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TRAJETÓRIAS DE ESTUDANTES COTISTAS PARA O INGRESSO NUMA UNIVERSIDADE PÚBLICA BRASILEIRA

LAS TRAYECTORIAS DE LOS ESTUDIANTES DE CUOTA PARA EL INGRESO A UNA UNIVERSIDAD PÚBLICA BRASILEÑA

RESUMO.

As vivências psicossociais de estudantes cotistas são temáticas de interesse da psicologia no campo de estudos das ações afirmativas. Esta pesquisa objetivou descrever as trajetórias de estudantes cotistas para o ingresso em uma universidade pública federal. Participaram 11 universitários cotistas, estudantes de psicologia, subdivididos em dois grupos focais. Utilizou-se da análise do discurso, de orientação inglesa, como estratégia interpretativa. As narrativas foram organizadas em seis repertórios: a cultura familiar sobre o ensino superior; as limitações e a precariedade da educação básica pública; a busca por complementação educacional; a rotina e as dificuldades anteriores ao ingresso na universidade pública; as atividades extracurriculares e os institutos federais para viabilizar o acesso ao ensino superior público. A análise das trajetórias dos cotistas evidenciou vivências psicossociais comuns aos estudantes. Os sentidos compartilhados sinalizaram que para alcançarem o objetivo de ingressar em uma universidade pública federal foi preciso, além do esforço pessoal intenso, disciplina e novos hábitos, romper com valores culturais e familiares, contar com apoio de instituições de ensino de qualidade referendada como, por exemplo, os institutos federais ou recorrer à complementação de estudos. Espera-se que este estudo contribua para a elaboração de intervenções psicossociais aos cotistas nos âmbitos da orientação acadêmica e de carreira e também para a consolidação das referidas políticas de ações afirmativas.

Palavras-chave:
Ação afirmativa; política pública; educação superior

RESUMEN.

Las experiencias psicosociales de los titulares de cuotas estudiantiles son temas de interés para la Psicología en el campo de los estudios de acción afirmativa. Esta investigación tuvo como objetivo describir las trayectorias de los estudiantes de cuota para la admisión a una universidad federal brasileña. Participaron once universitarios, estudiantes de psicología, divididos en dos grupos focales. Se utilizó el análisis del discurso orientado al inglés como estrategia interpretativa de los datos. Las narraciones se organizaron en seis repertorios: la cultura sobre la educación superior; las limitaciones y precariedad de la educación básica pública; la búsqueda de complementación educativa; la rutina y las dificultades previas al ingreso a la universidad; actividades extracurriculares y los institutos federales para permitir el acceso a la educación superior. El análisis de las trayectorias de los titulares de los cupos mostró experiencias psicosociales comunes. Los sentidos compartidos indicaban que para lograr el objetivo de entrar en una universidad pública era necesario, además del intenso esfuerzo personal de disciplina y nuevos hábitos, romper con los valores culturales y familiares, contar con el apoyo de instituciones educativas de calidad, como los Institutos Federales, o recurrir a estudios complementarios. Se espera que este estudio contribuya al desarrollo de intervenciones psicosociales a los titulares de cuotas en los campos de orientación académica y profesional y también para la consolidación de las políticas de acción afirmativa.

Palabras clave:
Acción afirmativa; políticas públicas; educación superior

ABSTRACT.

Psychosocial experiences of quota students are topics of interest to Psychology in the field of affirmative action studies. This research aimed to describe the trajectories of quota students to enter a federal public university. Eleven quota students participated, Psychology students, subdivided into two focus groups. English-oriented discourse analysis was used as an interpretive strategy. Narratives were organized into six repertoires: family culture on higher education; limitations and precariousness of public basic education; the search for educational complementation; the routine and difficulties prior to university admission; extracurricular activities and the Federal Institutes to enable access to higher education. The analysis of quota student trajectories showed common psychosocial experiences. The shared meanings pointed out that to achieve the goal of entering a public university, in addition to the intense personal effort, discipline and new habits, to break with cultural and family values, it was necessary to have the support of good quality educational institutions, such as the Federal Institutes, or resorting to complementary studies. This study is expected to contribute to the development of psychosocial interventions for quota students in areas of academic and career guidance and also for the consolidation of affirmative action policies.

Keywords:
Affirmative action; public policy; higher education

Introdução

Este estudo se insere no âmbito das investigações acerca das políticas públicas de ações afirmativas, que visam à democratização do acesso à educação e ao trabalho. Especificamente este estudo trata das trajetórias para o ingresso no ensino superior público, com o foco na construção da carreira de universitários cotistas na transição inicial para a graduação.

Permeada por dimensões e opiniões múltiplas, as ações afirmativas trazem consigo uma bagagem histórica, social e subjetiva extremamente particular. Segundo Moehlecke (2002Moehlecke, S. (2002). Ação afirmativa: história e debates no Brasil. Cadernos de Pesquisa, (117), 197-217. doi: https://doi.org/10.1590/S0100-15742002000300011
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), essas ações seriam definidas como iniciativas que buscam, com amparo jurídico, normativo e democrático, promover a representatividade de grupos oprimidos, atuando na lógica de equidade e compensando perdas e atrasos derivados de marginalizações e preconceitos históricos. A expressão ‘ação afirmativa’ tem origem na experiência política dos Estados Unidos, que completa mais de 40 anos de implementação de ações nesta área, também com ampla discussão e divergências de opiniões. Países como Colômbia, Equador, Uruguai, Honduras, Índia, Inglaterra, Canadá, Malásia, Austrália e Nova Zelândia também possuem experiências de políticas afirmativas, com resultados positivos em suas execuções. Dentre as conquistas alcançadas pelos países que implementaram uma política de cotas, destacam-se a integração progressiva de grupos sociais historicamente oprimidos, e maior representatividade em espaços políticos e sociais relevantes (Racoski & Silva, 2020Racoski, M. M., & Silva, É. N. (2020). O sistema de cotas para ingresso na educação superior pública: qual sua importância e por que pesquisar? Revista Pedagógica, 22, 1-17. doi: https://doi.org/10.22196/rp.v22i0.4344
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).

No Brasil, a história das ações afirmativas tem sido construída a partir de árduas lutas de movimentos sociais organizados após a redemocratização do país. No que se refere à política de cotas universitárias, em um estudo de revisão da literatura, do tipo estado da arte, Guarnieri e Melo-Silva (2007Guarnieri, F. V., & Melo-Silva, L. L. (2007). Ações afirmativas na educação superior: rumos da discussão nos últimos cinco anos. Psicologia & Sociedade, 19(2), 70-78. doi: https://doi.org/10.1590/S0102-71822007000200010
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) mostraram que a produção das bases de dados SCOPUS e Jstor (com 59 estudos), no período 2002-2007, pode ser organizada em três conjuntos de conteúdo: (a) a dicotomia presente nos artigos, daquela época, com posicionamentos a favor ou contra as medidas; (b) o aprofundamento do debate sobre diversidade; e (c) a visualização dialética, mais integrada e reflexiva a respeito dessa política pública, retratando os debates polêmicos em um período anterior à aprovação da lei nº 12.711/2012. Em outra análise, após uma década de produção científica sobre as cotas universitárias no país, Guarnieri e Melo-Silva (2017)Guarnieri, F. V., & Melo-Silva, L. L. (2010). Perspectivas de estudantes em situação de vestibular sobre as cotas universitárias. Psicologia & Sociedade, 22(3), 486-498. doi: https://doi.org/10.1590/S0102-71822010000300009
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descreveram o processo complexo de debate civil que se desenvolveu ao longo do tempo até a aprovação da Lei de Cotas em 2012. Foram analisadas 109 publicações localizadas em três bases de dados eletrônicas (Scopus/Elsevier, Periódicos CAPES e Google Scholar), que abrangem várias áreas do conhecimento. Analisando dois períodos: 2003-2008 e 2009-2013, as autoras constataram que continuavam os embates teóricos e legais, desta vez surgindo estudos sobre os impactos das cotas, as perspectivas da política pública, os critérios adotados e as comparações entre países. As autoras destacam que as produções do primeiro período enfatizam as questões sobre a constitucionalidade das cotas e, no segundo, sobre as repercussões da experiência brasileira na sociedade.

Recentemente, Oliveira, Viana e Lima (2020Oliveira, I. A., Viana, L. M. M., & Lima, T. J. S. (2020). Cotas raciais na universidade: uma revisão integrativa da Psicologia brasileira.Revista Subjetividades,20 (Esp), 20-05. doi: https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20iEsp1.e9337
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) realizaram um estudo de revisão da literatura sobre a produção científica exclusivamente em periódicos da área da psicologia, nas bases de dados da SciELO, PePSIC, Index Psi e LILACS. Com apenas 11 artigos, os autores apontaram baixo número de pesquisas, lacunas metodológicas e pouca variabilidade de objetivos e métodos nas pesquisas, destacando que a maioria dos estudos analisados se centravam na opinião de pessoas acerca das cotas universitárias. Também destacaram que apenas dois estudos versavam sobre as vivências dos estudantes beneficiados.

Recuperando a história da política de ação afirmativa no contexto brasileiro, observa-se que a partir da redemocratização, com a Constituição cidadã de 1988, caminhos se abrem para os movimentos voltados às políticas públicas destinadas ao acesso e à permanência de minorias raciais no ensino superior. Tais iniciativas começaram a se articular ao final dos anos de 1990, por meio da organização civil, sem um envolvimento público comprometido. Somente a partir do ano de 2001, políticas públicas amplas de ação afirmativa vêm sendo executadas efetivamente no formato de leis (Moehlecke, 2002Moehlecke, S. (2002). Ação afirmativa: história e debates no Brasil. Cadernos de Pesquisa, (117), 197-217. doi: https://doi.org/10.1590/S0100-15742002000300011
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).

No ensino superior, sob a lei nº 12.711/2012, 50% das matrículas por curso e turno das universidades e institutos federais foram, progressivamente, distribuídas entre estudantes que cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas, levando-se em conta o percentual demográfico por estado de pretos, pardos, indígenas (PPI), de acordo com o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Em 2016, pessoas com deficiência também passaram a ser incluídas e beneficiadas pela lei nº 13.409/2016. Desse total, uma subdivisão direciona metade das vagas para estudantes de escolas públicas com renda familiar bruta igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita, e outra metade para estudantes de escolas públicas com renda familiar superior a um salário mínimo e meio (Brasil, 2012Brasil. Ministério da Educação. (2012). Cotas - perguntas frequentes. Recuperado de: http://portal.mec.gov.br/cotas/perguntas-frequentes.html
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).

As ações afirmativas para o ingresso na educação superior pública partem da premissa de que a educação é fornecedora de instrumentos importantes de ascensão social, cultural e econômica. Como estratégia de superação de desigualdades, o sistema de cotas busca democratizar o acesso de grupos que, partindo da educação básica pública, não teriam possibilidade de competir por vaga no ensino superior público em condições de igualdade com estudantes da rede privada (Racoski & Silva, 2020Racoski, M. M., & Silva, É. N. (2020). O sistema de cotas para ingresso na educação superior pública: qual sua importância e por que pesquisar? Revista Pedagógica, 22, 1-17. doi: https://doi.org/10.22196/rp.v22i0.4344
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). Historicamente, o ingresso no sistema de ensino superior brasileiro denuncia a continuidade da segregação, na medida em que expõe as dificuldades de acesso da população pobre e negra à sua vivência (Mont’Alvão Neto, 2014Mont’Alvão Neto, A. L. (2014). Tendências das desigualdades de acesso ao ensino superior no Brasil: 1982-2010. Educação & Sociedade, 35(127), 417-441. doi: https://doi.org/10.1590/S0101-73302014000200005
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). Importante enfatizar que os séculos de discriminação, violência e sofrimento das minorias étnico-raciais brasileiras extrapolam descrições sucintas. A razão histórica, com a escravidão, os massacres, as segregações e as negações de direitos precisam ser resgatadas como responsabilidade moral e como estratégia de promoção da justiça social e diminuição do racismo estrutural no país.

Para um esboço do significado do racismo estrutural brasileiro, há de se entender os fatos no caminho da lógica. Qualquer suposto rompimento com as opressões impostas por séculos, como o modelo escravagista, deve vir acompanhado de ações que criem novos espaços de pertencimento para os grupos marginalizados. As desigualdades sociais e as manifestações de racismo vistas nas primeiras duas décadas do século XXI são continuidades impregnadas de um enlace histórico. Como exemplo, os dados de acesso à educação e renda e de homicídios da população negra no Brasil, segundo país com maior nação negra do mundo, são estatísticas que denunciam a vulnerabilidade à violência e à segregação, que, assim como na escravidão, os faz ocupar espaços de não cidadania (Mendonça & Aranha, 2020Mendonça, E. S., & Aranha, M. L. M. (2020). Política de cotas raciais: instrumento de promoção de equidade e justiça social. Revista em Pauta: Teoria Social e Realidade Contemporânea, 18(45). doi: https://doi.org/10.12957/rep.2020.47226
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). Para além da lógica de compensação de desigualdades, o encorajamento de representatividades e as mudanças estruturais nos âmbitos mais profundos da sociedade justificam a construção das ações afirmativas desta natureza (Silva & Machado, 2018Silva, S. J., & Machado, D. B. (2018). Se um negro tiver oportunidade: cotas raciais e acesso ao ensino público no Brasil. Brasiliana: Journal for Brazilian Studies, 6 (2), 60-82. Recuperado de: https://tidsskrift.dk/bras/article/view/97170
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).

Dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE] (2019Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística[IBGE]. (2019). Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Recuperado de: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/bibliotecacatalogo?view=detalhes&id=2101681
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) apontam que, entre 2016 e 2018, uma série de indicadores educacionais da população preta ou parda começa a apresentar uma trajetória de melhora. Em 2018, estudantes pretos ou pardos passaram a compor a maioria nas instituições públicas de ensino superior atingindo a marca histórica de 50,3%. No entanto, a desvantagem em relação à população branca continua evidente. Estatísticas mostram que 36,1% dos jovens de 18 a 24 anos de idade, de cor ou raça branca frequentavam ou já haviam concluído o ensino superior enquanto entre os jovens de cor ou raça preta ou parda, na mesma faixa etária, o percentual é de apenas 18,3%. De acordo com o IBGE, este panorama de relativa melhoria do acesso da população preta ou parda ao ensino superior é resultado de medidas adotadas a partir dos anos 2000 nas redes pública e privada como, por exemplo, a institucionalização do sistema de cotas e outros programas governamentais (IBGE, 2019Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística[IBGE]. (2019). Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Recuperado de: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/bibliotecacatalogo?view=detalhes&id=2101681
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). Ainda que com necessidade de aprimoramento, as ações afirmativas, do tipo cotas universitárias, podem garantir equidade de oportunidades, justiça social no acesso à universidade e possibilidade de redução do preconceito na sociedade. Como apontam Castro, Martin e Almeida (2020Castro, S. O. C., Martin, D. G., & Almeida, F. M. (2020). Cotas sociais: reflexões à luz do princípio da isonomia.Revista Estudo & Debate,27(1). doi: http://dx.doi.org/10.22410/issn.1983-036X.v27i1a2020.2272
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), as cotas sociais se constituem como um mecanismo provisório de concretização da igualdade, ou seja, de construção de resultados práticos a curto prazo que possibilitam a diminuição dos níveis de desigualdade social no momento presente, enquanto cuidam da fomentação de um ensino público básico e médio de qualidade.

Por outro lado, as argumentações contrárias à política de cotas giram em torno de um possível efeito oposto, no sentido de provocar uma inferiorização dos potenciais de competição dos candidatos cotistas, ao mesmo tempo em que feriria o direito de igualdade previsto na Constituição. Esse tipo de percepção orienta-se pela visão de privilégio, ignorando o viés de direito e equidade, frente a um histórico violento de bloqueios sociais, culturais e materiais (Wink, 2018Wink, G. (2018). Looking for more brazilian solutions: rhetorical strategies against racial quotas in Brazilian higher education. Brasiliana: Journal for Brazilian Studies, 6(2), 3-41. Recuperado de: https://tidsskrift.dk/bras/article/view/97048
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). Além disso, a reatividade enfrentada pelas ações afirmativas também pode ser associada a uma inclinação autoritária da sociedade brasileira, construída em uma história de colonização e escravidão, com uma democracia instável e uma visão social internalizada com tons de vigilância, punição e com um senso de responsabilidade coletiva pouco estruturado (Santos & Queiroz, 2016Santos, J. T., & Queiroz, D. (2016). The impact of the “Quota System” in the Federal University of Bahia (2004-2012).Creative Education ,7, 2678-2695. doi: 10.4236/ce.2016.717251
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). Pode-se inferir que parte das opiniões desfavoráveis à implementação da política de cotas no Brasil se dá pela falta de conhecimento do conteúdo da lei (Oliveira et al., 2020Oliveira, I. A., Viana, L. M. M., & Lima, T. J. S. (2020). Cotas raciais na universidade: uma revisão integrativa da Psicologia brasileira.Revista Subjetividades,20 (Esp), 20-05. doi: https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20iEsp1.e9337
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). Esse fato expõe a importância da dialética do cotidiano como instrumento de divulgação e fundamentação de opiniões sociais embasadas e claras (Mendonça & Aranha, 2020Mendonça, E. S., & Aranha, M. L. M. (2020). Política de cotas raciais: instrumento de promoção de equidade e justiça social. Revista em Pauta: Teoria Social e Realidade Contemporânea, 18(45). doi: https://doi.org/10.12957/rep.2020.47226
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) capazes de promover, de fato, para além da teoria, a igualdade racial e mitigação do racismo (Santos & Moreira, 2019Santos, S. A., & Freitas, M. S. (2020). Sistema de cotas e fraudes em uma universidade federal brasileira. REVES-Revista Relações Sociais, 3(3), 0001-0023. doi: https://doi.org/10.18540/revesvl3iss3pp0001-0023
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). Cabe ainda o reconhecimento da necessidade de aprimoramento na execução da política de cotas para diminuir a existência de fraudes por estudantes brancos, especialmente na categoria étnico-racial que tangencia a autodeclaração ‘Pardo/a’. Nesse sentido, fazem-se necessárias as formulações de critérios mais rígidos de fiscalização (Santos & Freitas, 2020Silva, K. R. S., & Souza, P. R. P. (2020). Cotas raciais na UFERSA: um estudo com estudantes e professores. Brazilian Journal of Development, 6(7), 49373-49390. doi: https://doi.org/10.34117/bjdv6n7-546
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).

É neste contexto, envoltos em uma trama complexa de discursos, que os sujeitos cotistas ingressam no ensino superior público, carregando consigo não apenas uma bagagem comum de expectativas, mas todo um apanhado enviesado de visões sociais. Assim, analisar os movimentos de perpetuação e rompimento de lugares sociais, amparados pelas narrativas dos jovens de origens populares que vivenciam essas experiências, permite a construção de práticas de desnaturalização da desigualdade social. O freio na repetição de campos de subordinação potencializa a expansão de direitos e de oportunidades (Silva Júnior & Mayorga, 2016Silva Júnior, P. R., & Mayorga, C. (2016). Experiências de jovens pobres participantes de programas de aprendizagem profissional. Psicologia & Sociedade, 28(2), 298-308. doi: https://doi.org/10.1590/1807-03102016aop001.
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).

A transição, portanto, desses jovens para uma universidade pública e a sua futura passagem para o mundo do trabalho constitui momentos importantes de interlocução entre as diversas áreas: social, acadêmica, pessoal, interpessoal, vocacional e institucional (Sousa, Badargi, & Nunes, 2013Sousa, H., Bardagi, M. P., & Nunes, C. H. S. S. (2013). Autoeficácia na formação superior e vivências de universitários cotistas e não cotistas. Avaliação Psicológica, 12(2), 253-261. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-04712013000200016
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). A forma como os indivíduos articulam suas experiências e escolhas vai progressivamente organizar um processo psicossocial de construção de si e do mundo, que abrirá caminhos a serem trilhados.

Nesse sentido, torna-se relevante analisar as trajetórias destes estudantes e conhecer como são construídas e se entrelaçam as histórias, os enredos e os temas de vida. A construção de projetos e a significação da própria vida, mediante adaptações e oscilações, se darão conectados também com os modelos legitimados socialmente (Ribeiro, 2014Ribeiro, M. A. (2014). Carreiras: novo olhar socioconstrucionista para um mundo flexibilizado. Curitiba, PR: Juruá.). Nesse processo de construção de si e da carreira, um dos fatores que tem grande potencial para influenciar a mobilidade social é justamente o acesso à educação superior. Consequentemente, desigualdades no acesso à universidade contribuem para uma distorção nos desenvolvimentos futuros de oportunidades de carreira (Estevan, Gall, & Morin, 2019Estevan, F., Gall, T., & Morin, L. F. (2019). Redistribution without distortion: evidence from an affirmative action programme at a large Brazilian university, The Economic Journal, 129(619), 1182-1220. doi: https://doi.org/10.1111/ecoj.12578
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).

Ainda, é importante ressaltar que os pontos subjetivos e heterogêneos das trajetórias dos estudantes de camadas populares que ingressam no ensino superior público não podem restringir as análises a campos individuais. As semelhanças de condições de vida, os empenhos pessoais, os traços de determinação, a autodisciplina e a dedicação constroem também histórias sociais, sendo resultado de mobilizações coletivas de apoio. Dessa forma, a crença na meritocracia baseada no esforço não pode ser legitimada, entendendo a necessidade de se construir redes de incentivo, de reconhecimento, e de suporte emocional e material a estes jovens (Piotto, 2010Piotto, D. C. (2010). Universitários de camadas populares em cursos de alta seletividade: aspectos subjetivos. Revista Brasileira de Orientação Profissional, 11(2), 229-242. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-33902010000200008
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).

Assim, observa-se que na trajetória de carreira de estudantes de camadas populares estão presentes nos temas associados à construção de formas autônomas de responsabilização pela formação, ao enfrentamento de dificuldades, ao encontro de fontes de prazer e ao entretenimento, a capacidade de reflexão crítica de sua realidade, além do papel histórico-cultural da educação escolar, mesmo frente à sua precariedade (Piotto & Alves, 2011Piotto, D. C., & Alves, R. O. (2011). Estudantes das camadas populares no ensino superior público: qual a contribuição da escola? Psicologia Escolar e Educacional, 15(1), 81-89. doi: https://doi.org/10.1590/S1413-85572011000100009
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). Como destacam Silva e Souza (2020Silva, K. R. S., & Souza, P. R. P. (2020). Cotas raciais na UFERSA: um estudo com estudantes e professores. Brazilian Journal of Development, 6(7), 49373-49390. doi: https://doi.org/10.34117/bjdv6n7-546
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), as dificuldades vivenciadas pelos estudantes cotistas em suas trajetórias tendem a ter continuidade após o ingresso no ensino superior, o que requer a consolidação de políticas de permanência estudantil mais atentas e personalizadas à realidade de cada instituição.

Além dos aspectos institucionais, constata-se, ainda, que a construção de uma identidade positiva promotora da autoestima, da autoeficácia e da confiança em si e no mundo encontra-se vinculada aos mecanismos de proteção advindos da família e da comunidade, sendo, portanto, uma disposição social articulada à significação individual (Maranhão, Colaço, Santos, Lopes, & Coêlho, 2014Maranhão, J. H., Colaço, V. F. R., Santos, W. S., Lopes, G. S., & Coêlho, J. P. L. (2014). Violência, risco e proteção em estudantes de escola pública. Fractal: Revista de Psicologia, 26(2), 429-444. doi: https://doi.org/10.1590/1984-0292/853
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). Dessa forma, para superar as deficiências da educação básica pública é comum que os estudantes de camadas populares busquem cursinhos populares e comunitários como estratégia para a complementação da aprendizagem (Guarnieri & Melo-Silva, 2010Guarnieri, F. V., & Melo-Silva, L. L. (2010). Perspectivas de estudantes em situação de vestibular sobre as cotas universitárias. Psicologia & Sociedade, 22(3), 486-498. doi: https://doi.org/10.1590/S0102-71822010000300009
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), ou ainda, como alternativa, o ingresso em institutos federais, visto que estes configurando-se como potências no cenário da educação pública nacional (Dutra, Dutra, Parente, & Paulo, 2019Dutra, R. S., Dutra, G. B. M., Parente, P. H. N., & Paulo, E. (2019). O que mudou no desempenho educacional dos Institutos Federais do Brasil?Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação , 27(104), 631-653. doi: https://doi.org/10.1590/s0104-40362019002701777
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).

Pelos argumentos apresentados constata-se que o estudo das vivências psicossociais de universitários cotistas em suas trajetórias para o ingresso no ensino superior público é uma temática de relevância para a produção científica brasileira em psicologia (Oliveira et al., 2020Oliveira, I. A., Viana, L. M. M., & Lima, T. J. S. (2020). Cotas raciais na universidade: uma revisão integrativa da Psicologia brasileira.Revista Subjetividades,20 (Esp), 20-05. doi: https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20iEsp1.e9337
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). Conhecer as histórias desses estudantes e analisar como constroem suas trajetórias pode fornecer um diagnóstico das suas necessidades e pistas para a definição de metas para os universitários cotistas nos projetos político-pedagógicos institucionais e para os serviços de orientação acadêmica e de carreira. Na perspectiva de contribuir com a produção de conhecimento psicológico sobre o tema, esta pesquisa objetivou descrever as trajetórias de estudantes cotistas para o ingresso numa universidade pública federal.

Método

Participantes

Trata-se de uma pesquisa qualitativa de corte transversal. Para a sua realização foram definidos como critérios de inclusão amostral: participantes que ingressaram no ensino superior por meio da Política Nacional de Cotas, sendo tais critérios verificados por meio de autodeclaração e dos registros acadêmicos. Fizeram parte da amostra 11 universitários subdivididos em dois grupos focais. O primeiro grupo foi composto por sete universitários do primeiro período da graduação (03 homens e 04 mulheres). O segundo grupo contou com quatro participantes (02 universitários do 5° período, 01 do 3° período e 01 do 2° período, sendo 01 homem e 03 mulheres). Todos os participantes do estudo eram discentes do curso de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

As idades variaram entre 17 e 21 anos, com média de 19 anos. Em relação à raça, seis participantes se declararam pardos, quatro brancos e um negro. As cidades de origem dos participantes, com exceção da cidade sede da universidade, se concentraram no interior do estado de São Paulo. Com relação ao auxílio financeiro da instituição, oito participantes recebiam algum tipo de benefício. Sobre a modalidade de cotas em relação à renda, sete participantes possuíam renda familiar bruta igual ou inferior a um salário e meio per capita. Os outros quatro participantes possuíam renda superior a um salário e meio per capita. Quanto à escolaridade dos pais, predominam pais com ensino básico completo (05 mães/seis pais), seguido dos níveis básico incompleto (03 mães/dois pais), superior completo (02 mães/dois pais) e pós-graduação (01 mãe/um pai).

Instrumentos

Os dados foram coletados por meio de um Roteiro de Entrevista do Grupo Focal (disponível mediante solicitação por e-mail) e um questionário com dados pessoais e socioeducacionais. O roteiro semiestruturado foi organizado em cinco eixos temáticos: (a) ‘apresentação dos participantes’ (Ex.: “Falem sobre a suas histórias de vida, de forma que o grupo possa conhecê-los melhor depois de ouvi-los”); (b) ‘trajetória de carreira’ (Ex.: “Como chegaram até a universidade federal e ao curso específico de vocês? Sentem que tiveram apoio e influências/modelos nessa trajetória?”); (c) ‘adaptação à vida universitária’ (Ex.: “Como foi a mudança e o ingresso na universidade, em relação ao acolhimento, sentimentos e expectativas?”); (d) ‘projetos de vida e carreira’ (Ex.: “Falem um pouco sobre seus principais projetos de vida e objetivos profissionais. Quem vocês querem se tornar e se houve alguém que os inspirou nesses objetivos”); (e) ‘expectativas de sucesso na transição universidade-trabalho’ (Ex.: “Como imaginam que será a transição para o mundo do trabalho?”). Para fins deste estudo foram analisadas as informações obtidas por meio dos três primeiros eixos.

Procedimentos de coleta e análise de dados

A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade das duas primeiras autoras (parecer nº 1.376.349 de 18/12/2015). Os participantes foram contatados por critério de conveniência, via rede social da primeira autora, com o efeito ‘bola de neve’ (snowball), tendo o convite sido estendido para estudantes de diferentes cursos. Aos que decidiram participar foi dada anuência por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Cuidados éticos foram tomados, conforme resolução nº 466/2012, que dispõe sobre pesquisas envolvendo seres humanos, garantindo-se a participação voluntária e o anonimato dos participantes. Na descrição dos resultados, nomes fictícios foram criados para cumprir com esse propósito.

Os dados foram coletados por meio da realização de dois grupos focais distintos, ambos conduzidos pela primeira autora, e auxiliados por uma segunda integrante da equipe de coleta de dados, que tomava notas da ordem das falas. Os grupos tiveram duração média de 80 minutos cada, sendo seu conteúdo gravado e transcrito na íntegra. Posteriormente, as informações foram analisadas intra e entre os grupos, pelas duas pesquisadoras que participaram da coleta de dados, de forma independente, à luz da análise do discurso de orientação inglesa de Potter e Wetherell (1987Potter, J., & Wetherell, M. (1987). Discourse and social psychology: beyond attitudes and behavior. Londres, UK: Sage.). Este referencial tem como objetivo problematizar e teorizar sobre as consequências e funções da linguagem em uso. Para além da análise do conteúdo, essa abordagem interpretativa busca a criação de blocos de sentido, a partir de padrões de expressão, metáforas e figuras de linguagem. Esses blocos formam, por sua vez, repertórios interpretativos, que reúnem a síntese dessas análises e consideram o contexto em que os discursos são utilizados, assim como as funções decorrentes de sua utilização (Potter & Wetherell, 1987Potter, J., & Wetherell, M. (1987). Discourse and social psychology: beyond attitudes and behavior. Londres, UK: Sage.).

O fluxo do processo de análise de dados seguiu a seguinte ordem de execução: (a) transcrições das entrevistas na íntegra para uma tabela, (b) síntese de cada uma das falas, (c) análise das trocas discursivas intergrupais e comparativas entre os grupos por duas pesquisadoras independentes, ambas estudantes do último ano do curso de psicologia (d) codificação de repertórios interpretativos, (e) comparação das análises realizadas pelas duas pesquisadoras independentes e, (f) validação dos resultados por uma terceira pesquisadora, doutora em psicologia (2ª autora). Esse movimento permitiu analisar os consensos, as diferenças, os temas e os padrões presentes no discurso dos participantes, construídos na interação. Dessa forma, a conjunção dos relatos pessoais dos cotistas e suas trajetórias para o ingresso na universidade pública federal originou, a partir da análise, a codificação de seis repertórios interpretativos: (a) a cultura sobre o ensino superior; (b) as limitações e a precariedade da educação básica pública; (c) a busca por complementação educacional; (d) a rotina e as dificuldades anteriores ao ingresso na universidade; (e) as atividades extracurriculares; e (f) institutos federais para viabilizar o acesso ao ensino superior.

Resultados e discussão

Antes de iniciar a apresentação dos resultados torna-se importante enfatizar que os sentidos sobre as trajetórias dos universitários cotistas para o ingresso em uma universidade pública federal, relatados neste estudo, foram produtos do encontro discursivo entre os participantes, sendo uma dentre diversas possibilidades interpretativas sobre o tema investigado. Assim, a análise do discurso permitiu a identificação de unidades de linguagem que se organizaram formando seis repertórios interpretativos e abrindo possibilidade de construção de sentido sobre as trajetórias para o ingresso de universitários cotistas em uma universidade pública brasileira.

A cultura sobre o ensino superior

Esse repertório abarcou os valores da cultura familiar e do ambiente social sobre a formação de nível superior. A trajetória de outros membros da família emergiu como elemento importante na determinação da própria cultura e das escolhas pessoais. Foram observadas diferenças de posicionamentos, não sendo uma unanimidade na cultura familiar dos participantes a ideia de ensino superior como elemento importante a ser conquistado na trajetória destes jovens. Assim, as figuras e as expressões que marcaram esse repertório foram do tipo: “[...] minha mãe sempre falava que eu tinha que estudar, porque eu tinha que passar em uma escola federal [...]”, “[...] minha mãe não pôde estudar, nem meu pai [...]”, “[...] da minha família eu fui a primeira a fazer faculdade [...]”, “[...] meu pai foi fazer faculdade depois dos 45 anos, minha mãe fez faculdade com 38 [...]”, “[...] depois de mim veio outro primo que quis fazer faculdade também [...]”, “[...] minha família sempre valorizou o ensino superior, apesar de nenhum ter feito [...]”, “[...] eles me impulsionaram sempre para esse caminho sabe [...]”, “[...] sempre que eu cogitei, por exemplo, um dia que iria trabalhar ao invés de estudar eles não apoiariam, sabe, sempre me direcionando pra isso [...]”, “[...] não repetir o que ela passou [...]”, “[...] na minha família é o contrário de todo mundo: tanto faz faculdade [...] o certo da vida é trabalhar [...]”. No que tange à comparação social da realidade de seus colegas, os participantes trouxeram percepções marcadas por falas como: “[...] exceções [...]”, “[...] maioria do ensino fundamental foi para [universidades] particulares [...]”, “[...] a maioria ‘tá’ fazendo faculdade particular e trabalhando [...] (grifo nosso)”, “[...] me sinto meio mal, meio culpada”.

Sobre a cultura do ambiente, Bourdieu (1998)Bourdieu, P. (1998). A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In M. A. Nogueira (Org.), Escritos de educação(p. 39-64). Petrópolis, RJ: Vozes. aborda a ideia de capital cultural, que seria uma herança acumulada por meio de condições materiais e sociais de existência. Para o autor, o termo habitus explicitaria o movimento de incorporação dessa herança social e familiar, de maneira a predispor preferências, posturas, pensamentos e ações, em um movimento afetivo interligado e interdependente.

Nesta pesquisa e na investigação realizada por Silva e Machado (2018Silva, S. J., & Machado, D. B. (2018). Se um negro tiver oportunidade: cotas raciais e acesso ao ensino público no Brasil. Brasiliana: Journal for Brazilian Studies, 6 (2), 60-82. Recuperado de: https://tidsskrift.dk/bras/article/view/97170
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) foi possível identificar que as origens socioeconômicas e os valores familiares têm potencial para interferir na trajetória de ingresso dos cotistas ao ensino superior. Ainda, vale mencionar que, atualmente, a presença da população de renda inferior e negra no ensino superior é uma conquista diretamente relacionada à organização e implementação da política de cotas (IBGE, 2019Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística[IBGE]. (2019). Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Recuperado de: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/bibliotecacatalogo?view=detalhes&id=2101681
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; Santos & Moreira, 2019Santos, J. P. L., & Moreira, N. R. (2019). Entre raça e gênero: significado das cotas raciais para universitárias negras. Série-Estudos-Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB, 24(52). 77-100.doi: https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v20i52.1222
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). Como apontado por Mont’Alvão Neto (2014Mont’Alvão Neto, A. L. (2014). Tendências das desigualdades de acesso ao ensino superior no Brasil: 1982-2010. Educação & Sociedade, 35(127), 417-441. doi: https://doi.org/10.1590/S0101-73302014000200005
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), essa gradativa inclusão mostra um possível caminho de redução de desigualdades e expansão de oportunidades para os familiares destes universitários.

As limitações e a precariedade da educação básica pública

Esse repertório informou sobre a percepção dos participantes sobre a precariedade do ensino básico público e o papel assumido frente a esse contexto. A realidade do ensino básico público foi descrita como violenta e permeada por aproximações com o mundo das drogas e das transgressões. O repertório foi marcado por falas e expressões como “[...] mundo liberto [...]”, “[...] menos cobrança [...]”, “[...] dispersão[...]”, “[...] comecei a matar aula ‘pra caramba’ [...]” (grifo nosso), “[...] na minha escola tinha polícia na porta todo dia [...]”, “[...] gente querendo te bater [...]”, “[...] briga com faca [...]”, “[...] confronto de gangue [...]”, “[...] confusões [...]”, “[...] ensino que não prepara [...]”, “ [...] um tanto de matérias que não tinha visto [...]”, “[...] a escola pública não me ensinou nada [...]”, “[...] (no cursinho) parecia que eles [outros alunos] estavam só revisando e eu aprendendo enquanto eles revisavam”.

Segundo Maranhão et al. (2014Maranhão, J. H., Colaço, V. F. R., Santos, W. S., Lopes, G. S., & Coêlho, J. P. L. (2014). Violência, risco e proteção em estudantes de escola pública. Fractal: Revista de Psicologia, 26(2), 429-444. doi: https://doi.org/10.1590/1984-0292/853
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), o desvelar da violência nos espaços escolares públicos abre caminhos para a compreensão de uma realidade social comum no país. A imersão em situações adversas ao desenvolvimento, a necessidade de mobilização de recursos de enfrentamento frente aos abusos, a limitação de relações de confiança e o cotidiano de desafios são salientes. Assim, como parece confluir com a trajetória de vida dos participantes, a possibilidade da resiliência se abre a partir da articulação entre uma condição adversa e a instrumentalização de estratégias de proteção. Esse equilíbrio dialoga com a temática do próximo repertório, na medida em que a família e a comunidade se tornam mecanismos de cuidado e promoção de identidades.

Cabe ainda pontuar um panorama geral sobre a natureza da violência no Brasil. Segundo pesquisa realizada pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), em parceria com o Ministério da Educação e a Organização dos Estados Interamericanos (OEI), 70% dos alunos da rede pública de nível básico presenciaram algum tipo de violência na escola onde estudaram no último ano. Realizada em sete capitais brasileiras, a pesquisa apontou também outro tipo de violência, a simbólica, descrita como possível contribuinte da formação desse ambiente de conflitos. A escola, composta por uma infraestrutura precária (salas de aulas quentes, falta de iluminação, superlotação) e um conjunto de regras e relações deficitárias potencializam vivências agressivas (Abramovay, Castro, Silva, & Cerqueira, 2016Abramovay, M., Castro, M. G., Silva, A. D., & Cerqueira, L. (2016). Diagnóstico participativo das violências nas escolas: falam os jovens. Rio de Janeiro, RJ: FLACSO - Brasil, OEI, MEC. Recuperado de: http://flacso.org.br/files/2016/03/Diagn%C3%B3stico-participativo-das-viol%C3%AAncias-nas-escolas_COMPLETO_rev01.pdf
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).

Assim, a própria condição de privação de um ensino de qualidade remonta à violência simbólica da exclusão social. Os depoimentos de estudantes do ensino público básico, relatados por Silva Júnior e Mayorga (2016Silva Júnior, P. R., & Mayorga, C. (2016). Experiências de jovens pobres participantes de programas de aprendizagem profissional. Psicologia & Sociedade, 28(2), 298-308. doi: https://doi.org/10.1590/1807-03102016aop001.
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), ressoam com similaridade com as percepções dos participantes desta pesquisa, quando levantam as consequências da privação de um ensino de qualidade e o distanciamento do aprendizado das escolas particulares como abismo contrastante, decorrendo em diferenças significativas nas condições de partida para a aprendizagem e também para o ingresso em uma universidade federal.

A busca por complementação educacional

Esse repertório reforçou a percepção da defasagem do ensino público de nível básico e as expectativas criadas pelos alunos antes de provarem diretamente esse contraste, em um choque entre a autoimagem de bons estudantes e a perspectiva de insucesso no vestibular (ENEM). Foram expressos os desdobramentos necessários para compensar as carências da formação, no sentido das buscas por cursos pré-vestibulares, mudanças para o instituto federal e/ou dos hábitos de estudo.

As expressões que marcaram esse repertório foram “[...] lá [escola pública] tinha classificação e eu sempre ficava nos três primeiros [...]”, “[...] ser considerado o melhor da turma [...]”, “[...] na escola pública eu era, lá eu era a inteligente [...]”, “[...] Eu pensava, vou passar em Medicina na hora que eu sair daqui [...]”, “[...] comecei a estudar bastante [...]”, “[...] passava o dia todo estudando [...]”, “[...] minha nota foi péssima [...]”, “[...] ‘me ferrei’, não vai dar [...]” (grifo nosso), “[...] era tanta coisa que eu vi que eu não sabia [...]”, “[...] não sou inteligente como pensava [...]”, “[...] aí eu quis parar (o vôlei) e me dedicar mais ao terceiro ano e estudar pro vestibular [...]”, “[...] vou fazer só o cursinho e vou focar para ver se vai [...]”, “[...] complementar a aprendizagem [...]”, “[...] bolsa em cursinho [...]”, “[...] consegui muito desconto [...]”, “[...] mudança de hábitos”.

É importante ressaltar que os participantes desta pesquisa se subdividiram entre os que passaram a vida toda estudando em escolas públicas e os que tiveram a passagem por instituições particulares. Independente das vivências, foi unânime o sentimento de desnivelamento do ensino médio público em relação ao particular. O confronto com a realidade foi apontado pelos participantes como um momento de transformações, decepções, desmotivações e mudanças de autoimagens pessoais.

Nessa mesma direção, Castro et al. (2020Castro, S. O. C., Martin, D. G., & Almeida, F. M. (2020). Cotas sociais: reflexões à luz do princípio da isonomia.Revista Estudo & Debate,27(1). doi: http://dx.doi.org/10.22410/issn.1983-036X.v27i1a2020.2272
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) argumentam sobre o princípio da igualdade material que deve fundamentar as políticas das cotas. Para os autores, o argumento da igualdade formal não é suficiente para garantir que os indivíduos tenham igual acesso às oportunidades. No caso dos estudantes provenientes das redes públicas de ensino médio as desigualdades materiais e de acesso a uma educação de qualidade são evidentes e reforçam a impossibilidade de equiparação de oportunidades para ingresso nas universidades federais. Deste modo, como apontam Estevan et al. (2019Estevan, F., Gall, T., & Morin, L. F. (2019). Redistribution without distortion: evidence from an affirmative action programme at a large Brazilian university, The Economic Journal, 129(619), 1182-1220. doi: https://doi.org/10.1111/ecoj.12578
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), ressalta-se relevância das ações afirmativas na impulsão de uma mobilidade social, na medida em que os cotistas conseguem expandir o acesso ao ensino de qualidade, antes restrito a estudantes do sistema educacional privado.

A importância da complementação dos estudos também foi reverberada pelos estudos de Guarnieri e Melo-Silva (2010Guarnieri, F. V., & Melo-Silva, L. L. (2010). Perspectivas de estudantes em situação de vestibular sobre as cotas universitárias. Psicologia & Sociedade, 22(3), 486-498. doi: https://doi.org/10.1590/S0102-71822010000300009
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), tendo em vista que as autoras identificaram as demandas crescentes dos estudantes cotistas pelo acesso a um conteúdo programático personalizado e extensivo, que o ensino básico público não possibilitaria, de acordo com a fala dos participantes. Além disso, Piotto (2010Piotto, D. C. (2010). Universitários de camadas populares em cursos de alta seletividade: aspectos subjetivos. Revista Brasileira de Orientação Profissional, 11(2), 229-242. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-33902010000200008
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), em seu estudo com universitários de camadas populares, também relatou que a revisão de identidades é elemento presente nas trajetórias dos cotistas: o sentimento de tristeza, susto, decepção e depressão são trazidos quando a imagem e o histórico de ‘bons alunos’ do ensino médio público se confrontam com notas baixas na universidade, quando comparadas com as notas de estudantes provenientes de escolas particulares de elite.

Sobre a defasagem educacional relatada pelos participantes é necessário reforçar que o desempenho acadêmico é um fenômeno multifacetado e complexo que não apresenta padrão único, e que uma parcela significativa dos estudantes cotistas continua a enfrentar problemas mesmo depois do ingresso na universidade. Dentre os problemas mencionados destacam-se a adaptação ao ritmo de estudo e as dificuldades financeiras (Silva & Souza, 2020Silva, K. R. S., & Souza, P. R. P. (2020). Cotas raciais na UFERSA: um estudo com estudantes e professores. Brazilian Journal of Development, 6(7), 49373-49390. doi: https://doi.org/10.34117/bjdv6n7-546
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). Dessa forma, constata-se que o incentivo ao acesso à universidade pública por meio da política de cotas não é suficiente para um efeito verdadeiramente reparador, se deixar de lado programas e estratégias de permanência para esses alunos (Sousa et al., 2013Sousa, H., Bardagi, M. P., & Nunes, C. H. S. S. (2013). Autoeficácia na formação superior e vivências de universitários cotistas e não cotistas. Avaliação Psicológica, 12(2), 253-261. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-04712013000200016
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). Se foi uma árdua jornada a preparação para o ingresso, começa outra etapa de esforços redobrados na vida universitária para a adaptação e superação de novos obstáculos.

A rotina e as dificuldades anteriores ao ingresso na universidade

Esse repertório foi marcado por sentidos relacionados às atividades diárias intensas, mudanças e transições frequentes, dificuldades financeiras, responsabilidades precoces e uma realidade familiar nem sempre colaborativa. Medos, mudanças, superações e rompimentos foram pontos em comum nas histórias de vida dos participantes, que afirmaram também o surgimento de posturas como a determinação para enfrentar as restrições financeiras e as dificuldades no grupo familiar. A vivência de uma trajetória marcada por obstáculos pareceu mobilizar atitudes voltadas ao esforço, à autodisciplina e à superação.

As narrativas associadas a este repertório mobilizaram lembranças e afetos que fizeram suscitar reações emotivas ao longo das trocas. Este repertório foi estruturado por um vocabulário composto por palavras e imagens como “[...] minha mãe ficou doente [...]”, “[...] ferrou tudo [...]”, “[...] meus pais se divorciaram [...]”, “[...] os amigos que eu tinha ficaram lá, tive que construir outros vínculos[...]”, “[...] faltou dinheiro [...]”, “[...] muito estressante [...]”, “[...] chegava em casa quase meia-noite [...]”, “[...] desemprego [...]”, “[...] vou trabalhar porque não tem jeito [...]”, “[...] meu pai era alcóolatra e usuário de droga [...]”, “[...] minha mãe tinha medo, então eu cresci mais sozinha [...]”, “[...] eu chorava o tempo todo”.

As dificuldades na trajetória parecem ser pontos comuns entre os jovens de origem popular. Os relatos do estudo de Silva Júnior e Mayorga (2016Silva Júnior, P. R., & Mayorga, C. (2016). Experiências de jovens pobres participantes de programas de aprendizagem profissional. Psicologia & Sociedade, 28(2), 298-308. doi: https://doi.org/10.1590/1807-03102016aop001.
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) mostraram semelhanças com as histórias vivenciadas pelos participantes da pesquisa. Diferentes tipos de privações e desigualdades expõem esses jovens a uma subcidadania imposta, onde o tecido social se mostra restritivo e segregativo. A escola de boa qualidade, a cultura e o lazer são privilégios não expandidos, que costuram uma condição social dos excluídos e escancara um abismo entre os jovens brasileiros.

Deste modo, percebe-se a relevância das ações afirmativas para a quebra de narrativas enviesadas, especialmente aquelas vinculadas ao discurso da meritocracia, para a solidificação de um debate mais objetivo sobre o acesso e a inclusão de estudantes de camadas populares em universidades públicas (Wink, 2018Wink, G. (2018). Looking for more brazilian solutions: rhetorical strategies against racial quotas in Brazilian higher education. Brasiliana: Journal for Brazilian Studies, 6(2), 3-41. Recuperado de: https://tidsskrift.dk/bras/article/view/97048
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). Por esses motivos, as ações afirmativas não podem ser consideradas como privilégios, como apontam Racoski e Silva (2020Racoski, M. M., & Silva, É. N. (2020). O sistema de cotas para ingresso na educação superior pública: qual sua importância e por que pesquisar? Revista Pedagógica, 22, 1-17. doi: https://doi.org/10.22196/rp.v22i0.4344
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). Devem ser encaradas como mecanismos provisórios, assim como utilizadas em outros países para corrigir ou reduzir os históricos de injustiças e de direitos negados.

As atividades extracurriculares

Os participantes ressaltaram a relevância de atividades extracurriculares para a construção de suas trajetórias antes do ingresso na universidade pública. Apontadas como pontos-chave na mudança corporal, social e afetiva, o envolvimento foi trazido como motivador e divisor de fases, inclusive no desenvolvimento do próprio gosto pela aprendizagem. O vôlei, a natação, a leitura, a escrita, o violão, o basquete, o cinema, a iniciação artística e o ballet foram algumas das atividades citadas que caracterizaram este repertório. Expressões como “[...] foi um marco na minha vida [...]”, “[...] foi o pontapé inicial para eu começar a desenvolver [...]”, “[...] a leitura que foi ponto inicial da onde eu comecei a gostar de aprender coisas novas [...]”, “[...] criei uma paixão muito, muito grande pelo basquete [...]”, “[...] comecei a gostar de arte ‘pra caramba’ [...]” (grifo nosso), “[...] desde novinho eu comecei a nadar [...]”, “[...] comecei a treinar e acabou que eu desenvolvi uma habilidade que deve ser a coisa que melhor faço hoje [...]”, “[...] virei outra pessoa [...]” marcaram a descrição desse repertório.

No estudo desenvolvido por Piotto e Alves (2011Piotto, D. C., & Alves, R. O. (2011). Estudantes das camadas populares no ensino superior público: qual a contribuição da escola? Psicologia Escolar e Educacional, 15(1), 81-89. doi: https://doi.org/10.1590/S1413-85572011000100009
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), o relato dos participantes entra em consonância com os sentidos descritos nesse repertório. O gosto pela leitura e escrita também foi apresentado como precursor de uma paixão pelo aprender, encontro de prazer, entusiasmo e potência no enfrentamento de conflitos. Quanto ao esporte, os seus ganhos implícitos são energia motora para o desenvolvimento de habilidades como a cooperação, o respeito, a competição saudável, o bem-estar psicológico, a autoconfiança, a assertividade e a amizade. A subjetividade dessas vivências, com a sua interatividade humana, muito mais do que o seu formato, determina os rumos da aquisição de atitudes e habilidades transferíveis mais adaptativas que contribuem com a aprendizagem.

Institutos federais para viabilizar o acesso ao ensino superior

As narrativas registradas neste repertório destacaram a qualidade do trabalho desenvolvido nos Institutos Federais (IF). Relatado como ponto importante na vida de mais da metade dos participantes, o ingresso no IF, no ensino médio, trouxe aumento da qualidade do ensino, contrastante por ser uma instituição pública de nível médio diferenciada. Além disso, o ambiente vivenciado e os vínculos criados foram exaltados como vivências preciosas. As palavras e frases que marcaram esse repertório foram “[...] ensino médio com nível de ensino superior [...]”, “[...] mudança de ambiente e qualidade de ensino [...]”, “[...] foi o lugar que eu me encontrei [...]”, “[...] sou muito grata por ter estudado lá [...]”, “[...] tudo do pouquinho do básico que eu sei acho que aprendi lá [...]”, “[...] até quando não tinha nada, eu adorava ficar na escola o dia inteiro [...]”, “[...] melhor período da minha vida [...]”, “[...] melhor fase [...]”, “ [...] lugar onde eu fiz mais amigos até então [...]”, “[...] acho que se não fosse por lá, eu não conseguiria, porque eu não fiz cursinho nem nada [...]”, “Você falou de marcos e acho que esse foi, senão o maior, um dos”.

Os sentidos que caracterizaram este repertório reforçam a qualidade da formação oferecida pelos IF. Ao analisar as estatísticas do Enem, no período de 2011 a 2015, Dutra et al. (2019Dutra, R. S., Dutra, G. B. M., Parente, P. H. N., & Paulo, E. (2019). O que mudou no desempenho educacional dos Institutos Federais do Brasil?Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação , 27(104), 631-653. doi: https://doi.org/10.1590/s0104-40362019002701777
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) observaram que o desempenho dos institutos federais foi positivo, crescente e significativo ao longo dos anos em todas as áreas avaliadas. Porém, cabe destacar que frente à imprevisibilidade do cenário político, a partir das eleições presidenciais de 2018, a destinação de verbas para instituições federais de ensino vem sendo contingenciada. Como números base no cenário do estado de Minas Gerais (representativo de um quadro sistêmico nacional), em 2019, cerca de R$33,9 milhões foram cortados no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) e R$27,9 milhões no IFMG (Ronan, 2019Ronan, G. (2019, 17 de setembro). MPF entra com ações contra cortes do MEC em institutos federais mineiros. Jornal Estado de Minas. Recuperado de: https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2019/09/17/interna_gerais,1086017/mpf-entra-com-acoes-contra-cortes-em-institutos-federais-mineiros.shtml
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). Assim, considerando a realidade de contingenciamento em curso no Brasil, a busca pela complementação dos estudos por meio dos institutos federais fica comprometida, tornando um obstáculo real para os futuros estudantes cotistas em suas trajetórias para entrada e permanência nas universidades públicas brasileiras.

Considerações finais

Neste estudo, a análise das narrativas produzidas pelos universitários cotistas sobre suas trajetórias para o ingresso em uma universidade pública federal possibilitou ampliar os sentidos sobre as vivências psicossociais de estudantes beneficiados pelas políticas de ações afirmativas no país. De maneira geral, os estudantes cotistas relataram que os caminhos até a universidade pública foram marcados por histórias de vida repletas de mudanças, dificuldades, responsabilidades precoces e a situação familiar difícil, nem sempre colaborativa, em relação aos planos de ingresso no ensino superior.

A análise das trajetórias dos participantes evidenciou que para alcançarem o objetivo de ingressar em uma universidade pública federal foi preciso, além do esforço pessoal intenso, disciplina e novos hábitos, romper com valores culturais e familiares, contar com apoio de instituições de ensino médio de qualidade como, por exemplo, os institutos federais ou recorrer à complementação de estudos extracurriculares. Além disso, as atividades esportivas e artísticas pareceram funcionar como elementos essenciais, mediadores da rotina estressante de estudos, reforçando a importância das atividades de lazer e trocas sociais.

Contudo, para além das trajetórias para o ingresso na universidade pública será preciso analisar as estratégias de enfrentamento que os universitários cotistas utilizam para garantir a permanência, a conclusão do curso, e o posterior ingresso no mercado de trabalho. Importante mencionar que a política de inclusão de estudantes cotistas nas universidades públicas brasileiras deve ser considerada uma estratégia provisória para a inclusão e a diminuição das desigualdades sociais e do racismo estrutural no país. Adicionalmente, como parte do processo de implantação e funcionamento de qualquer política, cabe acrescentar a necessidade de um olhar crítico e não ingênuo para a fiscalização utilizada na admissão dos candidatos cotistas, especialmente no que tange ao critério racial. Assim, tais temáticas se mostram pertinentes para futuras investigações, incluindo estudos longitudinais.

Do ponto de vista prático, as conclusões deste estudo poderão ser úteis como base para elaboração de propostas interventivas no campo da orientação acadêmica e de carreira e na formulação de políticas públicas e ações institucionais destinadas a esta população. As possibilidades que foram efetivas na trajetória destes participantes podem ser valorizadas e aplicadas com mais alcance. Nesse sentido, destaca-se a importância da formação prévia oferecida pelos institutos federais, ou seja, o valor da escola pública de qualidade, e o incentivo ao envolvimento em atividades extracurriculares, como as artes e o esporte.

Além das contribuições mencionadas, a pesquisa apresenta limitações, sobretudo no que se refere ao delineamento qualitativo, como a dificuldade de ampliação do tamanho e da diversidade da amostra, restrita aos estudantes de uma universidade federal e de um curso de psicologia, cujos resultados não podem ser generalizados sem critério. Finalizando, cumpre destacar a importância da educação pública, em especial as universidades, como caminho de potência para estudantes das mais diferentes classes, gêneros e raças, vivenciarem oportunidades, conhecimentos e trocas criativas e inclusivas, sendo ferramenta para a promoção de justiça social e diminuição do racismo estrutural no país. Espera-se que este estudo contribua para a formulação de intervenções psicossociais e de carreira com universitários cotistas, possibilitando-lhes reposicionamento histórico e a ocupação de espaços sociais representativos como sujeitos-cidadãos em sua trajetória na sociedade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Fev 2020
  • Aceito
    18 Jan 2021
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