudos sobre o processo de recuperação em saúde mental e bem-estar demostram que as experiências exitosas não têm foco exclusivo no uso de medicamentos e na remissão dos sintomas. Ao invés disso, ocorrem de forma gradual e dinâmica, envolvendo múltiplos fatores de reconexão com a vida, consigo mesmo, com o tempo. Incluem o processo de resgate do sentido da vida; o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento, o planejamento do futuro, levando em conta ainda as circunstâncias da vida, as redes de apoio familiar de amigos e social, os desejos e as capacidades pessoais (Kartalova-O’Doherty & Doherty, 2010Kartalova-O’Doherty, Y., Doherty, D. T. (2010). Recovering from mental health problems: Perceived positive and negative effects of medication on reconnecting with life. International Journal of Social Psychiatry, 57(6), 610-618. doi: 10.1177/0020764010377396
https://doi.org/10.1177/0020764010377396...
; Jacob, Munro, Taylor, & Griffiths, 2017Jacob, S., Munro, I., Taylor, B. J., & Griffiths, D. (2017). Mental health recovery: a review of the peer-reviewed published literature. Collegian, 24 (1), 53-61. doi:10.1016/j.colegn.2015.08.001
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).

Além disso, para as pessoas que vivenciam situações de pobreza e violência, é preciso pensar que

[...] a depauperação permanente produz intenso sofrimento, uma tristeza que se cristaliza em um estado de paixão crônico na vida cotidiana, que se reproduz no corpo memorioso de geração a geração. Bloqueia o poder do corpo de afetar e ser afetado, rompendo os nexos entre mente e corpo, entre as funções psicológicas superiores e a sociedade (Sawaia, 2009Sawaia, B. B. (2009). “Psicologia e desigualdade social: uma reflexão sobre liberdade transformação social”. Psicologia & Sociedade, 21(3), 364-372. Recuperado de: http://www4.pucsp.br/nexin/artigos/download/psicologia-e-desigualdade-social.pdf
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, p. 370).

E ainda, Sawaia (2009Sawaia, B. B. (2009). “Psicologia e desigualdade social: uma reflexão sobre liberdade transformação social”. Psicologia & Sociedade, 21(3), 364-372. Recuperado de: http://www4.pucsp.br/nexin/artigos/download/psicologia-e-desigualdade-social.pdf
http://www4.pucsp.br/nexin/artigos/downl...
) reafirma que as pessoas em situação de pobreza não estão preocupadas exclusivamente com a sobrevivência biológica, uma vez que as restrições de seus direitos e a falta de dignidade geram tanto sofrimento quanto à precariedade dos recursos materiais (Sawaia, 2009). Portanto, é preciso reconhecer definitivamente que os fatores externos, as condições de vida reduzem a capacidade que possui todo homem de se afirmar em face ao meio e de assumir a responsabilidade de sua transformação. Assim sendo, é preciso assegurar um cuidado holístico que resgate a capacidade do ser, considere e privilegie intervenções cooperativas, que incorporam os significados e sentidos da realidade (Arruda & Arruda, 2010Arruda M. P., & Arruda, L. P. (2010). O profissional da saúde como um mediador de emoções. Revista Eletrônica de Enfemagem, 12(4), 770-774. doi: 10.5216/ree.v12i4.12261
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; Carneiro & Antunez, 2017Carneiro, S. F., & Antunez, A. E. A. (2017) Violência e resgate do humano: um olhar fenomenológico para a periferia de salvador. Psicologia em Estudo, 22(4), 575-586. doi: 10.4025/.v22i4.36988
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). Evitando a tendência em concentrar as explicações e intervenções no nível da psique individual e não nos cenários estruturais que produzem e sustentam a origem dos problemas (Mills, 2015Mills, C. (2015). The psychiatrization of poverty: rethinking the mental health-poverty nexus. Social and Personality Psychology Compass, 9(5), 213-222, doi:10.1111/spc3.12168
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).

Estudos desenvolvidos recentemente demonstram que o uso de abordagens não farmacológicas para lidar com o sofrimento humano é pouco valorizado. Apesar disso, é possível desenvolver habilidades para lidar com consultas psicossociais, as quais promovem consequentemente, a ressignificação dos benefícios de intervenções não medicamentosas (Creupelandt et al., 2017Creupelandt, H., Anthierens, S., Habraken, H., Declercq, T., Sirdifield, C., Siriwardena, A. N., & Christiaens, T. (2017). Teaching young GPs to cope with psychosocial consultations without prescribing: a durable impact of an e-module on determinants of benzodiazepines prescribing. BMC Medical Education, 17(259) 1-9. doi:10.1186/s12909-017-1100-3
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).

Os temas e subtemas que emergiram no decorrer da investigação sobre o uso dos psicotrópicos para a superação dos problemas enfrentados no cotidiano não devem ser ignorados, mas fazer parte dos debates das políticas públicas e das práticas clínicas, no intuito de incorporar e desenvolver intervenções pertinentes. Recomendam-se propostas de intervenções e terapêuticas que levem em conta tanto os problemas circunstanciais como o impacto causado pelos problemas vividos no cotidiano e que abordem o desenvolvimento de estratégias de superação.

Considerações finais

Os pressupostos filosóficos da fenomenologia hermenêutica promoveram a elucidação do mundo como vivido pelas pessoas, o significado do fenômeno estudado. Os medicamentos psicotrópicos foram utilizados como forma de apaziguar o sofrimento humano.

Os participantes da pesquisa relataram principalmente a vivência de estresse social como motivo para o início do uso do medicamento psicotrópico como forma de proteção ao seu bem-estar e saúde mental, a partir da percepção de que o seu equilíbrio emocional poderia estar em risco. Suas reações frente às dificuldades enfrentadas fazem parte da experiência vivida por todo ser humano que passa por problemas difíceis ou mais graves no cotidiano, levando à necessidade de um pedido de auxílio. E os psicotrópicos certamente são uma opção cada vez mais disponível para o enfrentamento dos problemas psíquicos; na atualidade, têm sido de fato indicados como forma de ajudar as pessoas a superar os diferentes problemas enfrentados na vida. Os participantes relataram os benefícios dos psicotrópicos principalmente no início do uso, embora todos os medicamentos fossem utilizados cronicamente.

No entanto, ponderamos a necessidade de fortalecimento da indicação por parte dos profissionais de saúde e da ampliação do acesso para outras formas de ajuda não farmacológicas, para a superação de problemas claramente ligados à realidade circundante.

Agradecimentos

Agradecemos a todos os que, tendo interesse e disponibilidade para relatar a sua experiência vivida, participaram da pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2019
  • Aceito
    23 Jun 2020
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