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FLUIDEZ SEXUAL: CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E CONTRIBUTOS TEÓRICOS

FLUIDEZ SEXUAL: CONTEXTUALIZACIÓN HISTÓRICO Y APORTACIONES TEÓRICAS

RESUMO.

Neste estudo, tivemos como objetivo aprofundar o conceito de fluidez sexual pela análise crítica da literatura e de uma síntese integrativa sobre o tema. Nele, analisamos estudos que se debruçam sobre a fluidez sexual, exploramos o conceito, sob orientação do modo como Lisa Diamond o introduz na literatura científica, o define e operacionaliza. Por fim, debruçamo-nos sobre estudos no âmbito da fluidez sexual, a fim de perceber os significados atribuídos, e questionando o potencial viés de gênero que acompanha um conceito situado num tempo e num contexto heteronormativos. Como contributo para o aprofundamento do conceito e reforço das suas potencialidades, são apresentadas reflexões sobre a relação entre a fluidez sexual e a masculinidade hegemônica, uma relação pouco valorizada na literatura científica. Globalmente, este trabalho promove, criticamente e de modo interseccional, o questionamento sobre a fixação no sexo/gênero das pessoas envolvidas numa situação sexual e são discutidas as fronteiras do conceito de fluidez sexual e a sua (im)permeabilidade.

Palavras-chave:
Fluidez sexual; sexualidade; gênero

RESUMEN.

En este estudio, buscamos profundizar el concepto de fluidez sexual a través de un análisis crítico de la literatura y de una síntesis integradora sobre el tema. Para tal, se analizaron estudios enfocados en la fluidez sexual y se exploró este mismo concepto según la guía de cómo Lisa Diamond lo introduce en la literatura científica, lo define y lo concretiza. El análisis de los estudios en torno de la fluidez sexual se realizó teniendo como objetivos comprender los significados atribuidos al concepto y cuestionar el posible sesgo de género que acompaña un concepto ubicado en un tiempo y en un contexto heteronormativos. De cara a profundizar el concepto y reforzar su potencial, se presentan reflexiones sobre la relación entre la fluidez sexual y la masculinidad hegemónica, una relación que no se tiene en cuenta habitualmente en la literatura científica. En general, este trabajo contribuye, de manera crítica e interseccional, al cuestionamiento sobre la fijación en el sexo/género de las personas involucradas en una situación sexual y discute los límites del concepto de fluidez sexual y su (im)permeabilidad.

Palabras clave:
Fluidez sexual; sexualidad; género

ABSTRACT.

In this study, we sought to deepen the concept of sexual fluidity through a critical analysis of the literature and an integrative synthesis on the topic. In it, we analyzed studies that focus on sexual fluidity, explored the concept, under the guidance of how Lisa Diamond introduces it into the scientific literature, defines it, and operationalizes it. Finally, we focused on studies on sexual fluidity, trying to understand the meanings attributed to the concept, questioning the potential gender bias that accompanies a concept located in a heteronormative time and context. As a contribution to the deepening of the concept and reinforcement of its potential, reflections are presented on the relationship between sexual fluidity and hegemonic masculinity, a relationship that is little valued in the scientific literature. Overall, this work promotes, critically and in an intersectional way, the questioning about the fixation in sex/gender of people involved in a sexual situation and discussed the boundaries of the concept of sexual fluidity and its (im)permeability.

Keywords:
Sexual fluidity; sexuality; gender

Introdução

A sexualidade é uma complexa faceta da experiência humana, influenciada por diversos fatores e expressa em múltiplas formas. É um conceito e um fenômeno intrincado e imbuído de construção social (Tiefer, 2004Tiefer, L. (2004). Sex is not a natural act and other essays (2nd ed.). Boulder, CO: Westview Press.). A fluidez sexual apresenta a variabilidade das categorias sexuais, percebida como a possibilidade de mudança das atrações sexuais, dependendo das condições situacionais, ambientais ou relacionais e, por isso, ilustra a complexidade da sexualidade humana. Lisa Diamond definiu a fluidez sexual como uma “[…] flexibilidade da resposta sexual das mulheres dependente da situação ou contexto [...] que torna possível que algumas mulheres sintam desejos por homens ou mulheres em determinadas circunstâncias, independentemente da sua orientação sexual geral” (Diamond, 2008, p. 3, tradução nossa)6 6 “[…] situation-dependent flexibility in women’s sexual responsiveness […] that makes it possible for some women to experience desires for either men or women under certain circumstances, regardless of their overall sexual orientation”. . A autora produziu esse conceito num estudo envolvendo exclusivamente mulheres, o qual, a par de outras investigações contemporâneas, contribuiu para inaugurar o conceito, ainda que com aparente maior probabilidade de aplicação às feminilidades.

Neste trabalho aprofundamos o conceito, em particular, o modo como Lisa Diamond o apresenta, define e operacionaliza, depois de destacarmos algumas das investigações que contribuíram para a sua história e antes de enunciarmos vários estudos que o continuam a fazer. Estes estudos são, na sua maioria, norte-americanos. Dando voz à Lisa Diamond e focando os seus trabalhos, procuramos esclarecer o que é, de onde vem e para onde vai o conceito de fluidez sexual, passando pelo viés e pela fixação do sexo/gênero que acompanha o conceito e pelos meandros das definições e das diferenças nas (im)permeabilizações conceptuais, não esquecendo o tempo e o contexto social que tornam a fluidez sexual passível de emergir. Em síntese, neste trabalho, procuramos, fundamentalmente, perceber de que falamos quando falamos de fluidez sexual.

Trabalhos precursores da fluidez sexual

Foi em 2008 que Lisa Diamond lançou o seu livro intitulado Sexual fluidity: understanding women’s love and desire, o resultado de um estudo longitudinal que introduz o conceito de fluidez sexual na literatura científica. Contudo, e ainda que não explicitamente teorizadas como concretizado pela autora, as explorações em torno deste conceito têm uma história anterior ao seu trabalho. Várias investigações se aproximaram do conceito, o qual permaneceu difundido em discussões sobre padrões de sexualidade maleáveis ou flexíveis, protagonizadas por investigadoras e investigadores que se deparavam com casos de sexualidade entre pessoas do mesmo sexo em circunstâncias consideradas imprevistas ou em contextos declarados inesperados. Assim, antes de se debater a fluidez sexual, aconteciam investigações que se aproximavam do conceito, como o trabalho de Kinsey e colegas que marcou a história da sexualidade humana (Kinsey, Pomeroy, & Martin, 1948Kinsey, A. C., Pomeroy, W. B., & Martin, C. E. (1948). Sexual behavior in the human male. Oxford, UK: W. B. Saunders.; Kinsey, Pomeroy, Martin, & Gebhard, 1953Kinsey, A. C., Pomeroy, W. B., Martin, C. E., & Gebhard, P. H. (1953). Sexual behavior in the human female. Oxford, UK: W. B. Saunders.). Os seus contributos mostraram que a sexualidade pode ser conceptualizada como um continuum, em vez de um constructo binário de categorias discretas, tendo refutado, nomeadamente, a noção vastamente difundida de que a prática sexual entre pessoas do mesmo sexo é incomum (Kinsey et al., 1948Kinsey, A. C., Pomeroy, W. B., & Martin, C. E. (1948). Sexual behavior in the human male. Oxford, UK: W. B. Saunders.). O trabalho de Kinsey apresenta uma possibilidade de continuidade e volatilidade da sexualidade, destacando a potencialidade para alcançar a experiência da sexualidade, não só nos polos predominantemente homossexuais ou heterossexuais, mas também num intervalo plural destas duas possibilidades. Estas aproximações à variabilidade da sexualidade humana são também evidentes no trabalho de Goode e Haber (1977Goode, E., & Haber, L. (1977). Sexual correlates of homosexual experience: an exploratory study of college women. The Journal of Sex Research, 13(1), 12-21. https://doi.org/10.1080/00224497709550956
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), que desenvolveram um estudo sobre mulheres que tinham sexo com mulheres no contexto universitário, tendo concluído que, embora algumas delas parecessem estar nas suas fases iniciais do desenvolvimento de uma identidade lésbica, outras se caracterizavam como heterossexuais com uma abordagem aberta e flexível relativamente à sexualidade. No mesmo ano, foi publicado o trabalho de Blumstein and Schwartz (1977Blumstein, P. W., & Schwartz, P. (1977). Bisexuality: some social psychological issues. Journal of Social Issues, 33(2), 30-45. https://doi.org/10.1111/j.1540-4560.1977.tb02004.x
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), um estudo com mais de 150 mulheres e homens com experiências de atrações por pessoas de ambos os sexos. Um grupo de participantes caracterizou este padrão de atração como constante ao longo da sua história sexual e outro grupo reportou que foi apenas a partir de um determinado momento da vida adulta que emergiu a experiência da variação das atrações, tendo o autor e a autora concluído que todas as pessoas teriam certo grau de flexibilidade nas atrações sexuais (Blumstein & Schwartz, 1977Blumstein, P. W., & Schwartz, P. (1977). Bisexuality: some social psychological issues. Journal of Social Issues, 33(2), 30-45. https://doi.org/10.1111/j.1540-4560.1977.tb02004.x
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).

Depois, num estudo contemplando entrevistas a 14 mulheres que experienciavam alterações inesperadas nas autoidentificações em nível da sexualidade, Sophie (1986Sophie, J. (1986). A critical examination of stage theories of lesbian identity development. Journal of Homosexuality, 12(2), 39-51. https://doi.org/10.1300/J082v12n02_03
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) concluiu que os modelos tradicionais de classificação da sexualidade caracterizados pela rigidez de categorias deveriam ser revisitados e, por conseguinte, contempladas as possibilidades de variações e mudanças. Também o trabalho de Rust (1993Rust, P. C. (1993). “Coming out” in the age of social constructionism: sexual identity formation among lesbian and bisexual women. Gender & Society, 7(1), 50-77. https://doi.org/10.1177/089124393007001004
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) sobre identidade sexual revelou que 76% das mulheres autoidentificadas como bissexuais já tinham se identificado previamente como lésbicas e 41% das mulheres autoidentificadas como lésbicas já tinham se identificado previamente como bissexuais, alertando para a necessidade de reconceptualizar o processo de formação da identidade sexual como uma forma de circunscrição a um contexto social e não como um processo linear e estanque. Weinberg, Williams e Pryor (1994Weinberg, M. S., Williams, C. J., & Pryor, D. W. (1994). Dual attraction: understanding bisexuality. New York, NY: Oxford University Press.) realizaram um estudo com gays, lésbicas, bissexuais e heterossexuais residentes em São Francisco, na década de 80 do séc. XX, e mostraram que um elevado número de participantes relatou pequenas e grandes mudanças ao longo do tempo nas atrações e nos comportamentos sexuais, especialmente indivíduos que se identificavam como bissexuais, tendo os autores concluído que a existência de certo grau de fluidez seria uma propriedade geral da sexualidade humana. Com o estudo de Kitzinger e Wilkison (1995Kitzinger, C., & Wilkinson, S. (1995). Transitions from heterosexuality to lesbianism: the discursive production of lesbian identities. Developmental Psychology, 31(1), 95-104. https://doi.org/10.1037/0012-1649.31.1.95
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) destaca-se o modo como as aproximações face à fluidez sexual questionam a determinação uniforme da sexualidade nos períodos iniciais de vida. Os seus resultados evidenciam que muitas das participantes reportaram uma emersão abrupta e inesperada de atração sexual por pessoas do mesmo sexo quando se encontravam entre os 20 ou 30 anos de idade, sendo que embora muitas mulheres declararam anos de repressão cultural, motivo pelo qual mantinham o seu interesse sexual oculto ou reprimido, outras rejeitaram esta noção e, em vez disso, relataram atrações sexuais autenticamente novas e que surgiram num momento específico de vida, num determinado tempo e contexto. Baumeister (2000Baumeister, R. F. (2000). Gender differences in erotic plasticity: the female sex drive as socially flexible and responsive. Psychological Bulletin, 126(3), 347-374. https://doi.org/10.1037/0033-2909.126.3.347
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), que usava o termo plasticidade erótica, focado nas diferenças de sexo/gênero, reportou fatores psicológicos, históricos e sociais que abrangiam a ideia de que a sexualidade feminina seria mais flexível do que a masculina. Também Kinnish, Strassberg e Turner (2005Kinnish, K. K., Strassberg, D. S., & Turner, C. W. (2005). Sex differences in the flexibility of sexual orientation: a multidimensional retrospective assessment. Archives of Sexual Behavior, 34(2), 173-183. https://sci-hub.se/10.1007/s10508-005-1795-9
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), aludindo à flexibilidade das orientações sexuais, isto é, a mudança de orientação sexual ao longo do percurso de vida de um indivíduo, embora também com foco nas diferenças em função do sexo/gênero, já anunciavam aproximações face à fluidez sexual, atribuindo, de igual modo, maior flexibilidade à sexualidade feminina.

Desta forma, encontramos um conjunto de investigações que anunciam a emersão da teoria da fluidez sexual na literatura científica. Vários trabalhos introduzem o debate sobre a existência de certo grau de flexibilidade como uma propriedade geral da sexualidade humana. Também destacam a volatilidade e a variabilidade da sexualidade, enquanto refutam a rigidez das categorias de classificação sexual, questionam o determinismo da sexualidade e respectivas autoidentificações nos períodos iniciais de vida, e evocam o surgimento abrupto de mudanças nas atrações sexuais em determinados momentos de vida e em contextos particulares. Estes estudos são acompanhados por um viés de gênero que parece atribuir às mulheres maior capacidade para experienciar a fluidez (e.g. Baumeister, 2000Baumeister, R. F. (2000). Gender differences in erotic plasticity: the female sex drive as socially flexible and responsive. Psychological Bulletin, 126(3), 347-374. https://doi.org/10.1037/0033-2909.126.3.347
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; Kinnish et al., 2005Kinnish, K. K., Strassberg, D. S., & Turner, C. W. (2005). Sex differences in the flexibility of sexual orientation: a multidimensional retrospective assessment. Archives of Sexual Behavior, 34(2), 173-183. https://sci-hub.se/10.1007/s10508-005-1795-9
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). É com este pano de fundo que Lisa Diamond (2008Diamond, L. (2008). Sexual fluidity: understanding women’s love and desire. Cambridge, MA: Harvard University Press.) avançou para o seu trabalho com o objetivo de estudar a sexualidade feminina e no qual a autora se encontrou, por acaso, com a fluidez sexual.

A fluidez sexual: como tudo (re)começou com Lisa Diamond

Lisa Diamond (2008Diamond, L. (2008). Sexual fluidity: understanding women’s love and desire. Cambridge, MA: Harvard University Press.) introduziu o conceito de fluidez sexual na literatura científica por meio de um estudo longitudinal sobre sexualidade feminina, o primeiro a acompanhar as transições sexuais de mulheres jovens num período significativo de tempo. De 1995 a 2005, a autora entrevistou cinco vezes, com um intervalo de dois anos, 89 mulheres, com uma média de 20 anos de idade no início do estudo, sendo que 43% se identificaram como lésbicas, 30% como bissexuais e 27% como não heterossexuais (Diamond, 2008Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.).

Quando Diamond (2008Diamond, L. (2008). Sexual fluidity: understanding women’s love and desire. Cambridge, MA: Harvard University Press.) iniciou o seu trabalho tinha como objetivo estudar o grau de continuidade e estabilidade na sexualidade entre mulheres ao longo do tempo. Contudo, os resultados do seu estudo mostraram que algo mais acontecia além da variabilidade nos percursos sexuais das suas participantes. A autora explica que enquanto nos trabalhos tradicionais sobre identidade sexual se considerava o processo de identificação sexual como polido e estanque, os seus resultados não confirmaram esta perspectiva, pelo contrário, ela percebeu que 67% das mulheres que participaram no seu estudo tinham realizado uma alteração das suas autoidentificações sexuais pelo menos uma vez, e 36% tinha alterado estas denominações mais do que uma vez. Para além disso, a autora adianta que, de acordo com os modelos tradicionais de formação da identidade sexual, os anos após o coming out7 7 Processo por meio do qual uma pessoa assume uma identidade não heterossexual. trariam estabilidade e certeza à identidade sexual, o que não é corroborado pelos seus resultados, uma vez que muitas das suas participantes reconheceram a possibilidade de mudança de atrações sexuais e muitas abdicaram das suas categorias sexuais pela sensação de ausência de uma que contemple a complexidade dos seus sentimentos e experiências sexuais (Diamond, 2008). Nas suas palavras, “[…] os resultados deste estudo sugerem que as atrações sexuais não exclusivas são a norma e não a exceção” (Diamond, 2008Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press., p. 83, tradução nossa)8 8 “[…] the results of this study suggest that nonexclusive attractions are the norm rather than the exception”. . Ao longo do tempo, a maioria das mulheres participantes no estudo, incluindo as autoidentificadas como lésbicas, reconheceu a possibilidade de, no futuro, virem a experienciar atrações direcionadas a pessoas de ambos os sexos, pelo que muitas delas alteraram as suas identidades sexuais, precisamente para contemplar estas possibilidades de mudança. Por fim, com o trabalho de Diamond (2008Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press., p. 83, tradução nossa)9 9 “[...] early experiences do not predict later ones”. , ficou claro que “[...] as experiências sexuais iniciais não prevêem as posteriores”. Tal como exposto pela autora, ao contrário do que a literatura tradicional sobre o tópico adiantava, o padrão de atrações e comportamentos manifestados desde cedo na vida de uma pessoa não prediz os comportamentos sexuais em momentos posteriores ou em idades mais avançadas (Diamond, 2008Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.).

Tendo em conta estes resultados, Diamond desenvolveu um modelo de sexualidade feminina que explica “[...] as reviravoltas fascinantes que os inquiridos experimentaram” (2008, p. 84, tradução nossa)10 10 “[...] the fascinating twists and turns the respondents experienced”. . A autora procurou alcançar uma alternativa face aos modelos tradicionais sobre sexualidade e orientação sexual por meio de um modelo que responde à variabilidade dos sentimentos, das atrações e das experiências sexuais das mulheres ao longo do tempo e em determinadas situações (Diamond, 2008). Lisa Diamond desenvolveu o modelo da fluidez sexual.

De que fala Lisa Diamond quando fala de fluidez sexual?

“A fluidez sexual é definida como uma capacidade de flexibilidade na resposta sexual dependente da situação ou do contexto, que permite aos indivíduos experimentar mudanças no desejo sexual pelo mesmo sexo ou por outro sexo, tanto a curto como a longo prazo” (Diamond, 2016Diamond, L. (2016). Sexual fluidity in males and females. Current Sexual Health Reports, 8(4), 249-256. https://doi.org/10.1007/s11930-016-0092-z
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, p. 249, tradução nossa)11 11 “Sexual fluidity is defined as a capacity for situation dependent flexibility in sexual responsiveness, which allows individuals to experience changes in same-sex or other-sex desire, over both short-term and long-term time periods. . Em outras palavras, trata-se da possibilidade de mudança das atrações sexuais, dependendo de mudanças nas condições situacionais, ambientais ou relacionais. Para ela, o conceito de fluidez sexual destaca a volatilidade das preferências, das atitudes, dos comportamentos e das identidades sexuais, pelo que explica o modo como as preferências sexuais diferem ao longo do tempo e em função do contexto em que o sujeito está inserido (Diamond, 2008Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.), sugerindo que a sexualidade humana não é fixa nem estanque, é volátil e mutável ao longo do tempo.

Lisa Diamond apresenta a fluidez sexual como uma flexibilidade da resposta sexual, dependente do contexto, de tal maneira que uma pessoa pode experienciar, periodicamente, atração sexual não conciliável com a sua orientação sexual, por exemplo, indivíduos autoidentificados como heterossexuais podem experienciar atrações sexuais por pessoas do mesmo sexo, e pessoas autoidentificadas como homossexuais podem experienciar atrações sexuais por pessoas de sexo diferente (2008). A autora menciona que o conceito abrange predisposições relativamente estáveis em determinados momentos de vida, flexíveis noutros, e definitivamente não deterministicamente rígidas, pelo que a propensão para alterações das atrações sexuais pode nunca se manifestar ou, caso a pessoa encontre situações contextuais e situacionais que contribuam para essas alterações, pode manifestar-se várias vezes no seu percurso de vida (Diamond, 2016Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.).

Diamond (2008Diamond, L. (2008). Sexual fluidity: understanding women’s love and desire. Cambridge, MA: Harvard University Press.) descreve a fluidez sexual por meio de quatro elementos principais. A autora considera que, em primeiro lugar, existe uma ‘orientação sexual geral’, sendo que a atração predominante pode ser dirigida para pessoas do mesmo sexo, de sexo diferente ou de ambos os sexos em simultâneo (Diamond, 2008Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.). Assim, existe uma atração sexual primária que guia a orientação sexual de um indivíduo. Segundo, a autora menciona a predisposição para a fluidez, ou seja, uma sensibilidade a situações ou relacionamentos que pode facilitar variações nas atrações sexuais (Diamond, 2008Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.). Desta forma, por exemplo, e segundo Lisa Diamond, uma mulher lésbica mantém, predominantemente, atrações sexuais dirigidas a outras mulheres, no entanto, pode sentir-se atraída por homens em certos momentos da sua vida, em função de determinados contextos ou experiências, ainda que a sua orientação sexual predominante se mantenha (2008, 2016). Depois, Diamond (2008Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.) defende que as atrações sexuais impulsionadas pela fluidez podem variar ao longo do tempo, umas mais duradouras, outras mais temporárias e, por fim, a fluidez sexual não é igual para todas as pessoas, pelo que a frequência e a intensidade podem variar, dependendo da suscetibilidade individual.

Sistematizando, importa compreender a fluidez sexual sem descurar algumas notas que a autora acrescenta com valor esclarecedor do conceito. Segundo Diamond, é importante salientar que a fluidez sexual não sugere que os indivíduos não possuem orientações sexuais ou que as tenham de mudar invariavelmente. O que o conceito indica é que a orientação sexual não prediz rigidamente todo e qualquer pensamento, vontade ou comportamento sexual que um indivíduo pode experienciar ao longo da sua vida (Diamond, 2016Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.). Desta forma, a fluidez sexual pode ser pensada como um componente adicional da sexualidade que influencia as atrações, as fantasias e os afetos experienciados e expressos ao longo da vida (Diamond, 2008). Além disso, nem todos os indivíduos são igualmente fluidos. Algumas pessoas podem nunca experimentar atrações não coincidentes com a sua orientação sexual geral, enquanto outras podem experimentar essas atrações mais frequentemente, pelo que a fluidez sexual varia em função da pessoa, do tempo e do contexto, sendo importante reter a mudança das atrações e dos comportamentos sexuais como uma potencialidade humana (Diamond, 2008Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.).

A proposta de Diamond ilustra o potencial humano para a mudança sexual e explica que a presença de um padrão constante de atrações sexuais não é sinônimo de imutabilidade permanente. Diamond encontrou grande variabilidade nos padrões sexuais das mulheres que entrevistou, o que a levou a considerar a fluidez sexual, a par da desvinculação das teorizações mais clássicas sobre orientações sexuais, percebendo que estas não são, afinal, tão categoriais nem rígidas, pelo contrário, são permeáveis e variáveis. A fluidez sexual pode ser compreendida como o potencial para variação da atração sexual por influências situacionais, contextuais ou interpessoais, de tal modo que uma pessoa pode (ou não) encontrar situações específicas, contextos determinados, ou pessoas particulares que ativam atrações sexuais não coincidentes com as atrações do seu padrão-base (Diamond, 2008Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press., 2016Connell, R. W., & Messerschmidt, J. W. (2005). Hegemonic masculinity: rethinking the concept. Gender & Society, 19(6), 829-859. https://doi.org/10.1177/0891243205278639
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).

Contudo, se a fluidez sexual diz respeito à mudança de atrações e comportamentos sexuais e se contempla o interesse sexual não exclusivo a um sexo/gênero, o conceito fica turvo quando comparado com a bissexualidade. Tanto a fluidez sexual como a bissexualidade produzem o mesmo resultado: atrações e comportamentos sexuais por pessoas de ambos os sexos. Então, qual a diferença, se existente, entre a bissexualidade e a fluidez sexual? Esta é uma pergunta recorrente como ademais nos informa Diamond: “Uma das perguntas mais comuns sobre a fluidez sexual é: ‘Em que é que difere da bissexualidade?’” (2016, p. 250, tradução nossa)12 12 “One of the most common questions about sexual fluidity is ‘How does it differ from bisexuality?’”. .

A fluidez sexual e a bissexualidade: aproximações, cruzamentos e distinções, segundo Lisa Diamond

Como previamente exposto, Lisa Diamond (2008Diamond, L. (2008). Sexual fluidity: understanding women’s love and desire. Cambridge, MA: Harvard University Press.) apresenta a fluidez sexual como a possibilidade de uma pessoa estar atraída por alguém de um sexo diferente daquele que define a sua orientação sexual geral. Para além disso, a autora adianta que não se trata de uma orientação sexual, mas de um componente da sexualidade que opera em relação com a orientação sexual, pelo que influencia a forma como as atrações, os afetos, as fantasias e os comportamentos sexuais são experienciados e expressos ao longo da vida de um indivíduo (Diamond, 2008Connell, R. W., & Messerschmidt, J. W. (2005). Hegemonic masculinity: rethinking the concept. Gender & Society, 19(6), 829-859. https://doi.org/10.1177/0891243205278639
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). A bissexualidade, por sua vez, e segundo Lisa Diamond, pode ser compreendida como uma orientação sexual que consiste na atração sexual e/ou envolvimento afetivo e emocional por pessoas de ambos os sexos (2016). Segundo Diamond (2008Connell, R. W., & Messerschmidt, J. W. (2005). Hegemonic masculinity: rethinking the concept. Gender & Society, 19(6), 829-859. https://doi.org/10.1177/0891243205278639
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), embora a fluidez sexual e a bissexualidade partilhem similaridades, também se podem distinguir. Diamond (2008Connell, R. W., & Messerschmidt, J. W. (2005). Hegemonic masculinity: rethinking the concept. Gender & Society, 19(6), 829-859. https://doi.org/10.1177/0891243205278639
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) informa que nos relatos das participantes autoidentificadas como bissexuais, o padrão de atração sexual por pessoas de ambos os sexos é mais constante e mais consistente ao longo do percurso de vida, enquanto nos relatos de mulheres com experiências de fluidez sexual, as variações das atrações sexuais tendem a ser mais esporádicas e contextuais. Para além disso, a autora explica que os conceitos se distinguem no processo através do qual os indivíduos se apercebem da mudança nas atrações (Diamond, 2008Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press., 2016Connell, R. W., & Messerschmidt, J. W. (2005). Hegemonic masculinity: rethinking the concept. Gender & Society, 19(6), 829-859. https://doi.org/10.1177/0891243205278639
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). Pessoas que experienciam a fluidez sexual, tendem a não estar permanentemente cientes da possibilidade de atração por pessoas de sexo diferente daquele que define a sua orientação sexual geral, até que determinado momento e/ou contexto social funciona como gatilho para ativar a mudança na atração (Diamond, 2008). Na bissexualidade, contudo, explica Diamond, os indivíduos parecem estar constantemente cientes da atração por pessoas de ambos os sexos ao longo do percurso de vida (Diamond, 2008Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.).

Assim, segundo Lisa Diamond, a bissexualidade e a fluidez sexual podem produzir atrações sexuais não exclusivas a um sexo/gênero, mas espera-se que estas sejam uma característica regular em indivíduos com orientação bissexual e esporádicas e/ou dependentes do contexto em indivíduos sexualmente fluídos (2016). Em suma, segundo Lisa Diamond, enquanto a bissexualidade é considerada uma orientação sexual que descreve a predisposição de indivíduos para desejar sexualmente homens e mulheres, a fluidez sexual descreve a possibilidade que os indivíduos têm para mudar aspectos da sua sexualidade, independentemente da predisposição geral para determinada atração sexual (Diamond, 2016Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.), levando a autora a afirmar que todas as pessoas têm a potencialidade para experienciar a fluidez sexual (Diamond, 2008Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.).

Trabalhos sucessores da fluidez sexual

A fluidez sexual é acompanhada por um debate contemporâneo, pois tem sido dada continuidade aos estudos em torno do conceito e estes têm sido amplamente difundidos na comunidade científica. Tendo em conta a significativa disseminação de literatura sobre fluidez sexual e dada a ausência de um acordo coletivo sobre o que o conceito realmente significa, o mais recente trabalho de Diamond e colegas procura introduzir consenso no significado específico e na operacionalização concreta deste constructo, tal como exposto pelas autoras (Diamond, Alley, Dickenson, & Blair, 2020Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.).

Este recente trabalho de Diamond e colaboradoras (2020Diamond, L., Alley, J., Dickenson, J., & Blair, K. L. (2020). Who counts as sexually fluid? Comparing four different types of sexual fluidity in women. Archives of Sexual Behavior, 49(3), 2389-2403. https://doi.org/10.1007/s10508-019-01565-1
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) foi também desenvolvido com mulheres, 76 participantes, que completaram um questionário sobre sexualidade e realizaram uma tarefa de indução de excitação sexual. É o primeiro estudo a diferenciar vários tipos de fluidez sexual, e revelou que este é um fenômeno multifacetado, que assume diferentes formas e tem distintas implicações na experiência sexual (Diamond et al., 2020Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.). As autoras teorizaram sobre quatro tipos de fluidez sexual. Em primeiro lugar, a fluidez como maior possibilidade de ‘resposta erótica’ geral face ao LPG (less-preferred gender, isto é, o sexo/gênero menos preferido). Depois, a fluidez como uma variabilidade situacional na possibilidade de ‘resposta erótica’ face ao LPG. Em terceiro lugar, a fluidez como a discrepância entre a atração sexual e o envolvimento sexual com o LPG e, por fim, a fluidez como a instabilidade ao longo do tempo na atração sexual quotidiana (Diamond et al., 2020Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.). Com este trabalho é significativamente expandida a compreensão sobre a fluidez sexual, revelando que não se trata de um traço unitário e isolado (Diamond et al., 2020Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.).

A autora, outros investigadores e outras investigadoras têm-se debruçado sobre elaborações teóricas em torno da fluidez sexual. A revisão analítica de Hoy e London (2018Hoy, A., & London, A. S. (2018). The experience and meaning of same-sex sexuality among heterosexually identified men and women: An analytic review. Sociology Compass, 12(7), 1-17. https://doi.org/10.1111/soc4.12596
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), por exemplo, revela que atrações e comportamentos sexuais com pessoas do mesmo sexo fazem parte de grande número de pessoas autoidentificadas como heterossexuais, sendo múltiplos os significados atribuídos e com interferências diversas nas suas identidades sexuais. Subhi et al. (2011Subhi, N., Geelan, D., Nen, S., Fauziah, I., Mohamad, M. S., Lukman, Z. M., … Rusyda, H. M. (2011). Sexual identity and sexual fluidity among gay men and lesbians. Pertanika Journal of Social Sciences & Humanities 19(Suppl.), 163-172.), por seu lado, num estudo sobre coming out com gays e lésbicas, revelaram que metade das pessoas participantes afirmaram que a fluidez é uma possibilidade viável no seu percurso sexual.

Outros trabalhos têm explorado a fluidez sexual, como é o caso do trabalho de Ross, Daneback e Månsson (2012Ross, M. W., Daneback, K., & Månsson, S.-A. (2012). Fluid versus fixed: a new perspective on bisexuality as a fluid sexual orientation beyond gender. Journal of Bisexuality, 12(4), 449-460. https://doi.org/10.1080/15299716.2012.702609
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) que investigaram as características de 1.913 mulheres e homens com orientações sexuais fluídas ou fixas e evidenciaram que as mulheres reportam mais frequentemente uma orientação sexual fluída quer nas fantasias quer nos comportamentos sexuais. Também Mock e Eibach (2012Mock, S. E., & Eibach, R. P. (2012). Stability and change in sexual orientation identity over a 10-year period in adulthood. Archives of Sexual Behavior, 41(3), 641-648. https://doi.org/10.1007/s10508-011-9761-1
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), num estudo longitudinal sobre estabilidade e mudança na identidade sexual, e igualmente com foco nas diferenças de sexo/gênero, revelaram que as mulheres manifestaram maior potencial de mudança da identidade sexual.

Lisa Diamond (2016Diamond, L. (2016). Sexual fluidity in males and females. Current Sexual Health Reports, 8(4), 249-256. https://doi.org/10.1007/s11930-016-0092-z
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) também realizou um estudo sobre as diferenças de sexo/gênero na fluidez sexual, tendo examinado os dados de 16 estudos publicados entre 2010 e 2016 sobre a prevalência de atrações exclusivas a um sexo/gênero versus a prevalência de atrações não exclusivas, com prolongamentos analíticos sobre as diferenças dessas prevalências em homens e mulheres. Este trabalho reforça a noção de que a orientação sexual não é um traço estático nem categorial, e informa que a prevalência de atrações não exclusivas é superior nas mulheres (Diamond, 2016Connell, R. W., & Messerschmidt, J. W. (2005). Hegemonic masculinity: rethinking the concept. Gender & Society, 19(6), 829-859. https://doi.org/10.1177/0891243205278639
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).

Katz-Wise (2014Katz-Wise, S. L. (2014). Sexual fluidity in young adult women and men: associations with sexual orientation and sexual identity development. Psychology & Sexuality, 6(2), 189-208. https://doi.org/10.1080/19419899.2013.876445
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), por sua vez, no seu trabalho sobre fluidez sexual, em associação com o desenvolvimento da orientação e da identidade sexual, que envolveu 199 jovens adultos/as (homens e mulheres) que não se identificavam como heterossexuais, corrobora a teoria da fluidez sexual de Lisa Diamond e estende a sua aplicabilidade para homens, demonstrando que 64% das mulheres e 52% dos homens reportaram fluidez sexual nas suas atrações sexuais, sendo que 23% das mulheres e 22% dos homens relataram mudanças nas atrações sexuais mais do que uma vez nos seus percursos de vida. Outros trabalhos prolongaram o desenvolvimento teórico sobre fluidez sexual nos homens, com importantes elaborações, já que as investigações iniciais no domínio da fluidez sexual reforçaram, tendencialmente, que a variabilidade das atrações sexuais seria mais alta entre as mulheres (Diamond, 2016Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.). Jane Ward (2015Ward, J. (2015). Not gay: sex between straight white men. New York, NY: New York University Press.), por meio de estudos de caso em fraternidades e em contextos militares nos E.U.A, apresenta o modo como os rituais de iniciação da masculinidade incluem comportamentos homoeróticos como forma de integração na brotherhood13 13 Possível tradução: irmandade ou fraternidade. , assim como revela que alguns homens, autoidentificados como heterossexuais, procuram outros homens com quem partilham comportamentos, como masturbação coletiva e sexo oral ou penetrativo, na tentativa de vinculação e de construção coletiva da masculinidade com outros similares amigos14 14 No original ‘Bro’ é abreviatura de brother, termo vulgarmente utilizado na língua inglesa e na subcultura de jovens rapazes que significa amigo, companheiro, alguém que partilha as mesmas ideias, alguém com quem se mantém uma relação de cumplicidade à semelhança de um irmão. (Ward, 2015Ward, J. (2015). Not gay: sex between straight white men. New York, NY: New York University Press.). Essa autora usa o termo dude15 15 Dude é um termo calão para homem. -sex para apelidar o sexo entre homens identificados como heterossexuais, em contextos urbanos ou militares, a par das construções e validações das suas masculinidades. Também Tony Silva (2017Silva, T. (2017). Bud-Sex: constructing normative masculinity among rural straight men that have sex with men. Gender & Society, 31(1), 51-73. https://doi.org/10.1177/0891243216679934
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) entrevistou homens que se identificam como heterossexuais, em contextos rurais, que mantêm sexo com homens, e que reforçam a sua heterossexualidade por meio da reinterpretação dos seus relacionamentos sexuais. O autor introduz o termo Bud-sex16 16 Bud é abreviatura de buddy que pode ser traduzido como amigo, colega ou companheiro. Assim, bud-sex diz respeito ao sexo entre amigos ou assim é tecida a interpretação desta relação pelos participantes. Este termo reforça a ideia de que não se trata de uma relação com compromisso, sobretudo com ausência de envolvimento emocional e/ou romântico, exclusivamente caracterizada pela atração sexual (Silva, 2017). que captura as reinterpretações das práticas sexuais destes homens, que podem, neste caso, ser usadas para reforçar a masculinidade rural, revelando o quão flexível pode ser a heterossexualidade e como as práticas sexuais são construídas socialmente com diferentes significações em diferentes culturas e populações (Silva, 2017Silva, T. (2017). Bud-Sex: constructing normative masculinity among rural straight men that have sex with men. Gender & Society, 31(1), 51-73. https://doi.org/10.1177/0891243216679934
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). Por fim, Savin-Williams (2017Savin-Williams, R. C. (2017). Mostly straight: sexual fluidity among men. Cambridge, MA: Harvard University Press.) apresenta as narrativas de homens que se autoidentificam como mostly straight e que admitem nutrir atrações ou fantasias sexuais dirigidas a homens, apesar da atração sexual e romântica primária ser dirigida a mulheres. Assim, apresentam-se como prática ou predominantemente, mas não absolutamente heterossexuais, uma categoria que se afasta da rigidez e da inflexibilidade, reforçando a orientação sexual como variável ao invés de fixa, pelo que revela a importância de reavaliar a possibilidade de fluidez sexual nos homens.

São vários os estudos que dissecam a fluidez sexual, inerentemente acompanhados por um viés de gênero e por uma fixação no sexo/gênero das pessoas participantes de um momento sexual. Debatem-se os limites conceptuais da fluidez sexual e delineiam-se estratégias de (im)permeabilização das suas fronteiras com outros conceitos próximos. Discute-se a sexualidade fluída porque se parte de uma compreensão sexual fixa. Então, de que falamos quando falamos de fluidez sexual? Procuraremos, em seguida, responder criticamente a esta questão.

Discussão

Durante muito tempo, a sexualidade humana foi considerada uma característica fixa e uma verdade interna ao indivíduo (Paiva, 2008Paiva, V. (2008). A psicologia redescobrirá a sexualidade? Psicologia em Estudo, 13(4), 641-651. https://doi.org/10.1590/S1413-73722008000400002
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), um componente humano que, uma vez determinado, jamais poderia ser sujeito a alterações ou variações. Desta forma, a sexualidade foi elevada à função de duas ou três possibilidades de identificação sexual, as quais, uma vez assumidas, serviriam o propósito de predizer o padrão sexual de qualquer indivíduo. Ao longo do tempo, a sexualidade humana foi pensada em função de dois polos distintos e opostos de preferências sexuais, a par da compreensão binária com que a nossa teia social lê e produz um mundo de homens ou mulheres, masculinos ou femininas. Tendencialmente, a diversidade sexual foi negligenciada, assim como o seu potencial humano para a experimentar, algo que, como vimos, tem sido questionado, com contributos teóricos e empíricos. Os trabalhos mais recentes sobre sexualidade introduzem o debate sobre a potencialidade humana para a fluidez sexual e, neste debate, a protagonista é Lisa Diamond. Com o seu trabalho, compreendemos a sexualidade como variável, passível de flutuações, volátil e fluída, com recurso a um conceito controverso e que tem passado por um percurso atribulado. Afinal, de que falamos quando falamos de fluidez sexual?

Retomemos à definição original que Diamond apresentou em 2008Diamond, L. (2008). Sexual fluidity: understanding women’s love and desire. Cambridge, MA: Harvard University Press.: “A fluidez sexual, muito simplesmente, significa flexibilidade na capacidade de resposta sexual das mulheres dependente da situação ou do contexto” (Diamond, 2008Butler, J. (1999). Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York, NY: Routledge., p. 3, tradução nossa)17 17 “Sexual fluidity, quite simply, means situation-dependent flexibility in women’s sexual responsiveness”. . É sobre mulheres, com mulheres e de mulheres que Diamond fala, é pelas mulheres que a autora projeta e alicerça toda a sua teoria, de tal modo que, com a proposta do conceito de fluidez sexual, inevitavelmente, se induz a pensar que esta é uma característica que serve melhor às mulheres. Com efeito, a fluidez sexual emergiu de um conjunto de investigações sobre a sexualidade feminina, a par da crença de que o gênero dita o modo como as pessoas experienciam a sexualidade, num período em que a sexualidade feminina vinha sendo (re)investigada e estudada a sua possibilidade para a fluidez, enquanto a estabilidade da sexualidade masculina, ao longo do tempo, não era questionada. Durante alguns anos, várias investigações documentaram aproximações à fluidez sexual nas mulheres, quer nos trabalhos que denominaríamos ‘pré-Diamond’ (e.g. Goode & Haber, 1977Goode, E., & Haber, L. (1977). Sexual correlates of homosexual experience: an exploratory study of college women. The Journal of Sex Research, 13(1), 12-21. https://doi.org/10.1080/00224497709550956
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; Sophie, 1986Sophie, J. (1986). A critical examination of stage theories of lesbian identity development. Journal of Homosexuality, 12(2), 39-51. https://doi.org/10.1300/J082v12n02_03
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; Weinberg et al., 1994Weinberg, M. S., Williams, C. J., & Pryor, D. W. (1994). Dual attraction: understanding bisexuality. New York, NY: Oxford University Press.; Kitzinger & Wilkinson, 1995Kitzinger, C., & Wilkinson, S. (1995). Transitions from heterosexuality to lesbianism: the discursive production of lesbian identities. Developmental Psychology, 31(1), 95-104. https://doi.org/10.1037/0012-1649.31.1.95
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; Baumeister, 2000Baumeister, R. F. (2000). Gender differences in erotic plasticity: the female sex drive as socially flexible and responsive. Psychological Bulletin, 126(3), 347-374. https://doi.org/10.1037/0033-2909.126.3.347
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), passando pelo momento em que a fluidez sexual emerge na literatura científica (Diamond, 2008Butler, J. (1999). Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York, NY: Routledge.), e também nos desenvolvimentos que apelidaríamos de ‘pós/com-Diamond’ (e.g. Diamond, 2008Butler, J. (1999). Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York, NY: Routledge.; Mock & Eibach, 2012Mock, S. E., & Eibach, R. P. (2012). Stability and change in sexual orientation identity over a 10-year period in adulthood. Archives of Sexual Behavior, 41(3), 641-648. https://doi.org/10.1007/s10508-011-9761-1
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; Ross et al., 2012Ross, M. W., Daneback, K., & Månsson, S.-A. (2012). Fluid versus fixed: a new perspective on bisexuality as a fluid sexual orientation beyond gender. Journal of Bisexuality, 12(4), 449-460. https://doi.org/10.1080/15299716.2012.702609
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; Diamond et al., 2020Connell, R. W., & Messerschmidt, J. W. (2005). Hegemonic masculinity: rethinking the concept. Gender & Society, 19(6), 829-859. https://doi.org/10.1177/0891243205278639
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). Desta forma, as investigações no domínio da fluidez sexual tendencialmente reforçaram a maior variabilidade das atrações sexuais entre as mulheres (Diamond, 2016Connell, R. W., & Messerschmidt, J. W. (2005). Hegemonic masculinity: rethinking the concept. Gender & Society, 19(6), 829-859. https://doi.org/10.1177/0891243205278639
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), introduzindo, na nossa perspectiva, o viés de gênero na conceptualização e estudo da fluidez sexual.

Justifica-se, assim, o questionamento quanto à possibilidade de os homens vivenciarem experiências semelhantes de fluidez sexual. Poderemos antecipar, de modo especulativo, que tais experiências poderão acarretar diferentes consequências e constrangimentos, nomeadamente, de ordem social. É inevitável considerar a dimensão social da sexualidade humana, que as normas de gênero produzem feminilidades e masculinidades e que inscrevem as diferenças sexuais nos homens e nas mulheres (Butler, 1999Butler, J. (1999). Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York, NY: Routledge.). As normas de gênero, enquanto expectativas sociais interiorizadas e partilhadas sobre as manifestações mais apropriadas para os sujeitos ‘genderizados’ pelas instituições e pelas práticas sociais em todos os domínios, incluindo o da sexualidade (Butler, 1999Butler, J. (1999). Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York, NY: Routledge.; Medrado & Lyra, 2008Medrado, B., & Lyra, J. (2008). Por uma matriz feminista de gênero para os estudos sobre homens e masculinidades. Revista Estudos Feministas, 16(3), 809-840. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2008000300005
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), destacam a categoria expectável para o universo das masculinidades como hegemônica, ‘dominante’ (Connell, 1987Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.) e limitante da diversidade sexual masculina.

A masculinidade hegemônica pode ser definida como o resultado de uma construção social, uma configuração de gênero, estabelecida em função das respostas culturais atuais do sistema do patriarcado, que sustenta a posição dominante do grupo masculino e privilegia os traços tradicionalmente considerados ‘naturais’ nos homens (Connell, 1987Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.; Connell & Messerschmidt, 2005Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.). A masculinidade hegemônica é, assim, uma figura idealizada que facilita, por comparação e imposição, a vigilância e o controle das condutas masculinas, uma sistemática verificação e validação de masculinidades em função do seu afastamento ou aproximação da heteronormatividade (Warner, 1991Warner, M. (1991). Introduction: fear of queer planet. Social Text, 29, 3-17.), da competição, da agressividade, da emocionalidade restrita e do evitamento do que é considerado feminino (Connell & Messerschmidt, 2005Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.). Masculinidades que não respondam ao ideal masculino dominante correm, por isso, o risco de submissão às masculinidades não hegemônicas, como é o caso das masculinidades subordinadas, consideradas inferiores ou desviantes (Connell, 1987Connell, R. W., & Messerschmidt, J. W. (2005). Hegemonic masculinity: rethinking the concept. Gender & Society, 19(6), 829-859. https://doi.org/10.1177/0891243205278639
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; Connell & Messerschmidt, 2005Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.). Esta marginalização das masculinidades acontece num contexto social que se pauta pela organização binária das normas de gênero e da sexualidade, num sistema autoritário que invisibiliza todas as pessoas que não cumpram rigorosamente a performatividade de gênero e dos comportamentos sexuais (Butler, 1999Butler, J. (1999). Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York, NY: Routledge.; Medrado & Lyra, 2008Medrado, B., & Lyra, J. (2008). Por uma matriz feminista de gênero para os estudos sobre homens e masculinidades. Revista Estudos Feministas, 16(3), 809-840. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2008000300005
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). A construção e a manutenção das masculinidades são transversais aos contextos educacionais, familiares, profissionais e íntimos, pelo que masculinidades não explicitamente heterossexuais tendem a ser subordinadas e marginalizadas pelas masculinidades heterossexuais (Connell & Messerschmidt, 2005Connell, R. W. (1987). Gender and power: society, the person, and sexual politics. Standford, CA: Standford California Press.).

Sabendo que as normas de gênero informam diretamente a sexualidade (Butler, 1999Butler, J. (1999). Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York, NY: Routledge.; Bordini & Sperb, 2013Bordini, G. S., & Sperb, T. M. (2013). Negociação de significados associados às sexualidades: Análise de narrativa construída em interação. Psicologia em Estudo, 18(1), 37-47. https://doi.org/10.1590/S1413-73722013000100005
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) e que as expectativas de gênero dominantes estão associadas à heterossexualidade, espera-se uma performance rigidamente heterossexual na conduta sexual humana por esta ser heteronormativa (Butler, 1999Butler, J. (1999). Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York, NY: Routledge.). Os homens, pelo controle exercido pela masculinidade hegemônica, serão persuadidos a exibir performances heterossexuais manifestamente claras e rigidamente explícitas, para evitar consequentes marginalizações (Connell & Messerschmidt, 2005Connell, R. W., & Messerschmidt, J. W. (2005). Hegemonic masculinity: rethinking the concept. Gender & Society, 19(6), 829-859. https://doi.org/10.1177/0891243205278639
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). Esta pressão para responder às normas do gênero e da sexualidade é mais significativa quando dirigida às composições da masculinidade, já que é inexistente, na mesma medida, na feminilidade.

Assumindo que a experiência sexual não se restringe à norma heterossexual e que as atrações sexuais podem fluir entre pessoas de sexos diferentes, tal como o conceito de fluidez sexual propõe, daí podem resultar níveis de risco de sancionamento social mais elevados para a masculinidade do que para a feminilidade. Dos homens espera-se que mantenham o privilégio da dominação masculina, respondendo aos ideais da heteronormatividade e afastando-se da performance feminina, enquanto as práticas sexuais entre mulheres podem ser erotizadas e, por isso, mais toleradas socialmente (Diamond, 2003Diamond, L. (2003). What does sexual orientation orient? A biobehavioral model distinguishing romantic love and sexual desire. Psychological Review, 110(1), 173-192. https://doi.org/10.1037/0033-295X.110.1.173
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). Assim, enquanto identidade sexual, a heterossexualidade afigura-se como uma performance, tal como o gênero (Butler, 1999Butler, J. (1999). Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York, NY: Routledge.), e como um conjunto de interpretações e de formas de participar ativamente nas convenções sociais da masculinidade. Desta forma, e na nossa análise, o contexto sociocultural no qual emergiu o conceito de fluidez sexual poderá ter facilitado a sua maior aceitação se aplicado às mulheres, e dificultado a aplicabilidade aos homens.

A concepção de fluidez sexual, proposta por Lisa Diamond (2008Diamond, L. (2008). Sexual fluidity: understanding women’s love and desire. Cambridge, MA: Harvard University Press.), derivou, como vimos, de um estudo com mulheres e não incluiu, deliberadamente, homens, embora a autora nunca sugira incapacidades masculinas para experienciar variações nas atrações sexuais e até saliente à falta de investigação sobre a fluidez sexual nos homens (ver Diamond, 2008Diamond, L. (2016). Sexual fluidity in males and females. Current Sexual Health Reports, 8(4), 249-256. https://doi.org/10.1007/s11930-016-0092-z
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, p. 11, 12). Este é um cenário que, recentemente, tem vindo a modificar-se, com a realização de estudos sobre a mutabilidade das atrações sexuais nos homens. Termos como Dude-sex (Ward, 2015Ward, J. (2015). Not gay: sex between straight white men. New York, NY: New York University Press.), bud-sex (Silva, 2017Silva, T. (2017). Bud-Sex: constructing normative masculinity among rural straight men that have sex with men. Gender & Society, 31(1), 51-73. https://doi.org/10.1177/0891243216679934
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) ou mostly straight (Savin-Williams, 2017Savin-Williams, R. C. (2017). Mostly straight: sexual fluidity among men. Cambridge, MA: Harvard University Press.) são o resultado importante de um conjunto de investigações que contrariam a tendência que acompanha a teoria da fluidez sexual desde a sua criação. Estes termos correspondem a envolvimentos sexuais entre homens autoidentificados como heterossexuais, ilustrando a variedade e as especificidades categoriais que se organizam e reorganizam em função da história e da cultura. Contudo, importa salientar que a maioria dos estudos emergentes sobre aproximações face à fluidez sexual não deixam de reforçar a heterossexualidade como norma, estando as investigações ou as terminologias consideradas em torno da heterossexualidade. Mais ainda, estas investigações, na sua maioria reproduzindo a cultura norte-americana, são desenvolvidas com um grupo de homens em particular, privilegiados pelo seu nível socioeconômico e etnia, tal como a maioria dos estudos neste domínio, com homens e/ou mulheres, começando pelo trabalho de Lisa Diamond sendo que, das 89 mulheres entrevistadas, “[...] 60% considerava-se de classe média ou média alta” (Diamond, 2008Diamond, L. (2016). Sexual fluidity in males and females. Current Sexual Health Reports, 8(4), 249-256. https://doi.org/10.1007/s11930-016-0092-z
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, p. 57, tradução nossa)18 18 “[...] 60 percent considered themselves middle or upper middle class”. . Por conseguinte, importa destacar a ausência de um debate interseccional consolidado nos estudos que aqui foram considerados.

Nos meandros da fluidez sexual, destacamos não só a um viés de gênero, mas também a uma procura incessante das diferenças de gênero na sexualidade, em particular na fluidez sexual. Muitos estudos focam-se na procura e na conquista de uma resposta vencedora sobre a quem atribuir o prêmio de maior potencialidade para a fluidez (e.g. Baumeister, 2000Baumeister, R. F. (2000). Gender differences in erotic plasticity: the female sex drive as socially flexible and responsive. Psychological Bulletin, 126(3), 347-374. https://doi.org/10.1037/0033-2909.126.3.347
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; Kinnish et al., 2005Kinnish, K. K., Strassberg, D. S., & Turner, C. W. (2005). Sex differences in the flexibility of sexual orientation: a multidimensional retrospective assessment. Archives of Sexual Behavior, 34(2), 173-183. https://sci-hub.se/10.1007/s10508-005-1795-9
https://doi.org/10.1007/s10508-005-1795-...
; Diamond, 2016Diamond, L. (2016). Sexual fluidity in males and females. Current Sexual Health Reports, 8(4), 249-256. https://doi.org/10.1007/s11930-016-0092-z
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). Quando encontradas diferenças, elas caem num vazio de possibilidades e de explicações: “[…] é difícil tirar conclusões fiáveis sobre a extensão das diferenças de gênero na fluidez sexual e sobre a causa de tais diferenças” (Diamond, 2016Diamond, L. (2016). Sexual fluidity in males and females. Current Sexual Health Reports, 8(4), 249-256. https://doi.org/10.1007/s11930-016-0092-z
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, p. 254, tradução nossa)19 19 “[…] it is difficult to draw reliable conclusions about the extent of gender differences in sexual fluidity, and the cause of such gender differences”. . Prevemos que este ciclo mantenha continuidade, pois as diferenças entre a sexualidade das mulheres e dos homens existirão, enquanto existirem diferenças na organização social da vida dos homens e das mulheres.

Neste trabalho, encontramo-nos com a fixação no sexo/gênero como norma das condutas sexuais. Tradicionalmente, as orientações sexuais são conceptualizadas em função do sexo/gênero do/a parceiro/a de uma pessoa, ela também ‘genderizada’. Esta fixação do sexo/gênero na análise da escolha da/o parceiro/a sexual pode invisibilizar outras características que poderão ter uma influência muito significativa na atração sexual, tais como a idade, a classe, a etnia, considerações sobre poder e controle, entre outras, pois o modo como as pessoas compreendem e experienciam a sexualidade é profundamente social e interseccional. Para muitas pessoas, o percurso desde a atração, passando pela orientação e identidade até a experiência e relacionamento sexual não é linear. As experiências são diversas num conceito tão complexo quanto múltiplo (Tiefer, 2004Tiefer, L. (2004). Sex is not a natural act and other essays (2nd ed.). Boulder, CO: Westview Press.). Por conseguinte, mais seguramente definimos a nossa própria categoria sexual do que o fazem as nossas ações ou identidades sexuais ou o sexo/gênero das/dos parceiros/as sexuais com quem nos envolvemos. As investigações recentes no domínio da fluidez sexual contribuem para uma compreensão emergente da sexualidade como fluída, em vez de rígida e categorial (Diamond, 2016Diamond, L. (2016). Sexual fluidity in males and females. Current Sexual Health Reports, 8(4), 249-256. https://doi.org/10.1007/s11930-016-0092-z
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), mas que não se desliga da fixação do sexo/gênero com que tradicional e tendencialmente definimos as nossas práticas sexuais, nunca desprovidas de um esclarecimento conciso e obrigatório sobre como se cruzam os sexos e os gêneros dos/as parceiras/os sexuais. Para além disso, as investigações sobre fluidez sexual não parecem contemplar a diversidade de sexos/gêneros humanos, reforçando o binarismo de gênero ao reforçarem, também, o binário hetero e homossexual.

De uma forma regular, debatem-se as fronteiras da fluidez sexual e discute-se onde termina e começa este conceito quando comparado com a bissexualidade. Também Diamond admite que a pergunta é recorrente e existe uma preocupação generalizada em separar estas concepções em duas entidades distintas (Diamond, 2016Diamond, L. (2016). Sexual fluidity in males and females. Current Sexual Health Reports, 8(4), 249-256. https://doi.org/10.1007/s11930-016-0092-z
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). Segundo a autora, a fluidez sexual caracteriza-se pelo seu caráter esporádico e a bissexualidade apresenta notas de regularidade, mas é também a autora que afirma a dificuldade em separar as águas: “[...] é claro que a fronteira exata entre padrões ‘regulares’ e ‘esporádicos’ de atração sexual é desconhecida e, por isso, esta distinção é mais útil em termos conceptuais do que empíricos” (Diamond, 2016Diamond, L. (2016). Sexual fluidity in males and females. Current Sexual Health Reports, 8(4), 249-256. https://doi.org/10.1007/s11930-016-0092-z
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, p. 250, tradução nossa)20 20 “[...] of course, the exact boundary between ‘regular’ and ‘sporadic’ patterns of sexual attraction is unknown, and hence, this distinction is more useful conceptually than empirically”. . Numa compreensão da bissexualidade e da fluidez sexual que traduz vivências restritas ao binarismo de gênero, gerando o desassossego das definições, este será tão ou mais importante se for, ao mesmo tempo, relevante, pois o grande investimento na procura de clareza conceptual e das delimitações das definições poderá reduzir o investimento no organizador central desta discussão: a aceitação da potencialidade humana para a fluidez sexual e o direito humano à diversidade sexual.

Considerações finais

Neste trabalho, propusemo-nos a aprofundar o conceito de fluidez sexual, explorar os momentos a que denominamos de ‘pré-Diamond’ e ‘pós/com-Diamond’ e procuramos perceber de que falamos quando falamos de fluidez sexual. Por conseguinte, percebemos que falamos de um conceito enviesado e marcado pelas normas de gênero, situado num tempo e num contexto heteronormativos. Falamos de um fenômeno acompanhado pela hipersexualização (heteronormativa) dos homens para a preservação da masculinidade (Bordini & Sperb, 2013Bordini, G. S., & Sperb, T. M. (2013). Negociação de significados associados às sexualidades: Análise de narrativa construída em interação. Psicologia em Estudo, 18(1), 37-47. https://doi.org/10.1590/S1413-73722013000100005
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), instigante a ausência do trabalho da Raewyn Connell neste debate. Falamos de um constructo cujas fronteiras se revelam permeáveis a abarcar outras definições. E falamos de um derivado de estudos na sua maioria norte-americanos, com participantes que se inserem num lugar distinto na matriz de opressões e privilégios. O trabalho de Diamond e o conjunto de investigações internacionais que avaliam atrações, comportamentos e identidades sexuais reforçam o afastamento da rigidez categorial da sexualidade humana que assume substancial fluidez e em múltiplas formas. Assim, de que falamos quando falamos sobre fluidez sexual? Falamos sobre um presente sexual que, definitivamente, não dita o seu futuro.

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  • 6
    “[…] situation-dependent flexibility in women’s sexual responsiveness […] that makes it possible for some women to experience desires for either men or women under certain circumstances, regardless of their overall sexual orientation”.
  • 7
    Processo por meio do qual uma pessoa assume uma identidade não heterossexual.
  • 8
    “[…] the results of this study suggest that nonexclusive attractions are the norm rather than the exception”.
  • 9
    “[...] early experiences do not predict later ones”.
  • 10
    “[...] the fascinating twists and turns the respondents experienced”.
  • 11
    “Sexual fluidity is defined as a capacity for situation dependent flexibility in sexual responsiveness, which allows individuals to experience changes in same-sex or other-sex desire, over both short-term and long-term time periods.
  • 12
    “One of the most common questions about sexual fluidity is ‘How does it differ from bisexuality?’”.
  • 13
    Possível tradução: irmandade ou fraternidade.
  • 14
    No original ‘Bro’ é abreviatura de brother, termo vulgarmente utilizado na língua inglesa e na subcultura de jovens rapazes que significa amigo, companheiro, alguém que partilha as mesmas ideias, alguém com quem se mantém uma relação de cumplicidade à semelhança de um irmão.
  • 15
    Dude é um termo calão para homem.
  • 16
    Bud é abreviatura de buddy que pode ser traduzido como amigo, colega ou companheiro. Assim, bud-sex diz respeito ao sexo entre amigos ou assim é tecida a interpretação desta relação pelos participantes. Este termo reforça a ideia de que não se trata de uma relação com compromisso, sobretudo com ausência de envolvimento emocional e/ou romântico, exclusivamente caracterizada pela atração sexual (Silva, 2017).
  • 17
    “Sexual fluidity, quite simply, means situation-dependent flexibility in women’s sexual responsiveness”.
  • 18
    “[...] 60 percent considered themselves middle or upper middle class”.
  • 19
    “[…] it is difficult to draw reliable conclusions about the extent of gender differences in sexual fluidity, and the cause of such gender differences”.
  • 20
    “[...] of course, the exact boundary between ‘regular’ and ‘sporadic’ patterns of sexual attraction is unknown, and hence, this distinction is more useful conceptually than empirically”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Maio 2020
  • Aceito
    14 Jun 2021
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