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DIMENSÕES DA CLÍNICA PSICANALÍTICA COM MIGRANTES EM URGÊNCIA SOCIAL: A REDE TRANSFERENCIAL1 1 O presente trabalho está baseado na pesquisa da dissertação de mestrado de Pedro Magalhães Seincman, finalizada em 2017 no Programa de pós-graduação de Psicologia Social da PUC-SP, com bolsa do CNPQ, sob orientação de Miriam Debieux Rosa, e que resultou no livro Rede transferencial e a clínica migrante: psicanálise em urgência social, publicado pela Editora Escuta em 2019.

DIMENSIÓNES DE LA CLÍNICA PSICOANALÍTICA COM MIGRANTES EN URGENCIA SOCIAL: LA RED TRANSFERENCIAL

RESUMO

O presente trabalho apresenta, no bojo da clínica psicanalítica, um estudo de caso permeado pelas especificidades dos contextos de urgência social no campo da migração. Entendemos como uma situação de urgência social aquela em que a falta de condições materiais a que uma parcela de pessoas é submetida se une a discursos que colocam o sujeito em posições de objetificação, de submissão ao outro no laço social, em situações, pois, de desamparo discursivo (Rosa, 2016). As elaborações teórico-clínicas estão fundadas na experiência clínica que embasou a construção do caso clínico de uma criança e seus pais, bolivianos, marcados pelas consequências do trabalho escravo e pelo diagnóstico de autismo do filho. Guiando-nos pelas movimentações oriundas desse caso, apresentamos as posições assumidas pelo psicanalista diante do contexto em que se articulam aspectos sócio-políticos do sofrimento e situações de migração forçada. Esse percurso conflui na direção de situar novas abordagens e dispositivos psicanalíticos que considerem a posição do sujeito no laço social, propondo possibilidades diante das demandas endereçadas à clínica psicanalítica nos contextos institucionais e de urgência social. Além disso, propomos a noção de rede transferencial, como instrumento que norteia o trabalho do psicanalista no contato interinstitucional, com os profissionais de outras áreas e com aqueles que se encontram em situações de urgência social.

Palavras-chave:
Psicanálise; imigração; política

RESUMEN

El presente trabajo busca investigar, en el seno de la clínica psicoanalítica, un estudio de caso permeado por las especificidades de los contextos de urgencia social en el campo de la migración. Entendemos como urgencia social las situaciones en que la falta de condiciones materiales a que una parte de personas es sometida se une a discursos que colocan al sujeto en posiciones objetivas, de sumisión al otro en el lazo social, en situaciones, pues, de desamparo discursivo (Rosa, 2016). Las elaboraciones clínicas teóricas se basan en la experiencia clínica que apoyó la construcción del caso clínico de un niño y sus padres, bolivianos, marcado por las consecuencias del trabajo esclavo y por el diagnóstico de autismo del hijo. Guiándonos por los movimientos surgidos en este caso, presentamos las posiciones tomadas por el psicoanalista en un contexto en que se articulan los aspectos sociopolíticos del sufrimiento y situaciones de migración forzada. Este recorrido confluye en la dirección de situar nuevos enfoques y dispositivos psicoanalíticos que tomen em consideración la posición del sujeto en el lazo social, proponiendo cambios significativos frente a las demandas dirigidas a la clínica psicoanalítica por contextos institucionales y de urgencia social. Además, proponemos la noción de red transferencial, como un instrumento que orienta el trabajo del psicoanalista en el contacto interinstitucional, con profesionales de otras áreas y con aquellos que se encuentran en situaciones de urgencia social.

Palabras clave:
Psicoanálisis; imigracion; politica

ABSTRACT

The present study sought to investigate, in the perspective of psychoanalytic clinic, a case study permeated by the specificities of the contexts of social urgency in the field of migration. Social urgency entails situations in which the lack of material conditions of a portion of people joins discourses that place the subject in positions of objectification, submission to the other in the social bond, therefore in situations of discursive helplessness (Rosa, 2016). The theoretical and clinical elaborations are based on the clinical experience that supported the construction of the clinical case of a child and their parents, Bolivians, marked by the consequences of slave labor and the child’s autism diagnosis. Based on the movements arising from this case, we present the positions taken by the psychoanalyst facing a context in which the socio-political aspects of suffering articulate with situations of forced migration. This path converges in the effort to locate new approaches and psychoanalytic devices, which takes into account the subject position in the social bond, proposing significant changes vis-à-vis the demands addressed to the psychoanalytic clinic by institutional and social urgency contexts. In addition, we propose the notion of transferential network, as an instrument that guides the psychoanalyst’s work with interinstitutional contacts, with professionals from other areas and with those who are in situations of social urgency.

Keywords:
Psychoanalysis; immigration; politics

Introdução

O presente artigo apresenta um estudo de caso que evidencia a importância de se considerar, na construção do caso clínico, a incidência das práticas e discursos sociais nos processos de desamparo discursivo (Rosa, 2016Rosa, M. D. (2016). Psicanálise, política e cultura: a clínica em face da dimensão sócio-políticado sofrimento. São Paulo, SP: Escuta.) em contextos de urgência social. A partir do caminho clínico adotado no caso, propomos ainda a noção teórico-clínica de rede transferencial, que incorpora o contato interinstitucional, a participação social e a análise de múltiplas transferências ao trabalho clínico do psicanalista nos campos de urgência social.

A prática clínica desenvolvida em nosso grupo refere-se a uma parcela específica dos migrantes: tratamos dos casos em que, por algum motivo (seja econômico, de perseguição política, religiosa, seja por catástrofes da natureza, pela fuga diante de condições de extrema pobreza ou de submissão), a decisão por migrar foi considerada a única solução ou o meio para alcançar uma vida digna. Nesse contexto em que predomina a busca por condições básicas de sobrevivência, defendemos que a psicanálise tem o seu lugar e a sua importância, pois pode explicitar as incidências subjetivas presentes onde faltam condições sociais concretas de existência. Notamos que nesse cenário os dispositivos psicanalíticos tradicionais fazem-se insuficientes dada a complexidade das situações em que os imigrantes estão inseridos.

Os dispositivos com os quais trabalhamos variam de acordo com as configurações de cada período na Casa do Migrante, abrigo de acolhida para imigrantes no centro de São Paulo, e que refletem uma gama de fatores: as políticas migratórias internacionais, as políticas nacionais, a quantidade de imigrantes que chegam para serem abrigados, os locais de onde vêm, se são homens, mulheres, se vêm sozinhos ou em família. Porém, temos um dispositivo mínimo, que se caracteriza pela oferta de escuta nos corredores da instituição. Nesse contexto de urgência social, percebemos que atendimentos com hora marcada, dentro de uma sala, não têm prosseguimento ou nem mesmo chegam a ocorrer. A partir desse dispositivo mínimo é possível propor novos dispositivos, como oficinas em grupo, grupos de crianças, atendimentos individuais, acompanhamentos terapêuticos ou grupo de funcionários.

Chamamos de urgência social as situações que englobam duas esferas de incidência sobre o sujeito: não se trata simplesmente de carências materiais ou de algo que aquele sujeito viveu e que não foi capaz de elaborar, mas também das tramas de poder em que ele foi enredado (Rosa, 2016Rosa, M. D. (2016). Psicanálise, política e cultura: a clínica em face da dimensão sócio-políticado sofrimento. São Paulo, SP: Escuta.), por conta de sua crença religiosa, de sua classe social, de falta de acesso a direitos, cor de pele etc. São situações que carregam a densidade da articulação entre um sujeito desamparado - pois socialmente excluído do laço, ou em posições objetificantes no laço com o outro - e um conjunto de discursos sociais que naturalizam e justificam a sua exclusão. A urgência social se diferencia de outros tipos de urgência, pois implica um emaranhado social que exclui o sujeito da possibilidade de se posicionar no laço, onde poderia estabelecer contato com o outro.

É o que acontece no caso de certos tipos de imigração nas quais as violências sofridas pelo migrante se reatualizam em sua chegada ao novo local. Quando isso ocorre, a dimensão psíquica da urgência se manifesta. Seja pela angústia ou pela concretude com que expressa as suas queixas, fica em primeiro plano uma dimensão objetivada, tida como sendo unicamente da necessidade - como se aquilo que se necessita não estivesse ligado à importância de seus planos, dos desejos e da força que teve para superar as adversidades do caminho. Observa-se nesses casos um abalo narcísico que leva a impasses no laço com o outro, no endereçamento ao outro e, portanto, na transferência.

Caso essa dimensão não seja considerada, vemos que os profissionais que lidam com os migrantes frequentemente sucumbem à urgência - mesmo que não se deem conta disso em um primeiro momento. Isso pode instaurar uma dinâmica no trabalho que, ao adentrar o campo daquilo que é tido como sendo apenas da necessidade, faz com que os profissionais se coloquem como aqueles que deveriam tudo suprir e tudo saber, ocasionando por vezes o adoecimento das equipes e das instituições.

A face da necessidade, que se manifesta através da concretude, esconde - nas queixas de emprego, de moradia, no próprio relato cru do ocorrido - toda uma história de vínculos, sofrimento e desejos que é fundamental para que o migrante possa se estabelecer novamente. Por outro lado, aquilo que ele necessita costuma ser a forma pela qual pode construir um primeiro laço com o outro; ou seja, a dimensão da necessidade também está atrelada a uma possibilidade da construção de si, a partir do momento em que a lógica do necessitado e do assistido passa a não ocupar o todo das relações.

As situações de urgência social nos desafiam a lidar com o caráter de urgência que toma todo o campo, evidenciando-se nas relações entre os migrantes e os profissionais que os circundam. Elas nos levam a indagar como trabalhar e manejar a urgência nesse campo em que o psicanalista é convocado para atuar em múltiplas relações envolvendo migrantes, instituições e profissionais de diversas áreas. Os impasses nessas práticas questionam, portanto, as técnicas e dispositivos de intervenção da psicanálise.

Neste artigo buscamos, portanto, apresentar um relato de caso que traz de maneira viva novas soluções para o posicionamento do psicanalista nos campos de urgência social, levando em consideração a articulação entre as esferas da necessidade e do desejo. Com base nos resultados de reposicionamento subjetivo dos pacientes e profissionais envolvidos no caso, aprofundamos os aspectos específicos que a urgência social e a situação de migração trazem para o caso. Além disso, propomos a noção de rede transferencial, que se apresenta como um organizador importante para o posicionamento clínico do psicanalista que se depara com as incidências sócio-políticas do desamparo discursivo a que uma família migrante pode estar submetida.

Dispositivos psicanalíticos para o campo da urgência social

A prática psicanalítica, desde a criação da psicanálise, já sofreu diversas alterações, por exemplo, quanto à instauração do trabalho com o divã, à duração das sessões, à inclusão de materiais projetivos nas análises de crianças, às análises de grupo, de pais, de casais, ou às análises institucionais. A subjetividade se produz no próprio laço social e através dos discursos que permeiam o sujeito, com impregnações do imaginário social articulado com os fantasmas dos grupos sociais. Como consequência direta disso, a perda de um discurso de pertinência rompe o laço social e gera efeitos de ruptura na subjetividade (Rosa, 2016Rosa, M. D. (2016). Psicanálise, política e cultura: a clínica em face da dimensão sócio-políticado sofrimento. São Paulo, SP: Escuta.).

Mario Pujó (2000Pujó, M. (2000). Trauma y desamparo. Revista Psicoanálisis y el hospital, 17, 20-29.) afirma que o neoliberalismo fragiliza as estruturas discursivas que sustentam o laço social e que resguardam o sujeito do real, ocasionando um crescente desamparo discursivo. Rosa (2016Rosa, M. D. (2016). Psicanálise, política e cultura: a clínica em face da dimensão sócio-políticado sofrimento. São Paulo, SP: Escuta.) complementa que, em situações de violência social, os sujeitos são privados de um lugar no ideal social e de um discurso de pertinência. O desamparo discursivo ocorre quando, pela posição do sujeito no laço social, sua fala é desqualificada ou significada para confirmar estereótipos, ou mesmo quando essa é tomada literalmente, sem polissemia. O sujeito em urgência social por vezes se identifica com o lugar de dejeto social em que é colocado em determinados discursos, o que também pode dificultar um posicionamento no laço, além do silenciamento que isso traz ao seu discurso.

A partir dessas perspectivas sobre o trabalho analítico, toma-se o campo dos laços sociais também como campo de laços discursivos. Embates sociais e políticos estão aí presentes e são por ele produzidos. Os discursos de determinado tempo apontam para os “[...] modos de pertencimento possíveis para cada sujeito, atribuindo a cada um valores, lugares e posições no laço” (Rosa, 2016Rosa, M. D. (2016). Psicanálise, política e cultura: a clínica em face da dimensão sócio-políticado sofrimento. São Paulo, SP: Escuta., p. 24).

Trabalhamos a partir de uma visão da psicanálise que: teoriza a partir das possibilidades e impossibilidades colocadas pelo campo da prática clínica; articula os campos da psicanálise e da política para entender a incidência dos discursos e das práticas sociais sobre o sujeito, e para produzir novas formas de resistência; nega o caráter supostamente natural e individualizante do sofrimento; por fim, visa desenhar um modo singular de articulação do sujeito no campo social. Desenha-se, desse modo, um campo de intervenções em duas modalidades. A primeira é o reconhecimento das possibilidades e impossibilidades que as condições sociais e políticas impõem ao laço social em determinados contextos. A segunda modalidade é justamente a da construção da possibilidade de deslocamentos nos posicionamentos do sujeito nos laços sociais, tendo na psicanálise o seu fundamento ético. O caso que segue exigiu deslocamentos no uso da transferência, como apresentaremos a seguir.

Do Caso Clínico-político à Rede Transferencial

Para a construção do caso, pautamo-nos em sua função de produção de enigma com o qual se produz uma narrativa (Rosa, 2016Rosa, M. D. (2016). Psicanálise, política e cultura: a clínica em face da dimensão sócio-políticado sofrimento. São Paulo, SP: Escuta.). Entendemos que os casos clínicos são constituídos pelos diversos campos que se entrelaçam nos contextos de urgência social. O enigma se relaciona com o que Broide (2017Broide, E. E. (2017). A supervisão como interrogante da práxis analítica: desejo de analista e a transmissão da psicanálise (1a ed.). São Paulo, SP: Escuta.) nomeia como o impossível de se chegar à verdade sobre o relato do caso. Por conta disso, cada caso, dependendo da forma como é construído, pode consolidar diversos enigmas, caso seja dado o “[...] relevo à trajetória da narrativa da escuta realizada [...]”, enfatizando “[...] seus pontos de impasse, o que foi ficando pelo caminho, seus atalhos e suas procrastinações” (p. 77). A constituição do enigma do caso e de sua narrativa tem o poder de incidir sobre esses campos e de afetar a distribuição de lugares neles estabelecidos. Para essa construção, as diversas figuras que circundam cada caso (abrigados, familiares, assistentes sociais, profissionais de saúde, advogados e o próprio analista) fazem-se presentes.

Trata-se de juntar as narrativas dos protagonistas dessa rede social e encontrar o seu ponto cego, de encontrar aquilo que eles não viram, cegos pelo seu saber e pelo medo da ignorância. Este ponto comum, a falta de saber, é o lugar do sujeito e da doença que o acometeu (Viganò, 2010Viganò, C. A. (2010). A construção do caso clínico.Opção Lacaniana on-line, 1, 01-09. Recuperado de: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_1/A_construcao_do_caso_clinico.pdf
http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/num...
, p. 2).

A construção do caso nos permite analisar os fundamentos para as práticas psicanalíticas desenvolvidas no manejo da rede formada ao redor da família em questão. Enriquece assim a discussão sobre a especificidade dessa prática em rede no que tange aos aspectos da transferência e seus efeitos de mudança de posição subjetiva no campo da urgência social. A análise da transferência, dos discursos que nela circulam e dos discursos que transitam na cena social - o que nos conduz à forma como o sujeito se situa no laço social - possibilita uma compreensão que une prática e teoria. O caso é o recorte ao mesmo tempo possibilitador e produtor dessa união que se reconhece a posteriori.

Trabalhamos, portanto, com a concepção de construção do caso clínico em sua articulação com o aspecto sócio-político do sofrimento, contido nos laços que possibilitam o próprio caso (Rosa, 2016Rosa, M. D. (2016). Psicanálise, política e cultura: a clínica em face da dimensão sócio-políticado sofrimento. São Paulo, SP: Escuta.). Buscamos, dessa maneira, apresentar o estudo de caso que evidencia e que coloca para trabalhar os fatores sócio-políticos que se apresentam nas múltiplas transferências do trabalho com uma família migrante. Vamos ao caso.

O caso Wari: construção e manejo da rede transferencial

Apresentaremos o caso de uma família por nós atendida no CEIP-IPUSP5 5 Protocolo da pesquisa no Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-SP: 2.204.906 . O caso nos auxilia a levantar questões fundamentais sobre as dificuldades de manejar situações cujas condições sociais e materiais se impõem e se articulam à instabilidade psíquica. Tal combinação pode resultar em marcas no desenvolvimento de uma criança e em dificuldades para uma família se estabelecer socialmente. Como veremos nesse caso, famílias sob desamparo discursivo. Rosa (2016Rosa, M. D. (2016). Psicanálise, política e cultura: a clínica em face da dimensão sócio-políticado sofrimento. São Paulo, SP: Escuta.) considera que aliado ao desamparo social, deparamo-nos com o ‘desamparo discursivo’ a que são lançados aqueles que ocupam lugar de dejeto no campo social e sobre os quais incidem discursos alienantes e identitários que os criminalizam e os patologizam. Essas condições desafiam as práticas de cuidados que individualizam e transformam em patológicos o sofrimento e os processos migratórios (Knobloch, 2015Knobloch, F. (2015). Impasses no atendimento e assistência do migrante e refugiados na saúde e saúde mental.Psicologia USP,26(2), 169-174. doi: 10.1590/0103-6564D20140015
https://doi.org/10.1590/0103-6564D201400...
) sem considerar as incidências das condições sociais, por vezes permeadas por humilhação social (Gonçalves, 1998Gonçalves, F. J. M. (1998). Humilhação social: um problema político em psicologia.Psicologia USP, 9(2), 11-67. doi:10.1590/s0103-65641998000200002
https://doi.org/10.1590/s0103-6564199800...
). Com a escrita do caso buscamos construir um sentido para aquilo que foi vivido, primeiramente, na prática e que envolveu diversas formas de lidar com as relações entre o analista, a sra. Wari e os diversos profissionais dos serviços de saúde e habitação.

Sra. Wari tem por volta de 30 anos e chegou ao Brasil em 2006. Veio sozinha para trabalhar e começou no ofício de costureira com outros bolivianos, em condições precárias. Conheceu o seu marido (também boliviano) e engravidou do pequeno Wari. Por conta da carga horária de trabalho (chegando a 16 horas por dia) e da exigência de seu chefe, a sra. Wari deixava o filho sozinho em uma sala ao lado do galpão onde trabalhava, sendo autorizada a ter contato apenas quando ele chorava, para amamentar. Foi assim até cerca de 2 anos, quando o pequeno Wari aprendeu a andar, e então podia circular pelo galpão. A principal queixa da sra. Wari no início do tratamento se referia ao fato de que, segundo ela, o pequeno Wari não sabia falar e não conseguia entender nada do que diziam para ele. Ele começou o tratamento comigo em 2012, quando estava prestes a completar 5 anos de idade. O encaminhamento foi feito pelos profissionais do CAPSi da região para onde a família tinha se mudado, que optaram pelo encaminhamento na aposta de que seria mais interessante afastar o diagnóstico de autismo que o menino havia recebido no CAPSi que o atendia anteriormente.A família passava, nesse momento, por um segundo grande processo migratório: o primeiro havia ocorrido alguns anos antes, quando os pais, que ainda não se conheciam, mudaram-se para o Brasil em busca de emprego e de melhores condições de vida; o segundo foi a mudança de bairro na cidade de São Paulo, que veio acompanhada da mudança dos serviços públicos que atendiam a família e da saída do casal de seus trabalhos em condições similares à escravidão, aos quais tinham sido submetidos desde que chegados ao Brasil.

Após tempos no atendimento, nas férias, a sra. Wari e seu filho fizeram uma viagem para a Bolívia, para visitar a sua família. Seria a primeira vez que o pequeno veria outros familiares além de seu pai e sua mãe. O pai, que ficou no Brasil, dizia estar muito contente com os atendimentos, que conversava com o pequeno Wari pelo telefone e que ele estava falando muito.No entanto, a sra. Wari voltou de viagem bem preocupada. Disse que o pequeno Wari ficou com seus primos da mesma idade e ela percebeu que eles falavam muito mais, e que ele não entendia as brincadeiras (mas mesmo assim brincavam juntos). O pai dela (avô do menino) disse-lhe que ele era um castigo de Deus, fala de grande impacto.

A criança ensaia sair da posição do que seria um ‘castigo de Deus’, mas seu sintoma revela a posição social da família na sociedade brasileira, posição de exclusão, daqueles que pagam alto preço para estar na nova terra. Isso reatualiza, por sua vez, a posição daqueles que deixaram suas famílias no país de origem para buscar outras condições e que não conquistaram o que era esperado. Com a sensação de fracasso do migrante em relação à família de origem, vem a culpa por ter migrado, a sensação de estar em dívida com aqueles que ficaram. Todas essas posições e esses sentimentos reaparecem na relação com a sra. Wari, permeada por sensações de incapacidade e angústia.

Após as férias, a sra. Wari trouxe um conjunto de notícias acompanhadas de um olhar de angústia. Disse que estava se sentindo muito insegura na favela onde estava morando, que tinha medo de ser roubada e que os bolivianos não estavam sendo bem-vistos na comunidade. Contou que havia risco de que a favela fosse reintegrada e de que ela ficasse sem moradia. Nesse contexto, começou a pensar em voltar para a Bolívia ou em se mudar para Guarulhos e voltar a trabalhar. Começou a mostrar certo desinteresse pelo atendimento de seu filho, dizendo não ver tantas mudanças, apesar da minha avaliação de que houve uma notável melhora. Em uma conversa, ela disse: “Quando ele melhora, eu não fico bem”.

Desanimada, ela disse que não seria mais possível prosseguir o tratamento de Wari comigo e tampouco no grupo no Núcleo de Educação Terapêutica (NET). Contou que ele participava também de um grupo de crianças no AMA da região e que também não poderia mais levá-lo lá. Em uma tentativa de não finalizar o tratamento, propus que passassem a vir quinzenalmente, e que buscaríamos fazer contato com os serviços de saúde e de assistência para ajudá-la nesse momento de mudanças.

Montamos com ela, então, uma ficha com todos os serviços em que eles já passavam. Esses eram: grupo infantil e grupo de pais no AMA, fonoaudiologia na UBS, Salas de Apoio e Acompanhamento à Inclusão (SAAI) no Centro Educacional Unificado (CEU), Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI), neurologista, além do grupo e atendimento individual no CEIP-IPUSP. Foi realizado contato com o CAPSi, serviço de onde vieram encaminhados para o atendimento na USP, para marcar uma reunião com a intenção de retomar a história do encaminhamento e buscar uma parceria em como contatar essa rede de serviços.Nessa reunião no CAPSi, após a apresentação do caso, por mim e pelos profissionais da instituição, chegou-se aos seguintes encaminhamentos: entrar em contato com o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e com o assistente social da UBS da região, para ver as possibilidades e direitos na questão da moradia, caso ocorresse a efetivação da desapropriação, e articular conjuntamente o contato com os serviços envolvidos para uma primeira reunião.

De fato, fizemos os contatos e na primeira reunião de rede participaram profissionais do CAPSi, do AMA, da UBS e da USP. Discutimos sobre a visão de cada um dos profissionais em relação ao caso e sobre formas de prosseguir em conjunto. O que havia em comum em todos os relatos era a evolução do pequeno Wari, por exemplo, em direcionar a fala, na relação com os adultos, na relação com outras crianças, na dicção etc.; por outro lado, falamos, também, sobre a angústia intensa sentida pela mãe. Fomos aos poucos levantando a hipótese de que o menino ia bem, mas que a própria rede de relações quea mãe estabeleceu, para que ele pudesse ser cuidado, permitia que ela se vinculasse apenas através do menino e da ‘doença’ dele, inclusive na relação com ele, que era permeada pela ‘doença’. A angústia dela ressoava entre os profissionais dos diferentes serviços, sendo isso o que se repetia e o que se sentia nas diversas relações estabelecidas em todos os tratamentos.

O próprio caso se remontou a partir dos encaminhamentos tomados nesse encontro. O primeiro deles foi entrar em contato com o CRAS para verificar a questão da moradia. O segundo foi, a partir da constatação da grande quantidade de serviços que mãe e filho frequentavam, pensar a importância de cada um e o sentido da continuidade dos atendimentos. Por fim, chegou-se a uma direção comum no caso, a de que era necessário trabalhar em conjunto com a sra. Wari um projeto para ela, sua vinculação social, sem que sua pertença e seus planos estivessem sempre ligados ao filho. Pensou-se em falar com a sra. Wari sobre cursos gratuitos, espaços públicos de convivência, etc.

Os serviços que a sra. Wari e seu filho frequentavam não sabiam uns sobre os outros. A sra. Wari pedia tratamento para o seu filho, e os serviços, de fato, ofereciam o tratamento pedido. Contudo, eram estrangeiros entre si, sem ponto algum de interlocução. Os tratamentos seguiam autisticamente suas direções próprias. Ao mesmo tempo em que eram espaços importantes para o tratamento de seu filho, enrijeciam a forma como ela poderia se colocar na relação com os outros: sempre uma mãe que propiciava cuidado ao seu filho, mas que, quando não conseguia que isso acontecesse, sentia muita culpa.

No início do ano seguinte, retomamos a frequência semanal dos atendimentos e, no primeiro encontro do ano, a sra. Wari relatou que ocorreu a desapropriação, mas que conseguiram encontrar outra casa na mesma região, além de contar que estabeleceu novos contatos na região onde passou a morar. Organizou uma festa de fim de ano com pratos bolivianos, junto com outras famílias. Contou que seu filho ficou brincando com as outras crianças e que ele gostava de cuidar de um bebê de sua amiga. Disse também que tem aproveitado estar com ele nos momentos em que estava amoroso, por exemplo, quando antes de dormir dava um beijo nela e dizia que gostava dela. O menino Wari cada vez mais gostava de brincar na presença dos outros, sejam crianças ou sua mãe. Em outra semana, a mãe contou que foi aprovada em um curso de gastronomia. O curso passou a ser uma prioridade e, durante algum tempo, buscou conseguir comprovantes dos atendimentos do filho para justificar que precisaria chegar atrasada ao curso diário, sem perder a sua vaga.

A rede seguiu em contato e uma segunda reunião foi marcada. Discutiram-se as mudanças percebidas desde o último encontro, a nova energia da sra. Wari com o curso de gastronomia, seu contato com os vizinhos, sua posição frente ao Sr. Wari. A questão da habitação, depois de uma primeira saída encontrada, foi adiada, porém a preocupação seguia. Encaminhamos buscar a possibilidade de uma bolsa-aluguel para a família e discutimos a pertinência ou não da continuidade de sua participação nos grupos no AMA.

Cerca de quatro meses mais tarde, na terceira reunião de rede, a questão da moradia já havia sido estabilizada, a sra. Wari seguia no curso de gastronomia com muito afinco e conseguira montar uma rotina para levar o filho aos atendimentos. A principal questão que apareceu nessa reunião foi sobre o menino na escola, pois a sra. Wari dizia que ele aproveitava muito o espaço das Salas de Apoio e Acompanhamento à Inclusão (SAAIs), mas que na sala regular isso não acontecia. Ele aprendera as letras e os números, mas não sabia formar sílabas ou escrever. O encaminhamento foi que, com a mãe estabelecida em atividades próprias e com a continuidade dos atendimentos do filho, era importante que se montasse uma nova rede, dessa vez com a participação da escola, para que as questões ligadas à educação fossem discutidas.

Caso Wari: urgência social

Em um primeiro momento, o lugar de costureira é concedido à mãe como sendo o único lugar possível de laço social, em sua chegada ao Brasil. Único, pois era a sua possibilidade de sustento (a ela era oferecida moradia e alguns trocados) e de inserção em um grupo social. Ressaltamos aqui a insuficiência da simples pertença a um ou outro grupo social, pois isso não garante que ela não fique condicionada a um posicionamento fixo de submissão no laço social.

Em um segundo momento, depois de a sra. Wari ter se desvinculado desse trabalho, o discurso sobre o seu filho cria novos enlaçamentos e outra posição discursiva para ela, porém segue na rigidez da possibilidade de posicionamento, já que seu dever e posição de fala apresentam-se como se ser a mãe do ‘autista’ fosse a única possibilidade de criação de laços sociais. São discursos violentos que se apresentam como uma falsa colocação no laço social, pois se colam ao sujeito naquilo que ele pode ser ou querer.

Percebemos como o discurso de sua família, o discurso social em seu país de origem, a narrativa sobre si e as posições no laço social que ela assume depois de sua chegada ao Brasil articulam sujeito e campo social. O laço discursivo preponderante foi marcado e fixado pela fala ressentida do avô, caracterizando as dificuldades da criança como castigo de Deus, resultado da imigração da mãe realizada contra a vontade de seus pais. O menino foi nomeado como a maldição de Deus. Anteriormente, a sra. Wari havia relatado que ela própria, na infância, havia cuidado de um irmão mais novo desde muito nova. Esse irmão era, segunda ela, a ‘aposta dos pais’, pois foi o único filho escolhido para seguir nos estudos. O discurso sobre o ‘castigo de Deus’ se reitera no discurso da escola ao nomear como doença, como autismo, as suas manifestações. Vemos como o discurso familiar se articula com o discurso social e produz uma montagem que fixa o posicionamento do sujeito no laço social e facilita por vezes a submissão a condições de trabalho, de moradia e de saúde indignos ou inumanos. Vemos, também, como as condições sociais e discursivas incidem sobre a criança e a sra. Wari, em processos de destituição subjetiva.

Caso Wari: vicissitudes de uma migração

Essa seria a passagem que caracteriza o fim de um processo de migração: o sujeito precisou se desligar de certo funcionamento social e posição no laço, e, ao chegar a um novo contexto, perpassado por seu passado, mas não mais preso a ele, constrói uma nova posição no laço e no novo contexto social. No meio caminho da ponte que permite essa passagem, os pais de Wari foram capturados e engessados em uma pertença social condicionada à submissão. Nesse bojo nasce o pequeno Wari, filho de migrantes. O que se transmite a essa criança? Sem dúvida um contexto de costura com o constante barulho das máquinas e um distanciamento (físico e psíquico), imposto pelo trabalho, que dificultava a libidinização desse bebê. Porém, além disso, são pais que se viram impedidos de sustentar uma transmissão de sua cultura de origem e tampouco de uma nova cultura. Nessa tentativa, os atendimentos em conjunto permitiram construir pontes de comunicação entre mãe, analista e filho. Permitiram resgatar, dessa forma, o prazer dessa relação.

Ao longo dos atendimentos, o menino Wari vinha expressando com maior facilidade sinais de agressividade e buscava afastar a mãe das brincadeiras - esforços que exigiam da mãe uma sustentação discursiva que lhe foi tirada. Enquanto o menino montava em suas brincadeiras a passagem, a estrada, o caminho, que remetem ao seu processo de separação e de migração de posições subjetivas, a mãe fazia uma leitura concreta, objetiva e urgente das produções do filho. Sua posição subjetiva passa a se alternar entre a colagem na imagem de mãe do doente, que exige de si uma presença excessiva e pouco simbólica na relação com o filho, e o vazio de estar na ponte, na passagem para as possibilidades de outros posicionamentos.

O desamparo discursivo instaurado pela situação migrante da família incide de maneiras diferentes sobre a mãe e sobre Wari. Enquanto ela, migrante, recebeu a transmissão cultural na Bolívia e depois precisou romper com essa tradição para vir ao Brasil, ele não chegou a receber tal transmissão de uma posição no laço. Impedida pelas condições sociais, a sra. Wari transmitia a angústia que se reatualizava nessa relação entre mãe e filho. A precipitação na colagem imaginária a um discurso que define de forma enrijecida um lugar social de submissão, ou que destitui a possibilidade de posicionamento do sujeito no laço, recai sobre o filho, manifestando-se no silêncio angustiado ou nos gestos estereotipados.

Vemos como os ideais depositados sobre o menino se relacionam com a perda da posição no laço em um processo de migração dos pais, atravessado por fatores sociais. Não chegaram a transmitir para ele um referencial cultural e social que possibilitasse o posicionamento no laço discursivo, porém, exige-se dele que seja como as outras crianças, demanda que muitas vezes recai na simplória constatação de que ele é doente ou de que é preciso simplesmente se exigir mais dele.

A ameaça de que a família pudesse perder a moradia reatualiza a urgência vivida na migração. Com isso, intensifica-se a angústia da mãe em relação ao filho e também o terror de ficar sem lugar - tantoconcretamente, sem um local de moradia, quanto sem um lugar de fala, de posição social, com a melhora do filho. A ameaça da desestruturação do que havia sido construído, de um novo processo migratório em que a estrutura objetiva e simbólica cai, ameaça o prosseguimento do tratamento.

Caso Wari: rede transferencial

Esse caso explicita a função clínica da rede transferencial em casos de urgência social. Essa rede foi iniciada antes do começo do atendimento do pequeno Wari, a partir do primeiro contato dos profissionais do CAPSi com a USP, para o encaminhamento do caso. Depois de um tempo atendendo o menino e a mãe, outro psicanalista foi acionado para atender a sra. Wari, concomitantemente aos atendimentos que eu fazia com o seu filho. Posteriormente, o Núcleo de Educação Terapêutica (NET) entrou como mais um elemento dessa rede, com os grupos de crianças. Por fim, o reconhecimento dos diversos profissionais e serviços que envolviam o caso, incluindo AMA, UBS, CAPSi, USP (Laboratório PSIPOL - IPUSP e NET), e a reunião desses serviços possibilitaram a consolidação de um trabalho em rede.

Cada serviço na rede transferencial não representa apenas um atendimento ou um profissional, mas toda a rede discursiva que circula ou que é impossibilitada de circular. Essa é a base para o trabalho no que chamamos de rede transferencial. Nesses espaços, cada instituição é capaz de pôr em jogo os discursos institucionais, sociais e familiares através das discussões sobre o caso e suas direções. É no encontro e, muitas vezes, no embate discursivo entre as redes discursivas de cada instituição que se produz um caso e uma direção a ser dada a esse caso. Nesse processo, os pontos cegos de cada atendimento têm a chance de serem trabalhados e reelaborados, muitas vezes ajudando a desvendar também os pontos cegos de cada instituição. Incluímos também alguns pontos cegos do psicanalista, que muitas vezes ficam evidenciados pelas questões que surgem quanto a raça, classe social e gênero (Gebrim, 2018Gebrim, A. C. C. (2018).Psicanálise no front: a posição do analista e as marcas do trauma na clínica com migrantes (Tese de Doutorado). São Paulo. Recuperado de:https://teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-15012019-155154/pt-br.php
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) e que também podem ser melhor elaborados nos encontros de rede. No caso Wari, consideramos os espaços de rede aqueles que permitiam o encontro entre profissionais - de diversas instituições ou de uma mesma instituição -, e em que era realizado algum tipo de reconstrução conjunta daquilo que define o caso.

A rede transferencial é, portanto, uma noção surgida dos diversos encontros que fizemos para encontrar uma solução para o momento de crise que ameaçava o tratamento de Wari. Para que ela se efetivasse, foi necessário que o psicanalista participasse dos encontros que envolvem os diversos atores que consolidam um caso. Além disso, é importante, como ocorreu no caso, que o psicanalista considere, em sua escuta, o caráter clínico-político dos discursos que circulam nesses encontros. Discursos que dizem sobre as instituições implicadas, os pacientes em pauta, o que a relação de cada profissional com cada paciente inspira. Enfim, a análise dos afetos e discursos presentes nas múltiplas relações de um caso constituem o que chamamos de rede transferencial, pois considera a transferência como um fenômeno atuante em todas as relações do campo, e não apenas do psicanalista com o paciente.

Por conta desses fatores, nesse momento crítico a frequência dos atendimentos fica em segundo plano devido à importância que a rede ganha para o amparo da sra. Wari. A rede dos serviços pode, nesses momentos de crise, entrar como uma rede discursiva que reforça a estrutura para que as ameaças sociais não obriguem o sujeito a se desvincular do laço e cair no desamparo. Com a reatualização da ameaça social da perda de moradia, também o lugar social oferecido pelas instituições que envolviam o caso, o lugar de mãe da criança doente, não era mais suficiente para amparar a permanência da sra. Wari. Era preciso que os serviços, em rede, construíssem com ela outra possibilidade de inserção no laço, para que ela pudesse passar pela angústia da urgência social, sem nela ficar aprisionada.

No momento da urgência, os laços transferenciais - havia pelo menos um profissional de cada serviço que era uma referência forte para ela, poderíamos dizer, com uma transferência bem consolidada na relação com ela - não se mostraram suficientes para que a sra. Wari pudesse se situar no que acontecia. A transferência, tida como fruto da relação um a um, ou do analista com seu analisando, ou mesmo como transferência institucional, era inerte perante a angústia gerada pela ameaça no laço social. Nessa situação, a rede transferencial foi capaz de estruturar o suporte necessário para sustentar o laço, pois foi apenas no espaço entre as transferências que perpassavam os diversos profissionais e serviços que se pôde construir um amparo para que ela e também os próprios profissionais não sucumbissem.

Com esse amparo, em meio à ameaça à moradia, a sra. Wari pareceu mudar de posição em relação ao filho, ao se engajar em outras atividades em que ele não era o protagonista, como nas reuniões dela com os vizinhos e em seu curso de gastronomia. Nessa nova posição, as dificuldades do filho não mais reatualizavam uma situação de urgência permanente, mas eram vistas como algo a se lidar.

Avaliamos que a rede teve sucesso nessa situação em que ameaças sociais colocavam em xeque a lenta construção da posição social dessa família. A rede, porém, precisa a cada encontro reconstruir o caso e, consequentemente, uma direção no caso. Ou seja, cada reunião de rede consolidou casos diferentes e manejos possíveis distintos. Isso mostra que uma rede estanque também está sujeita a produzir posições enrijecidas, e que, portanto, é necessário que esta se remodele a cada encontro a partir da reconstrução do caso. Não apenas os casos variam, como também os profissionais e serviços presentes em cada encontro.

A rede entre os profissionais envolvidos evita uma nova ruptura com tudo o que foi estruturado, pois funciona como local de elaboração da angústia que perpassa o caso e todos os envolvidos. Não basta que a família procure elaborar o seu processo migratório, porque os profissionais também são tomados pela urgência de não ter uma posição definida e pela insuficiência de um discurso que é apartado da complexidade da situação.

O trabalho de análise, por conta da complexidade do contexto do caso, não poderia ser simplesmente um ‘desvendamento’ de um quadro diagnóstico, como se fosse absoluto, como se não tivesse intrínseca relação com as possibilidadesque se oferecem ou não de laço e de posição no laço. Pelo contrário, o atendimento clínico, ao se articular ao campo dos discursos que circulam ou que se fixam, é capaz de provocar rupturas naquilo que se instituiu como verdades, produzindo então novos discursos e posições no laço. Nesse sentido, a produção de múltiplas relações e a constante análise e reflexão sobre as características do laço entre os personagens em cena são fundamentais à escuta-intervenção clínica.

Destacamos que o caso não se refere ao filho ou à mãe, muito menos à suspeita de autismo, mas ao silenciamento e aos discursos que se produzem no entre da relação daqueles que circundam todo o campo. A rede transferencial tornou-se, com isso, dispositivo de manejo de angústia e de intervenção discursiva, pois passou a conceber a montagem do caso para além da figura do filho ou da mãe, incidindo no próprio posicionamento dos envolvidos (profissionais e usuários) no laço social.

Considerações Finais: Rede Transferencial em Contextos de Urgência Social

No caso relatado deparamo-nos com o desamparo social e discursivo e o modo como estes produzem um impasse a mais para o sujeito e suas angústias. Também demonstramos como fomos, na própria construção do caso, ativando dispositivos operados na transferência, particularmente o que nomeamos rede transferencial, necessária em especial em contextos de urgência social. Constatamos no caso relatado que a teoria psicanalítica, se ampliada em sua noção de transferência e com base em uma noção psicanalítica de rede transferencial, se modifica e altera intensamente os campos de urgência social.

A clínica psicanalítica é uma clínica na transferência. Quando no âmbito da urgência social faz-se necessário destacar quais são as especificidades da relação transferencial, levando em consideração que o sujeito está marcado, por vezes alienado de um lugar discursivo, e, em geral, submetido aos cuidados de diversas instituições. No trabalho com os moradores da Casa do Migrante, por exemplo, a transferência é primeiramente atrelada à instituição de acolhimento, uma das razões pelas quais os moradores atendidos dificilmente continuam os atendimentos sem essa vinculação. A transferência entendida somente como fruto da relação do analista e de um analisando não dá conta, nesse campo, dos discursos que permeiam cada caso e da forma como estes muitas vezes impossibilitam o sujeito de se posicionar no campo.

A direção do trabalho clínico-político supõe que o manejo da transferência possa permitir ao sujeito construir estratégias novas de existência sem necessidade de atuar e de repetir a exclusão que sofreu. Abandonar a repetição possibilita ao sujeito se posicionar frente ao que lhe é oferecido socialmente, para tornar possível outra posição no laço. A clínica em contextos de urgência social não perde de vista o sujeito do desejo, mas também não desconsidera a relevância de outras ações na direção de moradia, documentos etc.

Para que seja possível perpassar o campo da urgência sem a ela sucumbir, não basta considerar o discurso do sujeito e suas representações sobre a trama discursiva em que está envolto. É necessário considerar os outros discursos que incidem no campo. A importância disso repousa no fato de que o sujeito pode facilmente se fixar/ser fixado em discursos que o colocam na posição de dependente, vítima, ou mesmo de humilhado ou daquele que não tem lugar de fala.

Portanto, as vicissitudes das intervenções perpassam diferentes âmbitos do arsenal psicanalítico, mas têm na noção de transferência um importante ponto de ancoragem. Sem que se tenha um setting preestabelecido ou qualquer garantia de que um encontro terá uma continuidade, o manejo da transferência se estabelece como ponto-chave da prática e aparece como um conceito importante para o estudo e a compreensão dos jogos de relação estabelecidos entre os profissionais e imigrantes no campo da urgência social.

As especificidades do trabalho com a transferência nos campos de urgência social nos conduzem a algumas questões fundamentais: I) ela não é dada a priori sempre da mesma maneira e depende de como é abordada e manejada em cada contexto (Freud, 2010aFreud, S. (2010a). A dinâmica da transferência. In Obras completas (P. C. de Souza, trad., Vol. 10, p. 100-110). São Paulo, SP: Cia das Letras. Trabalho original publicado 1912.); II) ela está presente intensamente nas instituições, mesmo que não se tenha um trabalho analítico (Freud, 2010bFreud, S. (2010b). Recordar, repetir e elaborar. In Obras completas (P. C. de Souza, trad., Vol. 10, p. 193-209). São Paulo, SP: Cia das Letras . Trabalho original publicado 1914.); III)são necessárias estratégias específicas para reconhecer as transferências em um dado contexto e em um dado tempo (Freud, 2014Freud, S. (2014). A transferência. In Obras completas(P. C. de Souza, trad., Vol. 13, p. 462-481). São Paulo, SP: Cia das Letras . Trabalho original publicado 1917.); e IV) é importante trabalhar com as transferências para além da relação analista-analisando.

A clínica que desenvolvemos está atenta a essas considerações e cria dispositivos para que a escuta do sujeito se efetive no laço transferencial. É nesse laço, que só pode ser constituído coletivamente, que o sujeito pode se posicionar. O sujeito excluído do laço é posto como de fora do discurso, porém nele está incluído como pertencente a uma categoria que não tem o que dizer. Já o sujeito entre discursos está em condições de partilhar e migrar entre posições e discursos, sendo parte estrangeira dos discursos, algo que poderíamos chamar de humano.

Para tanto, o posicionamento do psicanalista não é um processo individual, pois ele articula em uma mesma situação posições subjetivas e o campo discursivo, incidindo nas relações profissionais, familiares e sociais e conformando um complexo campo transferencial - ao mesmo tempo a matéria-prima para um trabalho em rede transferencial e o indicador fundamental das características do trabalho. No campo da urgência social, propomos a passagem da relação transferencial à rede transferencial.

A rede transferencial se faz através da implicação do psicanalista nas múltiplas relações que constituem o caso clínico e, a partir disso, na inclusão dos afetos e discursos que circulam nessas múltiplas transferências, possibilitadas por meio dessa participação.

Na rede transferencial produz-se com o singular ao mesmo tempo em que se elucidam os discursos institucionais e sociais que possibilitam ou impossibilitam posicionamentos no laço. Dessa forma, no próprio processo de manejo da rede transferencial se constroem práticas de resistência ao sofrimento produzido nas e pelas práticas sociais. A produção de múltiplas relações e a constante análise dos espaços ‘entre’ sustentam, transferencialmente, posições que articulam a escuta clínica de um sujeito ao campo discursivo em que está envolto. Muitas vezes os não ditos - osdo sujeito, os institucionais e os sociais - só podem aparecer envoltos pelas múltiplas relações.

Caso seja manejada pela constante reconstrução do caso e de suas direções, a rede transferencial pode possibilitar que a exclusão do sujeito do laço social não seja tomada como uma problemática individual. Assim, ela serve como dispositivo de intervenção social e, ao mesmo tempo, como amparo discursivo ao sujeito, para que este não seja novamente obrigado a romper com o laço ou a se sujeitar a posições fixas de submissão dentro dele.

Por fim, a noção de rede transferencial que apresentamos procura trazer contribuições para as práticas psicanalíticas. Vemos como uma articulação preliminar ao conceito de transferência nos conduz a dois caminhos concomitantes: o primeiro é pensar a rede transferencial como campo de intervenção psicanalítica, em que se maneja o campo das múltiplas transferências em articulação com a construção do caso clínico e na produção coletiva da direção de um caso. Esse aspecto permite-nos lembrar a importância da rede não estanque, e a possibilidade de que ela, se mal-manejada, pode repetir práticas de violência. O segundo caminho é a necessidade de se construir outros dispositivos que permitam trabalhar com base nessa noção de rede transferencial, e que permitam revisitar aspectos teóricos inspirados pelas práticas em campos pouco explorados pela psicanálise.

Referências

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    » http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_1/A_construcao_do_caso_clinico.pdf
  • 1
    O presente trabalho está baseado na pesquisa da dissertação de mestrado de Pedro Magalhães Seincman, finalizada em 2017 no Programa de pós-graduação de Psicologia Social da PUC-SP, com bolsa do CNPQ, sob orientação de Miriam Debieux Rosa, e que resultou no livro Rede transferencial e a clínica migrante: psicanálise em urgência social, publicado pela Editora Escuta em 2019.
  • 5
    Protocolo da pesquisa no Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-SP: 2.204.906

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2019
  • Aceito
    27 Fev 2021
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