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TRAJETÓRIA DE MIGRAÇÃO DE MULHERES HAITIANAS EM PORTO ALEGRE: UM ESTUDO QUALITATIVO

TRAYECTORIA DE MIGRACIÓN DE MUJERES HAITIANAS EN PORTO ALEGRE: UN ESTUDIO CUALITATIVO

RESUMO

O presente artigo visa abordar a recente imigração haitiana no estado do Rio Grande do Sul, explorando o significado do fenômeno migratório para mulheres haitianas. Na introdução é traçado um panorama sobre a feminização da migração, em especial da imigração haitiana. Os objetivos desta pesquisa são: (1) conhecer as diferentes trajetórias de migração de mulheres haitianas e (2) compreender como ocorrem as relações de gênero no processo migratório. Foram realizadas entrevistas narrativas com dez imigrantes, cujas perguntas se reportavam à trajetória de migração. A partir da análise das entrevistas busca-se compreender como é a trajetória de migração dessas mulheres e o que foi encontrado de semelhanças e diferenças com o que vem sendo publicado sobre migração de mulheres haitianas. Algumas questões, como idioma, família e trabalho, tiveram destaque e foram aprofundadas. Em suas falas foi observado como ser haitiana encontra-se vinculada vivência de migração. Também foi visto que suas trajetórias são marcadas por protagonismo ao decidirem migrar sozinhas para outros países. Os achados desta pesquisa oferecem um panorama ainda circunscrito e delimitado da realidade das mulheres haitianas em Porto Alegre, mas que pode servir de suporte para pensar políticas públicas e intervenções que visem tanto conscientizar a população brasileira sobre esse tema tão emergente, quanto apresentar possibilidades de acolhimento e fomentação de direitos humanos para a população imigrante e refugiada.

Palavras-chave:
Migração; mulheres haitianas; gênero

RESUMEN.

El presente artículo tiene por objeto abordar la reciente inmigración haitiana en el estado de Rio Grande do Sul, explorando el significado del fenómeno migratorio para las mujeres haitianas. En la introducción se traza un panorama sobre la feminización de la migración, en particular de la inmigración haitiana. Los objetivos de esta investigación son: (1) conocer las diferentes rutas de migración de las mujeres haitianas y (2) la comprensión de cómo se producen las relaciones de género en el proceso de migración. Se realizaron entrevistas narrativas con diez inmigrantes, cuyas preguntas se reportaban la trayectoria de migración. A partir del análisis de las entrevistas se busca comprender cómo es la trayectoria de migración de estas mujeres, lo que fue encontrado de semejanzas y diferencias con que viene siendo publicado sobre migración de mujeres haitianas. Algunas cuestiones, como el idioma, la familia y el trabajo, se destacaron y se profundizaron. En sus declaraciones fue observado cómo ser haitiana se encuentra vinculada a la vivencia de migración. También fue visto que sus trayectorias están marcadas por protagonismo al decidir migrar solas a otros países. Los hallazgos de esta investigación ofrecen un panorama aún circunscrito y delimitado de la realidad de las mujeres haitianas en Porto Alegre, pero que puede servir de soporte para pensar políticas públicas e intervenciones que visan tanto concientizar a la población brasileña en cuanto a este tema tan emergente, cuanto presentar posibilidades de acogida y fomento de derechos humanos para la población inmigrante y refugiada.

Palabras clave:
Migración; mujeres haitianas; género

ABSTRACT.

This article aimed to address the recent Haitian immigration in the state of Rio Grande do Sul, exploring the significance of the migratory phenomenon for Haitian women. The introduction outlines the feminization of migration, especially Haitian immigration. The objectives of this study are: (1) to know the different trajectories of migration of Haitian women and (2) to understand how gender relations in the migratory process occur. Narrative interviews were carried out with ten immigrants, whose questions were related to the migration trajectory. The analysis of the interviews sought to understand the migration trajectory of these women, what was found of similarities and differences with what has been published on the migration of Haitian women. Some issues, such as language, family and work, have been highlighted and deepened. Their speeches showed how being Haitian is linked to the experience of migration. Their trajectories are marked by protagonism when deciding to migrate alone to other countries. Our findings provide a still limited and defined panorama of the reality of Haitian women in Porto Alegre, but which can serve as a support for thinking about public policies and interventions aimed at raising awareness among the Brazilian population on this very emerging topic, and promoting human rights for the immigrant and refugee population.

Keywords:
Migration; Haitian women; gender

Introdução

Nos últimos anos tem-se enfatizado que desigualdades sociais e econômicas fazem com que determinados grupos sejam mais vulneráveis em situações adversas como desastres naturais, processos migratórios etc. (Brunsma & Picou, 2008Brunsma, D., & Picou, J. S. (2008). Disasters in the twenty-first century: modern destruction. Social Forces, 87(2), 983-991.). Um destes grupos é o das mulheres, possuindo elas desvantagens no processo de reconstrução e até de recuperação. Estas vulnerabilidades estão relacionadas a desigualdades sociais e econômicas pré-existentes, como seus lugares na economia global, seu acesso limitado a bens e salários, falta de suporte do Estado e papéis, responsabilidades e normas relacionados ao gênero (Horton, 2012Horton, L. (2012). After the earthquake: gender inequality and transformation in post-disaster Haiti. Gender & Development, 20(2), 295-307.).

Desde os anos de 1990, observa-se o fenômeno da feminização na maior parte dos fluxos migratórios (Benería, Deere, & Kabeer, 2012Benería, L., Deere, C. D., & Kabeer, N. (2012). Gender and international migration: globalization, development, and governance. Feminist Economics, 18(2), 1-33. doi: 10.1080/13545701.2012.688998
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). Em 2013, as mulheres representavam 48% do total de migrantes internacionais. Alguns dados indicam que a maior porcentagem de mulheres migrantes se encontra nas regiões onde o processo migratório já está estabelecido há algum tempo, como é o caso da Europa, da América Latina e do Caribe, lugares onde a migração feminina representa 51% (United Nations, 2013United Nations.(2013). International migration report. New York, USA: Department of Economic and Social Affairs (DESA).).

O aumento do fluxo migratório feminino está associado a algumas condições vivenciadas pelas mulheres em seus países de origem: falta de oportunidades de trabalho, divórcio ou separação, desejo por mais autonomia e a diminuição das restrições sociais de mobilidade das mulheres, dentre outras. Essas condições, aliadas à possibilidade de melhores oportunidades de emprego no país de destino, contribuíram para a participação de mais mulheres nos movimentos migratórios. Como resultado, houve um reconhecimento da importância das questões de gênero na migração internacional (Benería, et al., 2012Benería, L., Deere, C. D., & Kabeer, N. (2012). Gender and international migration: globalization, development, and governance. Feminist Economics, 18(2), 1-33. doi: 10.1080/13545701.2012.688998
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).

Desde o terremoto em 2010, a migração haitiana passa por um processo de feminização, pois houve aumento no número de mulheres imigrando. Observa-se que nesse processo muitas destas mulheres têm imigrado de forma autônoma (Wooding & Petrozziello, 2013Wooding, B.,& Petruzziello, A. J. (2013). New challenges for the realisation of migrants' rights following the haiti 2010 earthquake: haitian women on the borderlands. Bulletin of Latin American Research, 32(4), 407-20.). No Rio Grande do Sul, a participação das mulheres no fluxo migratório haitiano cresceu após a segunda geração de imigrantes, que incorporou também uma participação maior de imigrantes crianças, adolescentes e de idade mais avançada (Uebel, 2015Uebel, R. R. G. (2015). Análise do perfil socioespacial das migrações internacionais para o Rio Grande do Sul no início do século XXI: redes, atores e cenários da imigração haitiana e senegalesa (Tese de doutorado). Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.).

Ainda que sua presença na composição populacional do Haiti seja maior que a masculina, com representatividade no fluxo migratório do Rio Grande do Sul, as haitianas ainda são invisibilizadas no mercado de trabalho (Uebel, 2015Uebel, R. R. G. (2015). Análise do perfil socioespacial das migrações internacionais para o Rio Grande do Sul no início do século XXI: redes, atores e cenários da imigração haitiana e senegalesa (Tese de doutorado). Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.). Assim como acontece com os haitianos, as haitianas passam por dificuldades para reconhecer seus diplomas haitianos ou dos cursos realizados na República Dominicana. Tal processo, somado às maiores dificuldades de acesso à escolarização - contribuem para incrementar a precariedade laboral, colaborando para a diminuição de opções de trabalho, incidência de menores remunerações e marginalização econômica, mantendo-as no mercado informal ou em empregos no setor do trabalho doméstico. Nesse tipo de atividade, o baixo salário, a exploração da mão de obra e as discriminações de gênero, de classe, de raça e de etnia fazem com que as mulheres haitianas tenham uma trajetória laboral ainda mais instável (Handerson, 2015bHanderson, J. (2015b). Diaspora: as dinâmicas da mobilidade haitiana no Brasil, no Suriname e na Guiana francesa (Tese de Doutorado). Rio de Janeiro. Recuperado de:http://haitiaqui.provisorio.ws/wordpress/wp-content/uploads/2016/10/JOSEPH-Handerson.-2015.-Di%C3%A1spora.-As-din%C3%A2micas-da-mobilidade-haitiana-no-Brasil-no-Suriname-e-na-Guiana-Francesa.-UFRJ.-Museu-Nacional.-PPGAS.-Rio-de-Janeiro.pdf
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).

Peres e Baeninger (2017Peres,R. G., & Baeninger, R., (2017). Mulheres latino-americanas e haitianas no Brasil: perfil na imigração internacional. In Anais do 20º Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Foz do Iguaçu, PR. Recuperado de: http://www.abep.org.br/publicacoes/index.php/anais/article/view/2681/2587
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), através de dados levantados pelo Sistema Nacional de Cadastro e Registro de Estrangeiros (SINCRE), indicam que, mesmo com um processo migratório predominantemente masculino, o número de mulheres haitianas é significativo, no entanto, tais mulheres têm pouca visibilidade nessa imigração. As autoras apontam a precariedade no trabalho como uma das possíveis razões para essa invisibilidade. Observam que, a partir do total de 4.425 imigrantes haitianas residentes no Brasil, 906 encontravam-se sem ocupação e 759, em ocupação não classificável. As autoras também descrevem que 71% das mulheres haitianas registradas no país eram solteiras e 25,3% delas eram casadas. E com base nestes dados compreendem que as mulheres haitianas não vêm ao Brasil apenas no papel de agentes de reunificação familiar ou de cônjuges.

Em reflexão acerca da situação de desigualdade de gênero na sociedade haitiana, Araújo (2016Araújo, A. A. (2016). Limitações e estratégias de ação feminina na sociedade haitiana: categorias de articulação/interseccionalidades.Revista Agenda Social, 9(2), 19-28.) aponta que nos aspectos culturais existem ações de negação de acesso a uma série de facilidades, bem como de violações auferidas à figura feminina, sendo estes resultantes de uma estrutura machista. Ao mesmo tempo, percebe-se que o papel da mulher é fundamental na quebra destas estruturas de poder. As mulheres haitianas, ao não se contentarem com a realidade imposta pela estrutura, encontram possibilidade de ação e mudança.

Desde 1990 a diáspora haitiana é tema de diversos estudos. O fluxo migratório já foi acentuado para os Estados Unidos, França, Canadá e Caribe. O Ministério dos Haitianos Residentes no Exterior estima que havia cerca de 4 a 5 milhões de haitianos em mobilidade, em termos globais, o que representa a metade da população haitiana, estimada em 10.413.211, em 2013 (Handerson, 2015aHanderson, J. (2015a). Diaspora: sentidos sociais e mobilidades haitianas. Horizontes Antropológicos, 21(43), 51-78. doi: 10.1590/S0104-71832015000100003
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).

Segundo Handerson (2015aHanderson, J. (2015a). Diaspora: sentidos sociais e mobilidades haitianas. Horizontes Antropológicos, 21(43), 51-78. doi: 10.1590/S0104-71832015000100003
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) o termo ‘diáspora’ merece novos estudos, em razão dos constantes fluxos de mobilidade da população haitiana. Observa-se que o sonho da maioria dos haitianos é ‘pati’ (partir) ou ‘vwayaje’ (viajar), o que resulta em que em quase todas as famílias há algum membro em país estrangeiro. Tal fato origina-se ainda no período colonial, pois a mobilidade se fez presente na vinda de africanos escravizados, por meio do comércio transatlântico. Posteriormente, com a luta pela independência, e com a libertação dos escravizados, constituiu-se um novo costume de mobilidade e imigração.

Na situação das diásporas as identidades se tornam múltiplas. Pensar o conceito fechado de diáspora, apoiado sobre uma concepção binária de diferença, não auxilia a compreender estas múltiplas identidades. Ao contrário, é necessário pensarmos a identidade cultural caribenha em significados que são posicionais e relacionais (Hall, 2009Hall, S. (2009). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG.). Mejía e Cazarotto (2017Mejía, M. R. G., & Cazarotto, R. T. (2017). O papel das mulheres imigrantes na família transnacional que mobiliza a migração haitiana no Brasil.Revista Pós Ciências Sociais , 14(27), 171-190. p. 172), ao encontro dessa perspectiva teórica, observam que “[...] as pesquisas empíricas sobre diáspora haitiana posicionam-se contra o pensamento binário, visto que o local, o nacional e o global são mutuamente constitutivos [...]”.

No âmbito teórico e metodológico dos estudos de gênero, a migração internacional revela-se um desafio científico. Entende-se que, ao incorporar os diferenciais por sexo, bem como as relações de gênero às análises de fluxos migratórios, indo além da descrição das diferenças entre homens e mulheres, as teorias de migração avançam no sentido de compreender as experiências das mulheres migrantes em esferas específicas - família, domicílio, mercado de trabalho (Peres & Baeninger, 2017Peres,R. G., & Baeninger, R., (2017). Mulheres latino-americanas e haitianas no Brasil: perfil na imigração internacional. In Anais do 20º Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Foz do Iguaçu, PR. Recuperado de: http://www.abep.org.br/publicacoes/index.php/anais/article/view/2681/2587
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).

As pesquisas atuais mostram a importância das mulheres no cenário mundial da migração internacional. No entanto, esse panorama objetivo da migração feminina não possibilita compreender como é subjetivamente a trajetória destas mulheres. O que elas pensam a respeito da migração? Como é deixar seus países e se estabelecer em outro lugar? Quais são as dificuldades e os sentidos que permeiam esse processo de migrar? Estas e outras questões foram condensadas em dois objetivos que norteiam esta pesquisa: (1) conhecer diferentes trajetórias de migração de mulheres haitianas e (2) compreender como ocorrem as relações de gênero no processo migratório.

Método

Para realizar esta pesquisa4 4 Esta pesquisa segue as considerações éticas estabelecidas na Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), e envolvem a submissão desse projeto à Comissão Científica da Faculdade de Psicologia e ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. , foi empreendido um estudo qualitativo. Na pesquisa qualitativa a definição do objeto de estudo está ligada à sua natureza ontológica. O estudo dos determinantes qualitativos da pesquisa, de acordo com González Rey (2002González Rey, F. L. (2002) Pesquisa qualitativa: caminhos e desafios. São Paulo, SP: Pioneira Thomson Learning., p. 47), se define “[...] pela busca e explicação de processos que não são acessíveis à experiência, os quais existem em inter-relações complexas e dinâmicas que, para serem compreendidas, exigem o seu estudo integral e não sua fragmentação em variáveis”.

O objeto de estudo desta pesquisa é o fenômeno migratório das mulheres haitianas. Para compreender esse objeto, foram entrevistadas mulheres haitianas que falaram a partir da sua experiência subjetiva acerca desse fenômeno. Para entrar em contato com estas mulheres a pesquisadora iniciou um trabalho voluntário na Paróquia da Pompeia, a qual é responsável pelo Centro Ítalo-Brasileiro de Apoio ao Imigrante (CIBAI).

O CIBAI foi criado em 16 de abril de 1958. Após a 2ª Guerra Mundial, aproximadamente 12 mil pessoas se deslocaram para outros países e regiões. Nesse período a Igreja Católica criou em Porto Alegre a Secretaria Católica de Imigração, que atualmente é conhecida pelo nome CIBAI Migrações e trabalha no acolhimento, regularização dos documentos e acompanhamento dos imigrantes. O CIBAI conta com uma equipe própria composta por duas assistentes sociais e com o serviço voluntário de advogados, psicólogos, enfermeiros, médico, pesquisadores, assistentes sociais, entre outros.

Algumas ações desenvolvidas pela instituição são: (a) Acolhimento, promoção jurídica, social e cultural, orientação, apoio e acompanhamento e organização dos migrantes residentes; (b) Informações e encaminhamento a serviços, programas e benefícios sociais; (c) Encaminhamento e ajuda financeira para busca da documentação pessoal no país de origem e tradução oficial; (d) Visitas domiciliares; (e) Doação de alimentos, roupas para migrantes em situação de vulnerabilidade; (f) Cursos profissionalizantes com vistas à geração de renda familiar, entre outras atividades que visam à integração dos imigrantes.

O CIBAI deu especial atenção à numerosa comunidade emigrante italiana. Nas décadas de 70 e 80, com o estabelecimento das ditaduras em países latino-americanos, o CIBAI Migrações dedicou-se também aos latinos que para aqui acorriam, fugindo das perseguições. Na década de 90 passou a atender orientais e, em seguida, africanos. Atualmente voltou-se também às centenas de estudantes internacionais que estão em Porto Alegre e municípios vizinhos e ao atendimento do fluxo imigratório de haitianos, senegaleses e imigrantes procedentes de outros países africanos e orientais.

Minha inserção como voluntária no CIBAI teve início em junho de 2016, através de um colega que já realizava trabalho voluntário e coleta de dados para sua pesquisa com imigrantes haitianos. A combinação feita com as assistentes sociais do CIBAI foi que, para poder coletar os dados de pesquisa, seria disponibilizado um turno de trabalho voluntário para atender imigrantes que porventura necessitassem algum tipo de atendimento psicológico. Em seis meses foram poucos imigrantes que procuraram algum tipo de atendimento conosco, embora houvesse muitos imigrantes que buscassem auxílio no CIBAI.

O CIBAI funciona de segunda a sexta-feira das 8:30 às 17:30, fechando para o almoço das 11:30 às 13:30. O serviço fica localizado em um edifício junto à Paróquia da Pompeia, conhecida por ser a paróquia do imigrante. As grades que circundam a igreja são abertas no momento em que o serviço abre, mas a porta que dá acesso ao CIBAI às vezes está aberta e, às vezes, fechada. Quando está fechada, as pessoas tocam a campainha para entrar. A recepção é uma sala grande, com aproximadamente 20 cadeiras dispostas em meia-lua. A recepcionista fica na sala, onde há água, televisão, panfletos religiosos, orientações sobre a legislação brasileira de trabalho e alguns livros. Ali as pessoas aguardam atendimento, o qual é realizado por ordem de chegada. O edifício do CIBAI possui muitas salas. Nas primeiras salas após a recepção trabalham as assistentes sociais, Rosana e Eliane. As salas do segundo piso são utilizadas para aulas de português, as quais ocorrem às quintas-feiras de manhã e sábados o dia todo.

Nós ficávamos na última sala aguardando, caso algum imigrante chegasse em busca de algum auxílio psicológico. Após meses de pouco contato com os imigrantes, procuramos conversar com Eliane e Rosana para saber a visão delas a respeito da pouca procura. Eliane nos contou que poucos imigrantes em seus países tiveram contato com psicólogos e, por não conhecerem essa modalidade de atendimento, não o buscavam. Também nos falou que aqueles imigrantes que elas avaliaram com sofrimento psicológico às vezes demostravam uma certa desconfiança em relação ao psicólogo. Ela nos sugeriu que se ficássemos nas salas da frente com elas, auxiliando os imigrantes de outras formas, assim talvez fosse mais fácil vencer essa barreira inicial.

Comecei a ficar nas salas da frente com as assistentes sociais, auxiliando-as com o que fosse necessário, fazendo currículo para os imigrantes, preenchendo solicitações de refúgio, renovações de passaporte, entregando alimentos e roupas, entre outras atividades. Essa mudança foi fundamental, pois, a partir desse momento, passei a ter mais contato com os imigrantes e pude estar a par, bem como participar, da rotina institucional do CIBAI.

Em alguns tipos de pesquisa qualitativa é possível dizer que não há ‘coleta de dados’ e, sim, trabalho de campo. Nessa modalidade o pesquisador participa ativamente dentro da instituição, comunidade ou grupo de pessoas que está pesquisando, o que auxilia no acesso a fontes importantes de informação informal (González Rey, 2002González Rey, F. L. (2002) Pesquisa qualitativa: caminhos e desafios. São Paulo, SP: Pioneira Thomson Learning.).

O trabalho de campo possibilita o contato interativo entre pesquisador e pesquisado dentro de um contexto relevante para o sujeito pesquisado. Isto favorece que o pesquisador circule com naturalidade nas relações e eventos que fazem parte da vida cotidiana do sujeito (González Rey, 2002González Rey, F. L. (2002) Pesquisa qualitativa: caminhos e desafios. São Paulo, SP: Pioneira Thomson Learning.). Trabalhar voluntariamente no CIBAI contribuiu na minha aproximação e interação com as imigrantes haitianas. Mas não apenas com elas, pude me aproximar de outros imigrantes, das pessoas que trabalham no CIBAI, de outros voluntários e todas estas informações foram importantes na construção do conhecimento desta pesquisa. Estas informações foram anotadas no diário de campo.

Nesse período de trabalho voluntário, toda imigrante haitiana que buscou a paróquia foi convidada a participar do estudo. Os critérios seriam ser mulher, ser haitiana e falar português. Assim, durante o período de um ano, todas as imigrantes haitianas que compareceram à paróquia da Pompeia foram convidadas a participar da pesquisa. No total, dez imigrantes concordaram em participar. Foram realizadas entrevistas narrativas, cuja pergunta se reportava à trajetória de migração. Tais entrevistas visam encorajar e estimular a participante a contar a história sobre algum acontecimento importante de sua vida e do contexto social, além de fornecer uma descrição detalhada do processo migratório (Matsudaira, 2006Matsudaira, T. (2006). Measures of psychological acculturation: a review. Transcultural Psychiatry, 43(3), 462-487. doi:10.1177/1363461506066989).

As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas e analisadas. Para a análise, primeiramente, foram desenvolvidos indicadores. Um indicador é um elemento ou conjunto de elementos. Com ele o pesquisador consegue estabelecer relações dentro do contexto do sujeito estudado, e então formular uma hipótese. A partir dos indicadores foi possível desenvolver as categorias. Esse é um momento essencial na pesquisa qualitativa, pois ela não pode avançar sem estes momentos de integração que representam a criação de categorias (González Rey, 2002González Rey, F. L. (2002) Pesquisa qualitativa: caminhos e desafios. São Paulo, SP: Pioneira Thomson Learning.).

Além da análise das entrevistas, os dados também foram construídos a partir de observações e conversas realizadas com haitianos e as haitianas, as quais foram anotadas em um diário de campo. Essa interação possibilitou à pesquisadora maior proximidade das situações cotidianas da vida destes imigrantes. As informações provenientes do diário de campo também auxiliaram a mapear algumas trajetórias de vida de imigrantes haitianos e haitianas.

Discussão

Através das entrevistas e diários de campo realizados, pôde-se perceber uma rede de aspectos que circunscrevem a experiência de migração das mulheres haitianas no Sul do Brasil. Considerando as diferentes articulações de marcadores sociais envolvidos, pudemos perceber que figuram, em especial, as dimensões: ‘identidade haitiana, migrar sozinha, migração acompanhada e barreira do idioma’.

Uma das intersecções que despontam nas narrativas e diários de campo diz respeito à dimensão da nacionalidade e do processo de migração como esfera identificatória. Esse aspecto se mostrou intrinsecamente relacionado a questões familiares e conjugais, entretanto, marca em especial uma trajetória de identificação do ‘ser haitiana’. Para Eva, por exemplo, essa dimensão identitária é demonstrada em afirmações com efeito de naturalização do processo migratório:

Eva: Eu [...] ah [...] saiu do Haiti para vir aqui. Eu peguei um avião do Haiti e entrar no Panamá [...] do Panamá eu [...] e [...] como dizer? [...] Equador [...] do Equador eu peguei um ônibus [...] para vir aqui eu passar por um [...] e [...] de [...] eu peguei um outro avião para vir aqui para o Brasil [...]

Pesquisadora: Hum [...] e por que tu decidiste vir para cá? Ou [...] no caso [...]sair do Haiti [...]

Eva: Porque todo mundo está viajando [...]e haitiano gosta de viajar [...]

Após refazer a pergunta, surgiu uma resposta mais subjetiva, que disse algo sobre o ser haitiano ou haitiana, e identifica a diáspora haitiana. Ao falar sobre a diáspora caribenha, Hall (2009Hall, S. (2009). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG.) aponta que nessa situação as identidades se tornam múltiplas, mas existem elos que os conectam à sua origem específica, a sua ilha. Um dos aspectos de ser haitiano ou haitiana parece estar ligado a essa condição de migrante.

De acordo com Handerson (2015aHanderson, J. (2015a). Diaspora: sentidos sociais e mobilidades haitianas. Horizontes Antropológicos, 21(43), 51-78. doi: 10.1590/S0104-71832015000100003
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, 2015b) o termo ‘diáspora’ é uma categoria organizadora do mundo, pois designa pessoas, qualifica objetos, dinheiro, casas e ações. Esse termo é utilizado para se referir aos compatriotas que residem fora do Haiti. O campo semântico do termo está articulado por três verbos associados a ‘diáspora’: ‘residir’ no exterior, ‘voltar’ ao Haiti e ‘retornar’ ao exterior.

A fala de Eva ilustra algo que está presente no discurso de todas as imigrantes entrevistadas, que não apenas haitiano gosta de viajar, mas viaja porque essa é a opção que lhe resta. A condição de migrante parece estar associada à sua identidade cultural. Como foi apontado por Handerson (2015aHanderson, J. (2015a). Diaspora: sentidos sociais e mobilidades haitianas. Horizontes Antropológicos, 21(43), 51-78. doi: 10.1590/S0104-71832015000100003
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), a ‘diáspora’ está no campo semântico dos haitianos e organiza o seu mundo.

Eva migrou sozinha do Haiti para o Brasil e, assim como ela, fez a maioria das mulheres haitianas entrevistadas nesta pesquisa. Estes dados corroboram com Peres e Baeninger (2017Peres,R. G., & Baeninger, R., (2017). Mulheres latino-americanas e haitianas no Brasil: perfil na imigração internacional. In Anais do 20º Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Foz do Iguaçu, PR. Recuperado de: http://www.abep.org.br/publicacoes/index.php/anais/article/view/2681/2587
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), que, a partir de dados já citados, descrevem as mulheres haitianas não apenas no papel de agentes de reunificação familiar ou de cônjuges, mas de pessoas com autonomia sobre suas decisões. Trarei aqui uma breve síntese de cada trajetória de ‘migrar sozinha’.

Luísa morava no Brasil havia 4 anos, tinha dois filhos, uma menina (9 anos) que morava no Haiti com a avó e um rapaz (17 anos) que morava no Brasil com ela e sua irmã. Luísa foi a primeira de sua família a migrar para o Brasil. Após conseguir um emprego, comprou passagem para seu filho e sua irmã virem. Agora queria trazer a filha mais nova. Tinha uma irmã mais velha que morava na França e que a incentivou a sair do Haiti.

Carolina estava no Brasil havia 2 anos e meio. Decidiu vir para o Brasil para ‘buscar uma vida melhor’.Tinha um filho que ficou no Haiti. Ao chegar aqui, conheceu um haitiano e tiveram um filho, com 11 meses. Carolina tinha bastante dificuldade para falar português.

Felipa estava no Brasil havia 2 anos, disse que no Haiti “[...] não tem serviço [...] é muito sofrimento, por isso a gente vem aqui [...]”. Seu filho de 7 anos morava no Haiti com a avó, ele tinha uma doença no coração. Felipa trabalhava como auxiliar de serviços gerais em um hospital.

Laudelina estava no Brasil havia 5 meses e veio em busca de trabalho. No Haiti morava com a família e contou que apenas seu pai trabalhava, nem ela, nem seus irmãos conseguiam trabalho. Ao chegar aqui foi para o Paraná, pois lá vivia um primo seu, posteriormente veio para Porto Alegre em busca de emprego. Tinha bastante dificuldade no idioma.

Através dessas cinco trajetórias, podemos observar o protagonismo destas mulheres ao saírem sozinhas de seu país em busca de trabalho e melhores condições de vida para si e para suas famílias. Em pesquisa recente com população de migrantes haitianos no Vale do Taquari, Mejía e Cazarotto (2017Mejía, M. R. G., & Cazarotto, R. T. (2017). O papel das mulheres imigrantes na família transnacional que mobiliza a migração haitiana no Brasil.Revista Pós Ciências Sociais , 14(27), 171-190.) encontraram outro tipo de migração, ali as mulheres migraram com a família ou com seus maridos. As autoras apontam que, nesse caso, as mulheres haitianas não manifestavam sinais de autonomia, ou seja, não demostravam capacidade de tomar decisões de forma independente de seus companheiros. E concluíram que a migração não as libertou de repressões familiares.

As trajetórias das mulheres participantes desta pesquisa nos mostram um tipo de migração diferente do descrito por Mejía e Cazarotto. Mulheres que tomam a decisão de migrar e partem nesse processo sozinhas, ao passo que as participantes do Vale do Taquari acompanhavam a família ou o marido nessa decisão.

Durante o período de entrevistas, surgiram trajetórias onde as mulheres não migraram sozinhas, ao menos não em todas as etapas desse processo, ‘migraram acompanhadas’. Ainda assim, é possível perceber um grande protagonismo na vida destas mulheres ao tomarem decisões relacionadas à migração. Nos próximos parágrafos descreverei suas trajetórias.

Esperança estava no Brasil havia 10 meses. Veio do Haiti com a irmã em busca de trabalho. Era mãe de duas crianças que ficaram no Haiti com a família.

Teresa estava no Brasil havia 3 anos. Quando tinha 15 anos migrou do Haiti para a República Dominicana sozinha, foi morar com uma tia que já vivia lá. Lá conheceu seu marido, também haitiano, ele migrou para o Equador e ela migrou depois. Posteriormente migraram juntos para o Brasil, pois um primo que já morava aqui disse que aqui poderiam ganhar muito dinheiro.

Antonieta apresentava uma história diferente da trajetória das outras imigrantes haitianas. Pois, ao contrário delas, Antonieta não disse ter saído de lá porque vivia mal ou não tinha trabalho. Contava que saiu do Haiti por ter problemas com a família do marido. Juntos eles migraram para a Venezuela, lá começaram a ter dificuldades para conseguir comida, ela disse que isso acontecia por causa da situação política do país. Então, grávida de quatro meses, ela decidiu vir para o Brasil, enquanto o marido e a filha mais velha ficaram na Venezuela, para cuidar da casa deles. Depois de um tempo Antonieta conseguiu trazer a filha para morar com ela. Antonieta recebeu ajuda financeira da família que morava no Haiti. Outro ponto que diverge das trajetórias até então apresentadas. Todas as outras mulheres haitianas, tentavam ou mandavam remessas de dinheiro para o Haiti.

Percebemos que, no caso de Esperança, seu processo migratório ocorreu com a irmã, aí vemos a decisão de duas mulheres de sair de seu país em busca de trabalho. Teresa migrou sozinha na primeira vez em que realizou esse processo, quando tinha apenas 15 anos.

Teresa: eu saí por causa do terremoto, depois não tinha trabalho, não tinha escola também, eu tava estudando [...] toda escola tinha quebrado, não tinha nada. Vieram e disse que ia demorar um ano pra construir tudo, daí eu falei: Mãe, eu tenho que sair [...] E minha mãe tem nove filhos, não dá pra criar tudo, né. Tudo morava com ela e não dava como, e eu falava: Mãe, eu só vou, sou grande eu posso me cuidar sozinha, né. {Tu é mais velha que os teus irmãos?} NÃOO, eu tenho um mais velho ainda! Mas eu falei para ela não ficar preocupada com a gente [...] Daí ela falou: ‘Se tu quer ir, vai’. Daí eu fui morar na República Dominicana. {E tu foi sozinha pra lá?} Não eu fui com a minha tia. {Tu era casada nessa época?} Não [...] eu era solteira, eu era menina também [...] {Quantos anos tu tinha?} Eu tinha um [...] 15 anos {Com 15 anos tu saiu do Haiti pra ir morar na República Dominicana?} Hum [...] é, eu era menina [...] eu era até virgem ainda [...] (grifo do autor).

Na sequência da entrevista, Tereza esclareceu que de fato foi sozinha para a República Dominicana, a tia morava lá havia três anos e tinha um restaurante onde ela trabalhava para pagar a escola. Nessa fala vemos como Tereza, mesmo muito jovem, tomou a decisão de migrar para conseguir continuar os estudos.

Ao questionar o motivo de sair do Haiti, quase todas as imigrantes responderam que foi por não conseguirem trabalho no seu país. Aqui estas mulheres também têm passado por dificuldades para conseguir trabalho, das oito entrevistadas, apenas duas estavam trabalhando: Felipa e Teresa. Sobre a vida e o trabalho no Haiti, Felipa disse o seguinte:

Pesquisadora: E lá no Haiti tu tinha conseguido trabalho? Como que era a vida lá?

Felipa: Eu nunca trabalhei lá [...] Lá não tem emprego [...] tem trabalho só pra rico [...] pobre não consegue nada [...]

Pesquisadora: Como é que tu vês isso? Que só tem trabalho pra rico?

Felipa: É que lá o governante [...] lá quase tudo é particular [...] o governante não ajuda pobre [...] E, se tem serviço, algum trabalho, é só pra rico [...]

Percebemos pela fala de Felipa que, possivelmente, os(as) migrantes haitianos(as) são pessoas que no Haiti encontravam-se em situação de pobreza e desamparo. Se não podem contar com o Estado para lhes garantir direitos, como o trabalho e educação, então migrar se torna uma saída dessa condição de vida.

Outros autores (Mejía & Cazarotto, 2017Mejía, M. R. G., & Cazarotto, R. T. (2017). O papel das mulheres imigrantes na família transnacional que mobiliza a migração haitiana no Brasil.Revista Pós Ciências Sociais , 14(27), 171-190.) descrevem o mesmo sobre os motivos para migrar. Ir para outro país surge como possibilidade de fugir da pobreza e do desemprego em seu país de origem. Ao migrar, as mulheres haitianas podem oferecer recursos a seus filhos e familiares próximos, e também para si próprias. Podendo, assim, viver com mais conforto e qualidade.

A partir dessa ideia de poder ajudar seus familiares, mesmo migrando sozinhas, a migração torna-se um projeto familiar, pois as mulheres precisam mandar remessas de dinheiro para a família. E, caso não consigam fazer isso, sofrem, como era o caso de Luísa:

Luísa: Eu quero trabalhar, para esquecer tudo [...] Se eu estou em casa é muito complicado [...]

Pesquisadora: E por que é complicado?

Luísa: É complicado porque tem a minha mãe, ela não trabalha, ela está velha [...] Aí minha filha está com ela [...] Só eu que tenho filha com ela. A minha irmã que está na França tem quatro filhos e estão com ela, só eu que tenho que mandar dinheiro pra elas. E a menina tem que estudar, tenho que pagar táxi para ela, mandar dinheiro para ela [...] para minha mãe comprar coisas [...] E lá na escola não tem comida, tem que levar coisas [...] por isso, minha mãe sempre me liga dizendo que não tem nada lá e eu tenho filha lá com ela, por isso [...]

Pesquisadora: E o pai dela não ajuda?

Luísa: Lá no Haiti é assim, separado, às vezes, se eu passar, ele dá um pouquinho, assim [...]uma coisa assim. E é minha filha, às vezes é assim.

Pesquisadora: Sim, então, por isso que fica essa responsabilidade para ti [...] ter que mandar o dinheiro para tua mãe poder comprar as coisas [...]

Luísa: Sim [...] minha mãe não tem casa. Ela tinha uma casa, e o terremoto destruiu a casa. A casa é alugada, a gente, nós três, temos que pagar casa para ela. Cada uma tem que dividir para pagar casa para ela [...] Tem que trabalhar [...] Ela sempre está doente e com pressão alta e no médico, temos que mandar dinheiro para ela comprar remédio.E, por exemplo, agora é pior para mim, porque ela cuida da minha filha [...] ela [...] como vou explicar [...] ela passa bastante miséria para nós [...] não quero que minha mãe passe fome [...] (choro).

Na fala de Luísa percebe-se o quão sofrido era para ela não conseguir enviar o dinheiro que ajudava a sustentar sua mãe e sua filha. A situação de Luísa vai ao encontro do que dizem Mejía e Cazarotto (2017Mejía, M. R. G., & Cazarotto, R. T. (2017). O papel das mulheres imigrantes na família transnacional que mobiliza a migração haitiana no Brasil.Revista Pós Ciências Sociais , 14(27), 171-190.) sobre a obrigação que as imigrantes haitianas sentem de ajudar seus familiares economicamente e que, ao terem dificuldades financeiras para seguir enviando dinheiro, se entristecem muito. Essa é a realidade de muitas mulheres haitianas com as quais conversei na paróquia, precisavam de um trabalho, pois havia filhos, ou pais e irmãos que contavam com sua ajuda no Haiti.

Como mencionei anteriormente, apenas duas participantes estavam trabalhando na época das entrevistas. Com outras haitianas com quem conversei, pude perceber que a maioria dos trabalhos que encontraram eram nos setores de limpeza de empresas e hospitais. Handerson (2015bHanderson, J. (2015b). Diaspora: as dinâmicas da mobilidade haitiana no Brasil, no Suriname e na Guiana francesa (Tese de Doutorado). Rio de Janeiro. Recuperado de:http://haitiaqui.provisorio.ws/wordpress/wp-content/uploads/2016/10/JOSEPH-Handerson.-2015.-Di%C3%A1spora.-As-din%C3%A2micas-da-mobilidade-haitiana-no-Brasil-no-Suriname-e-na-Guiana-Francesa.-UFRJ.-Museu-Nacional.-PPGAS.-Rio-de-Janeiro.pdf
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) entende que a pouca opção de trabalhos está relacionada à dificuldade que as mulheres haitianas passam para reconhecer seus diplomas ou cursos realizados. Durante o período de coleta de dados, vi algumas situações como essa descrita pelo autor. Contudo, percebi que o maior empecilho para as mulheres haitianas entrarem no mercado de trabalho é a dificuldade com o idioma português. Trago aqui duas situações descritas do diário de campo que poderão mostrar o que foi percebido sobre ‘a barreira do idioma’.

Rosana atendia um homem haitiano que queria trazer os filhos do Haiti. Ela via com ele a documentação necessária. Pela conversa, entendi que a sua mulher já estava aqui e ambos trabalhavam. Perguntei havia quanto tempo estava aqui, ele respondeu que havia 3 anos. Perguntei se ele e a sua mulher vieram juntos. Ele disse que não, primeiro ele veio, conseguiu trabalho [,] e depois ela veio. Fazia 1 ano que ela estava aqui e havia 1 mês, trabalhando. Ambos trabalhavam como auxiliares de limpeza em locais diferentes. Perguntei se ela falava português, ele riu e disse que não. Perguntei por quê. Ele disse que ela era tímida. Disse também que ele aprendeu a falar português porque perguntava para as pessoas o que não entendia, pesquisava no Google. Disse que já tinha conversado com algumas mulheres haitianas e percebia que, em geral, elas tinham dificuldade para falar português, e perguntei por que ele achava que isso acontecia. Ele me respondeu que as mulheres são tímidas. Perguntei se ele queria dizer que as mulheres haitianas são tímidas. Ele disse que todas são, no Equador as mulheres também eram tímidas e aqui no Brasil [...] (ele parou de falar um momento) algumas são (Telmo-Romano, 2017Telmo-Romano, A. Q. (2017). Diários de campo da pesquisa Imigração de mulheres haitianas no Rio Grande do Sul: trajetórias e relações de gênero. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.).

Três haitianas chegaram acompanhadas de um homem haitiano, elas vinham em busca de trabalho. Quem falava isso por elas era ele. Rosana fez algumas perguntas para elas: Qual o seu nome? Há quanto tempo estava no Brasil? O homem começou a traduzir, mas Rosana pediu que ele não traduzisse. Duas delas tinham muita dificuldade em compreender e mal conseguiam se comunicar em português. A terceira entendia um pouco melhor. Através do homem, Rosana soube que todas eram casadas e seus maridos trabalhavam (portanto, não estavam em situação de extrema vulnerabilidade, sem conseguir se sustentar). Rosana começou a falar da importância de, primeiro, aprenderem o português, para depois poderem procurar um trabalho (Telmo-Romano, 2017Telmo-Romano, A. Q. (2017). Diários de campo da pesquisa Imigração de mulheres haitianas no Rio Grande do Sul: trajetórias e relações de gênero. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.).

Na primeira situação, apesar de sua explicação sexista, o homem haitiano tinha a mesma percepção que eu tive das mulheres haitianas aprendendo português, de que elas têm mais dificuldade que os homens. Ele riu quando perguntei se sua esposa falava português, sua fala levantou a hipótese de que talvez a barreira idiomática seja algo muito usual entre as mulheres haitianas. A segunda situação mostra algo que era muito comum no CIBAI: mulheres haitianas que não falavam português em busca de um trabalho.

Tais cenas ganham outro sentido ao olharmos para os papéis de gênero na sociedade haitiana. Lá o crioulo é a língua falada no lar, enquanto o francês é falado nos ambientes institucionais, tais como escolar, empresas, órgãos governamentais. Assim, todas as pessoas falam crioulo, mas apenas quem convive nas instituições aprende o francês. Na sociedade haitiana a educação dos meninos costuma ser priorizada, e as meninas ficam limitadas ao ambiente doméstico. Dessa forma, “[...] as meninas vão ficando defasadas em relação aos meninos no que concerne ao conteúdo escolar, tornando-se cada vez mais difícil a posteriori inserção destas no ensino formal [...]” (Araújo, 2016Araújo, A. A. (2016). Limitações e estratégias de ação feminina na sociedade haitiana: categorias de articulação/interseccionalidades.Revista Agenda Social, 9(2), 19-28., p. 22).

Essa defasagem no ensino formal e na aprendizagem do francês parece estar diretamente ligada à dificuldade das mulheres haitianas para aprenderem o português. O que, por consequência, diminui suas chances de conseguir um emprego, como vimos na segunda situação do diário de campo. Diferente da maioria das mulheres que entrevistei, as haitianas que buscavam um emprego tinham maridos que podiam sustentá-las.

Considerações finais

As discussões levantadas neste estudo mostram algumas dimensões importantes na compreensão da trajetória migratória das mulheres haitianas. No relato de sua trajetória de migração é possível perceber como sua concepção de ‘identidade haitiana’ encontra-se relacionada à condição de migrante. O ‘pati’ (partir) ou ‘vwayaje’ (viajar) estão presentes na fala das mulheres haitianas e encontram nestes verbos a possibilidade de conjugar uma vida no presente.

O 'migrar sozinha’ das mulheres haitianas entrevistadas nesta pesquisa mostrou algo que difere das atuais pesquisas nesse campo. Ao passo que algumas pesquisas nos mostram em números a significância das mulheres na migração haitiana, pouco se sabe de suas trajetórias. Com a fala destas mulheres entrevistadas é possível conhecer uma parte de suas trajetórias e o que encontramos são mulheres que protagonizaram a experiência migratória em suas vidas. E fizeram isso ao tomarem a decisão de migrar, ao migrarem sozinhas, tornando-se muitas vezes responsáveis pelo sustento da família que ficou no Haiti.

As entrevistas mostraram que, mesmo nos casos de ‘migração acompanhada’, é possível ver esse protagonismo nas mulheres, pois sua migração composta de etapas, passando por diferentes países, às vezes incluía trechos onde migravam e tinham que tomar decisões sozinhas.

O trabalho de campo possibilitou tomar contato com imigrantes que não seriam entrevistados e esse momento foi fundamental para compreender a barreira do idioma. Muitas mulheres haitianas expressam dificuldade para aprender o idioma português, o que pode estar relacionado ao pouco acesso que estas mulheres têm ao ensino formal no Haiti.

Através do que foi exposto é possível perceber que existem especificidades na migração feminina haitiana no Brasil. Embora as falas evidenciadas neste estudo tragam novas informações a respeito desse fluxo migratório, ainda há aspectos que precisam ser investigados. Nesta pesquisa busquei compreender o fenômeno migratório das imigrantes haitianas, e as suas falas possibilitaram ver que esse é um fenômeno complexo e multifacetado, no qual questões como identidade, idioma, relações de gênero encontram-se imbrincadas na subjetivação do processo migratório.

Ao concluir o trabalho, percebo que algumas etapas poderiam ter sido diferentes. Por exemplo, nas entrevistas sempre iniciava perguntando sobre o processo migratório. Hoje penso que, talvez, se tivesse buscado saber mais amplamente sobre suas vidas, poderia encontrar vivências anteriores à migração que seriam significativas para a compreensão desta. Outro ponto importante a ressaltar é que não foi possível saber da experiência migratória das mulheres que não falavam nem francês, nem português. Ao menos não através delas, mas por meio da observação pude me aproximar um pouco de sua experiência. Talvez mais tempo observando poderia ter auxiliado a saber da vivência destas mulheres.

O trabalho voluntário que realizei no CIBAI foi muito enriquecedor para a pesquisa, pois tive contato com outros imigrantes que não apenas as mulheres haitianas, e isto possibilitou uma visão mais ampla da experiência migratória e de refúgio. Muitas vezes tive a impressão de estar realizando um trabalho que era apenas ‘braçal’, fazendo currículos, preenchendo solicitações de passaporte ou refúgio. No entanto, foi através deste trabalho que consegui me aproximar dos imigrantes que atendia, fazer perguntas como: ‘Há quanto tempo está aqui?’, ‘E a sua família?’. Alguns se limitavam a poucas respostas. Outros logo iniciavam uma conversa sobre a vida aqui, a vida em seus países de origem, por vezes pareciam aliviados em poder conversar. Estas trocas me mostraram o quanto este trabalho não foi apenas ‘braçal’, mas também de escuta.

Por ser um dos estudos ainda pioneiros em nosso contexto, os resultados aqui discutidos trazem indicativos de que poderão ser explorados em futuros estudos, os quais podem investigar mais a fundo os conceitos aqui explorados com outros grupos migratórios, em outros contextos. Desse modo, os achados desta pesquisa oferecem um panorama ainda circunscrito e delimitado da realidade das mulheres haitianas em Porto Alegre, mas que pode servir de suporte para pensar políticas públicas e intervenções que visem tanto conscientizar a população brasileira sobre esse tema tão emergente, quanto apresentar possibilidades de acolhimento e fomentação de direitos humanos para a população imigrante e refugiada.

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  • 4
    Esta pesquisa segue as considerações éticas estabelecidas na Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), e envolvem a submissão desse projeto à Comissão Científica da Faculdade de Psicologia e ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    03 Maio 2019
  • Aceito
    25 Nov 2019
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