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FOUCAULT: SUBJETIVIDADE E VERDADE À LUZ DO CUIDADO DE SI

FOUCAULT: SUBJETIVIDAD Y VERDAD A LA LUZ DEL CUIDADO DE SÍ

RESUMO.

Buscamos, no presente artigo, situar o conjunto nocional da relação consigo (rapport à soi) na construção da categoria de subjetividade do pensamento tardio de Michel Foucault. Atrelamos a ele a questão da relação com o Outro e propomos a possibilidade de inscrever a psicanálise na história do cuidado de si. Nosso material primário é a transcrição das aulas ministradas pelo filósofo no começo de 1982 e o livro L’herméneutique du sujet (Foucault, 2001); e nosso suporte principal para análise são as conferências de 1980, L’origine de l’herméneutique de soi, e o livro Foucault, de Deleuze (2005). Como resultado, apresentamos a capacidade de afecção de si por si proporcionada pela relação consigo, demonstramos o modo como a posição do Outro influencia a produção da verdade do sujeito, e reforçamos a necessidade de se pensar práticas como a da psicanálise a partir do arranjo deixado pela história das técnicas de si.

Palavras-chave:
Foucault; cuidado de si; psicanálise

RESUMEN.

En el artículo, buscamos identificar el conjunto nocional de la relación con usted (rapport à soi) en la construcción de la categoría de subjetividad del pensamiento posterior de Michel Foucault. Le atribuimos la cuestión de la relación con el Otro y proponemos la posibilidad de inscribir el psicoanálisis en la historia del cuidado de sí. Nuestro material principal es la transcripción de las clases impartidas por el filósofo a principios del 1982, el libro L'herméneutique du sujet (Foucault, 2001) y nuestro principal apoyo para el análisis son las conferencias del 1980, L'origine de l'herméneutique de soi y el libro Foucault, de Deleuze (2005). Como resultado, presentamos la capacidad de autoafecto (de ti para ti) proporcionada por la relación con usted, demostramos lá manera en que la posición del Otro influye en la producción de la verdad del sujeto, y reforzamos la necesidad de pensar sobre las prácticas como de la psicoanálisis desde del arreglo dejado por la historia de las técnicas de sí.

Palabras clave:
Foucault; cuídate; psicoanálisis

ABSTRACT.

In this article, we situate the notional set of the relation with oneself (rapport à soi) in the construction of the category of subjectivity in Michel Foucault’s later thought. We show how that relation is attached to the relation with the Other, and we propose the possibility of inscribing psychoanalysis in the history of the care of the self. Our primary material is the transcription of the lectures the philosopher gave in early 1982, the book L'herméneutique du sujet (Foucault, 2001), and our main basis for analysis is the 1980 conferences, L'origine de l'herméneutique de soi, and the book Foucault, by Deleuze (2005). As a result, we present the capacity for self-affection afforded by the relation with oneself, we demonstrate the way in which the Other’s position influences the production of the subject’s truth, and we concur with the need to think about practices such as psychoanalysis from the perspective of the arrangement left by the history of techniques of the self.

Keywords:
Foucault; the care of the self; psychoanalysis

Introdução

O propósito principal deste artigo é apresentar o conjunto nocional da relação consigo (rapport à soi) como parte fundamental da categoria de subjetividade que Foucault delineia na década de 1980. Com base nisso, pretendemos, em um segundo momento, demonstrar como a relação com o Outro está atrelada à formação da relação consigo e como essa discussão pode reverberar em uma problematização histórica da psicanálise.

Começamos por contextualizar a nova empreitada de Foucault desde as conferências reunidas em L’origine de l’herméneutique de soi (Foucault, 2013Foucault, M. (2013). L’origine de l’herméneutique de soi(Collection Foucault inédit: philosophie du présent). Paris, FR: Librairie Philosophique J. Vrin.). Na sequência, esquematizamos a discussão acerca da sobreposição dinâmica entre os princípios do cuidado de si (epimeléia heautoû) e do conhecimento de si (gnôthi seautón), tal como Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.) a expôs em L’herméneutique du sujet no começo de 1982, a fim de contextualizar a problematização de onde surge o eixo central do artigo.

O conjunto nocional da relação consigo será abordado com base na figura da conversão a si, um dos centros balizadores do cuidado de si greco-romano e ponto fundamental das preleções de 1982. Neste recorte, expomos o modo como Foucault começa a perceber a capacidade de uma afecção de si por si presente no pensamento greco-romano. A percepção dessa capacidade resulta na definição do processo de subjetivação como dobra, dispositivo cuja análise, neste artigo, conta com a contribuição da leitura de Deleuze (2005Deleuze, G. (2005). Foucault. São Paulo, SP: Brasiliense.) sobre o pensamento foucaultiano.

Pretendemos mostrar, a partir daí, como a questão da relação com o Outro acaba se formando, em 1982, conjuntamente à elaboração da relação consigo. Foucault, ao fundamentar esta última noção, debruça-se sobre textos que expõem sobremaneira as relações dialógicas presentes no exercício da filosofia epicurista e estoica. O Outro refere-se especificamente à posição do filósofo no momento do exercício da filosofia em sua função terapêutica - posição que varia conforme as escolas filosóficas. Esse encargo é o que justifica a presença do mestre nas condições de composição da relação consigo prevista no cuidado de si.

A relação consigo em conjunção à relação com o Outro nos leva a perguntar, com base nas sugestões do próprio Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.), sobre a possibilidade de inscrever a psicanálise no movimento histórico embasado no cuidado de si. O epiméleia heautoû, quando predominante, constitui aquilo que Foucault chama de espiritualidade, que é justamente a filosofia atuando na transformação dos sujeitos, herança na qual talvez se possa alocar a psicanálise. Nessa reflexão, partimos não apenas de aberturas no curso de 1982, mas também do trabalho de Ayouch (2015Ayouch, T. (2015). Foucault pour la psychanalyse : vérité, véridiction, pratiques de soi. In L. Laufer,& A. Squverer. (Org.), Foucault et la psychanalyse. Quelques questions analytiques à Michel Foucault (p. 97-122). Paris, FR: Hermann., 2016Ayouch, T. (2016). De L’Herméneutique au stratégique: sexuations, sexualités, normes et psychanalyse. In S. Boehringer, & D. Lorenzini. (Org.), Foucault, la sexualité, l'Antiquité(p. 167-186). Paris, FR: Kime.).

Enunciação histórica da verdade

A partir da década de 1980, Michel Foucault realiza uma mudança no percurso de sua obra. Os eixos marcantes de seu pensamento, até então as questões do saber e do poder, ganham um novo componente, que é a questão do sujeito. Alguns dos fundamentos lançados para esse novo trabalho estão sistematizados no compilado de conferências e de entrevistas pronunciadas de outubro a novembro de 1980, nos Estados Unidos, publicado sob o título L’origine de l’herméneutique de soi (Foucault, 2013Foucault, M. (2013). L’origine de l’herméneutique de soi(Collection Foucault inédit: philosophie du présent). Paris, FR: Librairie Philosophique J. Vrin.). Utilizamos esse texto como base para orientar as questões que extraímos daquilo que Foucault desenvolve no começo de 1982 no Collège de France, no curso publicado com o título L’herméneutique du sujet (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.), que constitui nossa fonte bibliográfica primária. O norte dessa empreitada é aquilo que o filósofo chama de “[...] genealogia do sujeito moderno” (Foucault, 2013Foucault, M. (2013). L’origine de l’herméneutique de soi(Collection Foucault inédit: philosophie du présent). Paris, FR: Librairie Philosophique J. Vrin., p. 33, tradução nossa)4 4 Todas as traduções realizadas a partir do original francês são traduções nossas. A título de organização estética do texto, suprimiremos essa indicação nas próximas citações. . Ela visa o modo como a experiência do sujeito ocidental se formou historicamente por meio da sobreposição dinâmica entre dois preceitos filosóficos antigos, o epimeléia heatoû (cuidado de si) e o gnôthi seautón (conhecimento de si), e abarca, ainda, a forma como as ideias de salvação e de cura foram atreladas, nesse processo, à obrigação de dizermos a verdade sobre nós mesmos.

Antes da década de 1980, Foucault (2013Foucault, M. (2013). L’origine de l’herméneutique de soi(Collection Foucault inédit: philosophie du présent). Paris, FR: Librairie Philosophique J. Vrin.) trabalhava com três tipos de técnicas humanas, a saber, aquelas de produção, de manipulação e de transformação das coisas; aquelas que permitem que os indivíduos utilizem os sistemas de signos; e aquelas que permitem a dominação de indivíduos sobre indivíduos. Depois de 1976, a história da sexualidade leva o filósofo a se debruçar sobre aquilo que ele chama de técnicas de si, uma dimensão que advém do próprio sujeito agindo sobre ele mesmo. São operações que, segundo sua leitura, visam uma transformação com a finalidade de algum tipo de aperfeiçoamento de si.

Para a realização dessa genealogia do sujeito moderno, Foucault (2013Foucault, M. (2013). L’origine de l’herméneutique de soi(Collection Foucault inédit: philosophie du présent). Paris, FR: Librairie Philosophique J. Vrin.) desprende-se das técnicas de poder e volta-separa a interação entre essas mesmas técnicas e as técnicas de si. Poderíamos dizer que, metodologicamente, o filósofo dá continuidade ao projeto genealógico de se desembaraçar da concepção negativa do poder (Foucault, 2004Foucault, M. (2004). Vigiar e punir(29ª ed.). Petrópolis, RJ: Vozes., 1988Foucault, M. (1988). História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro, RJ: Graal.) e acrescenta a ele a perspectiva de que os sujeitos não são mais apenas efeito de um poder produtivo. Trata-se do delineamento do conjunto nocional da relação consigo (rapport à soi). Analisar as técnicas de si implicadas na relação consigo é diferente de uma abordagem ‘psicologizante’ que tenta estipular o modo como o sujeito introjeta a lei - o que Foucault (2013Foucault, M. (2013). L’origine de l’herméneutique de soi(Collection Foucault inédit: philosophie du présent). Paris, FR: Librairie Philosophique J. Vrin., p. 39) chama de esquema “[...] mais ou menos freudiano”. Assim, o filósofo não só pretende construir uma teoria que pensa a subjetivação a partir da relação consigo, como se desloca historicamente para um contexto que não é o contexto jurídico-discursivo da modernidade - no qual se destaca a referência à Lei, como explicitado em História da Sexualidade I.

Nas conferências de 1980 nos Estados Unidos, Foucault (2013Foucault, M. (2013). L’origine de l’herméneutique de soi(Collection Foucault inédit: philosophie du présent). Paris, FR: Librairie Philosophique J. Vrin.) reconstrói o surgimento da hermenêutica de si - definida pela ideia de que a verdade está escondida no sujeito dentro de uma estrutura que lhe é própria, porém, obscura, e pode ser encontrada pelas vias do conhecimento. Essa genealogia vai desde o princípio délfico do conhece-te a ti mesmo até o momento, no cristianismo, em que se tornou uma obrigação dizer para um Outro - o guia espiritual envolvido na confissão, a verdade de nossos pensamentos e de nossos desejos. Antes de alcançar o cristianismo, já nessas conferências, Foucault (2013Foucault, M. (2013). L’origine de l’herméneutique de soi(Collection Foucault inédit: philosophie du présent). Paris, FR: Librairie Philosophique J. Vrin.) inicia suas análises sobre as práticas éticas das escolas epicuristas e estoicas.

É sobre elas que o filósofo se detém com mais zelo em 1982 - como veremos ao longo do artigo. As breves referências ao platonismo e ao cristianismo servem mais para delinear o contorno do assunto prevalecente, que é o cuidado de si greco-romano, do que para descrevê-las minuciosamente. Esse recorte principal é o que proporciona a Foucault começar a alinhavar uma dimensão da subjetividade a partir de uma época que tem sua moral voltada para a ética, período que ele nomeia como cultura de si (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.), e que diverge sobremaneira da predominância de uma moral voltada para o código. Tanto em L’origine de l’herméneutique de soi (Foucault, 2013Foucault, M. (2013). L’origine de l’herméneutique de soi(Collection Foucault inédit: philosophie du présent). Paris, FR: Librairie Philosophique J. Vrin.) quanto em L’herméneutique Du sujet (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.), o filósofo se refere a uma clivagem entre as técnicas de si pautadas na importância do estilo [forma] e as técnicas pautadas pela regra [regula].

A título de introdução para a categoria da relação consigo, convém sintetizarmos a discussão dos preceitos epimeléia heatoû e gnôthi seautón, trabalhados pelo filósofo em 1982. Ambos os princípios determinam diferentes concepções de verdade e de relação consigo, bem como diferentes modalidades de ligação si mesmo-Outro que, em última instância, também definem de modo específico a subjetividade e seu modo de conexão com a verdade. Nas preleções de 1982, o filósofo compreende os textos de Platão como matriz tanto do cuidado de si quanto do conhecimento de si, momento em que eles ainda são completamente imbricados, sendo o cuidado de si norte e guia do conhecimento de si.

A partir dessa matriz, em um movimento de sobreposições históricas, o cuidado de si predominou na transição entre o período helenista e o período romano. Depois, tal princípio entrou em declive social com o advento do cristianismo, e acabou por ser quase apagado no século XVII, momento que inaugura, para Foucault, a modernidade. Entre epimeléia heatoû e gnôthi seautón há sempre, segundo o filósofo, um “[...] um apelo recíproco” (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 67). Desse ângulo, não é como se nosso olhar fosse orientado apenas para descrição de cada um dos preceitos quanto à exclusividade de sua predominância. O que mais interessa é justamente o arranjo deixado, em um dado momento histórico, por esse jogo de sobreposições.

De maneira ainda condensada, podemos afirmar que o pensamento orientado sobretudo pelo gnôthi seautón (conhecimento de si) determina que a verdade se encontra no indivíduo, mas escondida devido a uma dupla ignorância. Isso tem fundamento na noção platônica de que primeiro ignoramos a nossa própria essência, e segundo ignoramos nossa própria ignorância (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.). Para alcançar a verdade, é preciso um movimento hermenêutico que dependeria de uma renúncia e de uma submissão de si em relação ao Outro - que é, em suma, uma figura de saber totalizado e de conexão mais direta com Deus. Nessa modalidade de relação o sujeito se reencontraria com a verdade por meio de um ato de conhecimento, que consiste na reminiscência do divino em si (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.).

Muito diferente é o espectro de predominância do epimeléia heatoû, em que a verdade é concebida como uma ferramenta que deve ser construída no presente por meio de um leque de práticas elaboradas e de experiências vividas. Essa ferramenta, paraskeué, “[...] discursos verdadeiros” (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 233), deve ser forjada como uma armadura que protege os sujeitos dos possíveis acontecimentos que podem ameaçá-lo. Mais ainda, a partir de Sêneca, Foucault (2013Foucault, M. (2013). L’origine de l’herméneutique de soi(Collection Foucault inédit: philosophie du présent). Paris, FR: Librairie Philosophique J. Vrin.) afirma que a verdade é como uma força implicada na boa utilização dos preceitos morais. Assim, a verdade não se conecta a uma reminiscência e nem ao aprendizado teórico, mas a um conjunto de exercícios específicos que necessariamente transformam o sujeito em algo que ele nunca foi - é isso que define a filosofia como espiritualidade (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.; Hadot, 1999Hadot, P. (1999). O que é a filosofia antiga?São Paulo, SP: Loyola.). A relação entre o mestre e os discípulos se dá de modo que os segundos possam criar autonomia na constituição de si e na veiculação de sua verdade. A memória entra em jogo, mas na forma de atualização dos princípios aprendidos e no estilo de utilização da palavra.

Uma das razões pelas quais Foucault elege esse campo histórico de soberania do cuidado de si é refutar o “[...] preconceito clássico” (Hadot, 1999Hadot, P. (1999). O que é a filosofia antiga?São Paulo, SP: Loyola., p. 140) da ala hegemônica do ensino de filosofia na França. Tal preconceito consolida um exemplo idealizado de cultura que valoriza estritamente uma parte do pensamento grego, condena o período helenístico e romano por considerá-lo corrompido pelo contato com o Oriente e o considera filosoficamente individualista devido à queda da democracia e do papel social do filósofo. Foucault desmistifica essa perspectiva e apresenta um novo recorte em que o cuidado de si é realocado no centro da prática histórica e filosófica.

O valor que a cultura de si adquire para Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.) pode ser atrelado também à proliferação das artes da existência - “[...] tékhne tou biou” (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 84), as quais tomaram conta de todo o leque aberto pelo epimeléia heatoû no período helenístico e romano. Para os greco-romanos, a constituição de si pode ser pensada a partir de um jogo estratégico que tem por finalidade a criação de uma relação consigo. O objetivo dessas artes é fazer com que o próprio sujeito exerça uma força sobre si que seja mais determinante que as forças externas. Para demonstrá-lo, Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.) descreve uma série de atividades, presentes nos textos greco-romanos, que representam uma espécie de dobra do sujeito. A categoria descritiva principal, que baliza todos os elementos envolvidos na noção de relação consigo, é a de conversão a si.

Relação consigo: a conversão a si e a dobra

Dentro dessa história do cuidado de si, a reflexão sobre o contexto das artes da existência pode ser significativa para uma análise da concepção de subjetividade que Foucault começa a construir na década de 1980, e que vai fundamentar o famoso prisma ético-estético de seu pensamento. Esse contexto será melhor explorado a partir da aula de 10 de fevereiro de 1982, quando aparece de modo proeminente o tema da conversão. A importância da conversão no Ocidente é relacionada ao seu caráter de “[...] esquema prático” (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 199), mais que ao status de conceito. Para esse trabalho, Foucault retira do pensamento antigo - de Platão ao cristianismo - uma espécie de núcleo temático central, que será denominado por ele “[...] un ensemble d’images” (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 198). Do modo como entendemos, ensemble se traduz como conjunto ou grupo, mas podemos compreendê-lo aqui como arranjo, dado seu teor estético. O arranjo se aproxima daquilo que Hadot (1999Hadot, P. (1999). O que é a filosofia antiga?São Paulo, SP: Loyola.) chama de sistema, que serve para diferenciar os saberes epicurista e estoico da noção de conceito. No sistema está prevista, necessariamente, a transformação daquele que com ele se relaciona, enquanto o conceito constitui certo tom de contemplação da estrita capacidade do conhecimento.

O referido núcleo central é a imagem da conversão, destrinchada por Foucault a partir do termo senequiano se convertere ad se, da conversão platônica, abarcada pela epistrophé, e da conversão cristã/moderna, que coincide com a noção de metánoia. Epistrophé, metánoia e se convertere ad se sobrepuseram-se no decorrer da história ocidental. A conversão a si, própria da cultura greco-romana, foi trazida para o debate filosófico pelo desdobramento que o trabalho de Pierre Hadot teve no pensamento de Michel Foucault. Hadot postula, em 1953Hadot, P. (1953). Epistrophe and metanoia in the history of philosophy.In Proceedings of the XIth International Congress of Philosophy (p. 31-36).Recuperado de:https://www.academia.edu/37005369/Pierre_Hadot_Epistrophe_and_Metanoia_in_the_History_of_Philosophy._
https://www.academia.edu/37005369/Pierre...
, que a epistrophé e a metánoia foram predominantes na formação do Ocidente. Em contraponto histórico, portanto, é que Foucault realça a importância de uma noção de conversão diferente daquelas duas - justamente, o se convertere ad se. Passemos ao cotejo entre elas.

Foucault lê a conversão em Platão sob o termo epistrophé. A descrição de seu movimento é como aquele que inicia o cuidado de si e o direciona ao conhecimento. Ela consiste na ação do olhar que deve fugir das aparências e dos objetos mundanos e obscuros, e encarar o ser em sua luz. Esse olhar acaba por movimentar o corpo inteiro e adquire tonalidade ontológica, já que funda o sujeito a partir da descoberta de sua ignorância. Essa descoberta conduz à reminiscência, ou seja, ao reencontro com a essência esquecida. Opondo o mundo em que se vive ao outro mundo desejado, cindindo o “[...] corpo-prisão” (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 201) da alma, a epistrophé conduz à volta para a “[...] pátria ontológica” (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 201). Em suma, a reminiscência, uma forma de conhecimento, pretende conectar o sujeito à verdade e o libertar.

No cristianismo, a conversão é situada por Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.) em torno da noção de metánoia, empregada por volta dos séculos III e IV. Dessa noção, Foucault retoma dois significados. Ela designa tanto “[...] penitência [...]” quanto “[...] mudança radical” (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 203). Mesmo que ela advenha de um percurso preparatório, o momento mesmo de sua realização deve ser um acontecimento “[...] meta-histórico” (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 203), súbito, que distanciaria completamente o sujeito novo do sujeito antigo. Ela é a representação quase literal da morte de um ser e a ressurreição de outro. Sua prática começa com um olhar que busca em si mesmo os vestígios da concupiscência, os traços da tentação encontrados no pensamento e alocados em nossa alma. Essa conversão funda uma exploração dos segredos internos, uma hermenêutica de si que deve ser consumada pela “[...] renúncia a si” (Foucault, 2001, p. 203) em prol, justamente, de Deus e das Escrituras.

A conversão a si - se convertere ad se, como se encontra em Sêneca - é quase oposta às conversões platônica e cristã. Ela não se desdobra da oposição entre dois mundos, um ideal e outro ilusório e corrompido. Ela se firma na imanência do próprio terreno onde vivemos. Trata-se de realizarmos um trajeto desde aquilo que não depende de nós em direção àquilo que depende de nós, direção esta considerada por Epicteto como a “[...] bússola absoluta” (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 216). Ela consiste em uma liberação com relação àquilo de que não somos mestres, para alcançarmos aquilo de que podemos ser mestres (maîtres). Essa noção de mestria conjuga bem o tipo de relação com o corpo previsto na conversão a si. Em vez de uma dominação dos desejos e, como na epistrophé, de uma cisão do corpo, a conversão a si visa à criação de uma relação satisfatória, apropriada, com maestria, de si para consigo. O meio utilizado para o alcance de sua meta já não é um ato de conhecimento, mas a ascese (áskesis), ou seja, o conjunto de práticas e de treinamentos aos quais nos submetemos.

Nesse sentido, a conversão a si também prevê certa ruptura, mas com relação ao que está no entorno do sujeito. Foucault afirma: “É ao redor do eu, para que ele já não seja escravo, dependente e cerceado, que se deve operar essa ruptura” (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 204). Todos os movimentos de ruptura que acontecem na conversão a si são estritamente em proveito do eu, e jamais dentro do eu - como no caso platônico e também no cristão. Esse espectro é bem demonstrado em uma expressão encontrada em Sêneca, na carta 8 a Lucílio. É a metáfora do pirouette, como lembra Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.), que realiza um movimento diferente do de um peão que gira por impulso externo. Esse rodopio é um gesto que seria, segundo o estoicismo, impulsionado pela filosofia, mas realizado pelo próprio sujeito, o qual gira em torno de si. Naquele tempo, o ritual de girar em torno de si só acontecia quando, juridicamente, um escravo efetuava sua libertação.

Outro grupo de imagens importante na conversão a si é aquele que estipula que o ser por inteiro deve se mover em direção ao eu, como se ele fosse um lugar, um destino que precisa ser alcançado. Essa noção em específico fornece a grande figura do “[...] retorno a si” (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 205), pela qual o cuidado de si perde a característica elementar de ser um lance do olhar e da atenção. O novo teor do preceito fica evidente pela existência, nos textos greco-romanos, de metáforas que equivalem o eu a uma cidade recuperada por um exército, ou então a um porto, local de onde partimos e ao qual chegamos à procura de abrigo (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.). A diferença fundamental desse movimento greco-romano de retorno a si e o movimento platônico de reminiscência está no meio utilizado para o alcance do eu. Para o primeiro, trata-se de um trajeto árduo de treinos e da experimentação de técnicas que têm como campo de aplicação o corpo em relação ao mundo. Para o segundo, trata-se de um modo de superação da ignorância, da obtenção de uma forma de conhecimento pautado estritamente na memória enquanto fonte da verdade.

A dimensão do retorno, por engajar o ser inteiro dentro de uma dinâmica de busca, pode ser descrito como um caminho interminável, que vai de si mesmo a si mesmo. Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.) traz para o arranjo dessa imagem a metáfora, também comum aos textos greco-romanos, da navegação. Primeiro, a associação começa por se tratar de um movimento de um ponto a outro. Segundo, pelo fato dessa jornada ter uma meta específica, que é o alcance de um porto seguro, trajeto descrito como uma longa aventura dentro da qual os riscos são inevitáveis - sobretudo por sua relação estreita com a morte. Outro traço forte da navegação é o fato dela implicar uma técnica específica, chamada por Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 239) de “[...] saber conjectural”. Por ser atrelado a situações práticas, como por exemplo o manejo eficaz de acontecimentos imprevisíveis, esse tipo saber aproxima o cuidado de si e a arte da pilotagem.

Curiosamente, a pilotagem também é utilizada pelos antigos como descrição para outras três técnicas que conjugam aspectos importantes do cuidado de si. Ela é, segundo Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.), muito frequente para se referir à medicina, à política e ao governo de si. A semelhança mais evidente entre a navegação e essas técnicas é a necessidade, em todas, da criação de uma tékhne, que Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.) define como uma arte pensada e elaborada em princípios e conceitos generalizantes. A tékhne, nesse caso, deve ser teórica e prática, e proporcionar ao mesmo tempo a cura do corpo e da alma, bem como o equilíbrio das relações políticas. Os termos arte e técnica são equiparados a todo tempo pelo filósofo, de modo que podemos conceber o interstício si mesmo-si mesmo como obra de uma arte cujo limite não encontra quadratura, como navegação de um trajeto impossível, na medida em que seu desdobramento consiste em um movimento incessante de transformação, e não um caminho em direção a um interior de fato alcançável. Nas palavras de Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 238): “Que significa retornar a si? Que círculo é esse, que ciclo, que dobra é essa que devemos operar referente a alguma coisa que, contudo, não nos é dada, no melhor caso apenas prometida no término de nossa vida?”. Ao que acrescentaríamos: como fica configurada a relação consigo a partir dessa dobra? Que dimensões ela toma?

Para responder a essas questões, a leitura deleuziana de Foucault é de suma importância. Deleuze (1992Deleuze, G. (1992). Conversações. São Paulo, SP: Ed. 34., 2005Deleuze, G. (2005). Foucault. São Paulo, SP: Brasiliense.) caracteriza o trabalho de Foucault sobre as técnicas greco-romanas como uma descoberta, que repousa justamente na noção de dobra (repli), ou também, de forro (doublure) (Deleuze, 2005Deleuze, G. (2005). Foucault. São Paulo, SP: Brasiliense.), as quais só puderam ser pensadas a partir da configuração ética deixada pelo epimeléia heatoû. Para Deleuze (2005Foucault, M. (2010). A hermenêutica do sujeito. São Paulo, SP: Martins Fontes. ), o esboço de uma dimensão que é, ao mesmo tempo, dentro e fora, acompanha Foucault em toda sua obra. Essa dimensão, em 1982, está contida no esforço foucaultiano em dar um contorno para a relação consigo. Do modo como entendemos, o aspecto do estilo (forma), e o fator apriorístico da relação consigo no cuidado de si greco-romano é o que permite que o sujeito seja dimensionalmente duplicado por uma dobra. Deleuze (2005Foucault, M. (2010). A hermenêutica do sujeito. São Paulo, SP: Martins Fontes. ) o define muito bem:

É preciso duplicar as regras obrigatórias do poder mediante regras facultativas do homem livre que a exerce. É preciso que - dos códigos morais que efetuam o diagrama em tal ou qual lugar (na cidade, na família, nos tribunais, nos jogos, etc.) - se destaque um ‘sujeito’, que se descole, que não dependa mais do código em sua parte interior (Deleuze, 2005Deleuze, G. (2005). Foucault. São Paulo, SP: Brasiliense., p.108, grifo do autor).

Por um lado, a ideia de poder como relações de força configura pontos de tensionamento entre diferentes corpos. O pensamento, porém, quando age sobre si mesmo, é uma “[...] não-relação” (Deleuze, 2005Deleuze, G. (2005). Foucault. São Paulo, SP: Brasiliense., p. 103), posto que consiste no si mesmo afetando a si mesmo, e não em um corpo afetando outro. A descoberta da ética greco-romana é esse potencial afetivo do sujeito, que verga a força sobre ela mesma e constitui uma camada importante da subjetivação. Junto com esse processo, se inscreve no sujeito uma dimensão que o compõe, mas que permanece invisível a ele, e que não remonta apenas às forças de poder. Além de invisível, ela também é irrestrita ao si mesmo, e, como dissemos, nunca se finaliza em uma interioridade. É como se a afecção de si por si abrisse um campo de conjugação entre dentro e fora, um espaço de passagem que atrela o corpo e o mundo e que permanece sempre ali, no meio mesmo dessa relação consigo.

A originalidade greco-romana advém do jogo de verdade estabelecido entre os sujeitos que praticam a ocupação consigo, o qual estipula a necessidade de um governo de si precedente à relação com os outros e com o mundo. Nesse sentido, a ética da espiritualidade epicurista e estoica parece firmar uma soberania da relação consigo na formação do sujeito. Em conjunto com a generalização do cuidado de si existe uma forma de ‘autofinalização’ de si em si. A ocupação consigo mesmo se produz, segundo afirma Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 198), de uma forma que “[...] a relação com os outros é deduzida e implicada na relação que estabelecemos de si consigo mesmo”. Porém, nesse aspecto, L’herméneutique du sujet desenvolve um paradoxo, já que a entrada no exercício do cuidado de si dependerá sobremaneira de uma ação do Outro, como veremos a seguir.

Parte dessa história delineada por Foucault na década de 1980 pode representar um campo de inscrição das práticas que envolvem uma função dialógica na formação da subjetividade. Temos interesse em duas aberturas possíveis, as quais se desdobram do eixo central da relação consigo. A primeira concerne à descrição de elementos técnicos encontrados em L’herméneutique du sujet a respeito da função dialógica, que denominamos como relação si mesmo-Outro. A segunda diz respeito à abertura, embasada na indicação do próprio Foucault (2001), para pensarmos a psicanálise dentro do contorno da espiritualidade.

A relação com o Outro: sua necessidade, suas modalidades

Não nos parece que o interesse de Foucault, em 1982, era definir exatamente uma teoria das modalidades de relação si mesmo-Outro, considerando que seu curso é apresentado em função das práticas de si. Mesmo assim, essa reflexão fica saliente quando correlacionamos o conteúdo de L’herméneutique du sujet com uma entrevista dada pelo filósofo em 1983, em Berkeley. Constata-se que o filósofo deliberadamente destaca a cultura de si pela centralidade de sua “[...] função curativa e terapêutica” (Foucault, 2017Foucault, M. (2017). O que é a crítica? Seguido de a cultura de si. Lisboa, PT: Ed. Texto e Grafia., p. 79), e é exatamente aí que o si mesmo já não pode ser o único ponto de partida. Ora, L’herméneutique du sujet demonstra que o cuidado de si greco-romano é exercido tendo em vista uma salvação de si, a qual ultrapassa a visada platônica do governo dos outros. É a própria ideia de salvação que cria um paradoxo, já que o Outro aparece, segundo Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 123), como o “[...] mediador [...]” imprescindível entre a necessidade da salvação e o conteúdo que ela vai ter nesse período. Em outras palavras, o estado necessário ao cuidado de si e, ao mesmo tempo, resultado dele, que leva o sujeito ao ponto de estabelecer a relação consigo como a priori, só será despertado pelo Outro, já que nenhum indivíduo consegue atingir o epiméleia heautoû sozinho (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.).

Antes de aprofundarmos a questão, convém distinguirmos que Outro é esse de que falamos. No texto foucaultiano de 1982, o Outro não é equiparado a qualquer outrem, como outra pessoa ou como o mundo, mas especificamente ao filósofo e à sua posição no momento mesmo do exercício da filosofia. É esse o motivo de falarmos em uma técnica da função dialógica, posto que não se trata do estabelecimento de qualquer diálogo.

A salvação greco-romana é uma noção propriamente filosófica e terá uma extensão e um corpo específicos. Essa configuração filosófica é fruto de um lento processo de mudanças na postura e no papel do mestre. Podemos acompanhar Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.) delineando tal movimento desde o aparecimento da figura de Sócrates em Alcibíades, de Platão. O texto mostra que os déficits pedagógicos do jovem grego eram comumente complementados com o exercício e com a aprendizagem dos elementos deficitários de sua educação. Porém, quando Alcibíades é abordado por Sócrates, a resposta do mestre diante da sua falha é uma resposta que pretende lançá-lo para outro plano de ação. Sócrates não ensina novas habilidades a Alcibíades, como a dominar os inimigos, a aprender a governar etc. O objetivo de Sócrates é levar Alcibíades a cuidar de si. Diante dessa resposta, portanto, se instaura um desalinho entre a aprendizagem e o cuidado de si. Acontece, então, uma separação entre a pedagogia e a formação de si. Essa dessemelhança parece precipitar um tipo de problematização que, para Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.), determina todo o jogo de forças entre as modalidades de pensamento no ocidente.

Embasado no contexto dos diálogos socrático-platônicos, Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.) esquematiza três tipos de mestrias que aparecem nas figuras das relações de direção. A primeira é a mestria de exemplo, na qual o Outro é um modelo comportamental. Ela é carregada pela tradição e veiculada a partir das epopeias. É também relacionada ao mestre enamorado, além de fazer referência aos grandes sábios da cidade. Nesse caso, o Outro se desdobra como um exemplo a ser copiado. A segunda mestria é a de competência, por meio da qual se realiza estritamente a transmissão de conhecimento e de habilidades, passados do mestre aos mais jovens. Nela, o Outro está em posição pedagógica.

Por fim, a terceira mestria é a socrática, “[...] mestria do embaraço” (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 124), praticada por meio do jogo dialógico. Ela consiste em fazer o sujeito perceber a própria ignorância e o fato da existência do saber em si. O Outro socrático não transmite exatamente um saber, pois, apesar de colocar o saber em jogo, ele o localiza no próprio sujeito. Nesse sentido, Sócrates representa a abertura de possibilidade para a posição do Outro greco-romano. Todas as três primeiras mestrias realizam-se por meio de um jogo entre ignorância e memória, donde o jovem precisa sair do estado anuviado em que se encontra e o meio para isso é ou a memória do mestre, ou a memória da cidade ou a sua própria memória. De todo modo, o Outro já é indispensável porque o sujeito ignorante não se movimenta por si só. O curioso da figura de Sócrates é a demonstração de que o saber advém do próprio ‘não saber’, mas apenas quando é catalisado por alguém.

A partir dessa matriz grega, a mestria greco-romana carrega uma característica nova, que é a necessidade de se formar um sujeito a despeito dos vícios já arraigados no indivíduo. Esse formato de ser, almejado pelo epicurismo e pelo estoicismo, é diverso do reencontro do sujeito ignorante com o próprio saber, o qual está esquecido, embora lhe seja inato. Ao contrário, a vontade de uma ação moral, segundo a concepção pagã, não é dada por natureza, mas criada a posteriori como resultado da filosofia.

A noção de epimeléia heatoû greco-romana vai se reconfigurar, portanto, segundo alguns atributos diferentes do cuidado de si do pensamento grego clássico. Esse princípio, agora, aproxima a filosofia das práticas de ‘cura’. Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.) identifica esse elemento em textos como a Carta a Meneceu, de Epicuro, na qual se exorta ao cuidado com o objetivo do alcance da felicidade e da salvação; o texto Do controle da cólera, de Musonius Rufus, onde o cuidado aparece associado a uma imagem terapêutica; e o tratado de Sêneca Da tranquilidade da alma, onde surge uma das primeiras associações entre o filósofo e o “[...] médico da alma” (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 86). O estreitamento entre cuidado de si e terapêutica é identificado, igualmente, na expressão que aparece em Fílon de Alexandria, epiméleia tês psykhês, a qual exige o cuidado de si voltado para a alma. Vale mencionar ainda, conforme destaca Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 96), a ideia de Epicteto de que “[...] uma escola de filosofia é um iatreîon (um dispensário) [...]” da alma, onde a estadia só encontra coerência se ocorrer por vontade própria ou por necessidade de tratamento.

A figura do Outro, dentro do epicurismo e do estoicismo foucaultianos, ocupa, portanto, o lugar de transmissão da filosofia em sua função terapêutica. O Outro age com o intuito de dotar os sujeitos de preceitos tais que os permitam cruzar os infortúnios da vida sem perderem a mestria de si mesmos, sem se dissolverem nos acontecimentos - é isso, em conjunto com a libertação dos vícios, que define a cura.

A ferramenta técnica do Outro greco-romano consiste na parrhesía (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.). Ela concerne ao uso que o mestre faz da enunciação com a finalidade de gerar o melhor efeito de transformação nos discípulos, e também concerne à técnica usada na relação entre médico e paciente - como em Galeno, filósofo e médico. A parceria greco-romana instaurada pela parrhesía visa, também, dotar o sujeito dirigido da autonomia necessária para, posteriormente, prescindir de orientações e de intervenções. Trata-se de uma espécie de liberdade de jogo (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 232), que seleciona, dentro dos “[...] conhecimentos verdadeiros [...]”, os saberes úteis como instrumentos de cura e de transformação de si. O modo do dizer é distanciado da necessidade de concordância de sentido e o aproxima, em Epicuro, de uma modalidade profética (khresmodoteîn), oracular, que prefere ser incompreendida, mas gerar efeitos de prescrição e de verdade, do que ser simplesmente transmitida dentro da coerência dos artifícios da linguagem.

Para Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.), essa posição específica do mestre greco-romano e o meio pelo qual ele leva o sujeito a cuidar de si o configura não como um mestre de memória, nem como um mestre da pedagogia, mas como um mestre que usa dos dois elementos o quanto convém. Esse Outro, nas palavras do filósofo, “[...] não é mais aquele que, sabendo o que o outro não sabe, lho transmite. Nem mesmo é aquele que, sabendo que o outro não sabe, sabe mostrar-lhe como, na realidade, ele sabe o que não sabe. Não é mais nesse jogo que o mestre vai inscrever-se” (Foucault, 2010Foucault, M. (2010). A hermenêutica do sujeito. São Paulo, SP: Martins Fontes. , p. 117). A inscrição desse Outro se dá, portanto, como facilitador do protagonismo do sujeito na produção de sua verdade, na criação das ferramentas necessárias para sua cura e para a manutenção do seu status de sujeito livre. Esse status se caracteriza muito mais pela criação de uma ‘autossubjetivação’ que pela relação de obediência entre mestre e discípulo.

Psicanálise e epimeléia heautoû: uma questão aberta

Seria possível direcionar a discussão foucaultiana em torno das práticas de si para as técnicas ocidentais associadas à função dialógica que, ainda hoje, são construídas em torno da necessidade da cura? Poderíamos inscrever alguma dessas técnicas dialógicas na história do cuidado de si? Para avançarmos na formulação desse tipo de problema, embasamo-nos na abertura proporcionada pelo próprio Foucault no curso de 1982, que promove a reflexão sobre o lugar da psicanálise na herança da espiritualidade. Em L’herméneutique du sujet, Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.) se posiciona com relação à psicanálise de modo a abrir uma questão e a deixá-la em aberto, tendo em vista que ele não fornece muitas indicações e nem se aprofunda nelas. A interrogação de que se trata aparece na segunda hora da aula de 6 de janeiro, da seguinte forma:

[...] poderíamos, nos termos da própria psicanálise, ou seja, de efeitos de conhecimento, colocar a questão das relações entre sujeito e verdade, que - do ponto de vista, em todo caso, da espiritualidade e da epimeléia heautoû - não pode, por definição, ser colocado nos termos do conhecimento? (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 31-32).

A resposta que começa a ser delineada é a de que podemos encontrar, dentro da psicanálise, noções próprias ao princípio do cuidado de si, mas o que faz com que ela não seja propriamente um modo de espiritualidade são suas formas sociais. As escolas psicanalíticas acabaram, principalmente, por se desenvolver em condições de pertencimento institucional e de formação do conhecimento psicanalítico, subsumindo a problemática das relações entre sujeito e verdade. Porém, o trabalho de Lacan representa, para Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.), uma exceção, já que o psicanalista francês constrói seu pensamento sob a questão do custo e do efeito, para o sujeito, de se falar a verdade. Fora essa indicação, a questão não se equaciona no curso de 1982 e, pelo que sabemos, em nenhum dos trabalhos de Foucault posteriores a este. Nos traços do argumento de Naldinho (2018Naldinho, T. C. (2018). Algumas relações entre a psicanálise freudiana e os preceitos do “cuidado de si” e do “conhecimento de si” (Tese de Doutorado). Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Filosofia. São Carlos.), não entendemos a ausência de resposta por parte de Foucault como indiferença, mas como uma reserva inicial, deixada sem desenvolvimento devido à morte do filósofo dois anos depois, em 1984, em pleno processo criativo. O fato de Foucault ter enunciado essa possível relação entre a psicanálise e o cuidado de si em meio a uma intensa discussão histórica sem relação direta com a psicanálise, demonstra, ao contrário, um profundo interesse no assunto.

Um ponto inicial para a análise dessa questão reside no custo da verdade para o sujeito. Ao redor do ato de se falar a verdade proliferou, na espiritualidade, intensas discussões sobre o preço dessa ação. Esse preço concerne àquilo de que o sujeito deve se abster para ser um sujeito ético; ao leque de práticas e de relações a que ele deve se submeter; às transformações imprescindíveis no modo de ser; e, ainda, ao risco que o sujeito corre pelo fato de falar a verdade. Ora, a psicanálise, para funcionar, também conta com o custo da palavra. Primeiro, vê-se logo na questão do dinheiro, que entra em jogo no estabelecimento de uma sessão analítica; segundo, ela só funciona mediante o estabelecimento de um tipo de relação com o analista, que é a relação transferencial; terceiro, ela depende de uma ocupação consigo por parte do analisante; quarto, ela parte de um certo uso estratégico da palavra por parte do analista; e, por fim, esse preço também pode ser debitado no âmbito do posicionamento subjetivo, na medida em que uma transformação de si está prometida dentro dessa prática - e é esse o custo principal, pois se refere ao sujeito em seu ‘ser mesmo’ (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.), como diz Foucault com relação à meta das práticas de si.

Acerca do dinheiro aparece, em L’herméneutique du sujet, uma alusão velada à psicanálise. Ela se encontra em meio à crítica de Luciano, no texto Hermotímio, ao “[...] mercado dos modos de vida” (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard., p. 89). A analogia parece indagar as relações de dependência que por ventura podem ser estabelecidas numa relação psicanalítica. No referido texto, narra-se a cena em que Hermotímio, dialogando com Licínio, conta que há vinte anos se submete à direção de um mestre, o qual lhe cobra fortunas para tanto. Quase falido, mesmo assim certo da necessidade de tal prática, Hermotímio afirma ainda precisar de uns vinte anos para concluí-la - ou seja, o processo todo levaria mais da metade de sua vida. A motivação provocante dessa referência se confirma quando vemos o assunto ressurgir na conferência proferida pelo filósofo em Berkeley, em abril de 1983, nos Estados Unidos. Foucault observa:

Estou certo de que nenhum de vós é um Hermótimo moderno, mas aposto que a maioria de vós já conheceu pelo menos uma dessas pessoas que, hoje em dia, frequentam regularmente este tipo de mestre, que lhes cobra dinheiro para lhes ensinar como cuidarem de si próprios. No entanto, e felizmente, esqueci-me, seja em ‘francês’, em ‘inglês’ ou em ‘alemão’, do nome desses mestres modernos. Na antiguidade, chamavam-se filósofos (Foucault, 2017Foucault, M. (2017). O que é a crítica? Seguido de a cultura de si. Lisboa, PT: Ed. Texto e Grafia., p.69, grifo nosso).

Podemos pensar que a referência às três línguas corresponde, muito provavelmente, a Lacan, à escola inglesa e a Freud. De todo modo, essa provocação não representa uma recusa, já que Foucault aproxima, na mesma conferência, Lacan e a espiritualidade, em aquiescência à prática da psicanálise.

Os trabalhos de Ayouch (2015Ayouch, T. (2015). Foucault pour la psychanalyse : vérité, véridiction, pratiques de soi. In L. Laufer,& A. Squverer. (Org.), Foucault et la psychanalyse. Quelques questions analytiques à Michel Foucault (p. 97-122). Paris, FR: Hermann., 2016Ayouch, T. (2016). De L’Herméneutique au stratégique: sexuations, sexualités, normes et psychanalyse. In S. Boehringer, & D. Lorenzini. (Org.), Foucault, la sexualité, l'Antiquité(p. 167-186). Paris, FR: Kime.) permitem a discussão desse tensionamento. Para Ayouch, quando Foucault parte de um questionamento da veridicção ele se aloca dentro de uma episteme aberta pela psicanálise. É próprio do saber freudiano uma análise do processo de produção do verdadeiro bem como de suas condições de veiculação. Por questionar a “[...] base pulsional de todo conhecimento” (Ayouch, 2015, p. 106), a psicanálise, assim como Foucault, é aliada de uma “[...] episteme não-cognitiva” (Ayouch, 2016Ayouch, T. (2015). Foucault pour la psychanalyse : vérité, véridiction, pratiques de soi. In L. Laufer,& A. Squverer. (Org.), Foucault et la psychanalyse. Quelques questions analytiques à Michel Foucault (p. 97-122). Paris, FR: Hermann., p. 173). Do mesmo modo como na espiritualidade foucaultiana não é o enunciado que deve coincidir com a verdade do sujeito, mas a enunciação atrelada à prática, a psicanálise se sustenta pelo desnível entre “[…] sujeito do enunciado, consciente, e sujeito da enunciação, inconsciente” (Ayouch, 2015Ayouch, T. (2016). De L’Herméneutique au stratégique: sexuations, sexualités, normes et psychanalyse. In S. Boehringer, & D. Lorenzini. (Org.), Foucault, la sexualité, l'Antiquité(p. 167-186). Paris, FR: Kime., p. 112) - sujeito do inconsciente que interfere justamente na ‘vida prática’ das pessoas.

Se Foucault (2017Foucault, M. (2017). O que é a crítica? Seguido de a cultura de si. Lisboa, PT: Ed. Texto e Grafia., p. 95) pôde dizer que “[…] a psicanálise é muito mais uma técnica ética que uma ciência [...]”, é porque há uma ressonância crucial entre a prática da psicanálise e as práticas de si greco-romanas. Ela consiste no fato de que a veiculação da palavra tem efeito de constituição subjetiva. E esse efeito, tanto para a cultura de si quanto para a psicanálise, não pode advir apenas de uma hermenêutica de si, pela qual a verdade do ser se esconde no conteúdo da fala e na rememoração das representações.

A insuficiência de uma técnica de rememoração deve ser superada, em psicanálise, por meio daquilo que Ayouch (2016Ayouch, T. (2016). De L’Herméneutique au stratégique: sexuations, sexualités, normes et psychanalyse. In S. Boehringer, & D. Lorenzini. (Org.), Foucault, la sexualité, l'Antiquité(p. 167-186). Paris, FR: Kime.) denomina como perlaboration, que concerne à elaboração analítica, o que mais se aproxima de uma ideia de ‘cura’. O centro dessa ressonância crucial é o fato de que a elaboração também consiste numa forma de afecção de si por si. Como escreve Ayouch:

É uma incidência particular do dizer que efetua um ato: é o da elaboração. Este processo consiste essencialmente em um remanejamento afetivo: não é uma questão, de modo geral, nem de aquisição de um conhecimento completo e nem de rememoração das representações reprimidas, mas de um verdadeiro trabalho de transformação do afeto (Ayouch, 2016Ayouch, T. (2016). De L’Herméneutique au stratégique: sexuations, sexualités, normes et psychanalyse. In S. Boehringer, & D. Lorenzini. (Org.), Foucault, la sexualité, l'Antiquité(p. 167-186). Paris, FR: Kime., p. 175).

Essa afecção de si por si psicanalítica acontece dentro de um circuito estabelecido pela transferência, que é a forma de ligação entre analista e analisante. Ou seja: tal como entre os greco-romanos, a perlaboração também passa por um Outro, entendido aqui como a posição do analista. Dentro do jogo dialógico do cuidado de si, os enunciados, lógoi, capazes de transformação dentro da relação consigo se inscrevem num plano que passa, necessariamente, pelo Outro. A possibilidade desses enunciados serem transmitidos com eficácia depende da ação do mestre, ou seja, do uso que ele faz da verdade diante do kairós (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.), o momento propício, do discípulo. É justamente ao comentar sobre o kairós encontrado nos gregos, e comparado com Lacan, que Foucault (2017Foucault, M. (2017). O que é a crítica? Seguido de a cultura de si. Lisboa, PT: Ed. Texto e Grafia.) aproxima a psicanálise das técnicas espirituais. A coerência dessa aproximação pode se encontrar no fato de que o analista também deve estar atento a uma espécie de momento sensível para realizar qualquer intervenção junto ao analisante.

Não convém, com efeito, sobrepor a psicanálise às técnicas de si greco-romanas. Verifica-se entre elas, contudo, uma correspondência histórica indicada pelo próprio Foucault, e que ainda carece de elucidação.

Considerações finais

O pensamento tardio de Michel Foucault, ao voltar-se para a problematização de nossa experiência como sujeitos (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.), procura formular a relação consigo como um fator determinante desse processo. É possível perceber, em sua empreitada histórica, a existência de duas formas milenares de reflexividade atuantes no cruzamento dessa relação consigo, que são as formas determinadas pelos preceitos do cuidado de si e do conhecimento de si. A consistência da ligação entre as ideias de sujeito e de verdade implicada nesses preceitos será determinada ora pela relação estreita com o mundo e seu fluxo de forças, ora pela individualização do sujeito por meio de seu desengajamento com relação ao mundo, respectivamente.

Em contraposição à predominância do conhecimento de si na sociedade ocidental, Foucault (2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.) procura valorizar o que permanece vivo daquilo que a tradição do cuidado de si nos legou. Criar um si mesmo, na espiritualidade desenvolvida pelas preleções de Foucault de 1982, parece implicar a potencialidade de uma autoafecção, a não coincidência com o lugar de um eu interiorizado, como o demonstra o canal de passagem criado pela dobra, e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de renunciar a si e ao mundo.

O lugar do Outro, termo imprescindível para a relação consigo, também será caracterizado de modo específico no exercício da espiritualidade. Ele se inscreve na alçada do verbo latino educere, contraposto ao educare pedagógico, e representa o ato de estender a mão a um sujeito que precisa de transformação e de cura (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L’herméneutique du sujet - Cours au Collège de France (1981-1982). Paris, FR: Gallimard.). Desde a relação entre si mesmo e o Outro podemos pensar, também, o seu posicionamento no campo da verdade. Vislumbramos duas modalidades. Primeira, onde a verdade é produzida, direta ou indiretamente, sempre no lugar do Outro, mesmo quando se trata da verdade sobre o sujeito, tendo em vista que este é duplamente ignorante. Segunda, onde a verdade só pode ser produzida no lugar do si mesmo, posto que se refere à sua relação singular com a vida, e onde o Outro aparece como facilitador da autonomia do sujeito nessa produção.

Referências

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  • Hadot, P. (1999). O que é a filosofia antiga?São Paulo, SP: Loyola.
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    Todas as traduções realizadas a partir do original francês são traduções nossas. A título de organização estética do texto, suprimiremos essa indicação nas próximas citações.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    03 Set 2019
  • Aceito
    11 Jul 2020
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