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CLÍNICA E PESQUISA DO AUTISMO: OLHAR ÉTICO PARA O SOFRIMENTO DA FAMÍLIA1 1 Apoio e financiamento: Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pela concessão da bolsa de mestrado,número 18/03306-7 e do auxílio à pesquisa número 13/25332-6.

CLÍNICA E INVESTIGACIÓN DEL AUTISMO: MIRADA ÉTICA AL SUFRIMIENTO DE LA FAMILIA

RESUMO:

No presente artigo, temos como objetivo discutir, do ponto de vista da ética, alguns impactos que o autismo pode ter nas relações familiares. Para tanto, recorremos a uma revisão bibliográfica acerca de possíveis efeitos do autismo nas relações familiares e também à apresentação de recortes autobiográficos de famílias de crianças com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA). A reflexão desenvolvida ao longo do artigo leva a pensar sobre como a criança com TEA, com suas singularidades, pode vir a impactar as relações familiares e sobre como a subjetividade da criança afeta a família ao mesmo tempo em que é afetada por ela. Dessa forma, esperamos alargar e aprofundar o horizonte das pesquisas que enfocam este tema e fornecer novos elementos para a escuta e cuidado dos pais e irmãos na clínica do autismo.

Palavras-chave:
Autismo; família; ética

RESUMEN:

En este artículo, nuestro objetivo es discutir, desde el punto de vista de la ética, algunos impactos que el autismo puede tener en las relaciones familiares. Para habilitar esta discusión, recurrimos a una revisión de la literatura sobre los posibles efectos del autismo en las relaciones familiares y también a la presentación de recortes autobiográficos de familias de niños con Trastorno del Espectro Autista (TEA). La reflexión desarrollada a lo largo del artículo lleva a pensar cómo el niño con TEA, con sus singularidades, puede impactar las relaciones familiares, reflexionando sobre cómo la subjetividad del niño afecta a la familia al mismo tiempo que se ve afectada por ella. De esta manera, esperamos ampliar y profundizar el horizonte de investigación sobre este tema y proporcionar nuevos elementos para la escucha y el cuidado con a los padres y hermanos en la clínica de autismo.

Palabras clave:
Autismo; familia; ética

ABSTRACT:

In this article, we aim to discuss, from a standpoint of the field of Ethics, some impacts that autism may have on the family. We made a literature review about possible effects of autism on family relationships and autobiographical texts of relatives of people with Autism Spectrum Disorder (ASD). We discuss how people with ASD, with their singularities, may impact family relationships, and how the person’s subjectivity simultaneously impacts and is impacted by the family. In this way, we hope to broaden and deepen the horizon of researches that focus on such issues providing new elements for listening and caring for parents and siblings in autism-related treatment.

Keywords:
Autism; family; ethics

Introdução

O presente artigo tem como objetivo discutir possíveis impactos do autismo nas relações familiares. Pretende-se fomentar essa discussão a partir de dois eixos: I. revisão bibliográfica acerca de tais efeitos e II. a apresentação e discussão de recortes de autobiografias de famílias de crianças com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA). A reflexão desenvolvida ao longo do artigo abordará sobre como a criança com TEA, com suas singularidades, pode vir a impactar as relações familiares e sobre como a subjetividade da criança afeta a família ao mesmo tempo em que é afetada por ela. Dessa forma, esperamos alargar e aprofundar o horizonte das pesquisas que enfocam este tema, fornecendo novos elementos para a escuta e cuidado de toda a família de crianças com TEA.

Na teorização e na clínica do autismo o cuidado e escuta dos pais é imprescindível. Muitos autores têm trabalhado nessa perspectiva, como é o caso de Merletti (2018). Segundo a autora, faz parte da clínica do autismo o cuidado com o sofrimento dos pais. A psicanalista aponta para a importância de “[...] cuidar de quem prosseguirá cuidando” (Merletti, 2018, p. 146) das crianças com TEA, em uma perspectiva de encorajamento e aposta no papel dos pais.

Muito embora essa perspectiva apontada por Merletti (2018) seja compartilhada por psicanalistas que lidam com o autismo hoje, e esteja respaldada em seus estudos e enunciada em diversas formulações, ainda há quem defenda que a psicanálise seja uma abordagem culpabilizante dos pais. O movimento antipsicanalítico, iniciado na década de 80 na França, torna evidente a persistência do referido estigma em torno da psicanálise. Em 2012 esse movimento levou a muitas consequências na saúde privada e pública, com sanções no plano econômico e a tentativa de elidir a psicanálise como forma de tratamento para os Transtornos do Espectro do Autismo (Gonçalves, Silva, Menezes, & Tonial, 2017Gonçalves, A. P., Silva, B., Menezes, M., & Tonial, L. (2017).Transtornos do espectro doautismo e psicanálise: revisitando a literatura.Tempo Psicanalitico,49(2), 152-181. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-48382017000200008&lng=pt&tlng=pt
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). No Brasil, em setembro de 2012, foi lançado um edital pela Secretaria de Saúde de São Paulo para o credenciamento de instituições de saúde mental que atendem autismo, excluindo a psicanálise como abordagem válida. Grande parte dos argumentos em torno dessa exclusão relacionava-se à ideia de que a psicanálise acusa os pais pelo autismo da criança, conforme aponta o texto oficial do Movimento psicanálise, autismo e saúde pública (2020Movimento Movimento psicanálise, autismo e saúde pública. (2020). Recuperado de: http://www3.fe.usp.br/secoes/inst/novo/laboratorios/lepsi/biblioteca/estante/hist_autismo.pdf
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).

Considerando esse contexto, torna-se clara a necessidade dos psicanalistas de reunirem elementos para adentrar nesse debate teórico e científico especificamente na clínica do autismo. É com este intuito que, no presente artigo, desenvolveremos dois eixos de reflexão que fornecerão a clínicos e pesquisadores do autismo, psicanalistas ou não, elementos para ampliar suas considerações sobre o tema com olhar e escuta atentos ao sofrimento das famílias.

No intuito de situarmos a problemática sobre a qual nos debruçamos, apresentaremos, nos próximos parágrafos, um percurso por teorizações em torno do autismo desenvolvidas principalmente por autores da psicanálise. Mostraremos como as perspectivas psicanalíticas nesse campo se alargaram desde as formulações iniciais até que se tornou possível colocar em prática a escuta e o acolhimento dos pais e irmãos de crianças com TEA. Demonstraremos que ao longo das décadas desde que se definiu a categoria nosológica do autismo as concepções em torno da etiologia e tratamento do mesmo mudaram paulatinamente.

Em algumas etapas iniciais de teorização, mães ou cuidadores foram culpabilizados pelo autismo da criança. Desde a década de 40, quando o psiquiatra Leo Kanner formalizou a categoria nosológica do autismo, o papel da relação mãe-bebê na gênese de tal condição tem sido tema de reflexões, pesquisas e reformulações. A conhecida hipótese da ‘mãe-geladeira’ é emblemática nesse sentido e, embora já refutada, nos convoca sempre a um olhar crítico e a uma postura ética nos estudos das crianças com TEA e de suas famílias.

Após realizar um estudo com 11 crianças que tinham em comum isolamento extremo, incapacidade de se relacionar com outras pessoas, problemas na linguagem e preocupação obsessiva pelo que é imutável, Kanner formulou e defendeu a ideia de que a gênese do autismo estaria na relação fria e no distanciamento físico e afetivo entre o bebê e sua mãe (Corrêa, 2017Corrêa, P. H. (2017). O autismo visto como complexa e heterogênea condição. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 27(2), 375-380. Recuperado de: https://dx.doi.org/10.1590/s0103-73312017000200011
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). Segundo essa hipótese, o retraimento e o isolamento da criança com TEA seriam um mecanismo de defesa diante da frieza e falta de amor genuíno da mãe.

Tal ideia levou à formulação da conhecida hipótese da ‘mãe-geladeira’, que atribuía à mãe a culpa pelo autismo da criança. Donvan e Zucker (2017Donvan, J., & Zucker, C. (2017). Outra sintonia: a história do autismo (Trad. L. A. de Araujo). São Paulo, SP: Companhia das Letras.) nos lembram que, em 1969, Kanner se desculpou para um público de pais de crianças com TEA pela referência à ideia da mãe-geladeira, desfazendo o mal-entendido de que o autismo seria culpa dos pais. Mesmo assim, ainda hoje nos encontramos às voltas com perspectivas culpabilizantes de críticos externos que, desconhecendo ou não se referindo a pesquisas psicanalíticas atuais, afirmam erroneamente que esta seja a leitura atual da psicanálise, o que frequentemente agrava o já tão intenso sofrimento dos pais de crianças com autismo.

Embora ressaltemos que se tratam de teorizações ultrapassadas, consideramos relevante realizar uma revisitação de algumas das principais linhas de argumentação, inclusive por estas serem reiteradamente apropriadas para criticar a clínica psicanalítica do autismo.

Nesse âmbito, vale retomar como a referida hipótese da ‘mãe-geladeira’ continuou presente no pensamento e nas formulações subsequentes acerca da etiologia do autismo. O psicanalista Bruno Bettelheim reiterou essa ideia na medida em que defendeu que na gênese do autismo estariam a ineficiência dos cuidados com a criança, um pai ausente e uma mãe frígida e insensível (Bettelheim, 1987Bettelheim, B. (1987). A fortaleza vazia. São Paulo, SP: Martins Fontes.). Vale notar que em 1955 no livro Fugitivos de la vida (Bettelheim, 1976Bettelheim, B. (1976). Fugitivos de la vida.Ciudad de México, MX: Fondo de Cultura Económica.), o autor retratou-se em relação a essa formulação, deixando de usá-la.

Autores subsequentes da psicanálise continuaram a pensar sobre a etiologia do autismo, especialmente a partir de seus estudos de caso em sua articulação com as dinâmicas interacionais familiares.

Françoise Dolto (Soler & Bernardino, 2012Soler, V. T., & Bernardino, L. M. F. (2012). A prática psicanalítica de François e Dolto a partir de seus casos clínicos.Estilos da Clínica,17(2), 206-227.), na década de 50, ressaltou a importância do trabalho com os pais no campo do autismo, uma vez que para a autora as questões que emergem na primeira infância relacionam-se à dinâmica familiar. Pode-se perceber uma mudança em relação ao pensamento inicial de Bettelheim. Se antes os pais - e em particular a mãe - eram vistos como culpados pelo autismo da criança, agora as questões familiares não deixam de ser consideradas na etiologia do autismo, mas os pais passam do lugar de culpados ao lugar de pessoas a serem escutadas e incluídas no tratamento de seus filhos.

Frances Tustin (1984Tustin, F. (1984).Estados autísticos em crianças. Rio de Janeiro, RJ: Imago ) discorreu sobre a separação prematura entre a criança com TEA e sua mãe (por exemplo, interrupção precoce da amamentação). Do ponto de vista do bebê ainda não integrado, tal separação significaria a perda de uma parte de si. O resultado seria a reação defensiva de fechamento autístico para fins de proteção. Nota-se, assim, a consideração sobre fatores psicogênicos em torno do autismo, em especial de aspectos da relação com a mãe. Percebe-se, no entanto, que não há uma perspectiva taxativa que atribua à mãe ou cuidadores a culpa pelo autismo da criança. Trata-se de um impasse relacional, de uma perda precoce sofrida pelo bebê que não é culpa da mãe. A separação precoce poderia ocorrer, por exemplo, em função da tragédia da morte da mãe ou em função de algum fator externo que levasse à separação da díade, associada a uma vulnerabilidade orgânica da criança.

[...] mesmo em relação a crianças em quem os fatores psicogênicos parecem ser os mais operantes na etiologia de suas psicoses, o psicoterapeuta cauteloso não pode descartar a possibilidade de que tais crianças possam ter o mínimo de danos neurológicos ou falta de equilíbrio metabólico que não possam ser detectados pelas investigações físicas acessíveis no momento. Assim, esta é uma área onde o conhecimento médico criterioso é indispensável (Tustin, 1984Tustin, F. (1984).Estados autísticos em crianças. Rio de Janeiro, RJ: Imago , p. 26).

Em meados da década de 70, Donald Meltzer (1975Meltzer, D. (1975). La dimensionalidad como un parametro del funcionamento mental: su relacion con la organisation narcisista. In D. Meltzer Exploracion del autismo. Buenos Aires, AR: Paidós.) abordou a incapacidade de alguns bebês de encontrarem um objeto materno - cujo papel pode ser exercido pela mãe biológica ou não - capaz de conter seu desamparo e desorganização psíquica. É importante destacarmos o fato de que o autor mencionou uma incapacidade dos bebês, e não das mães, mostrando um alargamento das perspectivas existentes até então na medida em que mencionou possíveis dificuldades do próprio bebê.

Afastando-se totalmente de qualquer tipo de culpabilização dos pais na origem do autismo, Laznik (2004Laznik, M-C. (2004). A voz da sereia: o autismo e os impasses na constituição do sujeito. Salvador, BA: Agalma.) cada vez mais enfatiza a dimensão relacional da gênese dessa condição, salientando aspectos constitucionais orgânicos entre os bebês que mais tarde viriam a receber o diagnóstico de autismo. Nesse sentido, ela apontou para dificuldades na administração da excitação por parte do bebê, cuja conseqüência seria o evitamento defensivo do contato humano/fechamento e ausência da capacidade de demandar vocalmente (mesmo em situação de dor e angústia), levando a uma experiência de desamparo por parte do bebê, dada a ausência da possibilidade de perceber as outras pessoas a sua volta como capazes de aliviar este sofrimento intenso. Mais contemporaneamente, Burnod e Laznik (2016Burnod, Y., & Laznik, M-C. (2016). O ponto de vista dinâmico neuronal sobre as intervenções precoces. In M. C. Kupfer & M. Szejer (Orgs.), Luzessobre a clínica e o desenvolvimento de bebês (p. 13-30). São Paulo, SP: Instituto Langage. ) enfatizam a importância de questões orgânicas na gênese do autismo que se refletem na dificuldade de inserção no enlace relacional e na possibilidade de experienciar prazer na relação com as outras pessoas, salientando a relevância e potência de intervenções terapêuticas desde a mais tenra idade.

A partir desse breve percurso, vemos como os estudos psicanalíticos não ficaram estagnados nas perspectivas de Bettelheim da década de 40. Houve avanços que permitiram alargar as perspectivas teóricas e clínicas. Cada vez mais pudemos observar a perspectiva de inclusão das famílias como aliadas ao tratamento.

Nesse sentido, Merletti (2018)Merlleti, C. (2018). Autismoem causa: historicidade diagnóstica, prática clínica e narrativas dos pais.Psicologia USP,29(1), 146-151. Recuperado de: https://doi.org/10.1590/0103-656420170062
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aponta para a importância, na clínica do autismo, de acolher e restituir narcisicamente os pais das crianças com TEA, em geral tão carregados por sentimentos de angústia e desamparo e sofridos em função do impacto do diagnóstico e dos desafios cotidianos por eles enfrentados. A autora destaca a relevância de uma posição de escuta e ética que tem como objetivo acolher a criança e sua família a partir de seu sofrimento. Trata-se de uma perspectiva de “[...] corresponsabilização social da família na construção dos cuidados, na transmissão simbólica e na sustentação de uma posição crítica sobre os possíveis lugares e destinos da criança” (Merletti, 2018Merlleti, C. (2018). Autismoem causa: historicidade diagnóstica, prática clínica e narrativas dos pais.Psicologia USP,29(1), 146-151. Recuperado de: https://doi.org/10.1590/0103-656420170062
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, p. 149).

Segundo Gonçalves et al. (2017Gonçalves, A. P., Silva, B., Menezes, M., & Tonial, L. (2017).Transtornos do espectro doautismo e psicanálise: revisitando a literatura.Tempo Psicanalitico,49(2), 152-181. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-48382017000200008&lng=pt&tlng=pt
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), os artigos de abordagem psicanalítica publicados entre 2009 e 2014 no Brasil que focalizam a etiologia do autismo consideram possibilidades multicausais para a origem do transtorno, que passam por aspectos genéticos, biológicos, relacionais, ambientais e culturais. Reitera-se, assim, o alargamento das considerações psicanalíticas que enfocam esse tema.

O breve percurso pelo pensamento desses autores torna evidente que aqueles que advogam que a psicanálise atribui aos pais a culpa pelo autismo da criança estão presos em um discurso que desconsidera os avanços nesse campo desde meados do século XX até hoje. Como colocado, os próprios autores que defenderam a hipótese da ‘mãe-geladeira’ (Kanner e Bettelheim) já se desculparam por isso. Vale lembrar que Kanner, que lançou pela primeira vez essa ideia, não era psicanalista, mas sim psiquiatra.

Contribuições da psicanálise

Uma das contribuições da psicanálise, além de pensar sobre a etiologia do autismo, refere-se à escuta e acolhimento que torna possível otimizar essa clínica, e nesse âmbito propomos que pensar sobre os impactos do autismo nas relações familiares pode contribuir para aprofundar e alargar as perspectivas clínicas e de investigação que enfocam este assunto.

No presente artigo, salientamos a relação que se estabelece entre a criança e seus pais, considerando que a condição do filho ou filha pode produzir efeitos sobre os mesmos, com um potencial de influência, em retroalimentação, sobre o isolamento autístico da criança. Colocando de maneira simples, é como se estivéssemos falando de uma relação em via de mão dupla, na qual a criança tem dificuldades no estabelecimento de laços sociais; por consequência, seus pais sofrem com tais dificuldades, com impactos sobre o investimento afetivo parental, o que pode vir a agravar o quadro da criança com TEA.

A reflexão acerca do sofrimento da família (pais, irmãos) da criança com TEA pode ser incentivadora de uma perspectiva teórico-clínica mais abrangente sobre o impacto do autismo na família e que leva em consideração a potência de olharmos para aspectos relacionais entre a criança com TEA e seus familiares como forma de cuidado nessa clínica. Não se trata de pensar sobre agentes causadores do autismo, mas de considerar quem está no dia a dia da criança com TEA e que pode potencializar as intervenções e formas de cuidado propostas.

Assim, apresentaremos uma reflexão acerca das famílias de crianças com TEA na busca de um olhar ético para o seu sofrimento. Em um primeiro momento, serão trazidos alguns autores que pensaram sobre o impacto do autismo na família (eixo 1) e, na sequência, algumas reflexões a respeito de autobiografias escritas por pais de crianças com TEA, que nos incentivam a olhar ‘de dentro’ para essas famílias (eixo 2).

Método

Em relação à metodologia utilizada para escrita dos eixos 1 e 2 acima mencionados, realizamos 1. revisão bibliográfica sobre possíveis efeitos do autismo nas relações familiares no caso de famílias de crianças com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) e 2. utilização da psicanálise como instrumental de leitura na reflexão sobre textos autobiográficos escritos por pais de pessoas com TEA.

No que diz respeito ao eixo 1, realizamos uma revisão bibliográfica nas bases de dados Lilacs, Google Acadêmico e Scielo com os seguintes descritores: ‘impacto do autismo na família’, ‘autismo e irmãos’, ‘autismo e pais’. Os artigos selecionados para leitura foram todos aqueles que estavam na área de psicologia, excluindo aqueles de outras áreas (fonoaudiologia, biologia, medicina). Para a análise de dados, todo o material foi lido e resumido usando o recurso de fichamento. Na sequência, as informações foram organizadas e selecionadas para escrita do presente artigo.

Em relação ao eixo 2, utilizamos um vasto material com cerca de 100 autobiografias escritas por pessoas com TEA e/ou por seus pais. Foram selecionadas para compor o artigo algumas dessas autobiografias de acordo com a sua maior possibilidade de ilustração da temática do artigo.

O impacto do autismo na família

Em muitos casos de autismo, os primeiros sintomas surgem logo no início da vida. Assim é plausível supor que essas características exerçam um impacto no cotidiano das famílias e nas relações entre seus membros.

Nesse sentido, estudos como o de Schmidt e Bosa (2003Schmidt, C., & Bosa, C. (2003). A investigação do impacto do autismo na família: Revisão crítica da literatura e proposta de um novo modelo. Interação em Psicologia, 7(2), 111-120.) revelaram a existência de estresse agudo em famílias que possuíam um membro com diagnóstico de autismo. Tal perspectiva permite-nos pensar no quanto a singularidade da criança com TEA pode impactar toda a família. Assim, distanciamo-nos de um olhar voltado apenas a perceber o impacto da subjetividade dos cuidadores (especialmente da mãe) sobre a constituição psíquica da criança, percorrendo o caminho inverso: de pensar sobre como a criança afeta a família.

Nessa linha de ampliação dos estudos, faz-se necessário pensar sobre como o próprio autismo pode impactar as relações familiares, e sobre como podemos nos debruçar sobre essas relações e a subjetividade dos pais no incremento dessa clínica. É nesse sentido que, nos próximos parágrafos, refletiremos acerca do possível impacto do autismo de um irmão sobre o outro, bem como sobre os pais, na procura por uma disponibilidade empática diante dessas pessoas.

Gold (1993Gold, N. (1993). Depression and social adjustment in siblings of boys with autism. Journal of Autism and Developmental Disorders, 23(1), 147-163. doi:10.1007/bf01066424
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) investigou as diferenças existentes entre irmãos de crianças com TEA e irmãos de crianças com desenvolvimento típico em alguns aspectos como depressão e adaptação social. A autora comparou 22 irmãos de crianças com TEA com 34 irmãos de crianças com desenvolvimento típico e descobriu maiores índices de depressão no primeiro grupo em comparação ao segundo. Não houve diferença significativa entre os grupos no que diz respeito à adaptação social.

Os achados acerca do impacto de se ter um irmão com TEA não são unânimes. Na revisão da literatura realizada por Gomes e Bosa (2004Gomes, V. F., & Bosa, C. (2004). Estresse e relações familiares na perspectiva de irmãos de indivíduos com transtornos globais do desenvolvimento. Estudos de Psicologia (Natal ), 9(3), 553-561. Recuperado de: https://dx.doi.org/10.1590/S1413-294X2004000300018
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), as autoras apontam que os irmãos de crianças com TEA, comparados aos irmãos de crianças com desenvolvimento típico, tendem a assumir maiores responsabilidades e a manifestar maior idealismo e preocupações humanitárias, em comparação aos irmãos de crianças com desenvolvimento típico, sugerindo que o impacto do autismo na família pode assumir várias facetas.

Concordando com a ideia acima, Rao e Beidel (2009Rao, P. A., & Beidel, D. C. (2009). The impact of children with high-functioning autism on parental stress, sibling adjustment, and family functioning. Behavior Modification, 33(4), 437-451. doi:10.1177/0145445509336427
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) apontaram que os impactos de se ter um irmão com TEA são controversos e variados. Por meio de uma revisão da literatura sobre o tema, as autoras indicaram, por um lado, estudos em que não se observaram efeitos negativos de se ter um irmão com TEA e, por outro, estudos que indicaram maior nível de depressão, problemas comportamentais e solidão nos irmãos com desenvolvimento típico, atestando que os estudos sobre o tema ainda não são conclusivos.

Rao e Beidel (2009Rao, P. A., & Beidel, D. C. (2009). The impact of children with high-functioning autism on parental stress, sibling adjustment, and family functioning. Behavior Modification, 33(4), 437-451. doi:10.1177/0145445509336427
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) estudaram uma amostra formada por 30 pais, sendo 15 de crianças com TEA e 15 de crianças com desenvolvimento típico. Os resultados desse estudo apontaram níveis mais elevados de estresse no grupo de pais de crianças com TEA, em comparação ao grupo controle. Segundo as autoras (Rao & Beidel, 2009Rao, P. A., & Beidel, D. C. (2009). The impact of children with high-functioning autism on parental stress, sibling adjustment, and family functioning. Behavior Modification, 33(4), 437-451. doi:10.1177/0145445509336427
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), tais resultados chamam a atenção para a necessidade de que os programas de tratamento voltados às crianças com TEA possam se dedicar também à questão do estresse parental, o que pode vir a otimizar o próprio tratamento da criança. Em relação ao funcionamento familiar, Rao e Beidel (2009) Rao, P. A., & Beidel, D. C. (2009). The impact of children with high-functioning autism on parental stress, sibling adjustment, and family functioning. Behavior Modification, 33(4), 437-451. doi:10.1177/0145445509336427
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apontaram também uma tendência, dentre os pais do grupo controle, de maiores índices de independência (assertividade, autossuficiência e capacidade de tomar as próprias decisões) em comparação ao grupo de pais de crianças com TEA.

Durand et al. (2019Durand, J. G., Geraldini, S. A. R. B., Paschoal, L. P., Cangueiro, L., Mamede, D. T., Brito, T. S., ... Lerner, R. (2019). Case-contrast study about parent-infant interaction in a Brazilian sample of siblings of children with autism spectrum disorders. Infant Mental Health Journal, 40(2), 289-301. doi: 10.1002/imhj.21772. Epub 2019 Mar 8. PMID: 30849191
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) compararam dois grupos de díades compostas por mães e bebês de dois a 26 meses de vida: um composto por familiares de uma criança mais velha com TEA e outro por familiares de uma criança mais velha sem TEA. Díades de familiares de crianças com TEA tiveram dificuldades relacionais mais frequentemente, como maior constrição nas suas interações, com seus bebês apresentando chance aumentada de comportamento de retraimento e mães com maiores escores de humor depressivo.

Os dados acima mencionados chamam a atenção para a pertinência da atenção às famílias nas quais há indivíduos diagnosticados com TEA, o que pode justificar que os irmãos sejam colocados como prioridade nos sistemas de saúde, embora ainda não haja consenso acerca da maneira como o autismo impacta a vida das famílias nas quais há sujeitos com esse diagnóstico. É provável que esse consenso não venha a existir, uma vez que cada família é singular e lida de maneiras idiossincráticas com o autismo e todos os efeitos que ele comporta.

Nesse sentido, no próximo tópico deste artigo relatos autobiográficos serão trazidos a fim de colocar sob foco as mencionadas idiossincrasias na maneira de lidar com o autismo. O olhar será distinto daquele adotado até aqui, onde um ponto de vista exterior, epidemiológico, ligado a termos como ‘risco’, ‘desenvolvimento típico’ e ‘desenvolvimento atípico’ foi predominante. As famílias serão vistas ‘de dentro’, a partir de suas próprias autobiografias. Assim, poderemos olhar a situação de uma nova perspectiva: não mais aquela do risco ou impacto negativo da presença de autismo na família. Contrariamente a isso, veremos como pais, mães e irmãos de crianças com autismo podem ajudá-las a sair de seu isolamento e potencializar suas capacidades autoterapêuticas (Maleval, 2017Maleval, J-C. (2017). O autista e a sua voz (Trad. P. S. De Souza Jr). São Paulo, SP: Blucher.).

As autobiografias escritas por pais de crianças com TEA

A análise dos livros autobiográficos escritos pelos pais das pessoas diagnosticadas com TEA - George (Moore, 2006Moore, C. (2006). George and Sam: two boys, one family, and autism. New York, NY: Martin Press.), Iris (Carter-Johnson, 2016Carter-Johnson, A. (2016). Iris Grace: the story of a little girl whose talent unlocked her silent world. Wemding, GER: Penguin/Michael Joseph.), Jean (Ollier, 2015Ollier, M. (2015). Les jours de Pépin: récit. Paris, FR: Éditions Desclée de Brouwer.), Owen (Suskind, 2017Suskind, R. (2017). Vida animada: uma história sobre autismo, heróis e amizade. São Paulo, SP Objetiva. ), Sam (Moore, 2006Moore, C. (2006). George and Sam: two boys, one family, and autism. New York, NY: Martin Press.), Théo (Gay-Corajoud & Ow, 2016Gay-Corajoud, V., & Ow, S. V. (2016). Autre chose dans la vie de Théo. [S.l: s.n].) e Tony (Callaham, 1993Callahan, M. (1993). Tony: la victoired’un enfant autiste. Paris, FR: Pocket.) evidencia o quanto todas essas pessoas com TEA puderam se desenvolver em diversas áreas - intelectual, emocional e social - ancoradas em grande parte pela dedicação de suas famílias. Em todos esses livros, é marcante a árdua luta desses pais para detectar e traduzir pequenos indícios comportamentais com o objetivo de compreender seus filhos, apostando haver um sentido naquilo que parecia ilógico. Seus relatos frisam a importância de sua presença, ao mesmo tempo ativa e delicada, capaz de transformar todas as pequenas atividades cotidianas em oportunidades terapêuticas/educativas, o que exigia intenso e constante investimentos de sua parte, por precisarem persistentemente tentar convocar seu filho com TEA para o vínculo, despertar seu interesse pelo mundo e ajudá-lo a descobrir o que podia motivá-lo para essa abertura às outras pessoas.

Ao comentar o material autobiográfico no campo do autismo, Faria (2017Faria, M. R. (2017). Prefácio. In M. Bialer. Autobiografias no autismo (p. 13-21). São Paulo, SP: Toro .) enfatiza a importância de podermos atentar não só às crianças com TEA como também às suas famílias. Para a autora, o autismo dos filhos impacta a vida familiar e, nesse sentido, a necessidade de suporte e acolhimento é não só das crianças como também das famílias.

O estudo das autobiografias das famílias acima mencionadas nos leva a perceber o quanto pode ser especialmente desafiadora a experiência da paternidade ou da maternidade quando se tem um filho ou filha com TEA. As particularidades da sintomatologia autística frequentemente fazem com que as pequenas atividades do cotidiano sejam referidas como epopeias, exigindo dos pais um esforço hercúleo e descomunal, principalmente no caso das crianças com TEA com manifestações sintomáticas clássicas mais evidentes. A experiência do dia a dia desses pais é frequentemente descrita nas autobiografias a partir de palavras como ‘inferno’, ‘calvário’, ‘sofrimento’ e ‘desamparo’, o que nos permite ter ideia da dimensão titânica do sofrimento desses pais.

A inexistência de reciprocidade na interação e a comum ausência de respostas sobre o porquê de o filho não falar ou ter crises aparentemente sem sentido muitas vezes pode colocar esses pais no desespero, podendo produzir efeitos como a paralisia e a sensação de incompetência. É o que nos diz Jacqueline Berger (2014Berger, J. (2014). Sortir de l’autisme. Paris, FR: Buchet Chastel.), mãe de duas crianças com TEA, salientando que os pais, em uma tendência reativa, podem vir a assumir a postura de um ‘parente performante’. Com essa expressão a autora referiu-se a uma postura que preza constantemente pela eficiência e bom desempenho.

Tal perspectiva nos convida a uma postura empática diante desses pais, dando-nos a perceber que se faz essencial a construção de uma rede de apoio em torno deles e de seu sofrimento, seja a partir do contato com outros familiares, amigos ou mesmo de profissionais da saúde. A escrita e a publicação das autobiografias pelos pais pode ser interpretada como uma tentativa não apenas de partilhar esse sofrimento como também de tê-lo reconhecido pelas outras pessoas. Podemos afirmar que são essa partilha e esse reconhecimento que permitem que se passe do sofrimento e do desamparo à possibilidade de investimento na relação com o filho.

Em seus estudos autobiográficos de famílias de crianças com TEA, Bialer (2017Bialer, M. (2017). Autobiografias no autismo (1a ed.). São Paulo, SP: Toro.) menciona uma série de exemplos nos quais as atitudes de pais, mães e irmãos foram fundamentais para a inserção da criança com TEA no laço social. Assim, na medida em que, por um lado, pode-se olhar para as famílias das crianças com autismo a partir de seu sofrimento e, por outro, pode-se buscar perceber o que de fecundo há em sua maneira de lidar com o autismo da criança, abrem-se portas para o distanciamento de um olhar tal qual o da ‘mãe-geladeira’. A seguir, recortes de algumas das instigantes autobiografias estudadas serão apresentados, a fim de que se possa perceber que nas famílias há um potencial curativo.

Na família Suskind (2017Suskind, R. (2017). Vida animada: uma história sobre autismo, heróis e amizade. São Paulo, SP Objetiva. ), o filho caçula Owen é quem tem TEA. Owen tem grande interesse pelos filmes da Disney e a única palavra que fala é juicervose. Determinado dia, os pais se dão conta de que tal palavra é a reprodução de uma cena do filme da Pequena Sereia no momento em que a feiticeira diz à sereia que ela deve perder sua voz para entrar na vida humana. Ao perceberem e comunicarem ao filho tal semelhança, Owen olha nos olhos pela primeira vez em um ano, apresentando posteriormente desenvolvimento gradual de sua fala. Em seguida, Owen começou a ver repetidamente o filme A Bela e a Fera e repetir bootylyzwitten, o que pôde ser compreendido quando sua mãe decifra que ele estava dizendo o título do filme A beleza está dentro [Beauty lies within].

No que diz respeito ao exemplo acima descrito, podemos salientar a importância de os pais apostarem na beleza de uma vida interior, ali onde aparentemente havia apenas uma criança fechada e quase impenetrável. Longe de ‘indiferentes’ e ‘frios’, tal qual fez crer a hipótese da ‘mãe-geladeira’, os pais de Owen demonstraram grande sensibilidade e aproveitamento do potencial terapêutico que os filmes da Disney demonstravam possuir para seu filho.

Para auxiliar o rompimento do isolamento autístico de Owen, que ficava o tempo todo assistindo aos filmes e repetindo os scripts, a família cria um setting de holding familiar, ou seja, um espaço de acolhimento e compartilhamento do significado emocional da experiência proporcionado pela família. Nesse enquadre, os vídeos são dramatizados pelos pais e irmão de Owen, cada um personificando um personagem, desembocando em uma zona de prazer e vivacidade, em que a família Suskind retrata ter alicerçado uma existência na qual o sofrimento pôde ser transformado em uma experiência estética e em uma experiência humana compartilhada.

Ao apresentar os escritos autobiográficos e literários da criança com TEA não falante Tito Mukhopadhyay, Bialer (2016Bialer, M. (2016). A escrita terapêutica do autista-escritor Tito Mukhopadhyay.Estilos da Clinica,21(2), 390-411. Recuperado de: https://dx.doi.org/http//dx.doi.org/0.11606/issn.1981-1624.v21i2p390-411
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) destaca a importância de a mãe de Tito ter apostado que nele havia um sujeito pensante e sensível, alfabetizando o filho em bengali e inglês, ao contrário dos prognósticos oficiais desalentadores que recebera em razão do quadro de autismo severo. A leitura desse artigo nos leva a perceber que, se não fosse por essa aposta da mãe, Tito não poderia vir a se tornar um escritor e, tampouco, poder demonstrar em suas produções tanta sensibilidade e capacidade imaginativa.

Outra autobiografia familiar é a de Tony (Callaham, 1993Callahan, M. (1993). Tony: la victoired’un enfant autiste. Paris, FR: Pocket.), na qual somos levados à descoberta de que sua família passou a se utilizar de um gravador para a comunicação com ele. É interessante percebermos o aspecto singular de cada família no lidar com a criança com TEA e com seu modo de ser no mundo. A família de Tony precisou ser bastante sensível para perceber que o menino revelava uma postura diferente ao escutar as vozes dos familiares quando estas eram gravadas, ao contrário da usual ausência de resposta a vozes faladas sem intermédio de um gravador. Os pais de Tony revelaram sua aposta de que nele havia a possibilidade de fala, comunicação e de algum lugar no laço social para além da exclusão.

Tony tem uma irmã mais nova, Renée, e sua presença é fundamental na possibilidade de o irmão sair de seu isolamento. Quando tinha apenas nove meses, Renée observou que o seu irmão fixava o olhar no próprio pé. A menina, então, tentou imitar o gesto do irmão e, na sequência, procurou interromper seus movimentos repetitivos com os pés. Tony não se irritou e nem teve uma crise: contrariamente a isso, caiu na gargalhada e os dois iniciaram uma brincadeira conjunta, que pôde se repetir diversas vezes e contribuiu para o desenvolvimento de Tony e para sua abertura ao laço com as outras pessoas. Vemos, nesse exemplo, o potencial transformador da relação entre irmãos, ao mesmo tempo em que temos a notícia de que uma criança pode fazer muito pela outra. Podemos perceber também que não necessariamente é negativo o impacto de se ter um irmão mais velho com TEA.

O caso da família de Charlotte Moore (Moore, 2006Moore, C. (2006). George and Sam: two boys, one family, and autism. New York, NY: Martin Press.) é particularmente interessante à temática do presente artigo. Charlotte é mãe de dois filhos com TEA, George e Sam. Ambos repetem cenas de filmes, com vozes mimetizadas, sons e mensagens padronizadas, sem a possibilidade de produção de falas espontâneas. Ao ser questionada sobre o motivo pelo qual havia tido dois filhos com TEA, Charlotte responde: “Eu não sei. E de certa forma, isso não importa” (Moore, 2006Moore, C. (2006). George and Sam: two boys, one family, and autism. New York, NY: Martin Press., p. 16). A resposta de Charlotte nos convida a ter um olhar complexo e abrangente sobre o autismo, que possa levar em conta toda a multiplicidade de fatores envolvidos no cotidiano de quem lida com uma criança com TEA.

Ainda no âmbito deste tópico, é importante pontuarmos que até hoje muitas vezes há quem entenda que a psicanálise é uma abordagem que atribui à mãe a culpa pelo autismo da criança, provavelmente em função daqueles que ficaram presos na década de 40 e difundiram de forma anacrônica supostas ‘ideias psicanalíticas’. Andréa Werner, por exemplo, mãe de Theo e autora do blog ‘Lagarta Vira Pupa’ nos coloca essa questão nas matérias Autismo, psicanálise e a culpabilização materna (Werner, 2012aWerner, A. (2012a). Autismo, psicanálise e a culpabilização materna. Recuperado de: https://lagartavirapupa.com.br/autismo-psicanalise-e-a-culpabilizacao-materna/
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) e Autismo: por que fugir da Psicanálise (Werner, 2012bWerner, A. (2012b). Autismo: por que fugir da psicanálise. Recuperado de: https://lagartavirapupa.com.br/autismo-por-que-fugir-da-psicanalise/
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). Diante da publicação dessas matérias, dezenas de mães manifestaram-se em comentários nos quais puderam desabafar acerca dos efeitos que o discurso entendido como acusatório comporta. Na busca pela causa do autismo do(a) filho(a), muitas mães relataram sentir culpa ao pensar que a condição de ser autista pudesse ser decorrente de fatores maternos. Quase com unanimidade, essas mães destacaram sofrimento diante desse discurso e relataram que ‘procurar culpados’ não as ajudava em nada a lidar com o autismo dos filhos.

Dentre os comentários presentes no blog, destacam-se alguns de mães que repudiam a psicanálise, frequentemente entendida como abordagem culpabilizante das mães. Alguns psicanalistas comentaram nas matérias, na tentativa de desfazer essa visão acerca de sua abordagem, mas o que parece é que muitas pessoas não têm acesso às reformulações e avanços no interior da clínica psicanalítica, mantendo uma postura de fechamento frente à abordagem.

Considerações finais

Diante do que foi exposto, reiteramos a necessidade de que os profissionais que se dedicam à clínica e à pesquisa do autismo tenham disponibilidade ética e acolhedora a toda a família. Reiteramos também que um dos caminhos que a psicanálise pode percorrer no intuito de desconstruir a imagem de perspectiva acusatória das mães e famílias é, de um lado, caminhando em conjunto com pesquisas que apontam para o sofrimento dessas famílias e, de outro, conhecendo e se debruçando sobre iniciativas das próprias famílias que possam incentivar o crescimento e desenvolvimento das crianças com TEA. No presente trabalho, procurou-se fomentar essa discussão a partir de dois eixos.

O primeiro desses eixos refere-se ao tópico intitulado ‘O impacto do autismo na família’ e diz respeito à possibilidade de olhar não apenas para a maneira como a subjetividade dos pais afeta a criança, mas também para o modo como a própria criança, com todas as suas questões e singularidades, afeta a família. Dessa forma, na companhia de estudos em sua maioria quantitativos, fomos levados a perceber a importância de atentarmos não apenas aos pais de crianças com TEA como também aos seus irmãos, considerando o seu sofrimento em disponibilidade empática.

O segundo desses eixos refere-se ao tópico intitulado ‘As autobiografias escritas por pais de crianças com TEA’ e diz respeito à importância de nos voltarmos para as crianças com TEA e suas famílias não apenas a partir de um olhar exterior, distanciado e de especialista, mas também a partir de dentro. Tal perspectiva permite-nos vir a perceber que nas famílias podemos frequentemente encontrar um potencial terapêutico e fecundo no sentido de uma busca esforçada por retirar a criança com TEA de seu isolamento e de inseri-la no laço social.

Tal discussão nos convoca a pensar na importância de pesquisas que se voltem para o estudo das famílias de crianças com TEA. As reflexões aqui desenvolvidas nos levam também a algumas perguntas: será que os serviços de atenção básica na saúde têm algo a fazer pelas famílias de crianças com TEA? De quais formas podemos nos debruçar sobre essas famílias encorajando-as a tornarem-se parceiras e aliadas nas intervenções propostas?

Ainda, cumpre-nos estar abertos a perceber que cada família é singular e única. Assim, embora as pesquisas quantitativas sejam fundamentais no sentido de contribuírem para a formulação de políticas públicas na saúde, elas não podem nos dizer muito sobre o que se passa em cada família, em relação às suas fantasias, medos, percalços e vitórias. Dados estatísticos, afinal, não poderiam nos levar a saber os caminhos singulares e instigantes que cada família das autobiografias encontrou no lidar cotidiano com as suas crianças.

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    Apoio e financiamento: Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pela concessão da bolsa de mestrado,número 18/03306-7 e do auxílio à pesquisa número 13/25332-6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2019
  • Aceito
    06 Jul 2020
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