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A CLÍNICA PSICOLÓGICA COMO UM ESPAÇO DE DESVELAMENTO DAS DESIGUALDADES SOCIAIS

LA CLÍNICA PSICOLÓGICA COMO UN ESPACIO PARA DESVELAR LAS DESIGUALDADES SOCIALES

RESUMO.

Este estudo pretende colocar a clínica psicológica como um espaço de desvelamento das desigualdades sociais a partir da escuta de sujeitos excluídos através de plantões psicológicos. Percebe-se uma lacuna na literatura especializada em psicologia clínica que, geralmente, não vincula processos clínicos e processos psicossociais, mantendo um discurso hegemônico que pouco articula o psicológico, o social e o político. A Teoria Fundamentada nos dados, metodologia de natureza qualitativa, foi adotada nesse estudo. Através da análise qualitativa de diários de campos produzidos a partir de atendimentos do tipo plantão psicológico, foram geradas categorias que apontam para a fragilidade dos laços familiares e comunitários, os sofrimentos de ser tratado como inferior e a necessidade de ampliações de práticas clínicas com pessoas excluídas. As precariedades materiais e simbólicas vividas pelos sujeitos excluídos são reproduzidas nas suas redes relacionais e comunitárias como violências, opressões e vínculos fragilizados. A inclusão no lugar da inadequação e da inferioridade excluem os sujeitos da possibilidade de se perceberem como dignos e capazes de contribuir com a sociedade, gerando um apagamento de si mesmo. Houve a necessidade de uma prática clínica ampliada que levasse em consideração as vivências específicas de pessoas excluídas e que pudesse produzir novos encontros e novos afetos como contraponto às desqualificações cotidianamente recebidas. Na escuta de sujeitos de classes populares a equipe buscou sustentar a complexidade presente nos sofrimentos, focalizando não só suas questões subjetivas, mas também a produção social e histórica de suas vulnerabilidades.

Palavras-chave:
Prática clínica; subjetividade; exclusão social

RESUMEN.

Este estudio pretende incluir la clínica psicológica como un espacio para desvelar las desigualdades sociales a través de la escucha de sujetos excluidos con planton psicológico. Se percibe una ausencia en la literatura especializada en psicología clínica que, en general, no vincula procesos clínicos y procesos psicosociales, manteniendo un discurso hegemónico que poco articula problemas psicológicos, sociales y políticos. En este estudio se adoptó la Teoría Fundamentada, una metodologia cualitativa. Através del análisis cualitativo de los registros producidos com el material do planton psicológico, se generaron categorias que apuntan a la fragilidad de los lazos familiares y comunitarios, los sufrimientos de ser tratados como inferiores y la necesidad de ampliar las práticas clínicas con personas excluidas. La precariedad material y simbólica vivida por los sujetos excluidos se reproduce en sus redes relacionales y comunitarias como violencia, opresión y vínculos debilitados. La inclusión en lugar de inadecuación e inferioridad excluye a los sujetos de la posibilidad de percibirse a si mismos como dignos y capaces de contribuir a la sociedad, generando un debilitamiento de si mismos. Se notó la necesidad de una prática clínica ampliada que consideran las vivencias específicas de las personas excluidas y que puede producir nuevos encuentros y nuevos afectos como contrapunto a las descalificaciones diarias recibidas. En la escucha de sujetos de clases populares el equipo buscó sostener la complejidad presente en los sufrimientos, enfocando no sólo sus cuestiones subjetivas, sino también la producción social e histórica de sus vulnerabilidades.

Palabras-clave:
clínica; subjetividad; exclusión social

ABSTRACT

This study intends to place the psychological clinic as a space for unveiling social inequalities by listening to excluded subjects through the psychological on-call sessions. There is a gap in the specialized literature in clinical psychology that, generally, does not link clinical processes and psychosocial processes, maintaining a hegemonic discourse that barely articulates the psychological, social and political issues. The Grounded Theory, as a qualitative-interpretative methodology, was adopted in this study. The qualitative analysis of field diaries produced based on the psychological on-call sessions generated categories that point to the fragility of family and community bonds, the sufferings of being treated as inferior, and the need to expand clinical practices with excluded people. The material and symbolic precariousness experienced by excluded subjects are reproduced in their relational and community networks as violence, oppression and weakened bonds. Inclusion in place of inadequacy and inferiority excludes people from the possibility of perceiving themselves as worthy and capable of contributing to society, generating an erasure of themselves. There was a need for an expanded clinical practice that considered the specific experiences of excluded subjects, which could produce new encounters and affections as a counterpoint to the disqualifications received daily. In listening to popular classes people, the research team sought to sustain the complexity present in sufferings, focusing not only on their subjective issues but also on the social and historical production of their vulnerabilities.

Keywords:
Clinical practice; subjectivity; social exclusion

Introdução

A ciência pode representar uma possibilidade de esclarecimento do mundo onde vivemos, dos mecanismos sociais que encobrem as relações de poder e que reproduzem privilégios injustos e desigualdades sociais. Particularmente, as ciências humanas podem contribuir para desvelar aspectos invisíveis da ordem social, perfurando as camadas do óbvio e do evidente e denunciando relações de poder e de discriminação (Bauman, 2001Bauman, Z. (2001). Modernidade Líquida (P. Dentzien, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar.; Souza, 2015Souza, J. (2015). A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: Leya.). Numa sociedade profundamente desigual como a brasileira, a realidade das classes subalternas é invisibilizada pela difusão de uma visão liberal de sociedade através da ideologia da meritocracia. Os sucessos e fracassos dos sujeitos são percebidos independentemente de análises sobre o acesso diferenciado à renda, ao capital cultural e à disposições como disciplina, autocontrole e raciocínio prospectivo, aspectos cultivados nas classes médias e altas. As classes populares são culpabilizadas pelo próprio fracasso, naturalizando a desigualdade social e encobrindo o caráter social e diferenciado da construção dos seres humanos, centrando somente no sujeito sua possibilidade de sucesso e de fracasso (Souza, 2015Souza, J. (2015). A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: Leya.).

Nesse contexto, este trabalho tem como objetivo colocar a clínica psicológica como espaço de desvelamento das desigualdades sociais brasileiras através da escuta do sofrimento e dos afetos que circulam no espaço clínico com sujeitos excluídos. Geralmente os estudos sobre pobreza enfocam mais as questões de privação material, sendo necessário lançar luz sobre os aspectos subjetivos e psicossociais que se manifestam nas vidas precarizadas. Como se as classes populares tivessem somente a sobrevivência imediata como norte e fossem “dessubjetivadas”, como se também não passassem por impasses e sofrimento subjetivo. Os sujeitos das classes populares, para além da carência material, não são reconhecidos como sujeitos, são estigmatizados através de estereótipos que desumanizam e que autorizam afetos de medo ou desprezo e justificam violências (Jodelet, 2011Jodelet, D. (2011). Os processos psicossociais da exclusão. In B. Sawaia, (Org), As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social (11ª ed., Cap. 3, pp. 55-67). Petrópolis: Vozes.). Nesse sentido, como aponta (Sawaia, 2011Sawaia, B. (2011). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social (11ª ed.). Petrópolis: Vozes., p. 101), "os brados de sofrimento evidenciam a dominação oculta em relações muitas vezes consideradas como parte da natureza humana". A autora aponta o sofrimento ético-político como a dor surgida nas situações sociais de ser tratado como subalterno, sem valor e inferior. Escutar este sofrimento na clínica ampliada pode servir como campo de análise das questões sociais contemporâneas de espoliação humana, da desigualdade social e das inúmeras injustiças presentes no Brasil.

Na ausência de articulação entre processos clínicos e processos psicossociais, de um entrelaçamento entre o psicológico, o social e o político, a psicologia pode contribuir para o ocultamento das dominações e opressões. Por ser uma ciência constituída na Modernidade, a psicologia também foi pautada pela busca do controle e da ordem e, por isso, percebe-se ainda um discurso hegemônico a partir de uma concepção de subjetividade universal, que desconsidera o contexto social, prescrevendo estágios de desenvolvimento. O caráter corretivo/normativo das psicologias tradicionais se manifesta na determinação de modos de vida diferentes da norma como passíveis de correção ou tratamento (Huning & Guareschi, 2005Hunning, S. M.,& Guareschi, N. F. (2005). Problematizações das práticas psi: articulações com o pensamento foucaultiano. Athenea Digital, Barcelona, (Vol. 8, 1, p. 95-108).).

Os fundamentos empíricos do trabalho se constituem a partir de um projeto de pesquisa-intervenção realizado numa instituição de apoio de uma cidade de aproximadamente 100 mil habitantes de um Estado da região Centro-Oeste do Brasil. A equipe executora foi constituída por um conjunto de discentes e um docente coordenador, pertencentes ao curso de psicologia de uma universidade federal. O local de realização das intervenções é um estabelecimento filantrópico, que se propõe como uma casa de apoio, dirigido por pessoas ligadas a instituições religiosas, que presta cuidados como alimentação (café da manhã e almoço), local para higienização pessoal e estrutura para higienização de roupas, fornecimento de roupas e sapatos e realização de palestras educativas. O público-alvo é constituído por moradores de rua, andarilhos, "trecheiros" (pessoas que percorrem trechos, de cidade em cidade), desempregados e trabalhadores de baixa renda como garis. A equipe ofertou atendimentos psicológicos do tipo Plantão Psicológico, de segunda à sexta, de 10hs às 12hs, horário de maior circulação no estabelecimento. Além do acolhimento, o plantão psicológico é um tipo de escuta que amplia a clínica psicológica por ser uma modalidade inserida em instituições ou nas comunidades. Desta forma, a dimensão social dos discursos é realçada, assim como a rede de relações dos sujeitos. A rede de equipamentos de cuidados do território são aspectos constantes de atenção dos plantonistas. O acolhimento pontual, diferente da escuta processual da psicoterapia, convoca o clínico a estar aberto ao inesperado, mobilizando ações singulares, apostando na potência dos sujeitos, para além de uma clínica da escuta do sofrimento somente (Scorsolini-Comin, 2015Scorsolini-Comin, F. (2015). Plantão psicológico e o cuidado na urgência: panorama de pesquisas e intervenções.Psico-USF, (Vol. 20, 1, p. 163-173). DOI: 10.1590/1413-82712015200115
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). Representa, portanto, uma intervenção clínico-política das urgências subjetivas.

Além da noção de uma subjetividade contextualizada, perpassada pelas práticas culturais e relações de poder, adotam-se nesse trabalho o conceito dialético de exclusão/inclusão (Sawaia, 2011Sawaia, B. (2011). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social (11ª ed.). Petrópolis: Vozes.) e a noção de vulnerabilidade social (Romagnoli, 2015Romagnoli, R. C. (2015). Problematizando as noções de vulnerabilidade e risco social no cotidiano do SUAS. Psicologia em Estudo, (Vol. 20, 3, p. 449-459). DOI: 10.4025/psicolestud.v20i3.28707
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). A análise dialética da exclusão/inclusão revela que a grande maioria da humanidade se encontra inserida de alguma forma no circuito de produção e reprodução do sistema econômico, apesar de tal inclusão se dar através de inúmeras privações. A inclusão precária e marginal na circulação e produção de bens responde à necessidade do capital de reprodução mais eficiente e barata, em tempos de capitalismo neoliberal. Apesar da desigualdade social, o morador da favela e o rico são alvos, simultaneamente, das ficções das telenovelas e do bombardeio sedutor do consumismo (Veras, 2011Veras, M. P. B. (2011). Exclusão social - um panorama brasileiro de 500 anos. Notas preliminares. In B. Sawaia, (Org), As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social (11ª ed., Cap. 2, pp. 29-51). Petrópolis: Vozes.). Há, portanto, uma unificação ideológica, mas muitos não conseguem atender aos impulsos sedutores do mercado e não são considerados dignos ou decentes, permanecendo em estado de exclusão social (Bauman, 1998Bauman, Z. (1998). O mal estar da Pós-Modernidade (M. Gama & C. M. Gama, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar.).

Além disso, é importante pontuar que vivemos hoje, em nosso país, uma radicalidade cruel do neoliberalismo, como destaca Safatle (2020Safatle, V. (2020). Bem-vindo ao estado suicidário. São Paulo, Edições N-1.). Essa nova forma de violência estatal insiste em um modo fascista de governar, administra a morte e torna cada vez mais visível a mescla de capitalismo e escravidão, especificidade de nossa história, de nossos silêncios e da invisibilidade de vidas que podem morrer e também do ódio à pobreza. Essa nova tecnologia social se ampara na necropolítica, assim denominada por Mbembe (2018Mbembe, A. (2018). Necropolítica. São Paulo: N-1 edições.). Baseado na análise das colônias, esse autor estuda o sistema de plantation como primeiro modo de exercício biopolítico. A plantation, modelo de organização econômica em que se destacam quatro aspectos principais: latifúndio, monocultura, mão de obra escrava e produção voltada para o mercado externo, era mantida pela dominação e pelo aniquilamento, mantendo o terror e o inferno dos negros. Efeitos ainda mantidos em nossa sociedade contemporânea, sobretudo no que se refere à periferia do capitalismo. Ao estudar a violência urbana e sua relação com a juventude, Barros, Benício e Bicalho (2019Barros, J. P., Benicio, L. F. de S. & Bicalho, P. P. G. de. (2019). Violências no Brasil: que Problemas e Desafios se Colocam à Psicologia? Psicologia: Ciência e Profissão, (Vol. 39 (spe2), p. 33-44). DOI: 10.1590/1982-3703003225580
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) mostram como os jovens negros e pobres vêm sendo criminalizados e exterminados, demostrando que a lógica colonial se eterniza em nosso país. Vidas matáveis, vidas que não importam, como o público do projeto de pesquisa/intervenção aqui apresentado.

A noção de vulnerabilidade social é outro aspecto importante a ser considerado neste trabalho. Para Paulon e Romagnoli (2018Paulon, S. M. & Romagnoli, R. C. (2018). Quando a Vulnerabilidade se faz Potência. Interação em Psicologia, (Vol. 22, 3, p. 178-18)7.DOI:10.5380/psi.v22i3.56045
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), vulnerabilidade refere-se às condições desfavoráveis da exclusão social que diminuem a potencialidade de resposta frente a situações de riscos. Embora a vulnerabilidade não esteja diretamente ligada à pobreza, esta pode agravá-la e aumentar a exposição a diversos riscos. Alguns fatores como trabalhos precários ou desemprego, pouco acesso a serviços básicos, escassos suportes sociais e relações sociais frágeis, são aspectos que podem produzir vulnerabilidade (Romagnoli, 2015).

Ao estudar as pessoas em situação de pobreza, mais especificamente a interseccionalidade das mulheres negras, Moura, Barbosa, Sarriera, Segundo e Lima (2020Moura-Jr, J. F., Barbosa, V. N. M., Sarriera, J. C., Segundo, D. S. A., & Lima, A. A. S. (2020). Práticas interseccionais de discriminação contra mulheres negras: Um estudo sobre vergonha e humilhação. Revista Psicologia Política, (Vol. 20, 48, p. 262-278).) mostram como o reconhecimento social dessas subjetividades é baseado em aspectos depreciativos e culpabilizatórios da sua condição. E que a junção da pobreza com o racismo, destacada acima, agrava mais ainda esse processo de estigmatização. Vivemos hoje em nosso país uma culpabilização cada vez maior das pessoas em situação de pobreza, sobretudo pelo esvaziamento da responsabilidade estatal e social no combate a essa privação e o aumento da responsabilização do indivíduo realizada por pessoas que não estão situadas nesse contexto. Apesar de perceber as condições de vulnerabilidade e risco que os usuários apresentavam, da ‘não importância’ das vidas com as quais trabalhamos, a equipe buscou cultivar o cuidado das possíveis potências que podem surgir na vulnerabilidade e no encontro com o diferente. Essa prudência é necessária porque muitas das intervenções com populações vulneráveis resultam em relações de tutela, através de práticas assistencialistas e hierarquizantes, produzindo ainda mais assujeitamento e apassivamento em sujeitos excluídos.

Método

O presente estudo se insere no referencial epistemológico das pesquisas qualitativas em ciências sociais. A pesquisa qualitativa tem como foco a compreensão de casos particulares e não a formulação de leis generalizantes, para apreender os significados das experiências dos sujeitos a partir do contexto em que foram vividas (Goldenberg, 2004Goldenberg, M. (2004). A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em ciências sociais (8ª ed.). Rio de Janeiro: Record.). A Teoria Fundamentada nos dados foi adotada nesse estudo. Trata-se de uma metodologia de investigação qualitativa que direciona a coleta e a análise dos dados com vistas à construção de conceitos teóricos fundamentados nos próprios dados, em vez de se adotarem hipóteses preconcebidas (Charmaz, 2009Charmaz, K. (2009). A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa (J. E. Costa, Trad.). Porto Alegre: Artmed.).

Esta pesquisa buscou perfurar a superfície da vida subjetiva e social para tentar desvelar sentimentos, percepções, significados dentro dos contextos e estruturas de vida de brasileiros excluídos, sustentando esses atravessamentos sociais, na tentativa de associá-los com as questões subjetivas apresentadas. A ideia da equipe de pesquisa foi buscar possíveis manifestações da desigualdade e da injustiça social brasileiras no espaço clínico dos plantões psicológicos. Para a coleta de dados foram utilizados os diários de campo elaborados pelos plantonistas. Foram registros do material que emergiu no espaço das interações clínicas, como observações, registros das falas, sentimentos e elaborações do plantonista. Para cada atendimento clínico realizado foi produzido um diário de campo, gerando no total 219 diários de campo de plantões psicológicos, entre fevereiro de 2017 a dezembro de 2018. É importante mencionar que o artigo faz parte de um projeto aprovado em comitê de ética em pesquisa com o CAAE: 83273618.5.0000.5083.

A análise dos dados foi a etapa que se deu após a organização dos arquivos dos diários de campo. O procedimento de codificação foi realizado em cada diário de campo. Primeiro foi feita a codificação inicial, que seria o processo de nomear segmentos dos diários de campo com palavras ou pequenas frases que resumem e representam analiticamente cada parte dos dados. Os códigos iniciais gerados foram sistematizados numa tabela e orientaram as novas coletas de dados. Posteriormente, foi realizada a codificação focalizada, em que foram mantidos os códigos iniciais mais frequentes e significativos, além de um processo de refinamento de códigos parecidos para gerar códigos com maior poder explicativo (Charmaz, 2009Charmaz, K. (2009). A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa (J. E. Costa, Trad.). Porto Alegre: Artmed.). As categorias foram geradas a partir do agrupamento de códigos por semelhança temática e de pequenos textos para elaborar as definições destas categorias. Como resultado do percurso investigativo das manifestações da desigualdade social no espaço clínico dos plantões psicológicos, as categorias construídas foram: 1) laços familiares e comunitários frágeis como condição de vulnerabilidades; 2) a dor de ser visto como inferior, e 3) práticas clínicas ampliadas. No próximo item, estas categorias serão apresentadas e discutidas.

Resultados e discussão

Laços familiares e comunitários frágeis como condição de vulnerabilidades

No espaço de escuta, proporcionado pelos plantões psicológicos, foi possível perceber as vulnerabilidades e riscos a que estão expostos os sujeitos das classes populares. Embora a vulnerabilidade não seja condição exclusiva da pobreza, algumas condições de classe proporcionam maiores riscos e menos proteção para as pessoas das classes populares. Circulou nos plantões uma soma de vulnerabilidades diversas como socialização familiar precária, relações sociais frágeis, instabilidade no mercado de trabalho e uma gama de opressões e violências a que são alvo preferencial os sujeitos da classe baixa. Estas condições maltratam a vida e instalam sensações de incapacidade e percepção da própria vida como uma série de fracassos, gerando sofrimento subjetivo.

Nas interações clínicas foram narradas experiências de desamparo e abandono que os usuários sofreram na infância. Alguns acontecimentos provocaram a desintegração da família, como a morte do pai ou da mãe, ocasionando a ida dos filhos para famílias adotivas. "As crianças eram 'dadas' para outra família", assim diziam alguns usuários. Estas crianças ‘dadas’, que eram os usuários atendidos atualmente, sofreram maus tratos e abusos de diversos tipos. Analisando o funcionamento das famílias das classes populares, Sarti (2007Sarti, C. A. (2007). Famílias enredadas. In: Acosta, A. R & Vitale, M. A. Família: redes, laços e políticas públicas . (3 ed., Cap. 1, pp. 21-36). São Paulo: Cortez/IEC PUC-SP.) aponta que elas apresentam uma configuração em rede e é comum nas famílias com ruptura e separações, a circulação de crianças, com ativação dessa rede via coletivização das responsabilidades pelos menores. Usualmente é uma forma de organização que garante uma solução frente à sobrevivência, sustentada pela cumplicidade e pela solidariedade. Contudo, nos relatos colhidos nos plantões, percebemos marcas de violências nessas crianças.

As condições de classe social podem elucidar estas formações familiares frágeis. Souza (2017Souza, J. (2017). A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya.) aponta que o aspecto que mais singulariza a sociedade brasileira seria o abandono, o desprezo e o ódio aos pobres. Desde o fim da escravidão até os dias atuais, ocorreu um processo de abandono das classes populares no Brasil. Na época da escravidão, a formação de grupos familiares dos negros foi prejudicada, além de serem obstadas quaisquer tentativas de autonomia e independência dos escravos, embora esses impedimentos não tenham impossibilitado o surgimento de uma forte solidariedade entre eles. Ao contrário, fomentaram-na, como destaca Lobo (2015Lobo, L. (2015). Os Infames da História: Pobres, escravos e deficientes no Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Lamparina.), marca até hoje presente nas camadas populares. Os laços familiares e a independência dos negros poderiam ser fatores dificultadores da dominação destes grupos.

Os preconceitos escravocratas foram cultivados por todas as demais classes sociais e são atualmente dirigidos às classes populares, agora como preconceitos de classe. O descompromisso com o sofrimento do outro marca fortemente os processos de exclusão no Brasil (Sawaia, 2011Sawaia, B. (2011). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social (11ª ed.). Petrópolis: Vozes.). O ódio e o desprezo aos pobres permanece como um fator que dificulta a construção de sujeitos com autoconfiança, que possuem dificuldades em transmitir para os filhos afetos e incentivos para a competição social. O status marginalizado e a privação de poder provocam uma fragilidade nos laços familiares, como argumenta Jodelet (2011Jodelet, D. (2011). Os processos psicossociais da exclusão. In B. Sawaia, (Org), As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social (11ª ed., Cap. 3, pp. 55-67). Petrópolis: Vozes., p. 65): "a exclusão, limitando as chances sociais, provocaria desorganização familiar e comunitária, socialização defeituosa, perda dos sinais identificatórios, desmoralização, etc". Como a pobreza tem um estigma de desvalorização, os sujeitos pobres se vêm impelidos a viverem mais isolados para esconder seu status inferior. As humilhações segregam as pessoas dentro do próprio grupo social, fazendo com que as relações sejam distantes e sem possibilidade de sentimento de pertencimento de classe (Paugam, 2011Paugam, S. (2011). O enfraquecimento e a ruptura dos vínculos sociais. Uma dimensão essencial do processo de desqualificação social. In B. Sawaia, (Org), As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social(11ª ed., Cap. 4, pp. 69-88). Petrópolis: Vozes.). Portanto, estes fatores de estigmatização das classes populares atravessam a formação de laços familiares e comunitários.

No espaço clínico circularam diversos relatos sobre esta fragilidade dos grupos familiares muitas vezes produzida na própria relação com a sociedade, o que nos faz pensar nos efeitos da exclusão social e da desigualdade nas subjetividades. Muitos usuários relataram que sofreram abusos sexuais ou que presenciaram cenas de violências quando eram crianças. Um usuário relatou que foi expulso de sua casa por sua mãe e irmãos e afirmou que gosta de ficar sozinho e que não confia em ninguém. Ele disse que tem três filhos, mas não tem contato com eles. Disse que ‘ninguém sente falta do que nunca teve’, quando a plantonista pergunta se ele gostaria de estar perto dos filhos. O abandono na infância pode produzir uma dificuldade de vinculação na vida adulta. Uma usuária que perdeu os pais aos nove anos, atualmente tem cinco filhos que foram entregues por ela para outras famílias. Além disso, não tem vínculo com outros familiares, o que é uma desproteção uma vez que a família, como nos lembra Sarti (2007Sarti, C. A. (2007). Famílias enredadas. In: Acosta, A. R & Vitale, M. A. Família: redes, laços e políticas públicas . (3 ed., Cap. 1, pp. 21-36). São Paulo: Cortez/IEC PUC-SP.), é definida por quem se pode contar e por quem se pode confiar. Este é um valor central nesse estrato social, uma vez que o grupo emerge como fonte de apoio e ajuda frente ao desamparo social e à necessidade de sobrevivência. Como as classes populares são abandonadas e alvo de repulsa e ódio por parte das outras classes, os sujeitos marginalizados tendem a reproduzir dentro da família, com frequência, este contexto de ódio e desprezo, embora este seja seu núcleo de ajuda (Souza, 2015Souza, J. (2015). A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: Leya.). A vinculação na família fica comprometida e os mais frágeis são os mais atingidos.

O sentimento de solidão e a falta de perspectivas existenciais foram relatados como uma sensação de não pertencimento e de inadequação e de se perceberem como sem futuro. Alguns se sentem culpados pelas situações de precariedade material e isolamento social. No caso brasileiro, todas as outras classes buscam se distinguir moralmente como superiores em relação às classes populares, além de explorarem sua mão de obra a preços baixos. Para que este quadro injusto e desigual se mantenha, é necessário naturalizar as diferenças, sustentando ideias meritocráticas que sugerem uma individualização dos fracassos. A capacidade de concentração e o planejamento do futuro, por exemplo, são aspectos cultivados nas classes médias e altas, o que produz uma diferença em relação às possibilidades de sucesso no mercado de trabalho (Souza, 2017Souza, J. (2017). A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya.). Estas facilidades diferenciais das classes privilegiados são invisibilizadas pela visão liberal de sociedade dominante na ordem vigente, marcadamente na noção de meritocracia. A combinação de capitalismo e escravidão é uma característica que marca a história brasileira e que ainda permanece decidindo quais são as vidas indignas (Safatle, 2020Safatle, V. (2020). Bem-vindo ao estado suicidário. São Paulo, Edições N-1.). A gênese histórica e social destes processos é camuflada pelo ideário neoliberal e esta depreciação é vivida pelos sujeitos excluídos como se fosse algo da ordem do individual.

A estigmatização da pobreza exclui moralmente as classes populares através de uma desumanização que legitima a expressão do desprezo e justifica as violências contra este segmento (Jodelet, 2011Jodelet, D. (2011). Os processos psicossociais da exclusão. In B. Sawaia, (Org), As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social (11ª ed., Cap. 3, pp. 55-67). Petrópolis: Vozes.). Além de termos um movimento contemporâneo de forte individualização, no qual cada sujeito é compelido a buscar soluções individuais para questões socialmente produzidas (Bauman, 2001Bauman, Z. (2001). Modernidade Líquida (P. Dentzien, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar.). Os sujeitos das classes populares abandonadas e odiadas acabam se culpando pelo seu destino que foi cultivado histórica e socialmente. Um usuário disse que faz uso de crack nos dias em que a culpa pelos erros cometidos no passado o assombra. A dependência química é um mecanismo de automedicação para lidar com a solidão e a falta de perspectivas futuras. Os sujeitos que recebem as mensagens de rebaixamento possuem poucos recursos para contestar as humilhações, pois têm poucos canais de expressão do sofrimento social. Desta forma, são capturados pelas identidades em que são inscritos como relativas à inutilidade, vagabundagem e ameaça à ordem (Delfin, Almeida & Imbrizi, 2017Delfin, L., Almeida, L. A. M.,& Imbrizi, J. M. (2017). A rua como palco: arte e (in)visibilidade social. Psicologia & Sociedade, (Vol. 29, 01, p. 1-10). DOI: 10.1590/1807-0310/2017v29158583
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). As reiteradas mensagens de desprezo que a sociedade dirige às classes populares, articulada com as perspectivas individualizadoras contemporâneas, fazem com que os excluídos se percebam de forma desqualificada e se culpem pelas próprias privações. Movimento que também pode ser feito pelos próprios clínicos ao desconsiderarem essas questões.

A vida maltratada pode gerar fragilidades e vulnerabilidades. Alguns usuários frequentavam também a rede de atenção psicossocial do município. Eles se apresentaram através de diagnósticos psicopatológicos e suas falas eram fragmentadas e confusas. Vivências delirantes foram narradas e pareciam ter conexão com a exclusão social vivida, ou seja, questões sociais muito presentes e geraram efeitos nessas subjetividades. Por exemplo, um usuário muito frequente nos plantões e que sofreu abandonos e rejeições durante toda a vida, dizia que estava se transformando em uma mulher e que já tinha como marido um fazendeiro rico que lhe dava presentes e dinheiro. Outra identidade parecia ser um recurso para lidar com o vazio do não pertencimento. Este usuário apresentou ideação suicida, além de ter relatado episódios em que tentou suicídio, talvez pela percepção da própria vida como uma sucessão de fracassos. Uma usuária, que se apresentou com diagnóstico de depressão grave, disse que perdeu a alegria que um dia já sentiu e que não sabia quando isso aconteceu. Portanto, estes sintomas psicopatológicos que se manifestam individualmente, na verdade expressam condições sociais relativas à soma de vulnerabilidades diversas. Relações sociais frágeis ou ausentes, acesso precário a políticas públicas, desemprego ou baixa renda, condições básicas de vida insuficientes, são fatores que diminuem as possibilidades de enfrentamento de situações de risco (Romagnoli, 2015Romagnoli, R. C. (2015). Problematizando as noções de vulnerabilidade e risco social no cotidiano do SUAS. Psicologia em Estudo, (Vol. 20, 3, p. 449-459). DOI: 10.4025/psicolestud.v20i3.28707
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). A escassa proteção social pode ser fator produtor de depressões e psicoses, para além de serem condições relativas somente a predisposições individuais. Neste sentido, (Sawaia2011Sawaia, B. (2011). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social (11ª ed.). Petrópolis: Vozes., p. 100) argumenta que "é o indivíduo que sofre, porém, esse sofrimento não tem a gênese nele, e sim em intersubjetividades delineadas socialmente", elemento importante para se levar em conta em uma clínica com pessoas de classes populares.

O uso problemático de álcool e outras drogas foi um tema recorrente no espaço clínico. As dificuldades de vinculação com o mundo do trabalho e a deterioração dos vínculos foram aspectos vivenciados na instalação progressiva da dependência química. Muitos usuários narraram com muito pesar as perdas gradativas de bens materiais e de relações significativas com a progressão no uso de drogas e álcool. Um usuário com problemas de dependência química disse que não tinha responsabilidade para conseguir manter um emprego. O uso problemático de drogas e álcool é visto pelos usuários como um problema moral e não uma questão de saúde. Em decorrência disso, julgam a si mesmos, se inferiorizam e se percebem como ‘vagabundos’ ou irresponsáveis. O uso abusivo de drogas pode ser uma automedicação para lidar com as rejeições sofridas e exclusões, estando inscrito na dimensão social. Tanto a estruturação da própria vida numa realidade delirante quanto o uso de álcool e drogas são formas de escapismos de sujeitos que se vêm como sem futuro ou que vivem uma sensação de falta de sentido advinda dos vínculos rompidos (Souza, 2017Souza, J. (2017). A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya.).

A escuta do sofrimento de sujeitos de classes populares convoca o clínico para pensar as questões que se manifestam no sujeito individual como expressões de questões sociais mais amplas. A fragilidade dos laços familiares e sociais, a dependência química, as questões de saúde mental requerem leituras que contextualizem estas manifestações inseridas num contexto social de vulnerabilidades decorrentes do pertencimento de classe, de discriminação social e racial. O contrário seria o exercício de uma clínica normativa/corretiva que, ao desconsiderar essas interferências, buscaria o ajustamento de sujeitos incapazes e inadequados, ou seja, o clínico reproduziria as desqualificações sociais que maltratam a potência de vida das classes populares (Huning & Guareschi, 2005Hunning, S. M.,& Guareschi, N. F. (2005). Problematizações das práticas psi: articulações com o pensamento foucaultiano. Athenea Digital, Barcelona, (Vol. 8, 1, p. 95-108).).

A dor de ser visto como inferior

Nesta categoria são descritos os sofrimentos que os usuários apresentaram de serem vistos pela sociedade como pessoas menos dignas, sem valor ou inferiores. Foram narrados vários episódios cotidianos em que se sentiram desqualificados e desprezados quando interagiam com pessoas de outras classes sociais. Humilhações em espaços públicos, discriminações sofridas ou sofrimento diante da percepção de si como invisível, produzem desumanização e reações que vão desde a interiorização do senso de inferioridade até um sentimento difuso de ódio e revolta.

O sofrimento decorrente de humilhações foi relatado frequentemente pelos usuários. Na relação com pessoas de outras classes sociais ou com agentes do Estado, como policiais, os usuários da casa de apoio vivem violências simbólicas praticadas através do olhar que rebaixa e desqualifica. Ser abordado por policiais quando circulam pelas ruas é algo vivido cotidianamente. Por exemplo, um usuário relatou no atendimento que foi abordado de forma humilhante por dois policiais momentos antes, no caminho para a instituição. Relatou este episódio muito mobilizado por um sentimento de revolta e injustiça e se perguntava durante o atendimento: "Por que os policiais não me chamaram para um lugar reservado para me pedir os documentos?" Outro usuário, que percorre várias cidades, relatou que pediu dinheiro a uma senhora e ela gritou com ele, dizendo: "Vai trabalhar, vagabundo!" Ele compartilhou que essas palavras o machucaram muito, que é melhor levar um soco ou apanhar do que escutar isso. As humilhações sociais fazem parte de um quadro de desigualdade e exclusão social, gerando angústia pela falta de poder sobre a própria vida. Como consequência, instala-se uma mensagem de rebaixamento que perdura, enfraquecendo a autonomia e a iniciativa. Pobres, moradores de rua, empregados precários fazem parte de um segmento que não têm direito a voz, que não têm o direito de expressão (Delfin, et al., 2017Delfin, L., Almeida, L. A. M.,& Imbrizi, J. M. (2017). A rua como palco: arte e (in)visibilidade social. Psicologia & Sociedade, (Vol. 29, 01, p. 1-10). DOI: 10.1590/1807-0310/2017v29158583
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).

As humilhações podem ser transformadas em um desprezo por si mesmo. Uma usuária dizia que sente muita raiva e revolta de si mesma: "Eu não deveria ter nascido, sou feia e tudo em mim é errado!" Em determinado momento do atendimento, ela perguntou ao plantonista se ele achava feio alguém que vive como andarilha. Outro usuário, que já foi internado algumas vezes em clínicas para dependência química, disse que não acreditava mais em sua recuperação porque se sente como "um verme perante a sociedade". Baseado na dialética exclusão/inclusão, o sujeito excluído passa a ser inscrito no lugar da inutilidade, inclusão que o retira das possibilidades de ser reconhecido como alguém digno de contribuir para a coletividade e ser capaz de exercer valores sociais considerados positivos. Esta condição gera sofrimento subjetivo que é um sofrimento social (Carreteiro, 2011Carreteiro, T. C. (2011). A doença como projeto: uma contribuição à análise de formas de afiliações e desafiliações sociais. In B. Sawaia, (Org), As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social (11ª ed., Cap. 5, pp. 89-97). Petrópolis: Vozes.). As pessoas em situação de pobreza são reconhecidas socialmente através da depreciação e da culpabilização. O progressivo descompromisso estatal e social no combate às privações das vidas marcadas pela precariedade é acompanhado por um aumento na responsabilização do sujeito pela própria condição (Moura et al., 2020Moura-Jr, J. F., Barbosa, V. N. M., Sarriera, J. C., Segundo, D. S. A., & Lima, A. A. S. (2020). Práticas interseccionais de discriminação contra mulheres negras: Um estudo sobre vergonha e humilhação. Revista Psicologia Política, (Vol. 20, 48, p. 262-278).). Este processo culmina na incorporação destas ideologias neoliberais pelo próprio sujeito excluído, minando sua dignidade e produzindo um circuito mortífero de ódio a si mesmo.

Alguns usuários narraram episódios em que se sentiram invisíveis ou descartáveis pela sociedade. Por exemplo, um usuário disse que ninguém o enxerga, que todos o desprezam e que ele se sente um lixo. Foi possível perceber que ser tratado como objeto e ser desumanizado instala progressivamente uma desesperança e um ressentimento pela falta de reconhecimento. Um usuário disse que se sente nas suas relações com familiares como um ‘copo descartável, que todos usam e jogam fora’. Outro usuário, quando perguntado pela plantonista sobre alguma situação em que fez uso problemático de álcool, disse que isso ocorreu depois que uma sobrinha o chamou de vagabundo. A equipe de pesquisa refletiu que a dependência química pode ser instalada após várias experiências de humilhações, que deterioram as forças de vida, como relata de forma emocionada um usuário: ‘É como se o mundo inteiro estivesse contra mim. Essas palavras despedaçam a gente por dentro!’ Ele disse que gostaria de ser cantor, mas que o olhar negativo que recebeu várias vezes produz uma fragilidade: “Eu tenho esperança em ser cantor, mas essas palavras varrem tudo, acabam com minha esperança!” Muitos sofrimentos relatados têm ligação com a situação das classes excluídas, que recebem desprezo e descrédito da sociedade. Estas vivências aumentam os riscos e diminuem a proteção dos sujeitos, experiências que se relacionam com o conceito de sofrimento ético-político, formulado por Sawaia (2011Sawaia, B. (2011). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social (11ª ed.). Petrópolis: Vozes.). Representa a dor de ser tratado como sem valor, inferior e inútil pela sociedade, "revela a tonalidade ética da vivência cotidiana da desigualdade social, da negação imposta socialmente às possibilidades da maioria apropriar-se da produção material, cultural e social de sua época, de se movimentar no espaço público e de expressar desejo e afeto (Sawaia, 2011Sawaia, B. (2011). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social (11ª ed.). Petrópolis: Vozes., p. 106)." A perda da confiança em si mesmo como um sujeito potente, que pode contribuir com a vida social, produz uma deslegitimação individual, um apagamento das forças da subjetividade, da sua capacidade de reinvenção.

No espaço clínico circularam intensidades de afetos que parecem ter sido cultivadas pelas reiteradas rejeições e desfeitas sofridas. Tanto a ideação suicida quanto a vontade de eliminar o outro foram vivências comumente narradas por sujeitos que se sentiram rebaixados. Por exemplo, um usuário que comparecia constantemente nos plantões psicológicos disse que queria ser um serial killer para matar todos que um dia o prejudicaram. No espaço clínico, ele se imaginou matando um ex-patrão que não lhe pagou o que devia e dizia: “Está vendo, você tem muitos bens, três fazendas, muitos carros e eu não tenho nada. Você ainda queria diminuir meu salário. E agora, quem está por cima?” Ele disse já ter tentando cometer suicídio e que, às vezes, ainda pensa em se matar. A violência pode ser uma resposta à sensação de falta de sentido produzida por reiteradas desqualificações. Pode ser revelador de um descompromisso da sociedade com o sofrimento do outro (Sawaia, 2011Sawaia, B. (2011). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social (11ª ed.). Petrópolis: Vozes.).

Portanto, a falta de reconhecimento e as mensagens de rebaixamento recebidas pelos sujeitos excluídos instauram um sofrimento que deteriora as forças de vida e as potências. O entrelaçamento entre subjetividade e cidadania demonstra que o sofrimento ético-político, de ser visto como alguém inútil ou sem valor, revela os mecanismos sociais de injustiça, desigualdade e dominação presentes na contemporaneidade. Estes mecanismos são de natureza social, mas se objetivam no sujeito, causam interferências na subjetividade, produzindo dor e sofrimento. A escuta clínica destes sujeitos precisa ser ampliada com reflexões sobre a divisão da sociedade em classes sociais e os sofrimentos decorrentes da desigualdade social.

Práticas clínicas ampliadas

As práticas clínicas com sujeitos de classes populares convocaram o plantonista a repensar a clínica tradicional, ampliando conceitos e buscando inventar novas intervenções. A ideia de subjetividade universal e sua desconexão com as questões históricas e sociais recebida na formação tradicional em psicologia, como associada somente a aspectos individuais e familiares, é repensada e articulada com questões de poder e de pertencimento de classe. Os plantonistas buscaram se abrir para o contato com diversas formas de existência e de arranjos subjetivos, buscando estabelecer uma relação potencializadora para a promoção das forças de vida. A inserção na instituição e o formato de plantão psicológico demandaram uma abertura para o imprevisível e a necessidade de se mapear a rede de apoio e cuidado no território para possíveis encaminhamentos.

A escuta de sujeitos marginalizados amplia o olhar e a prática do psicólogo. A equipe de pesquisa percebeu nos contatos com os usuários que a questão da divisão da sociedade em classes e sua grande desigualdade ficou muito evidente. Os plantonistas foram convocados a lidar com questões que não estão prescritas na literatura especializada sobre práticas clínicas, mas que emergiram com frequência nos encontros com o usuário. Por exemplo, a importância de se valorizar o saber das classes populares. Como possuem menos acesso à educação, os usuários compartilharam muitas explicações mágico-religiosas sobre o mundo. Os plantonistas buscaram não impor uma visão científica para algumas questões de modo a não desqualificar estas explicações.

O contato com populações periféricas coloca em evidência o papel dos marcadores sociais como classe, raça e gênero nos processos de produção subjetiva de forma contundente (Silva & Carvalhaes, 2016Silva, R. B & Carvalhaes, F. F. (2016). Psicologia e Políticas Públicas: impasses e reinvenções. Psicologia e Sociedade, (Vol. 28, 2, p. 247-256). DOI: 10.1590/1807-03102016v28n2p247
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). A questão da diferença de classes mobilizou os plantonistas sobre a distância de mundos em relação aos usuários, como apontou um plantonista:

Ele relatou vários episódios de violência que sofreu, como sete tiros que levou e alguns golpes de facão na cabeça. Me mostrou o local onde as balas entraram e as marcas do facão. Ainda mostrou que não tem um dos olhos, abriu a pálpebra e me mostrou o buraco oco de onde estava seu olho esquerdo. Neste momento pensei que meu mundo e o dele são muito distantes, pois a experiência de sofrer tamanha violência, uma tentativa de assassinato é inimaginável pra mim.

Em relação às práticas, foi necessário mapear a rede de cuidados do território, aspecto que coloca o plantão psicológico inserido em instituições como prática clínica diferenciada em relação à psicoterapia. Por exemplo, um usuário procurou o plantão muito mobilizado dizendo que estava sem lugar para morar. Além do acolhimento, os plantonistas iniciaram um mapeamento das possibilidades de encaminhamento para albergues ou outros estabelecimentos onde ele pudesse dormir. Trata-se de uma clínica inserida numa realidade institucional, que convoca o plantonista a desenvolver uma visão mais abrangente da comunidade, das possibilidades de cuidado que o território oferece (Mahfoud, 2012Mahfoud, M. (org). (2012). Plantão Psicológico: novos horizontes (2ª ed.). São Paulo: Companhia Ilimitada.).

A questão do setting foi problematizada pela equipe de pesquisa, que buscou se abrir para possibilidades de escuta fora do ambiente clínico tradicional. Apesar de haver no estabelecimento uma sala destinada aos plantões psicológicos, houve algumas situações em que a escuta se deu no pátio de convivência onde os usuários fazem as refeições, às vezes com a presença de outras pessoas. Um plantonista escreveu em seu diário de campo: "Conversar ali no meio de muita gente, mostra que a nossa clínica não tem que ser a clínica do segredo e nem de consertar alguém, mas pode ser a clínica do encontro com outro mundo diferente do meu". Os plantonistas precisaram se desvencilhar da proteção da sala de atendimento, que pode trazer uma conotação de consulta a um especialista, para se lançar no inesperado do encontro com a alteridade. O plantonista precisa conviver com esta tensão do encontro inesperado no qual a sala é substituída pelo próprio corpo do terapeuta (Lancetti, 2016Lancetti, A. (2016). Clínica Peripatética (3ª ed.). São Paulo: Hucitec.). Outra situação imprevista aconteceu quando um usuário se apresentou alcoolizado para o plantão, como mostra a reflexão de um plantonista:

Vi que ele estava alcoolizado, me perguntei se seria produtivo, mas fomos para a sala. Ele me surpreendeu, pois mesmo alcoolizado, conseguiu fazer reflexões muito interessantes. Na verdade, durante o atendimento percebi que o álcool é seu veículo de comunicação, pois quando está sóbrio, fica só calado.

Os encontros clínicos foram espaços utilizados para narrar a própria história de maneira humanizada e buscar um reconhecimento como sujeitos, diferentemente das demandas em torno de sintomas da clínica processual tradicional. A equipe problematizava nas supervisões sobre as constantes desqualificações que os usuários recebem da sociedade e, em virtude disso, durante as interações buscaram ressaltar os aspectos potentes, as virtudes e forças que percebiam neles. Os usuários pareciam se sentir mais conectados com o espaço clínico após interações em que os plantonistas validavam algum aspecto positivo e diziam que gostariam de retornar posteriormente. O espaço clínico foi visto como um lugar de resgate da dignidade.

Os plantões psicológicos representaram um espaço de atenção e afeto para pessoas com vidas cheias de rupturas, abandonos e falta de sentido. Alguns usuários disseram que as únicas pessoas com as quais eles tinham algum contato eram com os plantonistas. Portanto, a clínica com sujeitos excluídos socialmente é um território de inclusão, tornando-se uma referência relacional e afetiva que fortalece a tessitura dos laços sociais. Um usuário disse que era bom estar ali conosco e poder conversar, pois se sentia muito sozinho e ali era o momento que ele ‘saía do escuro para a luz’. Talvez por este cultivo das forças dos usuários, muitos retornavam para partilhar conquistas, como deixar de tomar um medicamento psicotrópico porque os sintomas depressivos se arrefeceram ou conseguir ficar um período sem consumir álcool de forma compulsiva, por exemplo. Assim como as humilhações sociais reverberam na subjetividade dos humilhados, o reconhecimento e a valorização podem contribuir para que o sujeito produza outras subjetivações para além das identidades de marginal ou inútil (Delfin et al., 2017Delfin, L., Almeida, L. A. M.,& Imbrizi, J. M. (2017). A rua como palco: arte e (in)visibilidade social. Psicologia & Sociedade, (Vol. 29, 01, p. 1-10). DOI: 10.1590/1807-0310/2017v29158583
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). A mensagem recebida ao se sentir reconhecido pode permitir a construção de novas formas de percepção de si mais próximas da ideia de dignidade.

No encontro dos plantonistas com sujeitos excluídos circularam, além de fragilidades, forças de vida. Um usuário que compareceu regularmente disse que era muito bom ir lá e desabafar, contar suas histórias. O plantonista que o atendeu assim refletiu em seu diário de campo: "Me senti útil em poder ajudar alguém tão fragilizado e que foi tratado como objeto nas relações. Sinto que nós estamos oferecendo um mundo de afeto e acolhimento onde ele pode resgatar sua humanidade". Os plantões foram vistos como espaço de escuta do interdito e de alívio. Os usuários expressaram que se sentiram livres para falar de questões que não podiam dizer em outros contextos.

Esta escuta clínica de acolhimento pontual trouxe o desafio para os plantonistas de estar em contato com urgências subjetivas, pois muitos usuários se apresentavam muito mobilizados com seus sofrimentos. A intensidade dos sofrimentos compartilhados impactou os plantonistas. Por exemplo, um usuário que estava lutando para lidar com a dependência de álcool, procurou o plantão muito mobilizado sentindo vergonha e culpa com uma recaída que teve. No momento do plantão ainda estava sob o efeito do álcool. Este aspecto caracteriza e singulariza os plantões psicológicos como um espaço da emergência psicológica, diferentemente da psicoterapia processual. Na psicoterapia podem ocorrer momentos de mobilização, mas com menos frequência. O plantão psicológico representa uma modalidade de cuidado que traz a questão da urgência e do inesperado, convocando o clínico a elaborar e criar intervenções singulares para um acolhimento pontual (Scorsolini-Comin, 2015Scorsolini-Comin, F. (2015). Plantão psicológico e o cuidado na urgência: panorama de pesquisas e intervenções.Psico-USF, (Vol. 20, 1, p. 163-173). DOI: 10.1590/1413-82712015200115
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).

Estar em contato com vidas precarizadas trouxe alguns desafios para os plantonistas. A vida maltratada produz subjetividades fragmentadas, presas em circuitos reprodutivos, gerando reações de incômodo, como escreveu um plantonista em seu diário de campo: "Eu saí um pouco cansado e incomodado em ser testemunha de alguém tão confuso, mas consciente que faz parte do nosso trabalho estar com pessoas indefinidas e caóticas". Outra plantonista que escutou um usuário alcoolizado assim refletiu: "Este atendimento para mim foi bem complicado, o cheiro do álcool estava me deixando nervosa também e como ele estava muito nervoso, eu estava com um pouco de medo". Mesmo com o cultivo de uma atitude de abertura, circularam sensações de medo, cansaço e incômodo nos plantonistas. A equipe buscou refletir sobre possibilidades de suportar estes afetos para permanecerem juntos com os usuários, mesmo que estes se apresentassem desorganizados e fragmentados subjetivamente. Lancetti (2016Lancetti, A. (2016). Clínica Peripatética (3ª ed.). São Paulo: Hucitec.) aponta a necessidade de uma disposição para cuidar e nunca desistir em relação aos profissionais que atuam com saúde mental. Seria uma disponibilidade de estar na relação de cuidado "mesmo sabendo que um novo desastre pode vir a acontecer: nova recaída, novo surto, o abandono de um dos familiares quando o louco da família começa a melhorar" (p. 106).

A aposta no encontro com o diferente, com outras formas de se colocar no mundo, sem o estabelecimento de hierarquias pode ter possibilitado a circulação de forças de vida, de reflexões sobre novas posições subjetivas no espaço clínico. Mesmo que o público fosse constituído por pessoas em condições de vulnerabilidade, os plantões psicológicos representaram um espaço onde as potências e forças puderam se manifestar. Por exemplo, um usuário que relatava suas experiências atuais de uso problemático de álcool e crack, além de várias relações conflituosas em que estava envolvido, em determinado momento da escuta começou a falar de uma filha sua com quem tem pouco contato e disse: “Como na minha vida consegui fazer algo tão bonito assim?” Muitos usuários que relatavam seus sofrimentos, disseram que não perdem a esperança na vida. Uma usuária relatou que estava lendo muito a bíblia e que estava frequentando vários espaços religiosos como centros espíritas, grupos de oração católicos e igrejas evangélicas. A equipe do projeto percebeu que era uma forma de buscar uma vida comunitária e de se aprimorar como pessoa, uma busca de evolução pessoal. Outros usuários utilizaram o espaço clínico para pensar sobre maneiras de se aprimorarem nas suas relações interpessoais, refletindo sobre suas atitudes que podem incomodar pessoas significativas com quem convivem. Paulon e Romagnoli (2018Paulon, S. M. & Romagnoli, R. C. (2018). Quando a Vulnerabilidade se faz Potência. Interação em Psicologia, (Vol. 22, 3, p. 178-18)7.DOI:10.5380/psi.v22i3.56045
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) refletem sobre a possibilidade de que a vulnerabilidade possa se fazer potência a partir de bons encontros, produzindo paixões alegres, novas possibilidades de construções subjetivas, movimentos de expansão da vida.

Em outra escuta o plantonista percebeu que o usuário buscava construir saberes para uma vida mais organizada e estável do que teve até então. O usuário, de 18 anos de idade, relatou várias situações em que seus pais perderam bens e oportunidades por terem problemas de alcoolismo. Mesmo com essa herança, o rapaz ansiava por trabalhar, ter sua casa própria e uma vida mais estável. Muitos usuários que foram aos plantões enxergam no trabalho uma possibilidade de alcançar uma vida mais organizada e produtiva. Outro usuário, que morou nas ruas quando criança e esteve em vários abrigos, relatou que atualmente não usa mais drogas, tornou-se evangélico e que tem vontade de dar palestras para as pessoas poderem valorizar mais o que têm. O plantonista ficou mobilizado por este relato, sentindo-se admirado pela capacidade de ressignificação do sofrimento que o usuário desenvolveu.

A equipe de pesquisa buscou romper com atitudes de tutela, de assistencialismo, estabelecendo encontros em que se valorizam os saberes das classes populares, validando as maneiras singulares em que organizam suas vidas (Paulon & Romagnoli, 2018Paulon, S. M. & Romagnoli, R. C. (2018). Quando a Vulnerabilidade se faz Potência. Interação em Psicologia, (Vol. 22, 3, p. 178-18)7.DOI:10.5380/psi.v22i3.56045
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). A aposta de que os sujeitos vulneráveis sabem cuidar de si mesmos proporcionou a emergência de novas formas e de forças inéditas. Os usuários que regressavam aos plantões deram alguns retornos sobre as contribuições que o espaço de escuta proporcionou. Alguns diziam que sentiam alívio, que era muito bom compartilhar relatos com pessoas confiáveis. Foi mencionado por alguns que, após as idas aos plantões, sintomas de ansiedade e de depressão diminuíram. Alguns disseram aos plantonistas que ter participado dos plantões os fortaleceram diante do uso problemático de álcool e drogas, ajudando a diminuir ou a interromper o uso. Um usuário que tinha uma rede social de suporte frágil, com poucas relações significativas, disse que era muito bom saber que a equipe se preocupava com ele. A vinculação com os plantonistas representou uma possibilidade de inclusão numa coletividade, amenizando a sensação de falta de sentido e inutilidade que o usuário sentia.

A clínica com sujeitos excluídos demanda uma expansão em relação às teorias e práticas da clínica tradicional. A ideia de subjetividade universal presente na literatura especializada, revela-se insuficiente para a compreensão dos sofrimentos individuais como expressão das desigualdades sociais. Os plantonistas foram convocados a construir ações singulares e relações clínicas que favorecessem encontros horizontalizados, reconhecimento de saberes populares, valorização e admiração como contraponto diante de humilhações reiteradas.

Considerações finais

O presente trabalho, fruto de um projeto de pesquisa-intervenção em uma casa de apoio, fundamentado em interações clínicas na modalidade de Plantão Psicológico, busca evidenciar a necessidade de ruptura da tradicional cisão entre subjetividade e sociedade ainda presente na psicologia. Pode ser que tal cisão não esteja presente de forma explícita em suas teorias e normativas, mas este aspecto pode atuar de forma sutil, e nem por isso menos eficaz, nas práticas clínicas realizadas com as pessoas excluídas.

As desqualificações deixam marcas na subjetividade numa sociedade meritocrática e profundamente desigual como a brasileira. Não ser competente o suficiente, não ser um bom consumidor, estar desempregado, ser louco ou toxicômano, são condições que podem destinar os sujeitos para um lugar marginal. A sociedade do desempenho que apregoa que se todos se esforçassem mais, seriam mais bem-sucedidos, traz uma sensação de constante insuficiência e autodesprezo, até mesmo para as classes privilegiadas (Bauman, 2001Bauman, Z. (2001). Modernidade Líquida (P. Dentzien, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar.). Os que fracassam em atender aos apelos da sociedade de consumo passam a representar existências sem valia. Os usuários atendidos representam a ralé brasileira ou os infames da história, sujeitos considerados invisíveis, que atraem o ódio ou o desprezo da sociedade, cujo sofrimento é revelador de nosso tempo (Lobo, 2015Lobo, L. (2015). Os Infames da História: Pobres, escravos e deficientes no Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Lamparina.; Souza, 2017Souza, J. (2017). A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya.).

Portanto, no trabalho clínico com sujeitos excluídos, percebe-se a necessidade de sustentar a complexidade presente nos sofrimentos, perseguindo não só suas questões subjetivas, mas também a produção social e histórica de suas vulnerabilidades que, sem dúvida, os atravessam subjetivamente. A clínica ampliada deve manter uma relação de intercessão entre a subjetividade e a sociedade para contribuirmos com posturas mais inventivas na clínica, como a própria realidade vem nos demandando.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Abr 2019
  • Aceito
    25 Nov 2020
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