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LUDOTERAPIA E ALTERIDADE: UMA EXPERIÊNCIA DE LUDOTERAPIA GRUPAL À LUZ DE LÉVINAS

TERAPIA DE JUEGO Y ALTERIDAD: UNA EXPERIENCIA DE TERAPIA DE JUEGO DE GRUPO A LA LUZ DE LÉVINAS

RESUMO

A ludoterapia de orientação humanista de Axline se baseia no pressuposto de que o jogo é a maneira natural da criança se expressar. Contudo, essa abordagem parece apresentar algumas lacunas éticas no que diz respeito à relação da criança com o Outro. Tais lacunas foram discutidas a partir do pensamento do filósofo Emmanuel Lévinas, que tratou da ética da alteridade radical. Neste sentido, este trabalho reflete como a ética levinasiana pode se manifestar não só na ludoterapia, mas também na prática clínica, por meio de uma pesquisa qualitativa com metodologia de estudo de caso. O grupo terapêutico aconteceu em 14 sessões de aproximadamente uma hora e era formado por três crianças de 5 a 7 anos. As sessões foram descritas de forma narrativa e a terapeuta escreveu, a partir delas, as suas Versões de Sentido. Ademais, foram realizadas anamneses, devolutivas, entrevistas com outros profissionais da saúde e visitas escolares. As sessões foram analisadas a partir da descrição e compreensão dos sentidos. Verificou-se que o processo grupal pareceu caminhar para uma maior abertura e proximidade entre os participantes do grupo e que a terapeuta precisou ir em direção à criança, isto é, demonstrar abertura à sua diferença. Concluiu-se que, ao entrar na brincadeira junto à criança, o psicoterapeuta não pôde apreender o mundo infantil, mas apenas cumprir com o seu dever ético e inferir que o encontro com as crianças em terapia significa descobrir a diferença pela via traumática. Ressaltou-se, além disso, a dificuldade em teorizar sobre a criança ou a infância, visto que ambas só têm sentido enquanto for fomentado o respeito à alteridade.

Palavras-chave:
Ludoterapia; Emmanuel Lévinas; alteridade

RESUMEN

La Terapia de Juego humanista de Axline se basa en la suposición de que jugar es la forma natural del niño de expresarse. Sin embargo, este enfoque parece presentar lagunas éticas con respecto a la relación del niño con los demás. Estas lagunas se discutieron a partir de los pensamientos de Emmanuel Lévinas, un filósofo que escribió sobre la ética de la alteridad radical. En este sentido, se discutió cómo la ética de Lévinas puede verse en la terapia de juegos, incluida la práctica clínica. La investigación fue cualitativa con una metodología de estudio de caso. El grupo se realizó en 14 reuniones terapéuticas de una hora de duración y estuvo formado por tres niños de 5 a 7 años. Las reuniones se describieron en forma narrativa y la terapeuta escribió, a partir de ellas, sus Versiones de Significado. Además, se realizó anamnesis, devolutivos, entrevistas con otros profesionales de la salud y visitas escolares. Las sesiones se analizaron a partir de la descripción y comprensión de los sentidos. Fue posible verificar que el proceso del grupo se dirigió hacia una mayor apertura y proximidad entre los participantes del grupo, y que la terapeuta tuvo que dirigirse hacia los niños,es decir, demostrar apertura a su diferencia. Se concluyó que, al entrar en el juego con el niño, el psicoterapeuta no puede apoderarse del mundo de los niños, sino cumplir el deber ético; y reunirse con los niños en terapia era encontrar la diferencia a través de una forma traumática. Además, se destacó la dificultad para teorizar sobre el niño o la infancia, ya que ambos solo tienen sentido si se fomenta el respeto por la alteridad.

Palabras clave:
Ludoterapia; Emmanuel Lévinas; alteridad

ABSTRACT

Axline's humanistic-oriented Play Therapy assumes that play is a child's natural way of expressing herself. However, this approach seems to present some ethical gaps when thought concerning the relationship with others. Such gaps were discussed based on Emmanuel Lévinas' thoughts, a philosopher who wrote about radical otherness ethics. In this sense, it was necessary to reflect on how Levinasian ethics can be manifested in Play Therapy, including clinical practice. The research was qualitative, with a case study methodology. The therapeutic group took place in 14 sessions and consisted of three children, aged 5 to 7, with a one-hour meeting. The sessions were described narratively, and the Sense's Version of the therapist was written. Anamnesis, feedback, interviews with other health professionals and school visits were also conducted. The sessions were analyzed based on the description and understanding of meanings. It was found that the group process seemed to move towards greater openness and proximity among the participants and that the therapist needed to move towards the children, opening up to their differences. It was concluded that, when entering the play with the child, the psychotherapist cannot apprehend the child's world but only fulfill her ethical duty and meeting herself with the children in therapy was facing the difference through a traumatic via. It is noteworthy that it is difficult to theorize about childhood, and the theory will only make sense while promoting respect to otherness.

Keywords:
Play Therapy; Emmanuel Lévinas; otherness.

Introdução

Emmanuel Lévinas (1906-1995) foi um filósofo franco-lituano que dedicou os seus estudos às questões da Ética e do Outro e fez críticas à filosofia ocidental, que, para ele, exibe uma tendência de tentar reduzir todas as coisas a uma condição de inteligibilidade e em noções racionais, lógicas e controláveis. Sendo a ciência psicológica, em grande parte, herdeira da tradição filosófica ocidental e inserida em um contexto ético-político, repensar a psicologia por meio da filosofia levinasiana é entender a sua teoria e práxis fora de um modelo individualizante (Maia, 2013Maia, J. V. M. M. (2013). Uma Leitura da Dimensão Ética da Gestalt-Terapia: Um Diálogo Com Martin Buber e Emmanuel Lévinas [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. Recuperado de Repositório Institucional da Universidade Federal do Ceará.http://repositorio.ufc.br/handle/riufc/6857
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). Nesse cenário, a ética da alteridade de Lévinas surge como um caminho para pensar as relações humanas e o conhecimento (Chacon, 2015Chacon, D. R. A. (2015). Rosto e responsabilidade na filosofia da alteridade em Emmanuel Levinas. Intuitio, (Vol. 8, 2, p. 15-24). ).

Como afirma Maia (2013Maia, J. V. M. M. (2013). Uma Leitura da Dimensão Ética da Gestalt-Terapia: Um Diálogo Com Martin Buber e Emmanuel Lévinas [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. Recuperado de Repositório Institucional da Universidade Federal do Ceará.http://repositorio.ufc.br/handle/riufc/6857
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), é possível encontrar na obra de Lévinas implicações diretas à teoria e à prática da psicologia, especialmente no que diz respeito ao status do Outro em relação ao Eu. Assim, destaca-se nesta pesquisa a importância da filosofia levinasiana para o ramo da psicoterapia que entende o Outro como alguém que não pode ser contido ou totalizado e que não há compreensão capaz de abarcá-lo, a partir da reflexão sobre como a ética levinasiana pode se manifestar no encontro entre terapeuta e cliente.

Considerando que a ética assume um caráter peculiarmente complexo no tratamento da criança no contexto da psicologia clínica, faz-se importante refletir como a abordagem clínica da ludoterapia humanista, como proposta por Axline (1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: a dinâmica interior da criança.Belo Horizonte: Interlivros.), está posicionada eticamente. Brito (2012Brito, R. A. C. (2012). A criança Como Outro: uma leitura ética da ludoterapia centrada na criança [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. Recuperado de Repositório Institucional da Universidade Federal do Ceará.http://repositorio.ufc.br/handle/riufc/6811
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), a partir de uma releitura ética da Ludoterapia, aponta para as possibilidades de pesquisa na prática clínica e questiona:

[…] seria possível, no contexto psicoterápico, que a criança como Outro tivesse seu espaço para aparecer, para que pudéssemos ser disponibilidade e abertura, para que nos habilitássemos ao traumatismo provocado pela chegada e chamado da criança, implicações essas verificadas em um atendimento clínico real? (Brito, 2012Brito, R. A. C. (2012). A criança Como Outro: uma leitura ética da ludoterapia centrada na criança [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. Recuperado de Repositório Institucional da Universidade Federal do Ceará.http://repositorio.ufc.br/handle/riufc/6811
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, p. 130).

Assim, buscou-se discutir tais lacunas de um ponto de vista não somente teórico, mas também da prática clínica.

Emmanuel Lévinas

Para refletir a ética da ludoterapia humanista a partir de Lévinas, é preciso, inicialmente, compreender que o filósofo discute Ética por meio da noção de Outro, que está sempre além daquilo passível de ser conhecido e que, apesar de inalcançável, se faz sempre presente (Lévinas, 1985; 2010). Dessa forma, a subjetividade se constrói no relacionamento - que não pode ser sintetizado - do Eu com o Outro. Alguns pensadores também tratam do contexto relacional ou, mais especificamente, do Outro como fundamental na construção da subjetividade, como é o caso de Martin Buber (1878-1965) e Jean-Paul Sartre (1905-1980). Contudo, Lévinas constrói a sua teoria como uma ética da alteridade radical, uma vez que questiona a ontologia e o seu conceito de indivíduo e enfatiza a primazia do Outro na sua relação com a subjetividade (Vieira & Pinheiro, 2013Vieira, E. M., & Pinheiro, F. P. H. A. (2013). Person centered psychotherapy: an encounter with oneself or a confrontation with the other?.Estudos de Psicologia (Campinas), (Vol. 30, 2, p. 231-238). ).

Para Lévinas (1985Lévinas, E. (1985). Ethics and Infinity: Conversations with Phillipe Nemo. Pittsburgh: DuquesneUniversity Press.), a subjetividade deve ser descrita a partir da Ética, cuja estrutura primordial e fundamental é a responsabilidade, mas não qualquer uma. Segundo o filósofo, trata-se da responsabilidade pelo Outro, ou seja, a responsabilidade do indivíduo por algo que ele não possui, mas para o qual a única resposta possível é “eis-me”. O Eu não é responsável como um simples atributo da subjetividade; a responsabilidade em si já existia, pois a subjetividade não é para si, mas para outrem. Neste sentido, a Ética é anterior à ontologia.

Uma vez que a humanidade surge do reconhecimento da diferença, falar sobre Ética é estimular a abertura para o diferente, não para fins de identificação, mas de acolhimento (Vieira & Pinheiro, 2013Vieira, E. M., & Pinheiro, F. P. H. A. (2013). Person centered psychotherapy: an encounter with oneself or a confrontation with the other?.Estudos de Psicologia (Campinas), (Vol. 30, 2, p. 231-238). ). Para Lévinas, “toda atividade humana é, em si mesma, uma resposta ao Outro, toda ação é dotada de responsabilidade” (Araújo & Freire, 2017Araújo, I. C., & Freire, J. C. (2017). Peter Schmid e a alteridade radical: retomando o diálogo entre Rogers e Lévinas. Revista da Abordagem Gestáltica: PhenomenologicalStudies, (Vol. 23, 2, p. 220-230). , p. 226-227). Dessa forma, é possível afirmar que o novo humanismo proposto por Lévinas tem como base a descoberta do Outro e a responsabilidade social por ele (Carvalho, 2013Carvalho, J. M. (2013). Resenha: Humanismo do outro homem. Argumentos-Revista de Filosofia, (Vol. 5, 9, p. 329-334). ), sendo, assim, um paradigma diferente, um humanismo do outro homem, onde o Eu é afirmado anteriormente à consciência da existência - uma interpelação ética da alteridade (Sidekum, 2013Sidekum, A. (2013). Alteridade e Subjetividade em E. Levinas. Utopía y PraxisLatinoamericana, (Vol. 18, 60, p. 31-39). ). A filosofia de Lévinas é uma filosofia tanto sobre o dia a dia quanto da relação do sujeito com o mundo e com os Outros que faz importantes reflexões e indica novos caminhos para lidar com a alteridade (Araújo, 2014Araújo, I. C. (2014). Peter Schmid e Carl Rogers:Uma Aproximação à Alteridade Radical [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. Recuperado de Repositório Institucional da Universidade Federal do Ceará.http://repositorio.ufc.br/handle/riufc/12642
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).

Ludoterapia

O marco inicial da ludoterapia de orientação humanista ocorre com a publicação de Ludoterapia: a dinâmica interior da criança, de Virginia Mae Axline (1911-1988), em 1947, nos Estados Unidos. A ludoterapia se baseia no pressuposto de que o jogo é a maneira natural da criança se expressar (Axline, 1972Amatuzzi, M. M. (2008). Por uma psicologia humana (2ª ed.). Campinas: Alínea.) já que, por meio do lúdico, ela pode encontrar um meio de expressar os seus sentimentos e emoções (Barreto & Rocha, 2015Barreto, J. B. M., & Rocha, M. V. (2015). A Ludoterapia no Processo do Luto Infantil: Um Estudo de Caso. Pesquisa em Psicologia-anais eletrônicos, (p.7-14).). Dessa forma, tal modelo de terapia possibilita que a criança tenha as suas vivências terapêuticas brincando, pois a liberdade de brincar se relaciona diretamente aos problemas da criança (Axline, 1972Amatuzzi, M. M. (2008). Por uma psicologia humana (2ª ed.). Campinas: Alínea.).

A autora classifica a sua terapia como não diretiva, ou seja, é a criança quem direciona a ludoterapia. A não diretividade permite que o indivíduo seja ele mesmo, aceitando-se, bem como que o terapeuta reconheça e esclareça aquilo que a criança expressa por meio da reflexão. No lúdico, a criança pode expor os seus sentimentos sem receios, conscientizando-se deles, esclarecendo-os, enfrentando-os e até mesmo aprendendo a controlá-los ou a esquecê-los.

A importância da ludoterapia é dada quando Axline (1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: a dinâmica interior da criança.Belo Horizonte: Interlivros.) afirma que uma criança psicologicamente livre pode crescer de maneira mais construtiva e criativa em relação àquela que aplica as suas energias em uma luta para atingir o status de pessoa. Embora inicialmente a sua discussão sobre a ludoterapia se dê no âmbito da terapia individual, Axline (1972Amatuzzi, M. M. (2008). Por uma psicologia humana (2ª ed.). Campinas: Alínea.) enfatiza que os princípios sobre os quais discorre também se aplicam a grupos. Para a autora, os grupos são experiências terapêuticas com elementos realistas e em que se inserem elementos de avaliação e reação simultâneos. A partir da convivência, a criança passa a reconhecer as reações das outras crianças, desenvolvendo, assim, o respeito aos sentimentos destas. Contudo, a ludoterapia ainda parece apresentar algumas lacunas filosóficas, quiçá éticas, no que diz respeito à relação do Eu com o Outro.

Ludoterapia e Ética

Moldadas à modernidade em muitos sentidos, as psicoterapias infantis acabam por se configurar como testes ou avaliações que dificultam a aceitação da diferença pelas crianças (Aguiar, 2004Aguiar, E. (2004). Desenho livre infantil: leituras fenomenológicas. Rio de Janeiro: Editora E-papers.). O psicólogo necessita repensar as suas práticas de cuidado, pois se encontra diante de um dilema ético quando é confrontado com as demandas de adaptação da criança e de seus familiares (Mattar, 2015Mattar, C. M. (2015). A criança e a Família: Aspectos Históricos e Dilemas Contemporâneos. In Feijoo, A. M. & Feijoo, E. L. (Orgs), Ser Criança: uma compreensão existencial da experiência infantil (pp. 13-33). Rio de Janeiro: Editora Ifen.). Não somente a infância é reduzida a conceitos dogmáticos, mas as crianças crescem isoladas daquilo que aponta para a falta. Para Souza (2017Souza, J. C. (2017). Corporeidade e Infância: Tensões Literárias Carregadas de Preconceitos ou de Alteridade. Annales Faje, (Vol. 2, 1, p. 127-134). , p. 128), as crianças na contemporaneidade “carecem de marcas que as ajudem a reconhecer a outra pessoa, em sua diferença: marcas de alteridade” .

Ir de encontro à criança durante o atendimento implica lidar, de forma ainda mais contundente do que em adultos, com a alteridade radical absoluta. Afinal, a sua forma de chegada é única - com parâmetros construídos a partir de mundos de fantasia e da comunicação lúdica - e exige não só assimetria, mas também que o psicoterapeuta esteja aberto ao inesperado. Foi a partir dessas considerações sobre a ludoterapia que encontramos alternativas para pensar e resolver as possíveis lacunas éticas dos conceitos de pessoa e infância e das relações da criança com a sociedade, bem como sobre a forma com que tais aspectos se apresentam e influenciam tanto a teoria quanto a prática da ludoterapia.

Brito (2012Brito, R. A. C. (2012). A criança Como Outro: uma leitura ética da ludoterapia centrada na criança [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. Recuperado de Repositório Institucional da Universidade Federal do Ceará.http://repositorio.ufc.br/handle/riufc/6811
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) alerta que a abertura à alteridade deve ser feita em um desalojamento e enfatiza a relevância de entender a ludoterapia a partir da ética de Lévinas, pois a proposta de abordagem do filósofo vai além de definir sintomas ou diagnósticos; a proposta intenta que o profissional se aproxime da pessoa enquanto ser. O elemento central na ludoterapia é, portanto, a abertura à criança em sua alteridade. Além disso, o terapeuta não deve perder de vista que algo sempre irá escapar nessa relação.

A autora ressalta ainda que, para ser uma resposta ao chamado da criança, o terapeuta precisa sair do lugar comum da comunicação adulta e adentrar o discurso singular infantil por meio de um processo traumático de reconfiguração, uma vez que para a criança em atendimento, o terapeuta é um Outro. Na terapia em grupo, isso se acentua na medida em que as crianças são Outros entre si. Neste sentido, faz parte da responsabilidade do terapeuta possibilitar que a criança experiencie e desenvolva a sua habilidade de resposta aos Outros. Para tanto, o espaço da terapia deve também se tornar um espaço de aprendizagem significativa que possibilite a criança a aprender a partir das suas vivências. Além disso, se a criança, como exemplifica a autora, bate no terapeuta - ou nos pares, em terapias grupais -, a resposta a ser dada a ela vai além dos limites do atendimento, pois é da ordem do social.

Seguir a criança em sua brincadeira permite ao terapeuta explorar o modo como a criança quer revelar a si mesma, assim como participar das suas fantasias, abrindo-se a ela, é uma forma do terapeuta estar disponível a escutar o mundo que a criança quer mostrar. Assim, “o encontro com a criança, mais que com o adulto, é um encontro com o diferente […] Tudo que podemos ser neste encontro é disponibilidade e vulnerabilidade […]” (Brito, 2012Brito, R. A. C. (2012). A criança Como Outro: uma leitura ética da ludoterapia centrada na criança [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. Recuperado de Repositório Institucional da Universidade Federal do Ceará.http://repositorio.ufc.br/handle/riufc/6811
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, p. 112).

No ambiente terapêutico grupal, a criança descobre a sua singularidade nas responsabilidades mútuas, que são caminhos abertos para ela ter liberdade de se constituir. No grupo, as crianças aprendem a olhar para o Outro e, dessa forma, também descobrem quem são e quem querem ser, sem julgamentos ou pressa. De forma geral, Brito (2012Brito, R. A. C. (2012). A criança Como Outro: uma leitura ética da ludoterapia centrada na criança [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. Recuperado de Repositório Institucional da Universidade Federal do Ceará.http://repositorio.ufc.br/handle/riufc/6811
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) estrutura os principais pontos da ludoterapia a partir da ética levinasiana:

A criança que chega para o atendimento é vista a partir de sua alteridade absoluta, ou seja, a criança como Outro. O terapeuta é intimado a responder ao chamado da criança, em sua diferença que remete ao Infinito. Essa resposta é vista como responsabilidade, maior que um entendimento ou uma compreensão, é da ordem do desalojamento, da afetação, do ser tocado pela diferença da criança. O compreender aqui é para além ou para aquém de uma racionalidade (Brito, 2012Brito, R. A. C. (2012). A criança Como Outro: uma leitura ética da ludoterapia centrada na criança [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. Recuperado de Repositório Institucional da Universidade Federal do Ceará.http://repositorio.ufc.br/handle/riufc/6811
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, p. 128).

Assim, a autora aponta que, partindo de uma leitura crítica da ludoterapia, podemos nos deparar com o Rosto da criança, sendo este o espaço para a chegada desalojadora da alteridade radical, por meio de uma posição ética de abertura à diferença. Nesse sentido, a quebra do ato de totalização da criança se dá ao olhá-la como Infinito, o Outro absoluto, um ser transcendente que se afasta infinitamente das nossas ideias. Para que seja possível responder à criança, é preciso, no entanto, que o psicoterapeuta se submeta ao trauma da chegada e do chamado da criança, bem como que se sujeite a ser afetado por ela e desabrigado do seu lugar de conhecimento prévio. Em outras palavras, precisa-se dar espaço a qualquer aspecto que a criança venha a revelar compreendendo que, na relação com o Infinito, que se apresenta pelo Rosto da criança, algo sempre escapará. Como Outro, uma alteridade absoluta, a criança se apresenta em uma faixa etária diferente, com parâmetros distintos dos adultos e vivendo em um universo maleável e imaginativo que requer disponibilidade para o imprevisível.

A proposta de olhar para a ética na ludoterapia é, portanto, a proposta de uma abertura radical por parte do profissional. É necessário que o ludoterapeuta se afaste da esfera do Mesmo e do seu conhecimento de experiências de comunicação adulta a fim de receber, muitas vezes por vias estranhas e traumáticas, a fala da criança.

Caminho metodológico

Esta é uma pesquisa de natureza qualitativa que se estruturou em um estudo de caso exploratório observacional. A metodologia do estudo de caso possibilita uma perspectiva holística do mundo real, além de ter aspectos contextuais que contribuem para uma compreensão mais detalhada de fenômenos complexos (Yin, 2015Yin, R. K. (2015). Estudo de Caso: Planejamento e Métodos. São Paulo: Bookman editora.).

A terapia foi desenvolvida durante o estágio do curso de graduação de Psicologia e teve a participação de três crianças com idades entre 5 e 7 anos. O critério de seleção dos participantes foi a idade das crianças da lista de espera de uma Clínica-Escola de Psicologia de uma universidade federal, onde transcorreu a terapia. Foram considerados como critérios de inclusão: não possuir mais de dois anos de diferença de idade em relação a uma média de 6 anos; autorização formal - verbal e escrita - dos responsáveis legais. Como critérios de exclusão foram considerados: crianças que desistiram da terapia há menos de dois meses do momento da pesquisa; crianças que não se adaptassem à terapia grupal; crianças que não aceitassem participar, a partir da explicação da pesquisa e da entrega do termo de assentimento em linguagem lúdica, independentemente do consentimento dos responsáveis legais.

Como recurso metodológico, utilizou-se a Versão de Sentido (VS), definida por Amatuzzi (2008Amatuzzi, M. M. (2008). Por uma psicologia humana (2ª ed.). Campinas: Alínea., p.76) como:

[…] um relato livre, que não tem a pretensão de ser um registro objetivo do que aconteceu, mas sim de ser uma reação viva a isso, escrito ou falado imediatamente após o ocorrido, e como uma palavra primeira. Consiste numa fala expressiva da experiência imediata de seu autor, face a um encontro recém-terminado.

É interessante destacar que Vieira, Bezerra, Pinheiro e Branco (2018Vieira, E. M., Bezerra, E. D. N., Pinheiro, F. P. H. A., & Branco, P. C. C. (2018). Versão de sentido na supervisão clínica centrada na pessoa: alteridade, presença e relação terapêutica. Revista Psicologia e Saúde, (Vol. 10, 1, p. 63-76). ) descrevem a VS como um “exercício pelo qual o psicoterapeuta aprende a se abrir para sua própria diferença - por vezes, inaceitável, num primeiro momento” (p. 72).

Para a captura do atendimento, foi utilizada a triangulação de fontes (Sanches & Santos 2005Sanches, P. R., & Santos, M. A. (2005). Considerações gerais e orientações práticas acerca do emprego de estudos de caso na pesquisa científica em Psicologia. Interações, (Vol. X, 20, p. 109-126). ), que consiste na consulta a diferentes bases de informações, a saber: observação participante, com descrições, em narrativa em primeira pessoa, referentes aos atendimentos psicoterapêuticos grupais; VS da terapeuta, escritas imediatamente após os atendimentos e/ou aos encontros de supervisão; anamneses com o(s) responsável(is); entrevistas/devolutivas com o(s) responsável(is); entrevistas com a equipe profissional da escola dos participantes; entrevistas com os demais profissionais de saúde que acompanhavam as crianças.

Inicialmente, foi feito contato por telefone com os responsáveis legais das crianças para marcar a anamnese. As anamneses, bem como os atendimentos a posteriori, foram todos realizados na clínica-escola. A terapia grupal se realizou semanalmente e cada sessão teve duração de aproximadamente uma hora. Os encontros de devolutivas com os pais foram realizados regularmente, bem como visitas escolares e encontros com os profissionais da saúde - como fonoaudiólogas e neuropediatras - que acompanhavam as crianças participantes.

Após as sessões terapêuticas, eram escritas, imediatamente, as Versões de Sentido. Também foram realizadas narrativas livres do atendimento e registros, que eram posteriormente discutidos no grupo de supervisão com a docente orientadora e os demais estagiários de psicoterapia fenomenológica-humanista. Após tais reuniões, também foram escritas Versões de Sentido.

Os dados deste estudo foram organizados em descrições dissertativas e, posteriormente, foram realizadas leituras e interpretações tanto individualmente quanto no grupo de supervisão/pesquisa. Os resultados foram compreendidos enquanto manifestações da experiência vivida (Amatuzzi, 2008Amatuzzi, M. M. (2008). Por uma psicologia humana (2ª ed.). Campinas: Alínea.) e, durante a terapia grupal, à luz da fundamentação teórica apresentada, buscou-se interpretá-los e lhes conferir significados.

Tomou-se a Resolução nº510/2016Resolução n. 510, de 7 de abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais. Diário Oficial da União , ( 98). do Conselho Nacional de Saúde como base para todos os procedimentos. Assim, os participantes e os responsáveis foram devidamente esclarecidos do caráter voluntário da pesquisa e tiveram a liberdade de interromper o processo a qualquer momento sem quaisquer penalidades. Foi entregue o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) aos responsáveis, a fim de lhes esclarecer tanto sobre o objetivo da pesquisa quanto a garantia do anonimato dos participantes. Além disso, foi entregue um Termo de Assentimento às crianças esclarecendo os aspectos da pesquisa em caráter lúdico e adequado às suas idades. A pesquisa, bem como os seus procedimentos e instrumentos, foi submetida ao Comitê de Ética e aprovada por meio do parecer nº3.065.075.

Estudo de Caso

O grupo terapêutico era formado por três crianças de 5 a 7 anos, dois meninos e uma menina: Gabriel, Miguel e Débora4 4 Nomes fictícios. . Os encontros eram realizados às segundas, das 8h30 às 9h30, com assiduidade das crianças participantes. A terapia se deu em 14 sessões ao todo. No primeiro contato, foi informado às crianças o tempo que teriam e que, faltando 10 minutos para o fim da sessão, um despertador iria tocar. Ao fim do tempo, o despertador tocaria de novo e seria a hora de sair. Foi explicado às crianças que elas estavam em terapia, porque os pais acreditavam que elas estavam tendo alguns problemas e que a terapia poderia ajudá-las. Também lhes foi dito que ali elas poderiam fazer o que quisessem, quando quisessem.

Indo além do pensamento de Axline (1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: a dinâmica interior da criança.Belo Horizonte: Interlivros.), esta pesquisa considerou ser de extrema importância a realização regular de anamneses, devolutivas, entrevistas com outros profissionais e visitas escolares. Brito (2012Brito, R. A. C. (2012). A criança Como Outro: uma leitura ética da ludoterapia centrada na criança [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. Recuperado de Repositório Institucional da Universidade Federal do Ceará.http://repositorio.ufc.br/handle/riufc/6811
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) destaca a importância do ludoterapeuta trabalhar em parceria com a família e com a escola para potencializar o processo terapêutico da criança.

Para um melhor entendimento do grupo, serão apontados alguns aspectos individuais de cada criança.

Gabriel

Gabriel, 5 anos, residia em uma casa com a mãe e outros seis parentes. O pai estava preso sob acusação de crimes sérios - entre eles, assassinato - à época da realização do processo terapêutico. Para a mãe, a personalidade de Gabriel se parecia com a do pai, pois se irritava facilmente. Gabriel tinha contato com o genitor, porém vinha evidenciando certa resistência em vê-lo e demonstrava agressividade durante as visitas prisionais.

A mãe de Gabriel procurou o serviço de psicologia se queixando, principalmente, da alimentação de Gabriel, que se recusava a comer e vomitava com frequência, inclusive ao ver outras pessoas comendo, exceto na escola. De acordo com a mãe, esses sintomas surgiram a partir dos três meses de idade. Gabriel fez acompanhamento por três anos com uma fonoaudióloga, mas apresentou pouca melhora. Ele foi examinado por diversos médicos e não apresentou nenhuma alteração biológica que poderia explicar as suas dificuldades em se alimentar.

Durante a terapia, percebeu-se que Gabriel demonstrava ter restrições emocionais e, em seu ambiente familiar, era muitas vezes tolhido em suas expressões. No encontro da terapeuta com a fonoaudióloga, esta relatou que Gabriel parecia não se alimentar como uma forma de desafiar os seus responsáveis.

Nas sessões iniciais, Gabriel pareceu adotar um papel de direcionamento em relação às outras crianças, mas não demonstrava muito dos seus próprios sentimentos. Por diversas vezes, provocava Miguel, com palavras e ações, até que este se irritava demasiadamente. Parecia que Gabriel, com tal comportamento, já dava mostras de certa retenção dos seus próprios sentimentos, assim como as suas ações pareciam esconder as suas emoções, como se não as pudesse demonstrar por ele próprio.

Miguel

A anamnese de Miguel, 7 anos, foi realizada com os seus pais adotivos. Ele era relativamente ciente da sua adoção. Miguel passou por três famílias antes de ser adotado pelos seus pais aos quatro meses e, quando receberam Miguel, ele estava com hematomas. O processo de adoção foi marcado por diversas complicações burocráticas. Os pais afirmaram que Miguel brincava sozinho e tinha dificuldade de manter amizades, pois brigava frequentemente com as outras crianças. Por vezes, ele perguntava à mãe: “você não vai embora e me abandonar?” e, às vezes, com raiva, dizia que iria procurar a mãe biológica. Os pais procuraram o serviço de psicologia com a queixa de que Miguel estava muito ansioso e não queria seguir regras. O comportamento de Miguel tomava proporções maiores na escola, o que o levou a ser encaminhado para um psicólogo e um neuropediatra, que acabou por prescrever o medicamento psicotrópico Risperidona.

Miguel demonstrou certos comportamentos agressivos já nas primeiras sessões. Na visita da terapeuta à escola, diversos profissionais descreveram Miguel como a “criança-problema”, chegando inclusive a ser ameaçado de expulsão. Miguel tinha comportamentos agressivos não só com os colegas, mas também com os professores, pois era repreendido. É interessante destacar que, em nenhum momento da terapia, Miguel foi agressivo com a terapeuta, ainda que tenha que ter sido contido fisicamente.

Nos momentos de raiva, Miguel mudava a expressão corporal imediatamente, inflando o peito e franzindo a testa. A terapeuta aprendeu a reconhecer tal movimento e a intervir no sentimento antes que este progredisse para agressão. Souza (2017Souza, J. C. (2017). Corporeidade e Infância: Tensões Literárias Carregadas de Preconceitos ou de Alteridade. Annales Faje, (Vol. 2, 1, p. 127-134). ) aponta que a linguagem da criança é, principalmente, corpórea. Sua comunicação exterioriza a imagem corporal a partir da postura, da expressão, do tônus e outros aspectos. A intervenção em Miguel, contudo, não se dava no sentido de barrá-lo; sua expressão era apenas mediada, de modo que ela não fosse danosa a ele, aos outros membros do grupo e à terapeuta.

No encontro com o neuropediatra, o profissional não se lembrava do caso de Miguel e afirmou que o remédio provavelmente foi prescrito devido aos problemas comportamentais de Miguel. Cabe ressaltar que o Risperidona é um medicamento que requer constante monitoramento clínico quando usado off-labelpara sintomas comportamentais e que faltam estudos sobre o seu uso em crianças menores de 13 anos (Santos Junior, 2015Santos Júnior, A. D. (2015).Farmacogenética dos efeitos adversos da risperidona em crianças e adolescentes [Tese de doutorado, UNICAMP]. Recuperado de Repositório Institucional da UNICAMP.http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/312990
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; Pande, Amarante, & Baptista, 2020Pande, M. N. R., Amarante, P. D. D. C., & Baptista, T. W. D. F. (2020). Este ilustre desconhecido: considerações sobre a prescrição de psicofármacos na primeira infância. Ciência & Saúde Coletiva, (Vol. 25, p. 2305-2314).). O pai de Miguel relatou, após o uso do remédio, um aumento de episódios de insônia e de enurese noturna.

A queixa sobre Miguel foi fundamentalmente comportamental, cuja agressividade foi demonstrada durante as sessões. A presença de outras crianças trouxe à tona sentimentos e atitudes que, talvez, não seriam trazidos em um contato individual. Miguel tinha momentos de grande irritação, às vezes súbitas, que emergiam principalmente em sua relação com Gabriel. Quando irritado, gritava e batia nos pares ou nos objetos espalhados pela sala.

Débora

Débora, 5 anos, era filha única, fruto de uma gravidez inesperada. De acordo com a mãe, Débora teve um início lento no processo de desenvolvimento e falou a primeira palavra após um ano de idade. A habilidade de formar frases só foi demonstrada após iniciar o tratamento com a fonoaudióloga, que a encaminhou para o serviço de psicologia. À época da anamnese, Débora prosseguia em acompanhamento fonoaudiológico e, embora mais bem articulada, continuava com dificuldades na dicção e em se comunicar. Débora foi descrita como introvertida e apegada aos pais, preferindo estar com eles a estar com outras crianças. Quando a mãe chorava, Débora também chorava e demonstrava desespero. Além disso, falava sobre ter medo de diversas coisas. Ao se sentir assustada, de acordo com os pais, Débora entrava em pânico.

A queixa dos pais de Débora estava centrada na sua dificuldade de fala e de socialização. Assim, Débora era uma das crianças mais propensas a se beneficiar da terapia em grupo. Para Axline (1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: a dinâmica interior da criança.Belo Horizonte: Interlivros.), a terapia de grupo é particularmente efetiva para crianças “tímidas” e que buscam autoafirmação, principalmente devido ao relacionamento, na terapia, com outras crianças. A dificuldade de comunicação também perpassa uma questão ética, afinal, o diálogo é onde o encontro acontece. A linguagem é sempre o meio de responder ao Outro (Sidekum, 2013Sidekum, A. (2013). Alteridade e Subjetividade em E. Levinas. Utopía y PraxisLatinoamericana, (Vol. 18, 60, p. 31-39). ) e a ampliação da experiência da percepção, não se limitando aos elementos perceptivos isolados, mas mostrando e interpretando o mundo (Carvalho, 2013Carvalho, J. M. (2013). Resenha: Humanismo do outro homem. Argumentos-Revista de Filosofia, (Vol. 5, 9, p. 329-334). ).

Lévinas (1980Lévinas, E. (1980). Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70.) aponta que a diferença absoluta se instaura por meio da linguagem, mas Débora aparentava ter pouca noção de diferenciação entre si e a mãe. Assim, é possível afirmar que a sua dificuldade de fala estava intrinsecamente ligada à sua dificuldade de se relacionar com os Outros.

O grupo

Em Lévinas (1985Lévinas, E. (1985). Ethics and Infinity: Conversations with Phillipe Nemo. Pittsburgh: DuquesneUniversity Press./2010), certa distância é colocada entre o eu e o Outro, e a questão ética exige trabalho, esforço e, consequentemente, dor. Além disso, não há adaptabilidade que seja plena na relação, pois o Outro precede e sempre excede o Eu. A primeira sessão da terapia em grupo foi marcada por uma afetação vivencial, pois as crianças utilizaram a liberdade da hora de terapia de maneira intensa, com gritos, brigas e bagunças. Tal afetação foi transcrita em uma Versão de Sentido, feita após a supervisão:

A alteridade das crianças veio como um furacão. Sabia, em teoria, que seria surpreendida, mas acho que não acreditei nisso de verdade. Fui verdadeiramente desalojada. Descrevi em supervisão como um trauma. Apenas agora que percebi a relação disso com o trauma de que trata Lévinas. Fui para a terapia racionalmente ciente, mas organismicamente alheia à realidade de que encontraria com a face de cada criança ali. Mas elas não deixaram passar. Nosso primeiro encontro me desalojou, me traumatizou e me tirou do meu lugar pré-concebido de terapeuta. Experienciei aquilo sobre o qual tanto li e não foi nada do que eu esperava. Mas percebo todas as relações que se fazem entre a minha vivência e a teoria. As crianças definitivamente me transbordaram. Eu me sentia perdida em algo que era maior que eu. Que é isso, senão o infinito? Que encontro traumático foi esse, senão com o Outro? Por que sinto medo, senão por mim mesma? Sinto medo pois fui retirada, de forma absoluta, do meu lugar de conforto. Meu trauma foi ressignificado e eu percebi que esse tinha sido um trauma ético (Versão de Sentido após supervisão, Sessão 1).

É importante que o terapeuta esteja atento aos seus próprios sentimentos durante o andamento da terapia. Durante os encontros, a terapeuta se sentiu frustrada com as agressões e as brigas que ocorriam constantemente entre as crianças. Ademais, também olhou para si, questionando o grupo e as suas habilidades enquanto terapeuta, como demonstram as Versões de Sentido:

Me sinto sem confiança no grupo (Versão de Sentido, Sessão 4).

Sou uma péssima terapeuta e não devo continuar nisso (Versão de Sentido, Sessão 7).

A terapeuta vivenciou aquilo que Vieira (2017Vieira, E. M. (2017).Ética e psicologia: uma investigação sobre os ethoi da terapia centrada na pessoa [Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais Recuperado de Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Universidade Federal de Minas Gerais.https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUOS-AQKMGT
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, p. 352) descreveu como “o enrijecimento técnico, ancorado no passado, cede[ndo] lugar ao inusitado do encontro, situado no presente”. Em vista disso, prossegue o autor, cabe ao terapeuta ir em direção ao desconhecido, ao Outro, sendo provocado por ele em sua incompletude. O objetivo desse caminhar não é conhecer ou tornar conhecido, mas sim experienciar a diferença e a afetação per si; […] “terapeuta e cliente se afetam mutuamente, ainda que em lugares distintos” (Vieira, 2017Vieira, E. M. (2017).Ética e psicologia: uma investigação sobre os ethoi da terapia centrada na pessoa [Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais Recuperado de Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Universidade Federal de Minas Gerais.https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUOS-AQKMGT
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, p. 353).

Em Lévinas (2010Lévinas, E. (2010). Entre nós: ensaios sobre a alteridade (5ª ed.). Petrópolis: Vozes.), o sofrimento desordena e é o próprio desordenamento. Estar com o Outro requer o deslocamento, a cisão e a modificação do Eu, que reconhece e vivencia o trauma e o excesso (Coelho Junior, 2008Coelho- Junior, N. (2008). Da fenomenologia à ética como filosofia primeira: notas sobre a noção de alteridade no pensamento de E. Lévinas. Estudos e Pesquisas em Psicologia, (vol. 8, 2, p. 213-223). ). A criança que chega para a terapia prontamente desfaz qualquer planejamento de processo terapêutico previamente elaborado pelo profissional (Brito, 2012Brito, R. A. C. (2012). A criança Como Outro: uma leitura ética da ludoterapia centrada na criança [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. Recuperado de Repositório Institucional da Universidade Federal do Ceará.http://repositorio.ufc.br/handle/riufc/6811
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). Neste sentido, a experiência foi demonstrando que a segurança enquanto pessoa e profissional não passa pelo saber prévio, mas por se permitir desconstruir, deslocar e reconstruir a si por meio do encontro com o inesperado, ainda que isto pareça contradizer pressupostos acerca do processo de terapia (Vieira, 2017Vieira, E. M. (2017).Ética e psicologia: uma investigação sobre os ethoi da terapia centrada na pessoa [Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais Recuperado de Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Universidade Federal de Minas Gerais.https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUOS-AQKMGT
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).

A ludicidade das sessões era o meio e o cenário em que as crianças se expressavam e elaboravam os seus conteúdos emocionais.

Quando o despertador tocou pela primeira vez, Gabriel gritou “Quer dizer que a gente tem pouco tempo! Vamos [gritando] brincar!” (Sessão 8).

A agressividade de Miguel e Gabriel foi perceptível através de brincadeirasem diversos encontros:

Gabriel e Miguel brigaram pelo resto da sessão, ora verbalmente, ora fisicamente […] Algumas vezes, eles chegaram a se agredir fisicamente (o que eu tive de intervir) ou então gritavam, com muita força, um com o outro (Sessão 7).

Quando a sessão estava perto de acabar, exclamaram sobre faltar pouco tempo e “aceleraram” a brincadeira. Os meninos pegaram os tapetes e começaram a “lutar” com eles. No entanto, Gabriel empurrou Miguel com mais força, que acabou batendo a cabeça na parede. Miguel olhou para mim e começou a chorar. […] Perguntei como eles estavam e Gabriel gritou com intensidade: “ brabo! brabo!” […] Gabriel começou a gritar e a falar coisas sobre Miguel novamente. Miguel tirou a sandália do pé e falou “isso aqui vai doer em você, você vai ver!”, Gabriel também tirou a sandália e ameaçou bater em Miguel (Sessão 10).

A relação entre Miguel e Gabriel era marcada por conflitos que moldavam a dinâmica grupal. Souza (2017Souza, J. C. (2017). Corporeidade e Infância: Tensões Literárias Carregadas de Preconceitos ou de Alteridade. Annales Faje, (Vol. 2, 1, p. 127-134). ) destaca que os conflitos que surgem nas brincadeiras infantis decorrem, por vezes, do fato de a criança ter os seus pensamentos e falas estruturados de maneira egocêntrica. Os dois, Gabriel e Miguel, tornaram-se muito próximos, tanto em conflitos quanto em brincadeiras. A partir dos pensamentos de Lévinas, a relação entre as duas crianças foi marcada por conflitos éticos: por um lado, havia a vontade de violência e de negar o Outro. Por outro, havia um desejo expresso pela proximidade:

Miguel correu para o tapete no canto da sala, colocou almofadas como “fortes” e declarou: “Eu vou ficar no meu mundo. Você (apontando para Gabriel) fica no seu mundo e você (apontando para Débora) fica no seu mundo. Eu vou ficar aqui sozinho no meu mundo, onde ninguém pode entrar”. Imediatamente após essa declaração, Gabriel falou “deixa eu ir pra o teu mundo”. Miguel, sem hesitar, respondeu que sim e abriu espaço para Gabriel entrar (Sessão 8).

Miguel primeiro informou que ali já era seu reino (foi o local onde ele havia feito o seu “mundo” na sessão passada); Gabriel disse que agora era seu e ele ia viver lá sozinho. Miguel afirmou, “mas, eu posso morar aí também, porque a gente é amigo” e Gabriel disse que sim, abrindo o portão-almofada (Sessão 9).

Débora, por sua vez, apresentou-se muito tímida nas sessões iniciais. Os embates de Miguel e Gabriel tomaram muito da atenção da terapeuta e, por isso, as interações com Débora foram poucas nas primeiras sessões.

Débora continuou a brincar sozinha com as bonecas (Sessão 1).

Débora continuou brincando de casinha só, mas algumas vezes ela parava e observava as outras crianças por um tempo. […] Disse a Débora que ela parecia estar tímida, mas ela negou (Sessão 2).

Contudo, gradualmente, Débora foi criando o seu espaço e se diferenciando na sua relação com os Outros. Ela passou a se colocar cada vez mais nas brincadeiras, falando de forma alta e assertiva, interagindo mais e se posicionando.

Miguel tentou colocar um boneco dentro de um carrinho e Débora passou a observar suas tentativas frustradas, até que falou: “coloca ele em pé”, porém Miguel não deu atenção. Eu pontuei: “parece que Débora está sugerindo uma forma de colocar o Hulk no carrinho… Mostra pra gente, Débora”. Nesse momento, pela primeira vez, ela sentou-se junto a Miguel. Começou a atacar os animais dele e o convocou para brincar de luta […] (Sessão 3).

Débora, falando alto, contou para o grupo que tinha visto uma cobra no zoológico. Narrou que “era muito grande, desse tamanhão aqui”, abrindo os braços (Sessão 5).

[…] Débora respondeu: “eu quero”; entendi errado sua fala e perguntei: “você também não quer mais brincar?”, mas ela repetiu alto e com força “eu quero!” e acrescentou “agora é minha vez, eu vou ser o lobisomem”, coisa que os meninos ditavam até então. […] Na hora de sair, Gabriel e Miguel entraram em uma rápida disputa corporal por quem sairia primeiro. Débora segurou minha mão, se colocou na frente deles e exclamou “eu vou primeiro!”; eles acabaram disputando o segundo lugar (Sessão 9).

Ainda que se prove desafiador, o transcorrer do tempo da terapia deve se dar sem pressa por parte do terapeuta de clarear os pontos obscuros da relação. O terapeuta deve, na verdade, demorar-se em ouvir as crianças, abrindo espaço para as suas estranhezas que podem, surpreendentemente, abrir novas possibilidades (Vieira, 2017Vieira, E. M. (2017).Ética e psicologia: uma investigação sobre os ethoi da terapia centrada na pessoa [Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais Recuperado de Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Universidade Federal de Minas Gerais.https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUOS-AQKMGT
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). Assim, embora os conflitos da experiência em grupo tenham sido experiências de sofrimento, inadequação e dor, eles possibilitaram resoluções de conflitos que as próprias crianças guiaram:

Conversavam enquanto pintavam […] Miguel e Gabriel emprestavam as tintas entre si. Quando um queria algo que o outro tinha, eles mesmo se organizavam em como podiam resolver isto. […] Um conflito entre quem ficava com qual massinha apareceu entre os meninos, porém eles resolveram de forma muito rápida, conversando. Dividiam-se em seus mundos e depois voltavam a compartilhar (Sessão 8).

Os momentos finais da sessão trouxeram as 3 crianças em brincadeiras separadas, ao mesmo tempo que interagiam, contudo sem competitividade ou rivalidade como vinha acontecendo até então. Gabriel brincou de misturar tintas na pia, afirmando que era veneno; Débora voltou a brincar com a casa. Miguel passeou entre as duas brincadeiras. Pegou um copinho de “veneno” e ofereceu maliciosamente a mim e a Débora. Brinquei perguntando se era seguro tomar, e ele respondia, sorrindo travesso, que era sim. Quando eu tomava, “morria”. Débora se recusou a tomar e Miguel a perseguiu afirmando que derrubaria nela, porém sem agressividade. Débora finalmente cedeu e também “morreu”, voltando a brincar com a casinha. Gabriel afirmou que faria café (misturando tintas escuras) e Miguel disse que parecia chocolate, então faria um bolo. Pegou uma panela, “misturou” o bolo e entregou a Débora, para que ela colocasse no forno da casinha (Sessão 11).

Retoma-se a importância dos encontros periódicos com os pais para o andamento das sessões, uma vez que nestes encontros o psicólogo assume um papel ativo, compreendendo e auxiliando os pais desde a entrevista inicial e, durante o processo terapêutico, dando-lhes devolutivas. Os encontros com os demais adultos envolvidos com as crianças também foram essenciais, afinal, “em certo sentido, todos os outros estão presentes no rosto de outrem” (Lévinas, 2010Lévinas, E. (2010). Entre nós: ensaios sobre a alteridade (5ª ed.). Petrópolis: Vozes., p.133).

De forma geral, Gabriel não abordou a sua questão alimentar nas sessões e, em respeito ao seu tempo, o assunto não foi tratado pela terapeuta. No decorrer da terapia, Gabriel pareceu demonstrar uma vazão maior de sentimentos, como a raiva, além de ter usado a liberdade que a sessão lhe dava de forma singular, por exemplo, bagunçando os brinquedos da sala. Sua maior expressão de sentimentos também acabou por implicar mudanças comportamentais. Na primeira devolutiva realizada com a sua mãe, ela contou que ele estava mais “mal-humorado”, chorando facilmente. Neste sentido, Vieira (2017Vieira, E. M. (2017).Ética e psicologia: uma investigação sobre os ethoi da terapia centrada na pessoa [Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais Recuperado de Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Universidade Federal de Minas Gerais.https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUOS-AQKMGT
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) aponta para a possibilidade de um crescente sentimento de desorganização durante o processo psicoterapêutico, destacando a desconstrução da criança em relação à imagem que ela previamente construiu de si, em uma relação de menos controle e mais aceitação da experiência.

Miguel, por sua vez, também se expressou em seus mais diversos sentimentos. O seu processo foi marcado pela presença de Gabriel, que o desafiava, mas Miguel se tornava muito mais dócil na ausência de Gabriel. O encontro com a alteridade promovia uma afetação conflituosa e desencadeava comportamentos agressivos. Contudo, os encontros trouxeram movimentos de aproximação. A presença de Gabriel, ainda que conflituosa, era uma provocação para a abertura cada vez maior de Miguel.

Quanto à Débora, as devolutivas com os seus pais eram sobre a maior desenvoltura social e linguística de sua filha. Conforme Axline (1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: a dinâmica interior da criança.Belo Horizonte: Interlivros.), alguns dos problemas de linguagem e comunicação parecem ser resolvidos ou melhorados na ludoterapia, já que muito comumente as confusões sentimentais da criança se refletem em dificuldades de fala. Débora participou cada vez mais das brincadeiras e as suas questões de socialização pareceram se desenvolver positivamente no encontro com os Outros. Ela também foi de encontro e, em embate ético, desenvolveu pessoalidade.

Valorizar a experiência do aqui e do agora é criar possibilidade para a técnica clínica emergir e se deparar com as diferenças que estão em jogo no contexto da terapia (Vieira, 2017Vieira, E. M. (2017).Ética e psicologia: uma investigação sobre os ethoi da terapia centrada na pessoa [Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais Recuperado de Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Universidade Federal de Minas Gerais.https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUOS-AQKMGT
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). O grupo em si é um caminho para a alteridade, visto que ele transcende a individualidade dos seus membros, tornando-se algo que não se pode totalizar. Estar diante do grupo foi uma experiência de avanços e desafios e em que se tentou ir em direção à criança por meio da abertura à sua diferença. Certamente, os conflitos e as dificuldades vivenciadas no grupo apontaram para o dinamismo da vida e a diferença entre os indivíduos, uma aprendizagem de que

Talvez haja mais compreensão e beleza na vida quando os raios ofuscantes do sol são suavizados pelos contornos das sombras. Talvez haja raízes mais profundas numa amizade que tenha enfrentado algumas tormentas. Uma experiência que nunca desaponta ou entristece, que nunca toca nos sentimentos, é uma vivência neutra, com pequenos desafios e variações de cor (Axline, 1980Axline, V. M. (1980). Dibs em busca de si mesmo. Rio de Janeiro: Agir., p.195).

Aponta-se, por fim, um aspecto primordial em toda a experiência: o brincar. Engana-se quem acredita que o lúdico significa trivialidade. Na verdade, não há nada mais sério do que uma criança brincando, pois na brincadeira estão representadas as dinâmicas da vida, as dificuldades e alegrias, a dor e o prazer do crescer. Ao entrar na brincadeira junto à criança, o psicoterapeuta não deve pretender apreender o mundo infantil, mas apenas cumprir com o seu dever ético de responder ao chamado absoluto da criança, o que pressupõe uma saída de si muito maior do que a necessária em terapias com adultos. O terapeuta infantil é, assim, retirado de um tempo sincrônico e inserido em uma diacronia com um passado-presente que não pode abarcar, mas que, através da criança, é permitido vivenciar. O terapeuta também deve sempre se manter atualizado em relação ao universo infantil de forma geral - brincadeiras, desenhos, filmes - para que possa manter uma comunicação mais espontânea com a criança.

Considerações finais

Não cabe demonstrar neste estudo os resultados objetivos e quantitativos da pesquisa a fim de provar se há ou não benefícios desse tipo de experiência terapêutica. Seguimos com Axline (1980Axline, V. M. (1980). Dibs em busca de si mesmo. Rio de Janeiro: Agir.), para quem a ampliação do horizonte interior da pessoa não pode ser medida por outro indivíduo. Podemos, contudo, falar do processo como um todo: a experiência pareceu caminhar rumo a uma maior abertura e proximidade nas relações entre os participantes do grupo. O desenvolvimento saudável e a autenticidade não dizem respeito a um estado único, mas sim sobre entrar em confronto constante com o estranho em si que remete à alteridade (Brito, 2012Brito, R. A. C. (2012). A criança Como Outro: uma leitura ética da ludoterapia centrada na criança [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. Recuperado de Repositório Institucional da Universidade Federal do Ceará.http://repositorio.ufc.br/handle/riufc/6811
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).

O chamado ético à responsabilidade é o ponto de onde deve partir toda discussão teórica e prática da psicoterapia, pois a convocação a “sofrer-com e sofrer-para” (Gantt, 2000Gantt, E. E. (2000). Levinas, psychotherapy, and the ethics of suffering. Journalofhumanisticpsychology, (Vol. 40, 3, p. 9-28). , p.12) o cliente é anterior a qualquer intervenção terapêutica; é um ato ético que vai além de uma técnica empática. Descobriu-se, de forma vivencial, que “ser eu é sempre ter uma responsabilidade a mais” (Lévinas, 2010Lévinas, E. (2010). Entre nós: ensaios sobre a alteridade (5ª ed.). Petrópolis: Vozes., p. 85) e que isto se acentua no papel de terapeuta.

Algumas limitações deste estudo podem ser registradas. A ludoterapia humanista ainda passa por evoluções. Por isso, pesquisas futuras podem ser mais abrangentes, integrando e expandindo o conhecimento. O ambiente físico também pode ser indicado como limitador, considerando que o espaço da sala utilizada para o grupo era relativamente pequeno, além da quantidade limitada de brinquedos. Porém, mesmo com limitações, tratar desses aspectos é assegurar que não haja determinismo (Vieira, 2017Vieira, E. M. (2017).Ética e psicologia: uma investigação sobre os ethoi da terapia centrada na pessoa [Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais Recuperado de Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Universidade Federal de Minas Gerais.https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUOS-AQKMGT
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), algo que se evita na práxis, uma vez que se trata de um lugar de liberdade e de encontro entre as instâncias universais e singulares.

Toda a teoria sobre a criança ou a infância é formulada por um pesquisador, alguém que já não é mais criança. Podemos encontrar marcos biológicos ou psicológicos passíveis de generalização que servem a estudos ou intervenções; porém, a condição de ser criança estará sempre muito além disso, pois cada uma tem a sua própria maneira de ser. Até podemos nos aproximar dessa alteridade distante, mas, com certeza, nunca conseguiremos descrevê-la exaustivamente.

Neste sentido, a experiência transcende o olhar do investigador. Por isso, a melhor maneira de se apreender a experiência seja talvez olhá-la junto às crianças, já que “a relação com o Infinito não é conhecimento, mas proximidade” (Lévinas, 2010Lévinas, E. (2010). Entre nós: ensaios sobre a alteridade (5ª ed.). Petrópolis: Vozes., p. 83). É apenas quando o psicoterapeuta se posiciona junto ao fenômeno do ser infantil que ele pode ter a chance de acessar algo desse universo. Assim, enquanto pesquisadores, devemos ter a consciência de que toda teorização será limitada e só terá significado no fomento ao respeito à alteridade da criança e no despertar no mundo adulto, por meio das experiências vividas na ludoterapia, as cores e a beleza da infância. Logo, este artigo buscou não só discorrer sobre a vivência com as crianças na experiência apresentada, mas também, e acima de tudo, apresentar que foi possível aprender e compartilhar conhecimentos com elas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2019
  • Aceito
    02 Set 2020
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