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O DESENVOLVIMENTO DOS OBJETOS TRANSCENDENTES E DA RELIGIÃO FUNDAMENTADO NA TEORIA FREUDIANA

EL DESARROLLO DE LOS OBJETOS TRASCENDENTES Y DE LA RELIGIÓN BASADOS EN LA TEORÍA FREUDIANA

RESUMO

Talvez, o homem seja o único dos entes a ter e a estabelecer relações com certos ‘objetos’ que ultrapassam a sua realidade material transcendendo-a para designar outra realidade para além da física. Dentre eles, poderíamos caracterizar como sendo ‘Objetos Transcendentes’ (e. g. Deus, por excelência, assim como o Demônio e outras entidades deste universo, quer passíveis de aceitação, aversão ou rejeição) aqueles que constituem a base para o desenvolvimento de sentimentos e de ideias religiosas e podem, também, ser entendidos (na sua origem, sentido e função) sob perspectiva da psicanálise. Nesse sentido, delimitando nossa proposta de análise, este artigo se propõe a analisar estes objetos a partir do ponto de vista de Sigmund Freud almejando e, com isto, analisar sua origem nos processos de sublimação da sexualidade e nos processos projetivos e identificatórios que caracterizam o desenvolvimento emocional do ser humano. Tal compreensão pode auxiliar na compreensão e intervenção clínica com aqueles que se relacionam com esses objetos ocupam um lugar central em seus modos de ser e estar no mundo, bem como com área da psicologia da religião em suas investigações.

Palavras-chave:
Psicanálise e religião; psicologia da religião; Freud

RESUMEN

Quizás, el Hombre es la única de las entidades que tiene y establece relaciones con ciertos ‘objetos’ que van más allá de su realidad material, trascendiéndola para designar otra realidad además de la física. Entre ellos, podríamos caracterizar como ‘Objetos Trascendentes’ (ej. Dios, por excelencia, así como el Demonio y otras entidades de este universo, ya sean sujetos a aceptación, aversión o rechazo) a aquellos que constituyen la base para el desarrollo de los sentimientos y ideas religiosas y también pueden ser entendidas (en su origen, significado y función) por el psicoanálisis. En este sentido, delimitando nuestra propuesta de análisis, este artículo propone analizar estos objetos desde el punto de vista de Sigmund Freud apuntando y, con ello, analizar su origen en los procesos de sublimación de la sexualidad y en los procesos proyectivos e identificativos que caracterizan el desarrollo emocional de los seres humanos. Tal comprensión puede ayudar en la comprensión e intervención clínica con quienes se relacionan con estos objetos que ocupan un lugar central en sus formas de ser y estar en el mundo, así como con el área de Psicología de la Religión en sus investigaciones.

Palabras clave:
Psicoanálisis y religión; psicología de la religión; Freud

ABSTRACT

Perhaps, man is the unique entity to have and establish relationships with certain ‘objects’ that go beyond their material reality, transcending it to designate another reality beyond the physical. Among them, we could characterize as ‘Transcendent Objects’ (e.g. God, par excellence, such as the Devil and other entities belonging to this universe, whether subject to acceptance, aversion or rejection) those responsible for constituting the basis for developing feelings and religious ideas, and they can also be understood (in their origin, sense and function) from the perspective of psychoanalysis. Therefore, delimiting our proposal of analysis, this article aimed to analyze such objects from the point of view of Sigmund Freud, thus, analyzing their origin in the processes of sublimation of sexuality and in the projective and identification processes that characterize the emotional development of the human being. Such understanding can assist in clinical intervention of cases where there is a personal relationship or a centrality of these objects in personal experiences, as well as with the area of psychology of religion in its investigations.

Keywords:
Psychoanalysis and religion; psychology of religion; Freud

Introdução

Os modos pelos quais o homem se relaciona com a religião e com representações e objetos sagrados sempre foi um tema da psicologia científica nos seus mais diversos paradigmas. Dentre os pioneiros, podemos destacar Wilhelm Wundt (1832-1920), William James (1842-1910), Sigmund Freud (1856-1939) e Carl Gustav Jung (1875-1961) (Rodrigues & Gomes, 2013Rodrigues, C. C. L., & Gomes, A. M. A. (2013). Teorias clássicas da psicologia da religião. In J. D. Passos, & F. Usarski (Eds.), Compêndio de ciência da religião (p. 333-345). São Paulo, SP: Paulinas Paulus.). Delimitando nosso foco de análise, pretendemos, nesse artigo, apresentar a compreensão de como ocorre o desenvolvimento dos objetos transcendentes do ponto de vista da teoria do desenvolvimento da sexualidade de S. Freud, compreendida como uma das teorias do desenvolvimento humano. Nesta direção, colocamo-nos as seguintes questões: “É possível encontrar na teoria freudiana uma fundamentação a respeito de como os Objetos Transcendentes se desenvolvem? Se sim, como essa teoria sugere ocorrer o desenvolvimento destes objetos? Qual a relação dos objetos transcendentes com a religião?”.

Para iniciarmos, retomemos o que estamos denominando por ‘Objetos Transcendentes’. Dentre os referentes empíricos destes objetos, podemos citar ‘Deus’ em suas múltiplas expressões, quer em contextos religiosos ou quando se faz objeto de estudos ou de produções artísticas e culturais. Optamos pelo uso do termo ‘objeto’ para delimitar o tema de estudo e de que estes objetos participam da psicodinâmica afetiva e simbólica de indivíduos e grupos. O adjetivo ‘transcendentes’ é aqui atribuído pelo fato de estes objetos fazerem referência a algo que pode ser considerado ‘sagrado’ ou que seja apto a alcançar esta condição. Nesta compreensão, os objetos transcendentes podem ser quaisquer ‘coisas’ que ultrapassam o sentido comum atribuído à existência física ou abstrata e passam a ter qualidades metafísicas, como poderes ou atributos extraordinários, por vezes mágicos ou pertencentes a algo que vai para além do nosso mundo fenomênico (Marques, 2019Marques, T. G. (2019). O desenvolvimento dos objetos transcendentes e da religião fundamentado nas obras de Freud e de Winnicott (Dissertação de Mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo. ).

Nas diversas denominações religiosas ou quando uma conotação religiosa é empregada, costumam ser encontradas ‘entidades’ ou ‘objetos’ que fundamentam e organização de cultos, crenças, dogmas, liturgias etc. Segundo Paiva et al. (2009Paiva, G. J., Zangari, W., Verdade, M. M., Paula, J. R. M., Faria, D. G. R. d., & Gomes, D. M. (2009). Psicologia da religião no Brasil: a produção de periódicos e livros. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 25(3), 441-446. ), ‘Deus’ é a denominação mais frequentemente atribuída ao objeto transcendente, especialmente no ocidente, porém, ela pode variar conforme a cultura que se considere. Outras referências ao transcendente também podem ser encontradas em objetos concretos (amuleto, patuá, fio de contas, escapulário, ...), representações abstratas (anjo, guardião, Diabo, o Mal, Sagrado Feminino, Sagrado Masculino, espíritos, ...), na menção a espaços da comunidade (templos, igrejas, locais de louvor, grupos de oração, ...) ou ainda em comportamentos intencionados ou em função de um transcendente sagrado (oração, prece, adoração, culto, feitiçaria, ...).

Os referentes desses objetos ultrapassam, pois, a realidade física, levando-os para um ‘além’ ou para uma instância metafísica de cunho místico-religiosa. Via de regra, são objetos investidos de afeto pelo indivíduo ou pelo grupo social que o reconhece como tal, sendo possível observar a existência de diversos posicionamentos frente a eles (e. g. aceitação, negação, conflito, afastamento, adoração, providência).

Uma vez contextualizados, podemos dizer que os objetos transcendentes são intimamente relacionados à conduta humana. De acordo com Belzen (2009Belzen, J. (2009). Psicologia cultural da religião: perspectivas, desafios, possibilidades. Rever, 9(4), 1-29. ), a conduta humana é sempre preenchida de significados que podem ser analisados por meio das narrativas, as quais contêm símbolos, conceitos e palavras que são estimuladores e organizadores de fenômenos psicológicos. Tais narrativas contêm e apresentam expressões existenciais que podem auxiliar na análise psicoemocional, haja vista que os objetos transcendentes participam de dinâmica relacional, não somente no espaço propriamente religioso, mas também nas situações cotidianas.

Entretanto, as narrativas às quais nos referimos não se restringem ao transcendente da instituição religiosa. Elas podem ser identificadas em outros contextos nos quais algo tenha alcançado uma importância fundamental e organizadora que possa ser considerada como ‘sagrada’ (Paloutzian, 2017Paloutzian, R. (2017). Psicologia da religião na perspectiva global: lógica, abordagem e conceitos. In M. R. G. Esperandio, & M. H. Freitas (Eds.), Psicologia da religião no Brasil: história, pesquisa e ensino (p. 25-44). Curitiba, PR: Juruá .). Neste caso, expressões desta natureza pressupõem a existência de representações que em algum grau organizam pensamentos, comportamentos e rotinas em função de algo valorizado como sagrado, mesmo sem o sentido místico ou religioso.

Expressões coloquiais que fazem uma referência implícita a algo sagrado podem ser somadas às expressões existenciais que se direcionam especificamente ao sagrado religioso. Em resumo, propomos considerar como objetos transcendentes as denominações que vão além do sentido comum de objetos físicos e de representações abstratas e que podem alcançar uma valorização tida como ‘sagrada’, organizar comportamentos e sentimentos, mesmo que não inseridos em uma denominação religiosa institucionalmente (Marques, 2019Marques, T. G. (2019). O desenvolvimento dos objetos transcendentes e da religião fundamentado nas obras de Freud e de Winnicott (Dissertação de Mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo. ).

Neste sentido, o caráter transcendente se torna perceptível à medida que o objeto concreto ou abstrato recebe um sentido ou poder além da realidade imanente do próprio objeto, sendo que a valorização do objeto como algo ‘sagrado’ o eleva a uma dimensão transcendente. Esta nova condição segue estruturando e organizando o cotidiano, as percepções a respeito da realidade, das relações de causa e efeito e de interferência sob o destino e ciclo das coisas em geral. Mesmo passando por ações que visam a manutenção do seu caráter sagrado, o objeto transcendente não é imutável, pois se modifica à medida que surgem novas atribuições de sentido, podendo, ainda, ser inutilizado ou substituído.

Adicionalmente, estamos considerando, neste artigo, o objeto transcendente como a base ou, no mínimo, como um elemento fundamental para a estruturação de instituições religiosas ou a elas semelhantes. Por religião, aqui, consideraremos as instituições cujas práticas visam alguma interação com objetos transcendentes, por meio da direção e organização de práticas cotidianas, sentidos para vida, para enfrentamento das adversidades e de afetos que podem ser experimentados, vivenciados e significados individual e coletivamente.

Uma vez feita a contextualização a respeito do nosso objeto de estudo, seguiremos para uma análise da obra psicanalítica de Sigmund Freud. Objetivamos como a obra freudiana pode colaborar e nos proporcionar uma base teórico-clínica capaz de auxiliar no estudo do desenvolvimento dos objetos transcendentes, da função destes no surgimento e estabelecimento de religiões, bem como alguns limites nela presentes. Tendo em vista a ocorrência de narrativas com referências ao transcendente, quer inserido na religião institucionalizada ou não, o estudo destes objetos pode auxiliar na compreensão e na investigação da constituição psicodinâmica de usuários de serviços de psicologia e psicanálise. Já na esfera acadêmica, esperamos proporcionar um estudo de perspectiva desenvolvimental, auxiliando psicólogos, psicanalistas e pesquisadores da obra freudiana ou da psicanálise em suas pesquisas e formação.

Método

Visando os objetivos acima, foi realizado um levantamento dos trabalhos de Sigmund Freud buscando os textos nos quais realizara estudos ou análises em que os objetos transcendentes ou a religião fossem apresentados nos títulos ou nos primeiros parágrafos. Também selecionamos para análise os textos freudianos costumeiramente citados em pesquisas da área da psicologia da religião. Após este levantamento, foi realizada uma análise hermenêutica dos textos seguindo a ordem cronológica de publicação, com o propósito de destacar os pressupostos da teoria freudiana até o momento de cada publicação e a influência do referido texto nos trabalhos e elaborações conceituais subsequentes.

Resultados e discussão

Dentre os principais textos que abordaram a temática objetivada neste estudo, podemos destacar ‘Sobre a psicopatologia da vida cotidiana’ (1996a), ‘Atos obsessivos e práticas religiosas’ (2015bFreud, S. (2015b). Atos obsessivos e práticas religiosas (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 8, p. 300-313). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1907.), ‘Totem e Tabu’ (2012bFreud, S. (2012b). Totem e Tabu (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 11, p. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1912.), ‘Uma neurose do século XVII envolvendo o demônio’ (2011c), ‘Uma experiência religiosa’ (2014bFreud, S. (2014b). Uma experiência religiosa (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 17, p. 331-336). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1928. ), ‘O futuro de uma ilusão’ (2014aFreud, S. (2011a). O eu e o id (P. C. d. Souza, trad.). In Viçosa, MG: Ultimato. Obras completas (1a ed., Vol. 16, p. 13-74). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Original publicado em 1923.), O mal-estar na civilização (Freud, 2010bFreud, S. (2010b). O mal-estar na civilização (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 18, p. 13-121). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1930.) e ‘Moisés e o monoteísmo’ (2018bFreud, S. (2018b). Moisés e o monoteísmo: três ensaios (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 19, p. 13-188). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1939.).

Em geral, Freud costumava relacionar a religião e os objetos transcendentes a um determinismo psíquico derivado das imagos infantis, especialmente a paterna e com os mecanismos de defesa em um processo dinâmico de elaborações. Nos textos analisados, constantemente são pontuados os aspectos da ambivalência emocional, do papel da libido e do sentimento de culpa os quais se inter-relacionam em processos que levam ao surgimento de representações transcendentes do sagrado, mas não se limitando às de caráter religioso.

Objetos transcendentes e representações do sagrado

Um dos primeiros textos em que Freud fez considerações a respeito da religião foi ‘Atos obsessivos e práticas religiosas’ (Freud, 2015bFreud, S. (2015b). Atos obsessivos e práticas religiosas (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 8, p. 300-313). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1907.). Naquele trabalho, publicado em 1907, Freud propôs que os atos obsessivos de uma pessoa neurótica poderiam ser comparados com os atos de uma pessoa religiosa. Tal comparação consistira no fato de que os comportamentos ritualísticos e de expiação realizados por uma pessoa neurótica também poderiam ser realizados pela pessoa religiosa. Entretanto, a diferença entre estes comportamentos estaria no contexto em que são praticados: ao neurótico obsessivo seria atribuído caráter patológico por serem realizados na vida particular e secreta, já os da pessoa religiosa não teriam um caráter patológico por serem realizados no âmbito coletivo, fazendo com que uma expiação por um ato pessoal encontrasse na ação coletiva uma forma de escapar da censura.

Apesar de não encontrarmos neste primeiro texto uma perspectiva clara de desenvolvimento dos objetos transcendentes, podemos observar nele o posicionamento inicial de Freud. Para ele, tanto para a pessoa neurótica quanto para a pessoa religiosa, há alguma culpa, consciente ou não, a qual encontra no ato ritualístico uma tentativa de expiação de um crime cometido, mesmo que na fantasia, ou de um desejo censurável (Freud, 2015bFreud, S. (2015b). Atos obsessivos e práticas religiosas (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 8, p. 300-313). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1907.). Tal posicionamento é um dos elementos que se mantém constante em todos os textos analisados e norteia o entendimento freudiano a respeito do surgimento e função das religiões.

Após 1907, encontramos trabalhos com mais foco no estudo das religiões e hipóteses que podem indicar a perspectiva freudiana. Dentre eles, em ‘Totem e Tabu’ (Freud, 2012bFreud, S. (2012b). Totem e Tabu (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 11, p. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1912.), em ‘Uma neurose demoníaca do século XVII’ (Freud, 2011cFreud, S. (2011a). O eu e o id (P. C. d. Souza, trad.). In Viçosa, MG: Ultimato. Obras completas (1a ed., Vol. 16, p. 13-74). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Original publicado em 1923.) e em ‘Uma experiência religiosa’ (Freud, 2014bFreud, S. (2014b). Uma experiência religiosa (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 17, p. 331-336). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1928. ), encontramos referências básicas sobre o surgimento e uso dos objetos transcendentes, bem como análises propriamente psicanalíticas a respeito das representações de ‘Deus’ e do ‘Diabo’.

Em ‘Totem e Tabu’ (Freud, 2012bFreud, S. (2012b). Totem e Tabu (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 11, p. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1912.), o tema da origem das religiões se tornou o foco a partir da perspectiva social e antropológica. Ao longo de sua investigação, Freud tomou por base trabalhos a respeito das religiões totêmicas bastante discutidos naquela época. De modo geral, pode-se observar o interesse de Freud sobre a temática e a investida pessoal em aplicar a psicanálise de modo a reafirmar a importância da sexualidade na formação do pensamento e hábitos religiosos. Dentre as bases para a análise proposta por Freud, a ancestralidade, a interdição ao incesto e a necessidade exogamia são importantes para a constituição de objetos (locais, artefatos, pessoas, animais e vegetais) de valor sagrado (totens), os quais remetem à ancestralidade e regulamentam as relações com a natureza e com a comunidade, organizando as interdições e regras impostas (tabus). Vale destacar que, partindo da perspectiva antropológica, Freud considerou que os totens fazem referência a algo ou a um acontecimento importante para um ancestral e, graças a mecanismos de defesa como o deslocamento e a condensação, outros objetos poderiam receber atribuições de alto valor a ponto de também se tornarem sagrados.

Para o nosso objetivo neste artigo, o ápice da análise em ‘Totem e Tabu’ (Freud, 2012bFreud, S. (2012b). Totem e Tabu (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 11, p. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1912.) é a proposta de um ‘mito’ para ilustrar o que Freud supunha ter ocorrido em tempos primevos: o assassinato do pai primevo. Neste mito hipotético, os homens viveriam aglomerados em hordas sob a liderança de um macho mais velho, o qual teria a primazia das relações sexuais com as fêmeas do grupo e deixaria todos os machos mais jovens subjugados e estes, por sua vez, teriam de sair do grupo para raptar suas próprias fêmeas ou aceitar a posição subjugada. Entretanto, em algum momento, um grupo de machos ‘irmãos’ teria se organizado para destituir e assassinar o pai primevo.

Considerando estes primeiros humanos como canibais, Freud supôs que este grupo teria comido o corpo do pai assassinado e passaram a realizar comemorações. Tais comemorações ou celebrações fariam com que a culpa fosse compartilhada pelos integrantes à medida que o evento traumático era relembrado. A culpa, agora compartilhada, seria aplacada por sacrifícios expiatórios oferecidos à alma do ancestral de modo a evitar o seu retorno e seus atos vingativos. O próprio Freud (2012bFreud, S. (2010b). O mal-estar na civilização (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 18, p. 13-121). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1930.) informou que o mito da horda primeva possui um caráter hipotético, o qual foi elaborado a partir de diversas fontes as quais foram apresentadas em sua argumentação. Além de ser uma hipótese de cunho antropológico amparada por suas leituras da época, as experiências clínicas que Freud teve a respeito do medo da castração pelo macho mais velho deslocado para objetos fóbicos (Freud, 2015aFreud, S. (2015a). Análise da fobia de um garoto de cinco anos. In S. Freud. Obras completas (Vol. 8, p. 123-284). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Original publicado em 1909.) podem ser identificadas no mito proposto.

Retomando, Freud propôs que o desenvolvimento de representações de espíritos maus e, posteriormente, dos deuses, teria ocorrido, em sua base, por meio do culto a estas entidades como uma tentativa coletiva de aplacar o ancestral assassinado, evitar seu retorno e unir os filhos por meio da participação solidária nas cerimônias expiatórias da culpa experimentada. Além disso, assim como no ocorrido com a horda primeva, a conflitiva edípica que os meninos ainda passam à medida que se desenvolvem continua sendo geradora de culpa e remorso capazes de provocar a necessidade de apaziguamento e a tentativa de evitar o retorno vingativo do pai ‘assassinado’ ou atacado afetivamente. Assim, em ‘Totem e Tabu’ (Freud, 2012bFreud, S. (2015b). Atos obsessivos e práticas religiosas (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 8, p. 300-313). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1907.), a argumentação é de que as representações do transcendente (tais como espíritos, deuses, demônios etc.) seriam derivadas da imago paterna e do processo psicodinâmico individual e coletivo pelos quais esta imago passou até alcançar uma forma representativa.

Em 1923, Freud elaborou outro trabalho com as formulações apresentadas em 1912. Em Uma neurose do século XVII envolvendo o demônio’ (2011cFreud, S. (2011c). Uma neurose do século XVII envolvendo o demônio (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 15, p. 225-272). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1923.), Freud se dedicou a analisar um caso histórico de um pintor que fizera um pacto com o diabo e cujo prazo estava por se encerrar. Na análise em foco, Freud retomou sinteticamente as ideias propostas nos idos de 1912.

Para começar, sabemos que Deus é um substituto paterno, ou, mais corretamente, que ele é um pai exaltado, ou, ainda, que constitui a cópia de um pai tal como este é visto e experimentado na infância - pelos indivíduos em sua própria infância, e pela humanidade em sua pré-história, como pai da horda primitiva e primeva. Posteriormente na vida, o indivíduo vê seu pai como diferente e menor. Porém, a imagem ideativa que pertence à infância é preservada e se funde com os traços de memória herdados do pai primevo para formar a ideia que o indivíduo tem de Deus. Sabemos também, da vida secreta do indivíduo revelada pela análise, que sua relação com o pai foi talvez ambivalente desde o início, ou, pelo menos, cedo veio a ser assim. Isso equivale a dizer que ela continha dois conjuntos de impulsos de natureza afetuosa e submissa, mas também impulsos hostis e desafiadores. É nossa opinião que a mesma ambivalência dirige as relações da humanidade com sua Divindade. O problema não solucionado entre o anseio pelo pai, por um lado, e, por outro, o medo dele e o seu desafio pelo filho, nos proporcionou uma importante característica da religião e de decisivas vicissitudes nela (Freud, 1996bFreud, S. (1996b). Uma neurose demoníaca do século VII (J. O. d. A. Abreu, trad.). In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira (Vol. XIX, p. 85-138). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Original publicado em 1923., p. 103).

Nesta passagem, encontramos uma síntese do desenvolvimento das representações presentes em grande parte das religiões. Tais representações, Deus e Diabo, são, para Freud, resultantes das relações com o pai (real, fantasiado ou perdido) que, passando pelas ambivalências dos impulsos de amor e ódio, se fundem com os traços das representações presentes na memória coletiva (pode-se dizer que presente na memória encontrada na história cultural da comunidade), criando, assim, a imagem do Deus ou do Diabo com as quais o indivíduo se relaciona no presente. Apesar do foco nas representações transcendentes, a importância dos traços presentes na ‘herança histórica’ é algo que se expande a outros aspectos da vida humana (Freud, 2018aFreud, S. (2018a). Compêndio de psicanálise (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 19, p. 189-273). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Original publicado em 1940.).

As afirmações de Freud em ‘Uma neurose demoníaca do século XVII’ proporcionam um entendimento que se soma a ‘Totem e Tabu’. De modo geral, as representações abstratas dos objetos transcendentes (Deus, Demônio, espíritos etc.) surgem graças à relação com o ancestral imediato e se somam aos traços presentes na comunidade (incluindo dos ancestrais no âmbito coletivo e de suas outras representações) constituindo, assim, representações sagradas de alto valor afetivo. Já os objetos transcendentes materiais (locais, animais, artefatos, objetos em geral etc.) consistem em objetos da realidade comum que se tornariam sagrados graças a um acontecimento marcante com uma figura de valor para a comunidade e, especialmente, para o indivíduo com o qual há um vínculo. Neste caso, os afetos para com o ancestral pessoal se deslocam para a representações já existentes no âmbito coletivo ou para outras mais privativas, mas que passam a ser compartilhadas conforme o tempo passa e o culto a eles se torna mais frequente.

Uma hipótese sobre o surgimento das religiões

Para Freud, as religiões mais complexas teriam sido derivadas de um processo evolutivo do pensamento humano. De modo geral, as religiões consistiriam em uma forma de conhecimento, interação e intervenção sobre o mundo natural e, posteriormente, passaram a constituir formas de regulação moral. Ao longo dos textos analisados, verificamos que representações do sagrado são fundamentais para os sistemas religiosos, tais como o animismo e o totemismo (Freud, 2012bFreud, S. (2012b). Totem e Tabu (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 11, p. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1912.) e o politeísmo e o monoteísmo (Freud, 2018bFreud, S. (2018b). Moisés e o monoteísmo: três ensaios (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 19, p. 13-188). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1939.).

Ao longo da obra de Freud, podemos observar a ocorrência de algumas mudanças de perspectiva a respeito da dinâmica da religião. Nos primeiros trabalhos publicados, destacamos o caráter psicopatológico atribuído à religião principalmente quando constituída por hábitos ritualísticos basicamente individuais e não integrados à vida social, com destaque à análise das pulsões sexuais nas neuroses e nas neuroses obsessivas (Freud, 1996aFreud, S. (1996a). Sobre a psicopatologia da vida cortidiana (V. Ribeiro, trad.). In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XI, p. 13-279). Rio de Janeiro, RJ: Imago . Original publicado em 1901., 2015b). Segundo Freud, estes hábitos se originavam como tentativas de lidar com libido reprimida pela censura.

Em ‘Totem e Tabu’ (Freud, 2012bFreud, S. (2012b). Totem e Tabu (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 11, p. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1912.) há diversos pontos que apresentam o interesse freudiano sobre as religiões. Chamamos a atenção para a proposta de Freud quanto à hierarquia da qual a religião participaria. Na perspectiva freudiana, esta hierarquia parte da premissa que o ser humano evoluiu à medida que abandonou o pensamento mágico e passou a pensar de modo mais abstrato e empirista. Neste sentido, saindo de um pensamento mágico-onipotente rumo a uma forma objetiva de vida em sociedade e ação sobre a realidade, o animismo estaria em uma posição básica da hierarquia e a religião estaria em um grau intermediário, enquanto a filosofia e a ciência seriam as mais evoluídas. Segundo Wondracek (2003Wondracek, K. H. K. (2003). O futuro e a ilusão: um embate com Freud sobre psicanálise e religião: Oskar Pfister e autores contemporâneos Petrópolis, RJ: Vozes.), nesta hierarquização do modo de conhecimento do qual a religião participaria é possível observar a influência do pensamento de Auguste Comte na formação científica de Freud, pois este modelo hierárquico marcou a ciência nos séculos XIX e XX.

Segundo Freud, no animismo as ações são realizadas com o intuito de intervirem eventos na realidade, evitando ou favorecendo os acontecimentos, e seriam mais associadas a uma ação mágica por semelhança com a ação natural (Freud, 2012bFreud, S. (2012b). Totem e Tabu (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 11, p. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1912.). Um exemplo seria a dança da chuva, na qual se joga água para o alto e sua queda, semelhante à chuva natural, favoreceria a ocorrência de chuva.

Os feitiços também seriam realizados no intuito de intervir em algo, mas são diferentes dos atos mágicos. Segundo Freud (2012bFreud, S. (2012b). Totem e Tabu (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 11, p. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1912.), nos feitiços a ação seria indireta, necessitando de uma entidade intermediária para que a ação desejada ocorresse ou fosse evitada. Tais entidades poderiam ser consideradas como manifestações mais ou menos complexas da ideia de alma, sendo o poder e a capacidade destas entidades algo relevante para que fossem solicitadas nas respectivas empreitadas. Em uma escala simplificada, teríamos alma - espíritos - guardiões - gênios, anjos/demônios - deuses, sendo todos eles derivados de ancestrais individuais ou comunitários que passaram pelo processo de elaboração anteriormente abordado sob o tópico anterior.

Apesar de os feitiços se diferenciarem dos atos mágicos pela participação de entidades, para Freud o animismo ainda não poderia ser considerado como religião. Tal compreensão se deve principalmente pelo fato de que no animismo ainda não há uma organização sistematizada que visasse a regulação moral dos atos para com estas entidades e, por consequência, das relações sociais entre os membros do grupo. A importância da religião nesta organização social aparece especialmente à medida que interdições ao incesto, a regulação das relações sexuais e as hierarquias internas e externas do grupo vão sendo sistematizadas.

Mesmo que o animismo não tenha sido considerado uma religião por Freud, podemos inferir uma relação entre os atos mágicos e o pensamento onipotente, assim como os atos de feitiçaria com a passagem para a relação triádica e a necessidade de participar um terceiro elemento para que algo ocorra. Nesta lógica, a religião se estabeleceria à medida que os pensamentos e atos mágicos na relação do indivíduo com a realidade cedesse espaço para as dinâmicas edípicas, bem como a expiação da culpa por meio de cerimônias e rituais coletivos passasse a ocorrer. Assim, não é apenas a passagem para a relação triádica, mas a culpa vivenciada pela morte (real/simbólica) do ancestral somada aos atos ritualísticos, à exogamia e ao estabelecimento agente moral internalizado (Freud, 2011aFreud, S. (2011a). O eu e o id (P. C. d. Souza, trad.). In Viçosa, MG: Ultimato. Obras completas (1a ed., Vol. 16, p. 13-74). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Original publicado em 1923.) o cenário base para a passagem do animismo para o surgimento da primeira religião, a qual, segundo Freud, seria o totemismo.

Se entendermos que o totemismo constitui um ponto fundamental e constante na obra de Freud, dois pontos precisam ser destacados: a importância da herança do totem e a função do deslocamento. A respeito do primeiro, o totemismo era objeto de diversos estudos e especulava-se que ele seria a primeira religião (Durkheim, 1996Durkheim, É. (1996). As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália (P. Neves, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes.). Tais estudos demonstravam que no totemismo havia uma interdição sobre o relacionamento sexual entre membros do mesmo totem e que os novos integrantes e descendentes do clã passavam a pertencer ao clã materno ou paterno. A título de exemplo, se a linhagem masculina em um clã era a base, os homens deveriam ter relações com mulheres de outros clãs, sendo que elas e seus filhos passariam, então, a pertencer ao mesmo clã do homem e vice-versa.

Considerando o totemismo como a primeira religião, ‘Totem e Tabu’ (Freud, 2012bFreud, S. (2012b). Totem e Tabu (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 11, p. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1912.) fornecem uma base a respeito da importância dos objetos transcendentes e comportamentos a eles relacionados para o surgimento das religiões, inclusive as poli e monoteístas. Dentre eles, o trabalho de Freud traz para a discussão psicanalítica a importância do sagrado nas relações em comunidade e coloca os totens como um elemento norteador destas relações. Segundo Freud, os locais, animais, vegetais, pessoas da comunidade, eventos naturais e situações da vida humana são passíveis de se tornarem totens e, quando nesta condição, tais elementos passam ao patamar sagrado.

Uma vez nesta condição, uma série de restrições e normas (tabus) são aplicadas quando da interação com o sagrado (totens). De modo geral, os totens podem ser entendidos nessa análise como uma expressão dos objetos transcendentes na religião totêmica e podem auxiliar na compreensão de expressões em outras religiões, haja vista que as religiões possuem algum elemento de valor sagrado que norteia diversos aspectos do grupo tais como culto, a doutrina, as relações internas e externas. Também é identificada a importância destes na constituição de uma tribo ou comunidade, da noção de ancestralidade, de identificação do grupo, dentre outros. Em ‘Totem e Tabu’ encontramos estas questões sendo analisadas em uma perspectiva mais antropológica e com a figura paterna como organizadora do surgimento das religiões, mas esta perspectiva não é a única nos trabalhos freudianos.

Outro ponto abordado por Freud como determinante para o surgimento ou não da religião pessoal, é a questão das pulsões. Um destino alternativo para as pulsões sexuais não tão permeado pela censura pode ser identificado na análise de Freud a respeito da biografia de ‘Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci’ (Freud, 2013Freud, S. (2013). Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 9, p. 113-219). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1910.). Ao invés da censura exercida sobre a libido e da formação dos hábitos religiosos as habilidades artísticas e o interesse científico são apresentados como formas alternativas de sublimação dos desejos sexuais. A interpretação freudiana é de que a aptidão pela ciência e a inventividade puderam ser marcantes na trajetória de Leonardo, graças à ausência de seu pai e à participação materna nos primeiros anos de sua vida.

Por outro lado, a ausência do pai nos primeiros anos está diretamente relacionada a uma forma particular da dinâmica edípica: não havendo um pai, os aspectos de rivalidade e de receio da castração, por exemplo, teriam sido vivenciados de um modo específico ou nem os teriam sido. Nesta hipótese, o cenário não provocaria culpa nem receio da castração capazes de gerar comportamentos básicos para o comportamento religioso.

Assim, na análise freudiana, não havendo o contexto propício para a religião, Leonardo teria passado para formas mais ‘evoluídas’ na hierarquia de modos de interação com a realidade, como a ciência e a arte (Freud, 2013Freud, S. (2013). Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 9, p. 113-219). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1910.), os quais foram mencionados anteriormente. Vale lembrar que na análise proposta por Freud, a questão da sublimação da sexualidade também foi interpretada e deve ser considerada em uma perspectiva macro a respeito daquela análise, pois o interesse de Freud era sobre a vida amorosa e a análise de uma personalidade marcante e enigmática que não tivera uma crença religiosa ativa em um Deus, mesmo tendo se dedicado a obras sacras.

Outro trabalho de impacto para os estudos psicanalíticos sobre a religião foi ‘O futuro de uma ilusão’ (Freud, 2014aFreud, S. (2014a). O futuro de uma ilusão (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 17, p. 231-301). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1927.), no qual foi apresentado um posicionamento pessimista de Freud a respeito das organizações religiosas e do pensamento religioso. Nele, Freud trouxe para o meio psicanalítico a religião como um pensamento ilusório que visava lidar ou influenciar o mundo de modo pueril. Também influentes neste posicionamento, os casos de neuroses trabalhados e estudados até então foram marcantes para que Freud afirmasse que a religião configurava uma forma ‘infantil’ de lidar com o mundo e de censurar a sexualidade, a qual deveria, ao invés disso, ser motriz para a saúde e a elaboração de formas mais evoluídas.

Segundo Freud (2014aFreud, S. (2014a). O futuro de uma ilusão (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 17, p. 231-301). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1927.), à medida que não há um enfrentamento das adversidades e da realidade de modo objetivo, a ilusão se configura como uma espécie de fuga e, neste caso, a religião seria, ao mesmo tempo, a fomentadora e o resultado desta fuga. Encontramos, aqui, a influência da segunda tópica a respeito do aparelho psíquico ao dizer que a permanência em um estado ilusório é algo negativo e maior maturidade implicaria em uma passagem do princípio do prazer para o princípio da realidade. Vale lembrar que Freud não considerava a ilusão necessariamente um erro, mas uma tentativa de autoengano que deveria ser superada e proporcionar uma ação direta sobre a realidade de modo prático e não por meio de formulações abstratas ou mágicas. Pode-se observar em ‘O Futuro de uma ilusão’, novamente, a indicação da ciência como um meio ‘destinado’ a substituir a religião ou, ainda, de que o deus místico fosse substituído pelo deus logos.

A partir de 1930 algumas mudanças no pensamento freudiano podem ser observadas. Influenciado por outros psicanalistas, dentre eles Oscar Pfister e sua resposta a Freud (Wondracek, 2003Wondracek, K. H. K. (2003). O futuro e a ilusão: um embate com Freud sobre psicanálise e religião: Oskar Pfister e autores contemporâneos Petrópolis, RJ: Vozes.), encontramos em ‘O mal-estar da civilização’ (Freud, 2010b) um posicionamento mais positivo ao colocar claramente a religião em um status equivalente a outras formas de conhecimento tidas como sendo ‘mais evoluídas’.

Em ‘O mal-estar na civilização’ (Freud, 2010bFreud, S. (2010b). O mal-estar na civilização (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 18, p. 13-121). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1930.), um dos pontos centrais do estudo é o aspecto cultural considerado por Freud. Sob a dimensão cultural, o qual também é recomendado nos estudos contemporâneos sobre a religião (Paiva, 2017Paiva, G. J. (2017). Psicologia da religião no Brasil: história, resultados e perspectivas. In M. R. G. Esperandio, & M. H. Freitas (Eds.), Psicologia da religião no Brasil (p. 47-59). Curitiba, PR: Juruá.), Freud coloca a religião mais equivalente à filosofia e à ciência como formas de conhecer o mundo. Inclusive, a religião foi considerada como uma fonte de modelos para o comportamento humano e de condições básicas para o desenvolvimento da civilização, como a moral.

A ideia de que a moralidade é uma precondição para o desenvolvimento da civilização, tem como base o caráter inconsequente da animalidade humana que precisa ser ‘domesticado’ para que seja possível alcançar condições da vida em sociedade. Neste entendimento, a religião seria uma das primeiras, senão a primeira, tentativas de organizar a vida em sociedade, bem como as regras, os direitos, as condutas e resoluções de conflitos, ou seja, uma moralidade. Ainda a respeito da instauração da moralidade, em ‘O mal-estar na civilização’ (Freud, 2010bFreud, S. (2010b). O mal-estar na civilização (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 18, p. 13-121). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1930.) há uma continuidade das elaborações presentes em ‘O eu e o id’ (Freud, 2011a), pois, ao considerar a necessidade de um ‘ego’ advindo de onde está o ‘id’ e, conjugado com o ‘superego’ internalizado, Freud alegou que só assim seria possível a vida em sociedade e o nascimento da civilização.

Entretanto, foi em ‘Moisés e o monoteísmo’ (2018bFreud, S. (2018b). Moisés e o monoteísmo: três ensaios (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 19, p. 13-188). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1939.) que Freud se posicionou de modo claramente diferente a respeito da religião. A figura histórica de Moisés foi um grande interesse de Freud: uma estátua desta figura histórica mereceu um estudo especial em ‘O Moisés de Michelangelo’ (Freud, 2012aFreud, S. (2012a). O Moisés de Michelangelo (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (Vol. 11, p. 373-412). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1914.), além de ser de importância na constituição da história familiar, de origem judaica, e na problemática e desdobramentos da vida pessoal de Freud (Rizzuto, 2001Rizzuto, A. M. (2001). Por que Freud rejeitou Deus? São Paulo, SP: Loyola.).

Ao buscar em estudos históricos sobre a figura de Moisés, Freud (2018bFreud, S. (2018b). Moisés e o monoteísmo: três ensaios (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 19, p. 13-188). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1939.) manteve seu hábito de fazer uma ‘arqueologia’ que pudesse organizar fatos a respeito deste personagem fundamental para grandes grupos: judeus, muçulmanos e cristãos. Ao longo do extenso trabalho, Freud fez diversas incursões em dados arqueológicos e interpretações, psicanalíticas e históricas, como origens de nomes e palavras, períodos e datas, relações com outras figuras históricas, movimentos migratórios, dentre outros.

Em ‘Moisés e o monoteísmo’ há uma marca profunda das ideias apresentadas em ‘Totem e Tabu’ (Freud, 2012bFreud, S. (2012b). Totem e Tabu (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 11, p. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1912.), o que demonstra a constância do pensamento freudiano, mas diversos outros conceitos e dinâmicas individuais (Freud, 2011cFreud, S. (2011c). Uma neurose do século XVII envolvendo o demônio (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 15, p. 225-272). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1923., 2014bFreud, S. (2014b). Uma experiência religiosa (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 17, p. 331-336). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1928. ) aplicados ao comportamento de massa (Freud, 2011bFreud, S. (2011b). Psicologia das massas e análise do eu (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (Vol. 15, p. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1921.) podem ser observados. Dentre eles, o desenvolvimento do mito do herói, a revolta contra o pai castrador e o enaltecimento do pai ou patriarca outrora assassinado, física e/ou simbolicamente, exercem papel decisivo ao longo do trabalho, levando a considerar Moisés como o patriarca de um povo e o seu Deus, Javé, a forma enaltecida das relações deste povo para com seu líder ou, ainda, uma figura divina representativa de diversos líderes condensados na figura do próprio Moisés.

Uma fórmula importante é encontrada em ‘Moisés e o monoteísmo’. Segundo Freud, a fórmula ‘trauma primitivo - defesa - latência - desencadeamento da doença neurótica - retorno parcial do reprimido’ proporciona uma equação auxiliar na análise dos quadros psicopatológicos, mas também pode ser aplicada na análise sobre o surgimento dos objetos transcendentes e da religião. Esta fórmula, quando aplicada nos estudos sobre Moisés, poderia ser apresentada como assassinato do patriarca Moisés (trauma primitivo) - repressão por negação (defesa) - período de exílio do povo judeu e outros infortúnios na fase de latência (desencadeamento) - angústia de abandono (doença neurótica) - retorno de Moisés na representação de Javé em suas várias nuances (retorno do reprimido). Neste caso, se retomarmos as ideias presentes em textos anteriores (Freud, 2010bFreud, S. (2010b). O mal-estar na civilização (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 18, p. 13-121). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1930., 2011cFreud, S. (2011c). Uma neurose do século XVII envolvendo o demônio (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 15, p. 225-272). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1923., 2012bFreud, S. (2012b). Totem e Tabu (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 11, p. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1912.), teríamos no ato cerimonial expiatório recorrente (sacrifícios, festivais, comemorações etc.) o surgimento da religião Judaica, bem como o estabelecimento de um código moral (mandamentos e outros associados).

Esta formulação freudiana é difícil (podemos dizer quase impossível) de ser comprovada. Mesmo sendo uma hipótese, ela tem relação direta com o mito da hora primeva, mas se diferencia em muito dele por proporcionar uma lógica fundamentada em pressupostos psicanalíticos que pode, de alguma forma, ser estudada em casos individuais e coletivos contemporâneos.

Tal como afirmado por Rodrigues e Gomes (2013Rodrigues, C. C. L., & Gomes, A. M. A. (2013). Teorias clássicas da psicologia da religião. In J. D. Passos, & F. Usarski (Eds.), Compêndio de ciência da religião (p. 333-345). São Paulo, SP: Paulinas Paulus.), em ‘Moisés e o monoteísmo’ a função positiva da religião é um substrato de valor para a compreensão freudiana a respeito da religião. Apesar de já presente em ‘O mal-estar da civilização’ (Freud, 2010bFreud, S. (2010b). O mal-estar na civilização (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 18, p. 13-121). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1930.), a moralidade como uma das condições para o convívio em sociedade é um dos temas fundamentais neste trabalho de 1939. ‘Moisés e o monoteísmo’ não se trata apenas de um estudo arqueológico, mas de uma apresentação de como a psicanálise pode ajudar na compreensão de um movimento de massa, na construção de símbolos nacionais e na dinâmica de forças existentes no interior dos grupos por meio da dinâmica da psicologia individual e das relações entre seus membros. Vale ressaltar que, apesar do aspecto de constituição de uma nação ser um elemento bastante presente, de certa forma, a análise tem a premissa de que a nação surge em torno de algo ou alguém (inclusive da religião) e de seus símbolos que, de modo enraizado, também dão uma especificidade para a identidade do grupo enquanto nação.

Críticas podem ser feitas quanto à validade dos dados que foram utilizados na análise proposta por Freud, mas o resultado presente em ‘Moisés e o monoteísmo’ (Freud, 2018bFreud, S. (2018b). Moisés e o monoteísmo: três ensaios (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 19, p. 13-188). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1939.) é em grande parte uma valorização da religião na organização de grupos e na manutenção da civilização, além de encontrarmos uma equiparação da religião com outras formas de transcendência (como a arte, a filosofia e a ciência). Além disso, a religião é colocada efetivamente como uma etapa para o desenvolvimento da civilização em um sentido mais próximo à ideia de construção histórica de um povo e como potencial para a criação de símbolos, representações e ícones capazes de organizar e gerenciar aspectos da vida humana, quer individualmente ou em sociedade. Neste caso, a religião pode ser entendida como o grande ‘berço’ dos objetos transcendentes, mas também que tais objetos são a própria origem das religiões.

Observações adicionais para a análise dos objetos transcendentes e da religião

O posicionamento da teoria freudiana se assemelha ao que Belzen (2009Belzen, J. (2009). Psicologia cultural da religião: perspectivas, desafios, possibilidades. Rever, 9(4), 1-29. ) considerou como uma teoria ‘Crítica’. Teorias psicológicas deste grupo, inicialmente, se posicionam como sendo antirreligiosas e, frequentemente, apontam aspectos negativos do comportamento religioso. Entretanto, posteriormente, tendem a se desenvolver em uma vertente fundamentalista, assemelhando-se às ‘religiões’. Tal tendência, inclusive, foi alertada pelo próprio Freud (2010aFreud, S. (2010a). Novas conferências introdutórias à psicanálise (P. C. d. Souza, trad). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 18, p. 321-354). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1933.) quando orientou a psicanálise a manter uma abertura a diferentes perspectivas de conhecimento e ao afastamento a modos de conhecimento fechados em si mesmos, análogos às religiões fundamentalistas. Além disso, em cartas posteriormente publicadas, encontramos a correspondência entre Freud e Pfister na qual Freud alegara que a psicanálise não é religiosa nem antirreligiosa, mas uma ciência apartidária a serviço de quem sofre (Freud, 2001Freud, S. (2001). Cartas entre Freud e Pfister (1909-1939) (K. H. K. Wondracek & D. Junge, trad). Viçosa, MG: Ultimato.).

Um ponto delicado é a necessidade de termos em conta que, ao analisar o surgimento dos objetos transcendentes e das religiões na perspectiva freudiana, tenderemos a entender que tais objetos de estudo não passam de elaborações psicológicas e, consequentemente, reduzir o sagrado e a religião a mecanismos psíquicos. Mesmo assim, ela é um ponto de partida relevante, especialmente se não for objetivo fazer algum proselitismo nem negar ou afirmar a existência do sagrado (Zangari & Machado, 2016Zangari, W., & Machado, F. R. (2016). Os 10 mandamentos da exclusão metodológica do transcendente: direitos humanos nas relações entre Psicologia, laicidade e religião. In L. E. V. Berni (Ed.), Coleção psicologia, laicidade e as relações com a religião e a espiritualidade (Vol. 2, p. 111-114). São Paulo, SP: Conselho Regional de Psicologia de São Paulo.).

Assim, pode-se observar que o pensamento freudiano não foi estático nem rígido, mas manteve suas bases ao longo do desenvolvimento da obra e do pensamento do autor. Dentre os pontos mais emblemáticos estão o posicionamento psicopatológico presente no início da obra, o caráter ilusório a ser superado na década de 1920 e o retorno da religião inserida no universo da cultura, podendo ainda ser fonte de psicopatologias, mas também fundamental para a constituição da civilização.

De modo geral, a perspectiva freudiana apresenta elementos úteis para a análise a respeito do desenvolvimento dos objetos transcendentes e das religiões, inclusive as de âmbito mais individual. Dentre eles, ao considerarmos o contexto clínico ou outro que se proponha a analisar o sentido e a psicodinâmica de indivíduos ou grupos que utilizem como referência algum elemento capaz de alcançar um patamar e valor tido como sagrado, incluindo pessoas de convívio cotidiano, figuras públicas, entidades ou outros, se faz necessário considerar: 1) a dimensão privada ou pública na qual o objeto transcendente é utilizado, sendo que ao ser compartilhado algum grau de contato com a realidade e relações grupais podem permitir maior ou menor grau de caráter de fanatismo; 2) que um objeto transcendente pode se apresentar em nível consciente com determinados afetos em contraste à imago paterna em nível não consciente, inclusive podendo ser utilizado como forma de substituto do pai real, como forma de equilibrar os afetos ambivalentes ou, ainda, de fazer frente à realidade para a qual os conteúdos internos não sejam capazes de enfrentar; 3) que na relação psicoterapêutica, e aqui destacamos a psicanalítica, há uma tendência a buscar e a analisar as imagos infantis e poderá modificar a forma pela qual se lida com a realidade de modo objetivo e menos fantasioso, com a tolerância e a convivência com os diferentes de si, e; 4) que, ao considerar os objetos transcendentes como símbolos derivados da imago paterna pessoal conjugada com as representações presentes na cultura, os analistas e psicoterapeutas podem se atentar às mudanças ocorridas na forma pessoal de se utilizar e se dirigir às representações dos objetos transcendentes em paralelo às mudanças derivadas do processo de análise, quer positivas ou negativas.

A respeito desta última, um exemplo seria a possibilidade de alguém recorrer de modo irracional e sem respaldo a pessoas, objetos, lugares ou instituições quando se vê frente a situações que expõem o indivíduo a demandas com as quais não consegue lidar. Poderíamos acrescentar outros exemplos, mas em todos eles a recomendação é de que haja atenção e acolhimento às expressões da subjetividade por meio daquilo que alguém tem para com algo ‘sagrado’ para si e com o qual encontra um senso de pertencimento e identificações.

Considerações finais

Neste estudo, foi possível encontrar na teoria freudiana uma base psicodinâmica para o estudo dos objetos transcendentes e da religião. De modo geral, verificamos a importância da figura paterna, dos mecanismos de defesa, das representações presentes no meio cultural e da necessidade de se lidar com a realidade de modo mais ou menos objetivo para que haja desenvolvimento de representações de objetos transcendentes de qualidades positivas, negativas, persecutórias, punitivas, castradoras, protetoras, dentre outras. Já a religião, inicialmente, tendeu a ser apreciada como algo análogo a uma psicologia infantil e que pode/deve ser superada para que se alcance uma maturidade, porém, mais ao final da obra, encontramos uma mudança de posicionamento que, apesar de manter uma postura ateísta associada a uma série de fatores científico-culturais de sua época, Freud passou a considerar a religião como algo fundamental para o desenvolvimento da civilização.

Apesar de Freud também ter passado a considerar a religião como um fenômeno dentro do universo da cultura, tal posicionamento somente passou a ficar mais claro nos últimos anos de sua vida e obra. Em geral, se os trabalhos freudianos foram analisados separadamente, será encontrada uma fundamentação psicanalítica que conduzirá o leitor ao fato de que Freud foi contra a religião. Há registros que confirmam seu posicionamento contra a religião e a reduzir as representações do transcendente à psicodinâmica à figura do pai, é válido que o leitor da obra freudiana tenha o cuidado para não fazer generalizações com base em trabalhos isolados. Neste sentido, o estudo dos objetos transcendentes e da religião na obra freudiana, por exemplo, necessita que o pesquisador faça uma análise hermenêutica levando em consideração o contexto histórico-científico e o ponto de desenvolvimento da teoria psicanalítica em que Freud estava em cada texto. Assim, os pesquisadores e psicanalistas contemporâneos poderão evitar tecer críticas positivas ou negativas incompletas por somente se utilizar de trabalhos pontuais com a pretensão de se falar do legado como um todo.

Ao se considerar a teoria freudiana como orientadora para a prática psicoterápica e em outras formas de intervenção profissional, podemos ter em vista que ela fornece subsídios para a análise do desenvolvimento dos objetos transcendentes e da religião, mas não dá conta de todas as formas e expressões destes fenômenos. Um dos pontos a serem levantados é a limitação à importância paterna e o uso de especulação, o que torna difícil a conferência empírica sem o uso de elaborações secundárias e outras metalinguagens, além de não haver uma teorização que tenha se dedicado à imago materna e a outras configurações familiares. Ainda assim, os pressupostos freudianos podem ser importantes para iluminar os processos psicoterapêuticos e a análise psicanalítica e auxiliam na compreensão qualitativa e análise de narrativas e de religiões que tenham em seus objetos transcendentes uma dinâmica associada às imagos paternas e a figuras patriarcais.

Referências

  • Belzen, J. (2009). Psicologia cultural da religião: perspectivas, desafios, possibilidades. Rever, 9(4), 1-29.
  • Durkheim, É. (1996). As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália (P. Neves, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes.
  • Freud, S. (2015a). Análise da fobia de um garoto de cinco anos. In S. Freud. Obras completas (Vol. 8, p. 123-284). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Original publicado em 1909.
  • Freud, S. (2015b). Atos obsessivos e práticas religiosas (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 8, p. 300-313). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1907.
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  • Freud, S. (2001). Cartas entre Freud e Pfister (1909-1939) (K. H. K. Wondracek & D. Junge, trad). Viçosa, MG: Ultimato.
  • Freud, S. (2018a). Compêndio de psicanálise (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 19, p. 189-273). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Original publicado em 1940.
  • Freud, S. (2014b). Uma experiência religiosa (P. C. d. Souza, trad.). In S. Freud. Obras completas (1a ed., Vol. 17, p. 331-336). São Paulo, SP: Companhia das Letras . Original publicado em 1928.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Abr 2020
  • Aceito
    30 Abr 2021
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