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AS FUNÇÕES PARENTAIS EM CASAIS HOMOSSEXUAIS MASCULINOS COM BEBÊS 1 1 Artigo elaborado a partir da dissertação de mestrado do primeiro autor, intitulada A constituição da parentalidade em casais homossexuais masculinos com bebês (Ogaki, 2019), elaborada com apoio e financiamento do CNPq.

FUNCIONES PARENTALES EN PAREJAS HOMOSEXUALES MASCULINAS CON BEBÉS

RESUMO

O presente estudo objetivou investigar as funções parentais em casais homossexuais masculinos com bebês a partir das teorizações de Winnicott. Trata-se de um estudo de casos com dois casais de homens, um deles adotou a filha logo após seu nascimento, a qual estava com dois anos e cinco meses na época do estudo, e outro recorreu à barriga solidária, cujo filho já estava com um ano e três meses. Foram realizadas entrevistas conjunta e individualmente. Os relatos foram submetidos à análise temática, investigando-se aspectos da prática da parentalidade. Os resultados demonstraram que o vínculo pais-filho(a) foi construído a partir dos cuidados cotidianos, que os casais buscaram dividir de forma igualitária. Foi possível identificar em cada participante tanto aspectos da função materna propostas por Winnicott, quanto da função paterna. Os achados indicam que as funções que os adultos exercem junto aos bebês, mais do que materna e paterna, são funções parentais que independem do gênero ou da orientação sexual do cuidador.

Palavras-chave:
Pais homossexuais; relações familiares; parentalidade

RESUMEN

El presente estudio tuvo como objetivo investigar las funciones de los padres en parejas homosexuales masculinas con bebés basándose en las teorizaciones de Winnicott. Este es un estudio de caso con dos parejas de hombres, una de las cuales adoptó a su hija poco después del nacimiento, que tenía 2 años y 5 meses en el momento del estudio, y otra recurrió a la subrogación, cujo hijo ya tenía 1 año y 3 meses. Las entrevistas se realizaron de forma conjunta e individual. Los informes fueron sometidos a análisis temático, investigando aspectos de la practica de la parentalidad. Los resultados mostraron que el vínculo padre-hijo se construyó a partir del cuidado diario, que las parejas trataron de dividir en partes iguales. Fue posible identificar en cada participante ambos aspectos de la función materna propuesto por Winnicott y de la función paterna. Los resultados indican que las funciones que los adultos desempeñan con los bebés, en lugar de maternas o paternas, son funciones parentales que son independientes del género o la orientación sexual del cuidador.

Palabras clave:
Padres homosexuales; relaciones familiares; parentalidad

ABSTRACT.

The present study aimed to investigate parental functions in male homosexual couples with babies based on Winnicott's theorizations. This is a case study with two male couples, one who adopted their daughter right after her birth, wich was 2 years and 5 months old at the time of the study, and another that resort on surrogacy, with a child of 1 year and 3 months. Interviews were conducted jointly and individually. Participants’ reports were submitted to thematic analysis, investigating aspects of parenting practice. The results showed that the parent-child bond was built from daily care, which the couples sought to divide equally. It was possible to identify in each participant both aspects of the maternal and paternal functions proposed by Winnicott. The findings indicate that the functions that adults carry out with infants, rather than maternal and paternal ones, are parental functions that are independent of the gender or the sexual orientation of the caregiver.

Keywords:
Homosexual fathers; family relations; parenting

Introdução

O estudo das mães e bebês tem sido foco de atenção de inúmeros psicanalistas, entre eles Winnicott, cuja obra reflete um período histórico em que as mães eram as principais responsáveis pelos cuidados dos filhos. Embora elas continuem desempenhando essa função, outras formas de organização familiar vêm se tornando mais comum nas sociedades ocidentais, como, por exemplo, os cuidados de bebês por casais homossexuais masculinos, tema deste estudo. Frente a essa outra realidade, cabe perguntar: Pode a teorização de Winnicott contribuir para se pensar esse contexto? E qual a dinâmica das funções materna e paterna em casais homossexuais masculinos?

Ao longo de sua obra, Winnicott (2015Winnicott, D. W. (2015). Necessidades das crianças de menos de cinco anos. In A criança e o seu mundo(6a ed., p. 203-213). Rio de Janeiro, RJ: LTC. Original publicado em 1954.a, 2000Winnicott, D. W. (2000). A preocupação materna primária. In Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (p. 399-405). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Original publicado em 1956., 2011Winnicott, D. W. (2011). O primeiro ano de vida: concepções modernas do desenvolvimento emocional. In A família e o desenvolvimento individual(p. 3-20). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original publicado em 1958.) foi construindo sua teoria do amadurecimento pessoal, a partir de seus estudos sobre os estágios iniciais da vida e os cuidados ofertados pelo ambiente. Segundo ele, no início, o bebê é totalmente dependente da mãe e ainda não existe enquanto entidade individual (Winnicott, 2000Winnicott, D. W. (2000). A preocupação materna primária. In Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (p. 399-405). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Original publicado em 1956.). Nessa etapa da vida, a mãe fornece ao bebê um contexto facilitador para sua tendência inata ao desenvolvimento (Winnicott, 2015aWinnicott, D. W. (2015). E o pai? In A criança e o seu mundo(6a ed., p.127-133). Rio de Janeiro, RJ: LTC. Original publicado em 1944.).

Explicitando o conceito de função materna, Winnicott (2011Winnicott, D. W. (2011). O relacionamento inicial entre uma mãe e seu bebê: a parceria entre mãe e bebê. In A família e o desenvolvimento individual (p. 21-28). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original publicado em 1965.) destaca três importantes aspectos que a compõe: holding (segurar), handling (manejo) e apresentação de objetos. Os cuidados iniciais constituem o holding, a capacidade empática da mãe de sustentar física e emocionalmente o bebê, de forma a atender às suas necessidades. O holding proporcionado pela mãe se assenta nos cuidados físicos, que são as necessidades mais primitivas e básicas. Para o autor, no início não haveria distinção entre cuidados fisiológicos e psicológicos, de forma que todas as necessidades seriam contempladas nos cuidados cotidianos de embalar, alimentar, limpar etc.

O handling envolveria a manipulação do corpo do bebê pela mãe durante os cuidados, que permitiria o desenvolvimento da relação psicossomática, pois através desses cuidados o bebê assenta as experiências em seu próprio corpo (Winnicott, 2011Winnicott, D. W. (2011). O relacionamento inicial entre uma mãe e seu bebê: a parceria entre mãe e bebê. In A família e o desenvolvimento individual (p. 21-28). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original publicado em 1965.). E a apresentação de objetos se refere à tarefa da mãe de apresentar o mundo ao bebê em pequenas doses, à medida que ele é capaz de absorver os estímulos que lhe são apresentados, inserindo-o, assim, na realidade compartilhada e permitindo relacionar-se com objetos externos a ele (Winnicott, 2011Winnicott, D. W. (2011). O relacionamento inicial entre uma mãe e seu bebê: a parceria entre mãe e bebê. In A família e o desenvolvimento individual (p. 21-28). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original publicado em 1965.). Cabe ressaltar que, embora tenha teorizado principalmente sobre a mãe biológica, assumia que outra pessoa poderia exercer a função de cuidado (Winnicott, 2012Winnicott, D. W. (2012). A mãe dedicada comum. In Os bebês e suas mães (4a ed, p. 1-11). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original publicado em 1986.).

Ainda, segundo Winnicott (2011Winnicott, D. W. (2011). O relacionamento inicial entre uma mãe e seu bebê: a parceria entre mãe e bebê. In A família e o desenvolvimento individual (p. 21-28). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original publicado em 1965.), para que a mãe possa exercer sua função de cuidado, faz-se necessário que também conte com um ambiente que lhe proporcione sentimentos de segurança. Esse ambiente que recobre a mãe, para Winnicott (2015bWinnicott, D. W. (2015). E o pai? In A criança e o seu mundo(6a ed., p.127-133). Rio de Janeiro, RJ: LTC. Original publicado em 1944.), envolveria a figura do pai. O pai, ao assegurar que preocupações externas não perturbem a mãe, permite que ela possa estar totalmente dedicada ao seu filho. Assim, se torna responsável pelo bem-estar tanto da mãe quanto do bebê (Winnicott, 2015aWinnicott, D. W. (2015). O bebê como organização em marcha. In A criança e o seu mundo. (6a ed., p. 26-30). Rio de Janeiro, RJ: LTC. Original publicado em 1949.).

O pai se insere mais efetivamente na relação direta com o filho por volta dos quatro anos, época em que a criança já está apta a desenvolver relações triangulares (Winnicott, 2015Winnicott, D. W. (2015). Necessidades das crianças de menos de cinco anos. In A criança e o seu mundo(6a ed., p. 203-213). Rio de Janeiro, RJ: LTC. Original publicado em 1954.c). Porém, apesar dessa inserção mais tardia, o autor destacou que para fazer parte da vida dos filhos é preciso estar presente desde o princípio para adquirir o direito de aplicar sua autoridade quando se torna necessário. Para ele, a função paterna se configura como o homem usando de sua sensibilidade para cuidar e proteger seu filho, de sua autoridade para dizer ‘não’ e ensinar o filho a lidar com a agressividade, assim como sendo um apoio para a esposa (Winnicott, 2015bWinnicott, D. W. (2015). O bebê como organização em marcha. In A criança e o seu mundo. (6a ed., p. 26-30). Rio de Janeiro, RJ: LTC. Original publicado em 1949., 1999Winnicott, D. W. (1999). Dizer “não”. In C. Winnicott, C. Bollas, M. Davis, & R. Sheperd (Orgs.), Conversando com os pais (2a ed., p. 27-48). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original publicado em 1993.). Para o autor, seria importante que a criança tenha mãe e pai presentes, pois isso enriqueceria seu mundo a partir das personalidades distintas (Winnicott, 1999Winnicott, D. W. (1999). Dizer “não”. In C. Winnicott, C. Bollas, M. Davis, & R. Sheperd (Orgs.), Conversando com os pais (2a ed., p. 27-48). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original publicado em 1993.).

Com relação às mudanças nas configurações familiares que vêm ocorrendo nas últimas décadas, alguns autores (Arruda & Lima, 2013Arruda, S. L. S., & Lima, M. C. F. (2013). O novo lugar do pai como cuidador da criança. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, 4(2), 201-216. doi: 10.5433/2236-6407.2013v4n2p201
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; Belo, Guimarães, & Fidelis, 2015Belo, F. R. R., Guimarães, M. R., & Fidelis, K. A. B. (2015). Pode um pai ser cuidadoso? Crítica à teoria da paternidade em Winnicott. Psicologia em Estudo, 20(2), 153-164. doi: 10.4025/psicolestud.v20i2.24274
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; Ferreira & Aiello-Vaisberg, 2006Ferreira, M. C., & Aiello-Vaisberg, T. M. J. (2006). O pai ‘suficientemente bom’: algumas considerações sobre o cuidado na psicanálise winnicottiana. Mudanças - Psicologia da Saúde, 14(2), 136-142. doi: 10.15603/2176-1019/mud.v14n2p136-142
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; Santos & Antúnez, 2018Santos, C. V. M., & Antúnez, A. E. A. (2018). “Papai não tem leite!” considerações sobre o holding paterno na dependência absoluta. Psicologia em Estudo, 23. doi: 10.4025/psicolestud.v23.e40297
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) têm assinalado o potencial das teorizações de Winnicott para se pensar o pai como cuidador na sociedade atual, na qual as concepções dos papéis parentais estão em transformação. Arruda e Lima (2013Arruda, S. L. S., & Lima, M. C. F. (2013). O novo lugar do pai como cuidador da criança. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, 4(2), 201-216. doi: 10.5433/2236-6407.2013v4n2p201
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) destacam que historicamente o homem teve o papel social de provedor na família, que o distanciava da parentalidade. Esse contexto mudou em parte, principalmente com a maior inserção das mulheres no mercado de trabalho, que passaram a exercer papel social mais proeminente fora do âmbito familiar, alterando a relação entre os papéis masculino e feminino. Isso permitiu maior aproximação do homem com o papel social de cuidado e maior proximidade com os filhos.

Para Belo et al. (2015Belo, F. R. R., Guimarães, M. R., & Fidelis, K. A. B. (2015). Pode um pai ser cuidadoso? Crítica à teoria da paternidade em Winnicott. Psicologia em Estudo, 20(2), 153-164. doi: 10.4025/psicolestud.v20i2.24274
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), apesar do cuidado aparecer na teorização de Winnicott atrelado ao gênero feminino, fruto de uma concepção de família heteronormativa presente na época, atualmente se poderia pensar esse mesmo cuidado sendo exercido por homens, desfazendo-se essa vinculação de gênero. Essa ideia é corroborada por Ferreira e Aiello-Vaisberg (2006Ferreira, M. C., & Aiello-Vaisberg, T. M. J. (2006). O pai ‘suficientemente bom’: algumas considerações sobre o cuidado na psicanálise winnicottiana. Mudanças - Psicologia da Saúde, 14(2), 136-142. doi: 10.15603/2176-1019/mud.v14n2p136-142
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), ao postular que um adulto que esteja presente de forma espontânea e disposto a se devotar à criança pode se prestar a esse papel, sem necessariamente precisar ser uma mulher ou mesmo ter algum vínculo biológico, como nos casos de adoção. Santos e Antúnez (2018Santos, C. V. M., & Antúnez, A. E. A. (2018). “Papai não tem leite!” considerações sobre o holding paterno na dependência absoluta. Psicologia em Estudo, 23. doi: 10.4025/psicolestud.v23.e40297
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) vão além das teorizações e apresentam dados empíricos de um pai heterossexual que participava ativamente da rotina de cuidados do filho, ofertando holding paterno. Evidenciam, dessa forma, como o que foi teorizado como sendo próprio da mãe pode ser observado também no pai e, independente do gênero, é possível se ofertar os cuidados que a criança necessita para o seu desenvolvimento.

Assim, esses autores compreendem que o pai pode ofertar um cuidado suficientemente bom da mesma forma que o esperado e teorizado para a mãe, não se limitando ao papel tradicionalmente colocado a ele de representante da lei ou de apoio materno (Arruda & Lima, 2013Arruda, S. L. S., & Lima, M. C. F. (2013). O novo lugar do pai como cuidador da criança. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, 4(2), 201-216. doi: 10.5433/2236-6407.2013v4n2p201
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; Belo et al., 2015Belo, F. R. R., Guimarães, M. R., & Fidelis, K. A. B. (2015). Pode um pai ser cuidadoso? Crítica à teoria da paternidade em Winnicott. Psicologia em Estudo, 20(2), 153-164. doi: 10.4025/psicolestud.v20i2.24274
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; Ferreira & Aiello-Vaisberg, 2006Ferreira, M. C., & Aiello-Vaisberg, T. M. J. (2006). O pai ‘suficientemente bom’: algumas considerações sobre o cuidado na psicanálise winnicottiana. Mudanças - Psicologia da Saúde, 14(2), 136-142. doi: 10.15603/2176-1019/mud.v14n2p136-142
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; Santos & Antúnez, 2018Santos, C. V. M., & Antúnez, A. E. A. (2018). “Papai não tem leite!” considerações sobre o holding paterno na dependência absoluta. Psicologia em Estudo, 23. doi: 10.4025/psicolestud.v23.e40297
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). Também tem sido proposto a utilização de outras terminologias que não necessariamente mãe/pai, maternagem/paternagem ou função materna/paterna, como cuidadores, parentalidade e funções parentais.

Apesar das sugestões a respeito da potencialidade das teorizações winnicottianas, não encontramos nenhum trabalho empírico publicado que utilize essas concepções para compreender a parentalidade em casais homossexuais masculinos especificamente. Essa configuração coloca os pais na tarefa de cuidado e põe em questão a distinção de funções maternas e paternas por sair do modelo de família tradicional. Assim sendo, o presente estudo teve por objetivo investigar as funções parentais em casais homossexuais masculinos com bebês, a partir da teorização proposta por Winnicott.

Método

Participantes

Participaram deste estudo quatro homens compondo dois casais homossexuais masculinos, que eram oficialmente casados em cartório, residiam juntos e com o(a) filho(a). O primeiro casal é composto por Antônio, médico de 39 anos, seu marido Bruno, psicólogo de 32 anos, e seu filho Antônio Neto, de um ano e três meses, nascido a partir de barriga solidária. Residiam no estado de São Paulo. O segundo casal é composto por Carlos, psicólogo de 33 anos, seu marido Daniel, funcionário público de 32 anos, e sua filha adotiva Camila, de dois anos e cinco meses. Residiam no estado de Santa Catarina. Na época das entrevistas, todos trabalhavam fora de casa. Todos os nomes apresentados são fictícios para preservar a identidade dos participantes.

Delineamento, procedimentos e instrumentos

Trata-se de um estudo de casos, investigados para se conhecer de forma aprofundada uma condição ou fenômeno (Stake, 2006Stake, R. E. (2006). Multiple case study analysis research methods. New York, NY: Guilford Press.), que no presente estudo são as funções parentais em casais homossexuais masculinos.

A partir da divulgação do estudo e da busca ativa em mídias sociais, os participantes foram contatados pelo pesquisador responsável, primeiro autor deste artigo5 5 Ao longo da coleta de dados, grande esforço foi feito para contatar e entrevistar casais homossexuais masculinos. Ao todo foram contatados seis casais e um pai solteiro. Quatro casais relataram não dispor de tempo para a realização das entrevistas ou não tinham disponibilidade para realizar as entrevistas por videoconferência. Assim, foram entrevistados apenas dois casais e o pai solteiro. Tendo em vista as dificuldades de envolver casais homossexuais masculinos, em determinado momento também optou-se por ampliar o foco da pesquisa, incluindo casais homossexuais femininos, que aceitaram participar com mais facilidade, sendo entrevistados três casais femininos. Para o presente estudo, foram selecionados os dados dos dois casais homossexuais masculinos em virtude dos objetivos estabelecidos. . Os participantes foram então informados sobre os objetivos e procedimentos do estudo. A partir desse contato, foi combinado um dia e horário para a realização das entrevistas, que foram realizadas por videoconferência, com a anuência dos participantes, tendo em vista que os casais residiam em cidades distantes do entrevistador. Na data estipulada, o pesquisador apresentou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que todos leram, assinaram e retornaram digitalmente.

Na mesma ocasião, os participantes foram solicitados a responder: (1) Ficha de dados demográficos da família (Nudif, 2015Núcleo de Infância e Família[NUDIF]. (2015). Ficha de dados demográficos da família. Instituto de Psicologia - UFRGS, Porto Alegre. Instrumento não publicado.) utilizada para se obter informações sociodemográficas como idade, profissão, escolaridade, nível socioeconômico de cada participante; (2) Entrevista sobre a história da família (Ogaki & Piccinini, 2017aOgaki, H. A., & Piccinini, C. A. (2017a). Entrevista sobre a história da família(adaptado de Lopes, Silva, Dornelles, & Piccinini, 2007). Instituto de Psicologia, UFRGS, Porto Alegre. Instrumento não publicado.), realizada conjuntamente com o casal e composta por quatro blocos de questões que investigam: (a) formação do casal, (b) formalização da relação, (c) processo de escolha e transição para a parentalidade, e (d) mudanças no relacionamento conjugal após terem filho; (3) Entrevista sobre a experiência da parentalidade homossexual masculina (Ogaki & Piccinini, 2017bOgaki, H. A., & Piccinini, C. A. (2017b). Entrevista sobre a experiência da homoparentalidade masculina(adaptado de NUDIF, 2005). Instituto de Psicologia, UFRGS, Porto Alegre. Instrumento não publicado.), realizada individualmente com cada membro do casal e composta por oito blocos de questões, investigando: (a) primeiras experiências com o filho, (b) desenvolvimento do filho, (c) relacionamento com o filho, (d) inserção na escola, (e) experiência de ser pai, (f) percepções sobre o cônjuge como pai, (g) experiência como família homossexual e (h) relacionamento com a família de origem.

As entrevistas ocorreram entre maio e novembro de 2018. Cada entrevista teve cerca de 01 hora de duração. O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia da UFRGS, sob o parecer nº 2.648.389.

Resultados e discussão

A análise temática (Braun & Clarke, 2006Braun, V. & Clarke, V. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, 3(2), p. 77-101. doi: 10.1191/1478088706qp063oa
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) foi utilizada para se analisar as respostas dos participantes às entrevistas. Os temas principais foram derivados dos eixos da parentalidade propostos por Houzel (2006Houzel, D. (2006). As implicações da parentalidade. In: L. Solis-Ponto(Org.), Ser pai, ser mãe: parentalidade: um desafio para o terceiro milênio (2a ed). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.), a saber: o exercício da parentalidade, que se refere aos aspectos jurídicos e socialmente construídos de reconhecimento de filiação, a experiência da parentalidade, que diz respeito à experiência subjetiva consciente e inconsciente de ser pai, e a prática da parentalidade, que se refere às tarefas que os pais assumem junto à criança e envolvem os cuidados parentais, tanto físicos quanto psíquicos.

Em razão da extensão das entrevistas, das análises realizadas e da riqueza presente em cada um dos temas, decidiu-se por publicá-los separadamente, tendo em vista que possuem foco diferenciado. Esta prática tem sido defendida para estudos qualitativos (Levitt et al., 2018Levitt, H. M., Bamberg, M., Creswell, J. W., Frost, D. M., Josselson, R., & Suárez-Orozco, C. (2018). Journal article reporting standards for qualitative primary, qualitative meta-analytic, and mixed methods research in psychology: The APA Publications and Communications Board task force report. American Psychologist, 73(1), 26-46. doi: 10.1037/amp0000151
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) tendo em vista a extensão destes estudos. Os resultados aqui apresentados dizem respeito ao último tema de análise.

Seguindo Braun e Clarke (2006Braun, V. & Clarke, V. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, 3(2), p. 77-101. doi: 10.1191/1478088706qp063oa
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), as transcrições das entrevistas foram lidas e relidas em sua totalidade e, então, trechos das entrevistas foram selecionados e separados nos temas propostos acima, seguindo uma abordagem dedutiva, proposta pelas autoras. Em seguida, os trechos foram agrupados em torno de ideias comuns que expressavam e foram organizados subtemas que retratavam os relatos considerados pertinentes para a compreensão do fenômeno. Após o agrupamento inicial, os subtemas foram revistos para verificar se os relatos realmente expressavam a ideia proposta, se o agrupamento era pertinente e, por fim, foram decididos os nomes dos subtemas. Ao final da revisão, permaneceram quatro subtemas no tema Prática da parentalidade: relacionamento com o/a filho/a, os cuidados com o/a filho/a, demarcação de limites e divisão de tarefas entre o casal.

Apresenta-se a seguir alguns dos principais relatos que ilustram o tema da prática da parentalidade e seus subtemas. Na dissertação que deu origem a este artigo (Ogaki, 2019Ogaki, H. A. (2019). A constituição da parentalidade em casais homossexuais masculinos com bebês (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.), encontram-se outros relatos que, por limitações de espaço, não foram incluídos neste artigo. Por fim, os relatos associados a este tema e subtemas serão discutidos à luz da literatura disponível, tomando como base a teoria winnicottiana, mas sem desconsiderar outros autores que possam contribuir para a compreensão das funções parentais em casais homossexuais masculinos.

Caso 1: Antônio e Bruno, e seu filho Antônio Neto

Esse caso se refere à família de Antônio (médico, 39), Bruno (psicólogo, 32) e seu filho Antônio Neto (1 ano e 3 meses). O casal estava junto havia sete anos quando da realização da entrevista. O casal tentou realizar barriga de aluguel no exterior, porém as tentativas de fertilização assistida não foram bem sucedidas. Em seguida, fizeram tentativas no Brasil, com o auxílio de uma prima de Antônio que se ofereceu para ser a barriga solidária, e uma delas foi bem sucedida em proporcionar uma gestação. Em 2017, nasceu o filho do casal, Antônio Neto.

Relacionamento com o filho

Durante as entrevistas, o casal relatou que o filho era mais vinculado a eles que a qualquer outra pessoa, reconhecendo-os como pais: “O vínculo nosso, se ele tá no nosso colo, é difícil tirar ele do nosso colo” (Bruno). Também referiram que o relacionamento do filho com eles alternava momentos de estar mais próximo a um ou a outro, dependendo do quanto se disponibilizavam para ele: “Ele varia muito, quem dá mais atenção pra ele, ele fica mais apegado. Se eu dei mais atenção durante o dia pra ele, ele vai ficar mais me querendo” (Antônio); “Domingo eu fico com ele o dia inteirinho. E na segunda-feira ele tá super apegado a mim. Aí começa a semana e eu acabo ficando mais ausente, quando eu chego ele fica apegado, mas aí mais com o Antônio” (Bruno). Segundo Antônio, essa oscilação do filho já havia sido motivo de ciúmes entre o casal: “A gente tem ciúmes um do outro com o nenê, as vezes dá uma briguinha (risos). Essa oscilação dele gostar de um, gostar de outro, depois você vai entendendo que é o tempo dele né”.

Além disso, Antônio falou sobre como gostava de estar em contato com o filho, segurando ele no colo: “Fazer ele dormir aqui [no peito] eu adoro […]”, demonstrando carinho: “Eu tô com ele no colo, que eu abraço, beijo ele, parece que é, é muito bom […]”; e brincando: “Eu brinco bastante também. A gente senta muito no chão com ele, a gente deita no chão com ele. Fica ali do jeito que ele tá”. Bruno também referiu gostar muito dos momentos que tem a sós com o filho, em que buscava deixá-lo em liberdade para brincar e explorar, estando sempre atento à sua segurança:

A parte de acordar de manhã eu gosto bastante, dar banho nele também eu gosto muito né, são os momentos que são mais nossos […] deixar ele explorar assim. Eu gosto de fazer isso sabe, de deixar ele a vontade, de brincar.

Estar junto ao filho e deixá-lo livre para explorar e brincar, ficando disponíveis caso eles necessitassem de alguma atenção fornece um ambiente facilitador para que as crianças coloquem em marcha sua tendência ao desenvolvimento conforme teorizado por Winnicott (2000Winnicott, D. W. (2000). A preocupação materna primária. In Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (p. 399-405). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Original publicado em 1956.). A partir da manutenção desse ambiente, junto aos cuidados necessários, as crianças podem sentir que há uma continuidade em ser, de forma que vão integrando suas experiências até alcançar a vivência de unidade.

Os cuidados com o filho

De acordo com o casal, no início, todos os cuidados com relação ao bebê, como alimentação e higiene, eram realizados pelos dois, algo que já haviam decidido antes do nascimento, como referido por Antônio: “Eu falava antes dele nascer ‘Eu não vou deixar ninguém fazer, eu vou fazer tudo’ […]”; “No início, nas primeiras vezes, a gente fazia tudo, hora eu, hora ele [Bruno]. Eu acho super importante porque gera vínculo, a gente não gestou, então tem que gerar o vínculo na hora que nasce né”. Sem dúvida, as principais tarefas que precisavam assumir com relação ao filho nesse período eram principalmente de cuidados físicos, como alimentação, higiene e sono, com grande impacto para o desenvolvimento emocional do bebê e para a relação pai-bebê, o que era percebido pelos pais. Segundo Winnicott (1983Winnicott, D. W. (1983). Teoria da relacionamento paterno-infantil. In O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento humano (p.38-54). Porto Alegre: Artmed. Original publicado em 1960.), no início os cuidados físicos são também a base para os cuidados psíquicos, pois estes não seriam diferenciados. Esse cuidado, sensível e constante constitui o holding, que proporciona o desenvolvimento da personalidade.

Antônio ainda destacou: “O mamá principalmente, a gente estipulou, tirava a camisa, pra colocar contato com a pele né, pra ir falando com ele com a voz né”. Essa forma de manejo, entre outras relatadas pelos pais, poderia ser compreendida como um exemplo de handling (Winnicott, 2011Winnicott, D. W. (2011). O relacionamento inicial entre uma mãe e seu bebê: a parceria entre mãe e bebê. In A família e o desenvolvimento individual (p. 21-28). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original publicado em 1965.), em que através do toque, estes pais estariam ajudando o bebê a dar um contorno ao próprio corpo e a assentar suas experiência nele, desenvolvendo a relação psicossomática.

Assumir esses cuidados iniciais foi importante para o casal construir o vínculo com o filho. Embora houvesse outras pessoas dando apoio desde o início, como avós, tias e a babá, este apoio se caracterizava por estar presente e orientar, mais do que se envolver diretamente nos cuidados da criança: “A questão dos cuidados era mais a gente, elas não botavam a mão na massa, vamos dizer assim, não. Tavam mais […], tavam presentes né” (Bruno). Apesar da presença dessas figuras femininas, muitas vezes compreendidas socialmente como mais capazes para o cuidado, percebe-se que eram os pais quem assumiam as responsabilidades de cuidado e que isso permitiu que criassem um espaço para se vincularem de forma especial com o bebê, sem que uma figura materna necessariamente feminina fizesse falta para essa família. Ainda assim, Antônio afirmou que houve momentos em que precisaram deixar as tarefas para outras pessoas, pois a rotina de cuidados nos primeiros dias era muito desgastante: “Na madrugada, que a gente tava com a enfermeira nos três primeiros dias aí ela trocava uma ou outra vez né, você não aguenta né, é a noite inteira acordado nos primeiros dias né”.

Demarcação de limites

Um ponto destacado durante as entrevistas foi a importância de dizer ‘não’ ao filho. Segundo Antônio, a capacidade de dizer ‘não’ foi sendo desenvolvida nele depois de se tornar pai. No início se sentia angustiado em demarcar os limites para o filho, mas adquiriu confiança em sua autoridade: “As primeiras vezes era muito difícil eu ter que falar ‘não’. Me angustiava muito, eu falo ‘Não é não!’ e daí eu já consigo não ter aquele sofrimento de ver ele chorando né e prevalecer a minha autoridade”.

Antônio demonstrou compreender que as restrições devem ocorrer apenas naquilo que é imprescindível e que ele devia ser firme em sua decisão para manter sua autoridade, não se dobrando aos choros do filho:

Eu não quero ser um pai que falo ‘não’ pra tudo, porque senão o ‘não’ não vai ter efeito né. Então assim, eu falo ‘não’ nas prioridades né. Por exemplo tem várias gavetas, então deixo aquelas gavetas que ele vai ficar mexendo ali que eu não preciso falar o ‘não’, agora tem uma gaveta que ele não pode mexer, aquela lá eu vou falar ‘não’ […] Ele aceita, ele chora, mas ele me respeita bastante.

Bruno também apontou precisar dizer ‘não’ para o filho em algumas situações com o intuito de protegê-lo e, assim como Antônio, buscava ser firme com o filho, sem voltar atrás quando ele chorava: “Pra mim assim, a questão é eu preciso protegê-lo, entendeu? É meu dever isso, então se aquilo que ele tá pegando vai fazer mal pra ele, eu não deixo ele pegar”. De acordo com Winnicott (1999Winnicott, D. W. (1999). Dizer “não”. In C. Winnicott, C. Bollas, M. Davis, & R. Sheperd (Orgs.), Conversando com os pais (2a ed., p. 27-48). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original publicado em 1993.), os pais preparam um ambiente seguro para a criança, dando cada vez mais liberdade para que ela explore a realidade externa e precisam dizer ‘não’ ao que possa ameaçar a criança, para mantê-la protegida. A partir daí, os pais vão estabelecendo os limites junto à criança. Segundo o autor, a autoridade em dizer ‘não’ é adquirida pelos pais que se encontram presentes e ofertam cuidados antes das restrições, de forma que as crianças aceitam os limites por serem colocados por uma pessoa que se preocupa com ela e com quem já estabeleceu uma relação.

No presente caso, pode-se perceber que os mesmos pais que ofertam o cuidado, função tradicionalmente materna (Winnicott, 2000Winnicott, D. W. (2000). A preocupação materna primária. In Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (p. 399-405). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Original publicado em 1956.), são também os responsáveis por estabelecer limites, função tradicionalmente paterna (Winnicott, 2015bWinnicott, D. W. (2015). Necessidades das crianças de menos de cinco anos. In A criança e o seu mundo(6a ed., p. 203-213). Rio de Janeiro, RJ: LTC. Original publicado em 1954.). Dizer ‘não’ aparece como uma forma complementar de cuidado, visando a segurança do filho, e que não precisa ser exercida por outra pessoa, mas é assumida alternadamente por ambos, sem estabelecer distinções entre o que seria responsabilidade de um ou de outro no casal. Dessa forma, nesse caso, entende-se que não há uma oposição entre o que é visto tradicionalmente como funções materna e paterna, cuidar e ser o representante da lei. Na verdade, essas concepções se constituem em heranças patriarcais e heteronormativas, como destacam Belo et al. (2015Belo, F. R. R., Guimarães, M. R., & Fidelis, K. A. B. (2015). Pode um pai ser cuidadoso? Crítica à teoria da paternidade em Winnicott. Psicologia em Estudo, 20(2), 153-164. doi: 10.4025/psicolestud.v20i2.24274
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), que podem ter sido a realidade de um período histórico anterior, mas representam cada vez menos as famílias atuais.

Divisão de tarefas entre o casal

O casal relatou dividir os cuidados para com o filho de forma muito igualitária. Dividiam todos os cuidados desde o início e em alguns momentos um ou outro ficava mais responsável pelo filho em decorrência da disponibilidade de tempo em relação ao trabalho ou aos estudos. Antônio referiu ter uma rotina de trabalho mais pesada, enquanto Bruno trabalhava poucos dias fora de casa, estudava para o vestibular e era o responsável pelas tarefas domésticas, embora contassem com uma funcionária para auxiliar. Essa divisão corrobora com os achados da literatura de que os casais homossexuais apresentam uma divisão igualitária tanto das tarefas domésticas quanto dos cuidados para com os filhos (Kelly & Hauck, 2015Kelly, M., & Hauck, E. (2015). Doing housework, redoing gender: queer couples negotiate the household division of labor. Journal of GLBT Family Studies, 11(5), 438-464. doi: 10.1080/1550428X.2015.1006750
https://doi.org/10.1080/1550428X.2015.10...
; Panozzo, 2015Panozzo, D. (2015). Child care responsibility in gay male-parented families: predictive and correlative factors. Journal of GLBT Families Studies, 11, 248-277. doi: 10.1080/1550428X.2014.947461
https://doi.org/10.1080/1550428X.2014.94...
; Tornello, Kruczkowski, & Patterson, 2015Tornello, S. L., Kruczkowski, S. M., & Patterson, C. J. (2015). Division of labor and relationship quality among male same-sex couples who become fathers via surrogacy. Journal of GLBT Family Studies, 11, 375-394. doi: 10.1080/1550428X.2015.1018471
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).

O casal também falou terem a percepção de que o relacionamento deles era mais igualitário que os relacionamentos heterossexuais, pois não havia a divisão de tarefas por gênero que muitas vezes sobrecarrega a mulher, como expresso por Antônio: “A gente divide muito as tarefas, que o casal hétero não divide, né. Então, um cansa e passa pro outro, um fez um pouco, o outro faz. As tarefas são iguais, não tem um que tem que fazer mais […]”; e na fala de Bruno: “A maioria dos casais héteros né, a mulher que é a responsável pela maior parte dos cuidados e a gente, meio que no possível, a gente divide muito isso”. Apesar disso, Bruno referiu que, comparando seu relacionamento com casais heterossexuais, sentia como se ele fosse “[…] a mãe, que possui o instinto materno […]” enquanto isso não ocorria da mesma forma com Antônio, que seria “[…] o pai em uma relação heterossexual […]” e que “São formas de cuidado diferentes e os dois tem a sua importância […]”, sem distinções de valor entre eles. É possível constatar na fala de Bruno a internalização de discursos tradicionais sobre a divisão de tarefas pautada pelo gênero (Dantas & Ferreira, 2015Dantas, F. S. S., & Ferreira, S. P. A. (2015). Adoção tardia: produção de sentidos acerca da paternagem e filiação em uma família homoafetiva. Temas em Psicologia, 23(3), 593-606. doi: 10.9788/TP2015.3-06
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; Rodriguez, Merli, & Gomes, 2015Rodriguez, B. C., Merli, L. F., & Gomes, I. C. (2015). Um estudo sobre a representação parental de casais homoafetivos masculinos. Temas em Psicologia, 23(3), 751-762. doi: 10.9788/TP2015.3-18
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), estabelecendo uma diferenciação entre sua experiência da parentalidade, considerada mais maternal, e a do marido, considerada paternal. Winnicott (2015Winnicott, D. W. (2015). Necessidades das crianças de menos de cinco anos. In A criança e o seu mundo(6a ed., p. 203-213). Rio de Janeiro, RJ: LTC. Original publicado em 1954.b) postulava que a presença do pai como alguém com uma personalidade e características distintas da mãe poderia enriquecer o mundo da criança. Assim, ela poderia se beneficiar da existência da dupla mãe e pai, iguais em importância, mas não indiferenciados. Contudo, apesar da diferenciação envolvendo gênero não ocorrer em casais homossexuais, outras diferenças podem aparecer entre eles, o que ajuda a marcar a alteridade. Por exemplo, enquanto Antônio foi retratado como ‘meio porra louca’, ‘despreocupado’ e ‘se desequilibrava’ algumas vezes, Bruno era ‘certinho’, ‘centrado’ e ‘muito preocupado’ com a segurança do filho.

Para Arán (2009Arán, M. (2009). A psicanálise e o dispositivo diferença sexual. Estudos Feministas, 17(3), 653-673.), a partir da teoria psicanalítica, a divisão entre função materna e paterna se baseia na ideia do dispositivo da diferença sexual como fundamental à constituição psíquica. Essa diferença se limita à uma matriz binária de oposição feminino/masculino. Porém, para a autora, é necessário pensar as noções de diferença e alteridade para além da sexualidade, pois existem outras formas de diferenciação dentro dos casais homossexuais que são transmitidos aos filhos. Assim, embora possam exercer as mesmas atividades de cuidados, esses pais imprimem suas personalidades nelas, têm suas preferências e jeitos próprios de fazê-las. Além disso, é plausível se pensar que esse cuidado ocorre de forma espontânea, e não mecânica, como destacado por Winnicott (2015Winnicott, D. W. (2015). Necessidades das crianças de menos de cinco anos. In A criança e o seu mundo(6a ed., p. 203-213). Rio de Janeiro, RJ: LTC. Original publicado em 1954.a, 2000Winnicott, D. W. (2000). A preocupação materna primária. In Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (p. 399-405). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Original publicado em 1956.) ao se referir aos cuidados necessários aos bebês.

Caso 2: Carlos e Daniel, e a filha Camila

Esse caso se refere à família de Carlos (psicólogo, 33), Daniel (funcionário público, 32) e sua filha Camila (2 anos e 5 meses). O casal estava junto há dez anos. Em 2015 iniciou-se o processo legal de adoção; no ano seguinte entraram para a fila e em duas semanas estavam conhecendo sua filha Camila, uma recém-nascida que estava internada na UTI neonatal por ter nascido prematura e havia sido entregue para adoção logo após seu nascimento. Camila ainda permaneceu internada por dois meses e, após esse período, puderam levá-la para casa.

Relacionamento com a filha

O casal relatou que tinham um bom relacionamento com sua filha, procurando estar disponível, interagindo e brincando com ela. As interações entre eles foram descritas como muito pautadas em ensinar coisas novas e também propiciar novas experiências a ela. Carlos disse que tentava estar aberto a tudo que a filha pudesse comunicar para poder compreender e atender às suas necessidades: “Eu tô tentando né (risos) identificar as necessidades dela, pelo menos eu me esforço pra isso”.

No relacionamento com a filha, Daniel falou que gostava de estar com ela, e falou quais eram suas atividade prediletas: “O que eu mais gosto de fazer é pintar, a gente brinca bastante de pintar, de fazer desenho, eu acho que isso estimula ela bastante […]”; e também das coisas que o irritavam quando estava com a filha:

Ela é repetitiva. Ontem a gente tava brincando de jogo da memória, eu fiquei quase três horas brincando o mesmo jogo, que ela não enjoava (risos), e tu é obrigado a continuar senão ela chora. A gente tenta ceder entendeu, porque a gente tá trocando carinho, afeto um com o outro, isso é bom.

No dia a dia, Daniel relatou que apresentava a filha a coisas que ela não conhecia e proporcionava novas experiências quando tinha a oportunidade: “Quando tô fazendo alguma coisa nova, tento chamar ela pra mostrar o que eu tô fazendo. Às vezes eu tô cortando algum legume ou uma fruta que ela não conhece, eu peço pra ela experimentar”.

Sendo o pai que passava a maior parte do dia com a filha, Carlos contou como estruturava sua rotina de cuidados:

Eu tento dividir o meu dia e ensinar alguma coisa pra ela por meio de brincadeiras e brinquedos educativos, e aí eu intercalo o aprendizado de questões como o alfabeto, cores, com o aprendizado de vida assim. Há pouco tempo atrás eu aprendi a fazer biscoito e aí coloquei ela pra fazer comigo, foi muito divertido.

Para Winnicott (2011Winnicott, D. W. (2011). O relacionamento inicial entre uma mãe e seu bebê: a parceria entre mãe e bebê. In A família e o desenvolvimento individual (p. 21-28). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original publicado em 1965.), uma das funções maternas é a apresentação de objetos, exercida propiciando à criança novas experiências, ensinando coisas novas e incorporando cada vez mais o mundo na realidade do filho, na medida em que ele se desenvolve. Todas essas preocupações e propostas de atividades que Carlos organizava com a filha parecem refletir isso a que Winnicott se referia. Apesar dessa função de apresentação de objetos ser nomeadamente materna na teoria winnicottiana, assim como outras, podemos pensar que elas se inscrevem num contexto maior de relações humanas de cuidado, que no presente caso está presente na relação pais-filha, assim como aparece comumente nas relações mãe-criança (Ferreira & Aiello-Vaisberg, 2006Ferreira, M. C., & Aiello-Vaisberg, T. M. J. (2006). O pai ‘suficientemente bom’: algumas considerações sobre o cuidado na psicanálise winnicottiana. Mudanças - Psicologia da Saúde, 14(2), 136-142. doi: 10.15603/2176-1019/mud.v14n2p136-142
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).

Os cuidados com a filha

O casal relatou nas entrevistas que os cuidados com a filha iniciaram no dia em que a conheceram no hospital: “Quando a gente conheceu a Camila, ela nunca tinha recebido nenhum colo […] E aí na primeira vez que a gente conheceu ela, a enfermeira pediu que a gente fizesse isso. O Daniel trocou a primeira fralda e eu dei o primeiro colo”. Durante a estadia no hospital, o contato com a filha se deu através do método canguru, que é uma forma de intervenção utilizada na UTI neonatal que promove o contato pele a pele e foi adotada como política pública (Brasil, 2015Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. (2015). Manual do método canguru: seguimento compartilhado entre a atenção hospitalar e a atenção básica. Brasília, DF.): “Quando ela estava ainda na incubadora, os pais já poderiam fazer o canguru, esse é o primeiro contato que se tem com a criança” (Carlos). A partir de então, esses cuidados se tornaram rotina durante a estadia no hospital, em que eles tinham que: “Trocar fralda, aí a primeira trocada de manhã e a mamada tinha que pesar a criança, dar banho né, trocar roupa, era isso né” (Carlos). Todas essas atividades básicas de cuidado e o uso do método canguru realizado por esses pais podem ser entendidos a partir dos conceitos de Winnicott (1983Winnicott, D. W. (1983). Teoria da relacionamento paterno-infantil. In O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento humano (p.38-54). Porto Alegre: Artmed. Original publicado em 1960., 2011Winnicott, D. W. (2011). O primeiro ano de vida: concepções modernas do desenvolvimento emocional. In A família e o desenvolvimento individual(p. 3-20). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original publicado em 1958.) de holding e de handling.

Em razão da prematuridade, a filha necessitava de cuidados especiais, como relatou Daniel: “Ela precisava de cuidados que são diferentes de uma criança normal, pelo menos até os três primeiros meses é tudo contado, tudo, não podia dar dosagem a mais de remédio, não podia dar dosagem a mais de comida né, tudo restrito assim, cuidado maior […]”; e esses cuidados continuaram após levarem ela para casa: “A criança prematura, ela exige um pouco mais de cuidado. Então, aí a gente tem que adaptar a casa, teve que colocar álcool gel em tudo quanto é lugar”. Além dos cuidados em casa, Carlos apontou que em razão da prematuridade foi necessário manter uma rotina de consultas médicas para acompanhar sua saúde: “Por um ano a gente continuou fazendo acompanhamento médico né... Todo mês, pra ver se ela teria algum problema de visão, de audição e de coração e antes de completar um ano ela ganhou alta”.

Além disso, Daniel contou que buscavam incentivar o desenvolvimento da filha para que ela pudesse acompanhar as crianças de sua idade, independentemente de ser prematura: “A gente tenta estimular ela o máximo possível, pra quando ela for pra escolinha não ter essa diferença com as outras crianças né, pra saber que a prematuridade não dá diferença intelectual pra ninguém”.

Sobre o cuidado de outras pessoas, o casal relatou ter optado por não inserir a filha na creche. Apesar disso, Carlos apontou a socialização como o ponto forte da creche, que ele buscava atender de outras formas: “Tem diversos parques grandes, eu já sento lá, converso com outra família, pergunto se ela pode brincar com os filhos deles e ela começa a interagir. Tem as crianças do próprio condomínio, temos uma brinquedoteca aqui, tem sempre criança”.

É possível perceber que esses pais ofereciam um cuidado sensível, que na teoria winnicotiana é comumente atribuído à mãe (2011), de acordo com as necessidades da filha, como a atenção à sua saúde física, a estimulação pela prematuridade e pela socialização com o avançar da idade. Embora o autor destaque a importância da gestação como preparação para esses cuidados (Winnicott, 2000Winnicott, D. W. (2000). A preocupação materna primária. In Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (p. 399-405). Rio de Janeiro, RJ: Imago. Original publicado em 1956.), podemos perceber que a ausência desse vínculo biológico não é necessariamente impeditivo, assim como o próprio gênero dos pais.

Demarcação de limites

Os relatos de Carlos demonstraram que ele estava trabalhando a questão dos limites com a filha e que os resultados eram considerados satisfatórios: “A questão dos limites ela tem aceitado bem […] ela pede uma bolacha e tem dias que eu dou, tem dias que eu falo que não e ela não chora e ela não faz birra por isso”.

Apesar disso, Carlos relatou que a demarcação de limites era um ponto de divergência no casal: “A questão do impor limites as vezes me incomoda um pouco porque o Daniel é mais permissivo assim em algumas coisas […]”; e “Se ela quiser pular no sofá, ele [Daniel] deixa, tipo, e eu já não deixo, então a gente tem esse olhar diferente”. Essa situação também se evidencia na fala já mencionada anteriormente de Daniel sobre os jogos que não queria jogar com a filha, mas não conseguia sustentar o ‘não’ e acabava cedendo frente ao choro dela.

Nesse caso, diferentemente do anterior, a delimitação de limites é um ponto de desavença nesse casal. Enquanto Carlos estabelece essa função como importante e a exerce de modo firme, Daniel demonstra não conseguir trabalhar os limites com a filha. Essa dificuldade pareceu estar ligada a questões pessoais de Daniel, relacionadas à forma rígida com que foi criado. Aqui podemos perceber um ponto de diferenciação e alteridade no casal (Arán, 2009Arán, M. (2009). A psicanálise e o dispositivo diferença sexual. Estudos Feministas, 17(3), 653-673.). Ainda assim, em nenhum momento a autoridade para dizer ‘não’ foi compreendida como algo masculino ou como papel do pai, em contraste a função de cuidar considerada materna e feminina.

Divisão de tarefas entre o casal

De acordo com os relatos do casal, a divisão de tarefas entre eles desde o começo se deu de forma que um ficasse mais responsável por um período do dia, enquanto o outro estava trabalhando. Sobre o período em que a filha ficou internada no hospital, eles falaram: “Combinamos assim, o Daniel não sairia do trabalho, eu diminuiria meus atendimentos no consultório pra ficar com ela né” (Carlos); e “A gente meio que dividiu, eu ficava mais no período noturno e a parte da manhã né, que ele tava com os pacientes dele e ele no período da tarde” (Daniel).

Posteriormente, quando levaram a filha para casa, como Carlos era autônomo e possuía maior liberdade em relação aos seus horários, ele acabou se dedicando mais à paternidade em termos de tempo disponibilizado para a filha e era quem passava a maior parte do dia com ela, enquanto Daniel estava no trabalho. Essa divisão entre eles foi muito pensada para que não sobrecarregasse nenhum dos dois, pois além dos cuidados com a filha, ainda precisavam trabalhar, cuidar da casa e de si mesmos. Essa preocupação com a divisão de tarefas fica aparente nas seguintes falas: “Quem tava responsável por ela, que ficava cuidando, fazia tudo, entendeu? […] A gente tentou equilibrar pra não deixar o outro sobrecarregado” (Daniel); também destacado por Carlos: “A questão noturna assim também era tipo quem acordar primeiro, quem tiver com menos sono, era sempre tentando não sobrecarregar ninguém”.

Pode-se compreender que além dos turnos alternados, nos momentos em que estavam juntos, os cuidados ficavam a cargo de quem estivesse mais disponível ou disposto no momento, como também aparece na seguinte fala de Daniel: “Quando era o meu período, ficava a noite acordado, eu não dormia, então chegava de manhã eu tava um zumbi. Ele via que eu tava nesse estado, ajudava, tirava ela, aí eu conseguia tirar um soninho”.

Esse cuidado para com o parceiro, remete a função que Winnicott (2015Winnicott, D. W. (2015). Necessidades das crianças de menos de cinco anos. In A criança e o seu mundo(6a ed., p. 203-213). Rio de Janeiro, RJ: LTC. Original publicado em 1954.b) atribuiu ao pai, de ser um ambiente que encobre a mãe, se preocupando com ela e assumindo o cuidado quando necessário. Pode-se pensar que isso também podia estar ocorrendo nesse caso, embora isso circulasse entre os dois pais. No entanto, como apontam Belo et al. (2015Belo, F. R. R., Guimarães, M. R., & Fidelis, K. A. B. (2015). Pode um pai ser cuidadoso? Crítica à teoria da paternidade em Winnicott. Psicologia em Estudo, 20(2), 153-164. doi: 10.4025/psicolestud.v20i2.24274
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), Winnicott retrata os cuidados paternos como simples mimetismo da mãe. Nos casos aqui retratado não há mãe/mulher a ser mimetizada, então compreende-se que ambos os cuidadores são igualmente importantes e que o cuidado pode ocorrer a partir do gesto espontâneo desses pais.

Apesar dessa divisão, em que ambos se alternavam nos cuidados, Carlos também falou que os momentos de cuidados eram compartilhados pelo casal: “À s vezes a gente dava o banho junto, falando assim que era dividido, parece que era uma coisa tipo um faz e o outro fica olhando, nem sempre era assim, maior parte do tempo não era assim”.

Embora houvesse dois pais que se ocupavam do filho, havia a organização de uma rotina e uma constância de cuidados. Eram as mesmas pessoas encarregadas do cuidado e realizando todo tipo de tarefa. O casal também mantinha momentos em família, em que ambos estavam presentes e compartilhavam o cuidado, apoiando um ao outro. Essa forma de divisão pode ser compreendida como uma das características da parentalidade em casais homossexuais apontada por Passos (2005Passos, M. C. (2005). Homoparentalidade: uma entre outras formas de ser família. Psicologia Clínica, 17(2), 31-40. doi: 10.1590/S0103-56652005000200003
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). Essa seria caracterizada pela ausência de funções parentais fixas, em que os membros podem circular entre assumir os cuidados, que seria considerado socialmente como uma função feminina, e o trabalho externo que traz o sustento financeiro do lar, função tida socialmente como masculina.

Neste caso, assim como no anterior, ambos os cônjuges trabalhavam e percebe-se que eles se alternavam entre a função tradicionalmente materna de cuidado e a função tradicionalmente paterna de provedor. Ainda, segundo Passos (2005Passos, M. C. (2005). Homoparentalidade: uma entre outras formas de ser família. Psicologia Clínica, 17(2), 31-40. doi: 10.1590/S0103-56652005000200003
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), haveria a prevalência de relações horizontais, de forma que não há a figura de uma mãe, entendida como a autoridade sobre questões referente à criança e ao ambiente doméstico, domínio no qual o pai não adentraria. Isso se observaria na relação de parceria entre os pais, que seriam vistos como iguais, como foi retratado pelos casos do presente estudo.

Considerações finais

Apesar das particularidades dos dois casos apresentados nesse artigo, pode-se pensar em processos envolvendo a parentalidade que se assemelham entre eles, e podem ser entendidos, pelo menos parcialmente, à luz da teorização de Winnicott, conforme proposto para este estudo. Além disto, pode-se compreender que a parentalidade em cada um dos membros desses casais envolveu tanto componentes do que se compreende como função paterna, como o apoio ambiental e o estabelecimento de limites, quanto componentes do que se compreende como função materna, como holding, handling e apresentação de objetos.

As evidências trazidas pelos casos estudados permitem pensar que a teoria winnicottiana pode ser utilizada para se compreender a parentalidade no contexto de casais homossexuais masculinos. Ao mesmo tempo, este contexto apresenta desafios que nos levam a avançar e eventualmente repensar aspectos da teoria. Como já foi assinalado por outros autores (Arruda & Lima, 2013Arruda, S. L. S., & Lima, M. C. F. (2013). O novo lugar do pai como cuidador da criança. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, 4(2), 201-216. doi: 10.5433/2236-6407.2013v4n2p201
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; Belo et al., 2015Belo, F. R. R., Guimarães, M. R., & Fidelis, K. A. B. (2015). Pode um pai ser cuidadoso? Crítica à teoria da paternidade em Winnicott. Psicologia em Estudo, 20(2), 153-164. doi: 10.4025/psicolestud.v20i2.24274
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; Ferreira & Aiello-Vaisberg, 2006Ferreira, M. C., & Aiello-Vaisberg, T. M. J. (2006). O pai ‘suficientemente bom’: algumas considerações sobre o cuidado na psicanálise winnicottiana. Mudanças - Psicologia da Saúde, 14(2), 136-142. doi: 10.15603/2176-1019/mud.v14n2p136-142
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; Santos & Antúnez, 2018Santos, C. V. M., & Antúnez, A. E. A. (2018). “Papai não tem leite!” considerações sobre o holding paterno na dependência absoluta. Psicologia em Estudo, 23. doi: 10.4025/psicolestud.v23.e40297
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), a função de cuidado está muito atrelada ao gênero feminino na obra de Winnicott, sendo ao pai relegada a função secundária na vida do filho, como era o esperado na época dos seus escritos. Porém, a capacidade de resgatar as vivências primitivas de ser cuidado, se identificar com o próprio filho, ser sensível e dedicado podem estar presentes tanto no gênero feminino como no masculino, particularmente entre aqueles que desejam ser mais participativos com seus filhos, como pareceu serem os casos aqui apresentados.

Todavia, existe ainda em nossa sociedade modelos tradicionalistas de gênero, que ditam aos homens que não podem ser sensíveis e cuidadosos (Arruda, & Lima, 2013Arruda, S. L. S., & Lima, M. C. F. (2013). O novo lugar do pai como cuidador da criança. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, 4(2), 201-216. doi: 10.5433/2236-6407.2013v4n2p201
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; Belo et al., 2015Belo, F. R. R., Guimarães, M. R., & Fidelis, K. A. B. (2015). Pode um pai ser cuidadoso? Crítica à teoria da paternidade em Winnicott. Psicologia em Estudo, 20(2), 153-164. doi: 10.4025/psicolestud.v20i2.24274
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). Aos casais homossexuais masculinos, talvez seja mais fácil romper com esses modelos, podendo se colocar na posição tida socialmente como maternal (Maqueda, 2018Maqueda, O. M. L. (2018). Paternidad de hombres gay: ¿Los albores de una neoparentalidad? Polis(Santiago ), 17(50), 139-160. doi: 10.4067/S0718-65682018000200139
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; McKee, 2017McKee, A. (2017). Gay men and fatherhood: doing gender, queering gender, and the package deal. Sociology Compass, 11(7). doi: 10.1111/soc4.12492
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), além da posição esperada de pai. Na função de cuidar, os pais aqui apresentados, também puderam contar com apoio ambiental, tão estimado à teoria winnicottiana, representado principalmente pelo marido, que sempre se fazia muito presente.

Apesar do retrato aparentemente harmonioso dos casais do presente estudo, dificuldades também se faziam presentes. Ser pai traz enormes desafios para qualquer um e não é diferente para casais homossexuais. Pelo contrário, os conflitos são potencialmente maiores, pelas críticas de um mundo predominantemente heterossexual, que não aceita o diferente, especialmente em relação ao casal homossexual masculino, que é visto como tendo pouco potencial para cuidar de um bebê e criança pequena.

Enfim, é muito importante que se continue investigando os diferentes contextos parentais, em particular os casais homossexuais masculinos, que pouco aparecem na literatura. Até mesmo as teorias, como as de Winnicott, voltadas ao mundo heterossexual, merecem avançar e ser repensadas para contemplarem as novas configurações familiares e, caso necessário, que outras sejam desenvolvidas para dar conta dessa nova realidade. Embora Winnicott tenha assinalado que outra pessoa que não a mãe possa exercer as funções de cuidado, a estreita vinculação com o gênero feminino estava muito presente em sua teoria, relegando aos homens pais uma função secundária. As evidências do presente estudo podem contribuir para que se avance neste sentido, ao demonstrar empiricamente casos em que os pais assumem os cuidados de seus filhos desde o nascimento, cumprindo as funções necessárias ao seu desenvolvimento. Também indicam que as funções que os adultos exercem junto aos bebês, mais do que materna e paterna, são funções parentais, que independem do gênero ou da orientação sexual do cuidador para se fazerem presentes.

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  • 1
    Artigo elaborado a partir da dissertação de mestrado do primeiro autor, intitulada A constituição da parentalidade em casais homossexuais masculinos com bebês (Ogaki, 2019), elaborada com apoio e financiamento do CNPq.
  • 5
    Ao longo da coleta de dados, grande esforço foi feito para contatar e entrevistar casais homossexuais masculinos. Ao todo foram contatados seis casais e um pai solteiro. Quatro casais relataram não dispor de tempo para a realização das entrevistas ou não tinham disponibilidade para realizar as entrevistas por videoconferência. Assim, foram entrevistados apenas dois casais e o pai solteiro. Tendo em vista as dificuldades de envolver casais homossexuais masculinos, em determinado momento também optou-se por ampliar o foco da pesquisa, incluindo casais homossexuais femininos, que aceitaram participar com mais facilidade, sendo entrevistados três casais femininos. Para o presente estudo, foram selecionados os dados dos dois casais homossexuais masculinos em virtude dos objetivos estabelecidos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Abr 2020
  • Aceito
    20 Maio 2021
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