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JOVENS EM VULNERABILIDADES PSICOSSOCIAIS: GRUPO COMO LUGAR DE ACOLHIMENTO E SUBJETIVAÇÃO POLÍTICA

JÓVENES EN VULNERABILIDADES PSICOSOCIALES: GRUPO COMO UN SITIO DE RECEPCIÓN E SUBJETIVACIÓN POLÍTICA

RESUMO.

Este artigo visa relatar uma experiência de estágio realizado em um Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) junto a jovens de periferias da cidade de Florianópolis (SC), de modo a problematizar as possibilidades e desafios do uso do dispositivo grupal como instrumento de intervenção psicossocial. Este serviço, vinculado à Proteção Social Básica da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), tem como objetivo prevenir as situações de riscos e vulnerabilidades, bem como fortalecer os laços familiares e comunitários. Por meio da intervenção grupal, buscamos, junto com estes(as) jovens, criar um espaço de elaboração psíquica e política sobre temas significativos para suas vidas e para a atual sociedade. Apostamos na ideia de que as oficinas propiciaram a construção de um espaço coletivo que servisse de acolhimento ao sofrimento ético-político destes(as) jovens, subsidiando um afago às dores da vida e, também, servindo de catalisador aos processos de subjetivação política frente às iniquidades sociais que atravessam, sistematicamente, o cotidiano destes(as) jovens. Neste trabalho, trazemos reflexões em torno das potencialidades que o dispositivo grupal pode desencadear na constituição do sujeito, compreendendo-o como uma profícua ferramenta de intervenção psicossocial de escuta, acolhimento, fortalecimento comunitário e protagonismo político.

Palavras-chave:
Jovens; vulnerabilidade; grupos

RESUMEN.

Este artículo tiene por objeto relatar una experiencia realizada en un Servicio de Convivencia y Fortalecimiento de Vínculos (SCFV) junto a jóvenes de periferias de la ciudad de Florianópolis (SC), de modo a problematizar las posibilidades y desafíos del uso del dispositivo grupal como instrumento intervención psicosocial. Este servicio, vinculado a la Protección Social Básica de la Política Nacional de Asistencia Social (PNAS), tiene como objetivo prevenir las situaciones de riesgos y vulnerabilidades, así como fortalecer los lazos familiares y comunitarios. Por medio de la intervención grupal, buscamos, junto con estos jóvenes, crear un espacio de elaboración psíquica y política sobre temas significativos para sus vidas y para la actual sociedad. Apostamos en la idea de que los encuentros propiciaron la construcción de un espacio colectivo que sirviera de acogida al sufrimiento ético-político de estos jóvenes, subsidiando un ahogo a los dolores de la vida y, también, sirviendo de catalizador a los procesos de subjetivación política frente a las iniquidades sociales que atraviesan sistemáticamente el cotidiano de estos jóvenes. En este trabajo, traemos reflexiones en torno a las potencialidades que el dispositivo grupal puede desencadenar en la constitución del sujeto, comprendiéndolo como una útil herramienta de intervención psicosocial de escucha, acogida, fortalecimiento comunitario y protagonismo político.

Palabras clave:
Jóvenes; vulnerabilidad; grupos

ABSTRACT.

This article aimed to report an experience developed at a Service of Coexistence and Strengthening of Bonds (SCSB) with young people from outskirts of the city of Florianópolis (SC) problematizing the possibilities and challenges of the use of the group as a psychosocial intervention device. This service, linked to the Basic Social Protection of the National Social Assistance Policy, aims to prevent situations of risks and vulnerabilities, as well as strengthen family and community bonds. Through group intervention, we sought, along with these young people, to create a space of psychic and political elaboration on themes that are significant for their lives and for the current society. We believe that the workshops allowed the construction of a collective space that served as support for the ethical-political suffering of these young people, and also served as a catalyst for the processes of political subjectification fighting the social inequities that permeate the daily lives of these young people. In this work, we brought reflections about the potential that the group device can trigger in the constitution of the subject, understanding it as a useful tool for psychosocial intervention of listening, support, community strengthening and political protagonism.

Keywords:
Youngers; vulnerability; groups

Introdução

Este artigo objetiva relatar a experiência de um estágio profissionalizante em psicologia realizado em dois Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) - instituições vinculadas ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS) -, destinados a jovens da cidade de Florianópolis compreendidos por esta política como inseridos em “situações de riscos e vulnerabilidades sociais” (PNAS, 2004Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome(2004). Política Nacional de Assistência Social (PNAS). Brasília: Secretaria Nacional de Assistência Social.).

Em linhas gerais, o conceito de “vulnerabilidade social” é entendido pela Política Nacional de Assistência Social como as situações que fazem com que famílias e indivíduos se encontrem impedidos de acessar algum direito social, tendo comprometida a garantia de sua condição de cidadania. Em síntese, como apontam Cruz e Guareschi (2012Cruz, L., & Guareschi, N. M. F. (2012). Articulações entre a psicologia social e as políticas públicas na Assistência Social. In L.R.Cruz, & N.Guareschi, (Orgs.), O psicólogo e as políticas públicas de assistência social(p.35-51). Petrópolis:Vozes.), a noção de vulnerabilidade tem a pretensão de, ao mesmo tempo, incorporar e superar o conceito de pobreza, compreendendo-a como um processo no qual estão presentes fatores econômicos precários que favorecem o desencadeamento de riscos sociais.

Partiremos na noção de risco social tal como aponta a política nacional de assistência social que compreende a situação de vulnerabilidade e risco social na dimensão micro e macrossocial, incluindo aspectos econômicos, institucionais e psicossociais. As situações de vulnerabilidades e riscos sociais são produções históricas que geram desigualdades de condições e oportunidades aos diferentes grupos sociais, perpetuando um sistema desigual e opressor para determinadas camadas sociais. Os denominados grupos de “risco social” são produções inerentes ao sistema capitalista que necessitam de relações de exploração e opressão para se perpetuar. Dessa forma, compreendemos a pobreza em sua multidimensionalidade e heterogeneidade em que aspectos subjetivos e objetivos, singulares e coletivos se entrecruzam e se constituem.

Por compreendermos que as dimensões subjetivas e sociais não possam ser dicotomizadas, embora sejam esferas distintas em que uma não se sucumbe a outra, utilizaremos neste artigo o termo “vulnerabilidades psicossociais” entendidas como as fragilidades psíquicas decorrentes de situações sociais injustas e opressoras que geram desamparo, sofrimento e violação de direitos.

A partir desta experiência, nosso intuito é problematizar as possibilidades e desafios referentes ao uso do recurso grupal como ferramenta de intervenção psicossocial no âmbito desta olítica3 3 O SCFV está localizado na Proteção Social Básica, logo, atua na lógica preventiva a partir da convivência e do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. A equipe de referência para o SCFV deve ser composta pelo técnico de referência, orientador social e/ou educador social. O técnico de referência é um profissional de nível superior que faz parte da equipe do CRAS que assessora o orientador social - lugar este ocupado por uma das autoras deste artigo (MDS, 2015). . Neste artigo, traremos algumas reflexões decorrentes deste um ano e meio de trabalho grupal junto a estes(as) jovens que são, sistematicamente, reificados e violados pelo sistema neoliberal, sendo perversamente incluídos na lógica capital-consumo. Configurando-se como o público-alvo da PNAS, mais do que trazer respostas, este trabalho busca elucidar questões em torno dos objetivos, possibilidades e desafios do trabalho realizado pela psicologia nesta política pública.

Neste manuscrito, inicialmente, apresentaremos o método e os procedimentos de intervenção, caracterizando o dinamismo e funcionamento do grupo; em seguida, iniciaremos a discussão dos resultados que foi dividida em dois principais eixos de análise: o grupo enquanto um dispositivo de intervenção de (des)encontro com a alteridade; o grupo enquanto um dispositivo de acolhimento e de subjetivação política. Por fim, levantamos questionamentos e desafios que merecem ser objetos de reflexão em estudos futuros.

Método e procedimentos de intervenção

Os grupos ocorreram em dois bairros distintos da cidade de Florianópolis durante os períodos de maio até dezembro de 2015 e de abril até julho de 2016. Diversas estratégias foram utilizadas para compor os grupos: busca ativa, encaminhamento de outras instituições e contatos telefônicos com as famílias atendidas pelos CRAS4 4 Naqueles anos em que o projeto foi realizado- 2015 e 2016- Florianópolis possuía 12 CRAS sendo que todos eles, assim como os Creas, possuem as equipes técnicas concursadas e são gestados exclusivamente pela Secretaria Municipal de Assistência Social sem a participação de Organizações Sociais. Este é um cenário que vem se transformando, especialmente após a aprovação da lei 10.372/2018 que regulamenta a participação das Organizações Sociais na execução dos serviços do SUAS. . Em média, os grupos eram compostos por 23 jovens, em sua maioria, negros, pobres e residentes de periferias. Em linhas gerais, destacamos as seguintes características dos grupos: jovens que estavam fora da escola ou com defasagem escolar; oriundos de famílias pertencentes ao programa Bolsa Família; atendidos pelo Creas; egressos do Peti (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) e jovens com deficiência, cujas famílias eram usuárias do Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Partimos da noção de dispositivo de Deleuze (1996Deleuze, G. (1996). O que é um dispositivo? In O mistério de Ariana (p.83-96). Lisboa: Vega.) para compreender o grupo enquanto um dispositivo de intervenção, ou seja, um operador que produz recortes enunciativos, uma máquina de fazer ver e fazer falar. Em outras palavras, um dispositivo é o que possibilita modos de singularização e de subjetivação, produzindo novas estéticas de existência. Assim, a noção de dispositivo está atrelada às formas de criação, à mutação, às derivas enunciativas, ao inusitado, às “linhas que estabelecem o vai e vem entre o dizer e o ver” (Deleuze, 1996, p. 83).

A partir desta noção de que o grupo não é um produto, mas um constante processo, cada atividade era proposta a partir das demandas, desejos, conflitos e impactos ocorridos no encontro anterior. Elaboramos o projeto em uma perspectiva processual na qual realizávamos uma análise horizontal (reflexões sobre as relações intragrupais) e vertical (análise dos impactos subjetivos e singulares de cada participante). Compreendendo o grupo como um receptáculo de (des)identificações, projeções, afetos, conflitos, negociações e tensões, realizávamos um encadeamento dos encontros grupais de modo a mapear os avanços, recuos, repetições e mudanças (Moreira, 2015Moreira, I. C. M. (2015). Processos grupais na trajetória dos adolescentes e jovens. In H.R.Campos, S. M. G.Sousa, (Org.), Emocore: experiências grupais na constituição da adolescência(p.29-52). Goiânia: PUC-Goiás.; Castanho, 2018Castanho, P. (2018). Uma introdução psicanalítica ao trabalho com grupos em instituições. São Paulo: Linear A-barca.).

Por meio do uso do diário de campo, rastreamos os significantes, atos, afetos, narrativas e testemunhos de modo a elaborar quais temas e recursos utilizaríamos no encontro seguinte. Estas escolhas e definições eram feitas em conjunto com os(as) jovens, sendo que eles(as) se tornavam, cada vez mais, protagonistas dos processos grupais e nós, por outro lado, ocupávamos, cada vez mais, um lugar coadjuvante nos processos decisórios do grupo. O debate sobre o uso do grupo como uma ferramenta de trabalho e seus potentes impactos subjetivos e políticos serão debatidos na discussão dos resultados.

Discussao dos resultados

O grupo como um dispositivo de intervenção entre o íntimo e o público: alteridade e constituição do sujeito

Partimos da compreensão de que o grupo pode se caracterizar como um instrumento de intervenção profícuo para a atuação na PNAS por atuar no interstício do singular/coletivo e do íntimo/privado. A depender de como for manejado, o grupo pode se configurar como um dispositivo de “fazer ver e fazer falar”, funcionando como um operador simbólico que permite a circulação da palavra, dando abertura aos processos de singularização do sujeito (Broide &Broide, 2015Broide, J., & Broide, E. E. (2015). A psicanálise em situações sociais críticas: metodologia clínica e intervenções. São Paulo: Escuta.).

Sob esta lógica, buscávamos inscrever um espaço para que estes jovens, que são cotidianamente invisibilizados e deslegitimados pela cultura hegemônica5 5 Sobre a noção de ideologia e hegemonia, ler Chauí (2016). , pudessem ter um lugar de fala e de autoria sobre suas experiências da/na vida. Apostávamos na ideia de Broide e Broide (2015Broide, J., & Broide, E. E. (2015). A psicanálise em situações sociais críticas: metodologia clínica e intervenções. São Paulo: Escuta.) de que “as narrativas, ao serem retiradas da invisibilidade e do silêncio, são capazes de incitar a reflexão acerca das razões de seu sufocamento, tornando-se, então, uma ação política e subjetiva de grande magnitude” (Broide e Broidep.15).

Inversamente à lógica punitiva, moralista e judicializadora que sustenta muitas das ações desenvolvidas no SUAS (Oliveira, 2017Oliveira, I. F. (2017). A assistência social em tempos de capital barbárie. In E.F.Rasera, M.S.Pereira, D.Galindo, Democracia participativa, Estado e Laicidade. Porto Alegre: ABRAPSO.), buscamos construir uma proposta na qual o grupo se configure como um dispositivo de convocação à palavra, provocando o encontro e o estranhamento com a alteridade. Por meio destes (des)encontros subjetivos, apostamos na ideia de que o grupo servisse como um espaço para acessar memórias e afetos, possibilitando a estes sujeitos criarem novos referentes sígnicos, produzindo novos sentidos e posicionamentos subjetivos para suas vidas (Gomes, et.al., 2019Gomes, M. A., Lima, A., Guerra, A. S., Corrêa, B., Nascimento, V. N., & Favaretto, V. (2019). Como lidar com os efeitos psicossociais da violência? O curso de capacitação como um dispositivo clínico e político. In M. L. Lopedote, D. S. Mayorca, D. Negreiros, M. A. Gomes, T. Tancredi, (Orgs.), Como lidar com os efeitos psicossociais da violência?(p.54-68). São Paulo: Elefante.).

Recorrentemente, o uso do grupo como ferramenta de trabalho nas políticas públicas acaba sendo orientado de uma forma corretiva, moralista e julgadora. Especialmente nos serviços atrelados à assistência social, esta postura torna-se bastante presente pois o foco está nos segmentos empobrecidos da população que, como aponta Silva (2004Silva, R. N. (2004). Notas para uma genealogia da psicologia social. Psicologia & sociedade,(Vol. 16, 2, p. 12-19).), quando emergiram como um excedente que não tinha acesso ao trabalho, na passagem do sistema feudal para o modo de produção capitalista, tornaram-se foco de controle e vigilância por parte do estado (Silva, 2004Silva, R. N. (2004). Notas para uma genealogia da psicologia social. Psicologia & sociedade,(Vol. 16, 2, p. 12-19).; Prado, 2012Prado, F. K. (2012). Uma breve genealogia das práticas jurídicas no ocidente. Psicologia e Sociedade, (vol 24, Sup. 104-111).; Lima & Silveira, 2016Lima, C. B., & Silveira, J. I. (2016). Direitos Humanos e Política Social: instrumentos sóciojurídicos não punitivos e mecanismos democráticos. Revista de Filosofia Aurora, (Vol. 28, 43, p. 147-166).).

A judicialização e a criminalização da pobreza apresentam resquícios até os dias atuais, especialmente no SUAS, onde um dos maiores desafios é superar as práticas clientelistas e tornar esta política pública um instrumento de superação das desigualdades sociais e não meramente uma forma de compensação da pobreza (Cruz &Guareschi, 2012Cruz, L., & Guareschi, N. M. F. (2012). Articulações entre a psicologia social e as políticas públicas na Assistência Social. In L.R.Cruz, & N.Guareschi, (Orgs.), O psicólogo e as políticas públicas de assistência social(p.35-51). Petrópolis:Vozes.; Oliveira, 2017Oliveira, I. F. (2017). A assistência social em tempos de capital barbárie. In E.F.Rasera, M.S.Pereira, D.Galindo, Democracia participativa, Estado e Laicidade. Porto Alegre: ABRAPSO.).

Em uma tentativa de escapar da ideologia que criminaliza, julga e rechaça as juventudes pobres e de periferias, tentamos abrir um espaço para que estes jovens tivessem legitimado o seu lugar de direitos e desejos. Na medida em que um dispositivo grupal se afasta de uma postura ortopédica, ele pode produzir afecções no corpo, no sentido espinosiano, que ampliam a potência de existir e expandir (Sawaia, 1995Sawaia, B. B. (1995). O calor do lugar: segregação urbana e identidade. São Paulo em Perspectiva, (Vol. 9, 2, p. 20-24)., 2009Sawaia, B. B. (2009). Psicologia e desigualdade social: uma reflexão sobre liberdade e transformação social. Psicologia e Sociedade, (Vol.21, 3, p. 364-372).), servindo de espaço para a elaboração psíquica e circulação do desejo que desamarra o sujeito de experiências produtoras de sofrimento (Broide & Broide, 2015Broide, J., & Broide, E. E. (2015). A psicanálise em situações sociais críticas: metodologia clínica e intervenções. São Paulo: Escuta.).

Acreditamos que a postura subjetiva assumida pela coordenadora que buscava, a todo momento - não sem tropeços e deslizes - estar ali presente para o que viesse à tona, de forma acolhedora e não punitiva, foi possibilitando a construção de um vínculo sólido e profundo que serviu de substrato para que os(as) jovens se colocassem em uma postura aberta e engajada neste coletivo. A escuta qualificada no SUAS pode ser compreendida, no dizer de Susin e Poli (2012Susin, L; Poli, M. C. (2012). O singular na assistência social: do usuário ao sujeito. In L.R Cruz, & N.Guareschi, (Orgs.), O psicólogo e as políticas públicas de assistência social(p.195-204). Petrópolis: Vozes.), como um dispositivo que dá lugar à palavra, pautado na ética e compromisso com o sujeito que a pronuncia enquanto uma singularidade e não como um usuário(a) em termos genéricos; ou seja, é um trabalho que busca incluir a cidadania sem excluir o sujeito. Como sugerem Broide e Broide (2015Broide, J., & Broide, E. E. (2015). A psicanálise em situações sociais críticas: metodologia clínica e intervenções. São Paulo: Escuta.), a ética da escuta do sujeito em contextos de vulnerabilidades sociais necessita romper com a postura de tutela, disciplina e obediência ao procedimento burocrático e se guiar pela busca dos fios de ancoragem que mantém a vitalidade deste sujeito, aquilo que o faz persistir em viver mesmo diante de tantas dores e situações sociais críticas.

Algumas situações como as ameaças de uma jovem participante endereçadas à estagiária, brigas, sumiço de um celular - entre outras situações desafiadoras que facilmente poderiam ter sido conduzidas por meio de uma lógica punitiva e moralista - foram manejadas de forma a fortalecer, e não romper, o vínculo que estava sendo construído entre a orientadora e o grupo. Estas situações foram cruciais para que eles(as) se apoderassem daquele espaço como um lugar onde poderiam trazer suas questões mais íntimas e difíceis, sem receios de serem rechaçados, avaliados e julgados.

Com o passar do tempo, fomos notando que a relação intragrupal foi se fortalecendo e expandindo para além do momento em que se encontravam no projeto, evidenciando que este coletivo foi se tornando um depositário de afetos e companheirismo (Broide & Broide, 2015Broide, J., & Broide, E. E. (2015). A psicanálise em situações sociais críticas: metodologia clínica e intervenções. São Paulo: Escuta.). O grupo foi, cada vez mais, construindo certa corporeidade intersubjetiva (Sawaia, 1995Sawaia, B. B. (1995). O calor do lugar: segregação urbana e identidade. São Paulo em Perspectiva, (Vol. 9, 2, p. 20-24).; 2009Sawaia, B. B. (2009). Psicologia e desigualdade social: uma reflexão sobre liberdade e transformação social. Psicologia e Sociedade, (Vol.21, 3, p. 364-372).) na qual assumia, cada vez mais, os processos de escolha e decisão sobre os diferentes rumos que se apresentavam enquanto possibilidades.

Um fato que merece ser destacado e que, talvez, se configure como um indicador do processo autogestionário e de protagonismo coletivo - aspectos cruciais para um processo grupal (Rivière, 2005Rivière, E. P. (2005). O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes.; Castanho, 2018Castanho, P. (2018). Uma introdução psicanalítica ao trabalho com grupos em instituições. São Paulo: Linear A-barca.) - foi quando a estagiária iria se ausentar por três semanas para usufruir do seu período de férias e, conforme orientação do Serviço, o projeto continuaria, porém, sem as “oficinas da psicologia”. Ao tomar conhecimento sobre as férias da estagiária, um dos jovens demonstrou interesse em ficar responsável pelo grupo e pela entrega do vale-transporte aos demais colegas; em seguida, outras duas jovens se colocaram à disposição para auxiliar na organização e acompanhamento do coletivo durante aquele período. Neste momento, começaram a negociar e compartilhar os papéis e funções que desempenhariam diante da ausência da estagiária. Evidente que foi difícil negociar esta autorização com a gestão, mas conseguimos e o grupo continuou se encontrando sistematicamente mesmo sem a presença da estagiária. Para nós, este foi um dos mais significativos alcances deste trabalho: o grupo prescindia de nós e autoexistia por meio de seus afetos, papéis, responsabilidades e desejos.

Esta experiência como tantas outras foram nos revelando o grau de importância que aquele espaço coletivo foi se delineando na vida destes(as) jovens. Evidentemente que tivemos falhas, lacunas e dificuldades, entretanto, é possível notar como este espaço trouxe importantes impactos subjetivos na vida de alguns destes(as) jovens. Isso ficou marcante quando, recentemente, um jovem que era bastante participativo no projeto, procurou a agora ex-orientadora social para falar sobre seus atuais dilemas e disse “aquele grupo salvava vidas e eu nem sabia”.

O grupo como uma estratégia de intervenção psicossocial: o dispositivo grupal como um lugar de acolhimento e de subjetivação política.

Quando se inicia um trabalho grupal, não se sabe quais os caminhos que este coletivo vai trilhar e como este campo intersubjetivo vai se configurar. Apostávamos em um trabalho que tivesse um caráter tanto subjetivo quanto político; pensávamos em tentar montar um espaço que trouxesse escuta e apoio às dores e sofrimentos, possibilitando ações mais estéticas e criativas (Sawaia, 2009Sawaia, B. B. (2009). Psicologia e desigualdade social: uma reflexão sobre liberdade e transformação social. Psicologia e Sociedade, (Vol.21, 3, p. 364-372).) perante suas próprias vidas; da mesma forma também desejávamos que este coletivo fosse propulsor de reflexões críticas sobre os andaimes do sistema neoliberal e suas inexoráveis iniquidades sociais.

Inspirávamo-nos no conceito de sofrimento ético-político de Sawaia (2009Sawaia, B. B. (2009). Psicologia e desigualdade social: uma reflexão sobre liberdade e transformação social. Psicologia e Sociedade, (Vol.21, 3, p. 364-372).), entendido como as dores e tristezas desencadeadas pelas injustiças sociais já que “a desigualdade social se caracteriza por uma ameaça permanente à existência. Ela cerceia a experiência, a mobilidade, a vontade e impõe diferentes formas de humilhação” (p.369). Ou seja, buscávamos implantar um trabalho que fosse, ao mesmo tempo, promotor de saúde psíquica e de cidadania, em que o acolhimento à palavra pudesse trazer afago às tristezas e reflexões sobre as relações de dominação inerentes à lógica do sistema neoliberal.

Assim, temas como racismo, relações de gênero, ditadura civil e militar, movimentos sociais, as múltiplas formas de violência (intrafamiliar, sexual, de estado, policial) e outras temáticas fundamentais de serem debatidas para a construção de uma sociedade mais democrática foram sendo eleitas pelo grupo e tornando-se orientadoras de nossas intervenções. Nosso manejo grupal tentava captar as mais sutis expressões simbólicas que emergiam nos encontros grupais, sejam aquelas que promoviam protagonismo e potencialização, como aquelas que (re)produziam as relações de opressão e assujeitamento.

Um dos jovens, Renato (16 anos)6 6 Todos os nomes utilizados neste artigo são fictícios para preservar o anonimato dos sujeitos. pôde ser porta-voz (Rivière, 2005Rivière, E. P. (2005). O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes.) dos processos coletivos e singulares que iam se tecendo e se entrecruzando no desenrolar deste projeto. Renato sofria inúmeros ataques homofóbicos por parte de vários integrantes do grupo, em especial, da jovem Amanda (13 anos). Em diversos momentos em que as relações homoafetivas foram vistas “como pecado” ou como algo horrível, errado e que deveria ser proibido” por parte de alguns integrantes, buscávamos interrogar estes modelos fixados e cristalizados opressores da cultura heteronormativa, estimulando o debate através de filmes, reportagens, imagens e dinâmicas. A todo instante questionávamos os lugares de falas (Ribeiro, 2017Ribeiro, D. (2017). O que é lugar de fala?Belo Horizonte: Justificado.) nas quais estas produções discursivas se teciam, tanto em relação às questões de classe, raça, etnia e gênero.

Inicialmente, Renato se portava no grupo a partir de uma postura subjetiva que promovesse sua heterossexualidade e a virilidade culturalmente estimulada nos homens. No contexto grupal, contava como “pegava as meninas”, “beijava suas amigas”,entre outras histórias, enquanto que, singularmente, buscava a estagiária para desabafar sobre suas crises, dúvidas e anseios no que tangiam aos seus desejos sexuais por homens. Renato foi um dos integrantes mais participativos do grupo e mostrava como aquele espaço estava sendo social e psicologicamente importante para a sua vida.

No decorrer do projeto, Renato foi requisitando cada vez menos a estagiária nos espaços individualizados e foi se autorizando a falar sobre suas questões afetivas e sexuais no âmbito coletivo, abandonando sua posição antiga de reiterar sua heterossexualidade e trazendo suas aventuras amorosas com um homem por quem se apaixonou durante o período do projeto, inclusive assumindo ser homossexual para todo o grupo durante uma dinâmica.

O grupo possibilita que histórias se encontrem e se desencontrem, inscrevendo importantes fendas que dão abertura aos processos de singularização. As identificações e diferenciações que ocorrem no espaço coletivo possibilitam que a história de um se torne, ao mesmo tempo, a história de todos e a de ninguém, servindo de semblante para que cada um possa colar e descolar nela/dela aquilo que lhe for possível em um dado momento.

Amanda, em um primeiro momento, entrou em uma relação extremamente intensa e de repúdio em relação às experiências sexuais e afetivas de Renato; aos poucos, sua defesa odiosa em relação às homossexualidades foi cedendo espaço ao seu desejo por mulheres. Ao término do projeto, Amanda já contava abertamente para todo o grupo que “beijou uma amiga” e que estava “namorando uma menina da sua escola”.

Os exemplos de Renato e Amanda revelam a potência que um dispositivo grupal pode operar na vida de seus integrantes, configurando-se como um espaço de ação subjetiva e política, de mobilização de afetos e memórias e, também, de fissuras com as lógicas discursivas opressoras e violadoras.

Partimos da noção de política em Rancière (2006Rancière, J. (2006). O dissenso. In: A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras.; 2010) que a entende como um modo sensível de pensar, apreender e sentir a realidade social, possuindo como base a partilha estética que irá configurar determinadas experiências sensíveis, bem como invisibilizar tantas outras. Desse modo, pensar em atos políticos implica incluirmos a dimensão subjetiva neste processo, já que a experiência estética diz sobre as nossas “capacidades e incapacidades para decifrar signos, conferir sentido às paisagens que nos impressionam, sermos afetados pelo que vivemos em nossa carne. É a textura da experiência estética que define uma transformação política na partilha do sensível” (Marques & Prado, 2018Marques, A. C. S., & Prado, M. A. (2018). Diálogos e Dissidências: Michel Foucault e Jacques Rancière. Curitba: Appris., p. 67).

Na partilha do sensível que é, por condição, desigual, há uma produção de um “sem-parte” que são os grupos invisibilizados na vida coletiva (Rancière, 2006Rancière, J. (2006). O dissenso. In: A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras.). Os movimentos de subjetivação política são estes acontecimentos que desregulam e subvertem lugares, funções e identidades. Em outras palavras, a política ocorre quando determinados dispositivos provocam desidentificações, um embaralhamento na articulação dos corpos, funções e normas, provocando rupturas nos modelos gramaticais interpretativos hegemônicos, fazendo emergir sujeitos e vozes que não possuíam seu lugar na partilha do sensível.

Dessa forma, pensamos que este grupo pôde se configurar como um dispositivo de subjetivação política na medida em que, em alguns momentos, provocou “uma perturbação no sensível, uma modificação singular do que é visível, dizível, contável” (Ranciere, 2006Rancière, J. (2006). O dissenso. In: A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras., p. 372), configurando-se como um espaço catalisador de processos de desidentificação simbólica com seus próprios lugares identitários, em um movimento em direção ao outro, um movimento heterológico, produzindo atos precários de dissenso. Tal processo pode desregular a partilha do sensível nas hierarquias de classe, raça, gênero, e tantas outras articulações naturalizadas de determinadas normatividades e funções sociais.

Pensamos que o dispositivo grupal pode servir como um instrumento de ampliação dos horizontes reflexivos, da sensibilidade sobre os problemas enfrentados; como um espaço para coletivizar as demandas singulares; um encontro com a alteridade que potencialize o processo de criação de estratégias de enfrentamento às crises, vulnerabilidades e injustiças sociais. Ele também serve como um lugar de escuta coletiva para as tensões, sofrimentos e situações traumáticas, na medida em que o grupo vai se tornando um sustentáculo e aparador dos diversos conflitos vivenciados por seus integrantes, servindo de espaço para novas elaborações simbólicas e sentidos para as experiências vividas, seja por meio de identificações, negociações e/ou tensionamentos.

Considerações Finais

Neste trabalho elaboramos algumas reflexões em torno do uso da ferramenta grupal como uma possibilidade de intervenção psicossocial que pode assumir um caráter tanto subjetivo quanto político. A partir de uma intervenção grupal junto a jovens de periferia, trouxemos alguns recortes desta experiência de modo a levantar questionamentos sobre o lugar da psicologia dentro de um Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos.

Apostamos na ideia de que uma escuta grupal acolhedora permite aos sujeitos falarem do indizível que atravessava seus cotidianos, propiciando um lugar de fala para suas situações de desamparos sociais e subjetivos. Intervenções como esta podem operar como um microespaço que favorece à produção de diferenças sutis e importantes para a produção de uma vida mais satisfatória, prazerosa e politizada, tanto em termos singulares como coletivos. Cabe à psicologia reinventar estratégias de intervenções que se foquem no sofrimento ético-político gerado pelas injustiças sociais, construindo brechas de resistências às múltiplas formas de opressão da sociedade contemporânea, atuando na promoção dos desejos e direitos humanos. Mas, também, na capacidade de desidentificação com lugares sociais de privilégios e poderes, no deslocamento dos sujeitos em direção ao outro, em um movimento de alteridade capaz de produzir novas identificações e projetos de vida.

Referências

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  • Castanho, P. (2018). Uma introdução psicanalítica ao trabalho com grupos em instituições São Paulo: Linear A-barca.
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  • 3
    O SCFV está localizado na Proteção Social Básica, logo, atua na lógica preventiva a partir da convivência e do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. A equipe de referência para o SCFV deve ser composta pelo técnico de referência, orientador social e/ou educador social. O técnico de referência é um profissional de nível superior que faz parte da equipe do CRAS que assessora o orientador social - lugar este ocupado por uma das autoras deste artigo (MDS, 2015).
  • 4
    Naqueles anos em que o projeto foi realizado- 2015 e 2016- Florianópolis possuía 12 CRAS sendo que todos eles, assim como os Creas, possuem as equipes técnicas concursadas e são gestados exclusivamente pela Secretaria Municipal de Assistência Social sem a participação de Organizações Sociais. Este é um cenário que vem se transformando, especialmente após a aprovação da lei 10.372/2018 que regulamenta a participação das Organizações Sociais na execução dos serviços do SUAS.
  • 5
    Sobre a noção de ideologia e hegemonia, ler Chauí (2016)Chauí, M. S. (2016). Ideologia e educação. Educação e Pesquisa, (Vol. 42, 1, p. 245-257)..
  • 6
    Todos os nomes utilizados neste artigo são fictícios para preservar o anonimato dos sujeitos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Abr 2019
  • Aceito
    23 Jan 2020
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