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SER PROFESSOR/A HOJE: UMA CARTOGRAFIA DA DOCÊNCIA NO ENSINO FUNDAMENTAL

SER MAESTRO/A HOY: UNA CARTOGRAFÍA DE LA ENSEÑANZA EN LA ESCUELA PRIMARIA

RESUMO.

A docência é uma profissão envolta em uma diversidade de conceitos e modos de ser-fazer-agir e conhecer a figura do/a professor/a, e suas distintas formas de atuar permitem que se compreenda a amplitude da realidade que cerca esse/a profissional. Esta pesquisa teve como objetivo investigar as percepções e significados da docência entre professores/as do ensino fundamental de uma escola municipal de Santa Maria/RS. Tendo a cartografia como método, pode-se atentar para os processos que envolvem os sujeitos presentes na pesquisa, possibilitando que problematizações provocassem reflexões. Para tanto, foram realizadas observações e quatro encontros de grupo na escola, nos quais participaram três professoras. Um diário de campo foi utilizado para o registro das narrativas e atividades realizadas. Constatou-se que a profissão docente tem sua construção feita no campo do social, pois tanto a imagem, quanto o que é ser professor/a se constrói ao longo da vida de cada um/a. Também se observou que o exercício da docência ocorre no âmbito do coletivo, pois neste espaço emergem novas perspectivas para a própria atuação profissional, permitindo assim uma forma de escape à lógica adoecedora que envolve a profissão docente. Entende-se que este adoecimento é resultante de processos de subjetivação que se expandem por toda uma rede política, econômica, cultural e social. Diante disto, pode-se apreender que intervenções que envolvem o coletivo podem ser ações potencializadoras de mudanças, tanto no ser como no fazer do/a professor/a em seu cotidiano profissional, corroborando para o seu crescimento pessoal como docente.

Palavras-chave:
Ensino público; método cartográfico; trabalho docente

RESUMEN.

La docencia es una profesión envuelta en una diversidad de conceptos y formas de ser-hacer-actuar y conocer la figura del docente y sus diferentes formas de actuar permite comprender la amplitud de la realidad que rodea a este profesional. Esta investigación tuvo como objetivo investigar las percepciones y significados de la docencia entre profesores de primaria de una escuela municipal de Santa Maria / RS. Teniendo la cartografía como método, fue posible prestar atención a los procesos que involucran a los sujetos presentes en la investigación, permitiendo que la problematización provoque reflexiones. Para ello, se realizaron observaciones y cuatro reuniones grupales en la escuela, en las que participaron tres docentes. Se utilizó un diario de campo para registrar las narrativas y actividades realizadas. Se constató que la profesión docente se construye en el ámbito social, ya que tanto la imagen como lo que significa ser docente se construye a lo largo de la vida de cada persona. También se observó que el ejercicio de la docencia se da en el ámbito colectivo, pues en este espacio surgen nuevas perspectivas para el desempeño profesional, posibilitando así una vía para escapar de la lógica enfermiza que envuelve la profesión docente. Se entiende que esta enfermedad es el resultado de procesos de subjetivación que se expanden a lo largo de un entramado político, económico, cultural y social. Ante esto, se pudo aprehender que las intervenciones que involucran al colectivo pueden ser acciones que potencien cambios, tanto en el ser como en el hacer del docente en su rutina profesional, apoyando así su crecimiento personal como docente.

Palabras clave:
Educación pública; método cartográfico; trabajo docente

ABSTRACT.

Teaching is a profession shrouded in a diversity of concepts and ways of being-doing-acting and knowing the figure of the teacher and their different ways of acting allows one to understand the breadth of the reality that surrounds this professional. This research aimed to investigate the perceptions and meanings of teaching among elementary school teachers in a municipal school in Santa Maria/RS. Having cartography as a method, it was possible to pay attention to the processes that involve the subjects present in the research, allowing problematization to provoke reflections. For this purpose, observations and four group meetings were carried out at the school, in which three teachers participated. A field diary was used to record the narratives and activities performed. It was found that the teaching profession is built in the social field, as both the image and what it means to be a teacher is built throughout the life of each person. It was also observed that the exercise of teaching occurs in the collective sphere, as in this space new perspectives for professional performance emerge, thus enabling a way to escape from the sickening logic that involves the teaching profession. It is understood that this illness is the result of subjectivation processes that expand throughout a political, economic, cultural and social network. In view of this, it was possible to apprehend those interventions that involve the collective can be actions that enhance changes, both in the being and in the doing of the teacher in their professional routine, thus supporting their personal growth as a teacher.

Keywords:
Public education; cartographic method; teaching work

Introdução

Ao dar início às reflexões decorrentes de uma pesquisa tão desafiadora, como esta que se apresenta, é preciso salientar algumas considerações. Pesquisar acerca da classe docente tem sido uma tarefa de muitos estudiosos, mas como escreveu Sacristán (2015Sacristán, J. G. (2015). Tendências investigativas na formação de professores. In S. G. Pimenta & E. Ghedin. Professor reflexivo no Brasil: Gênese e crítica de um conceito(6a ed., p. 81-87). São Paulo, SP: Cortez.), quando se analisam algumas tendências investigativas no campo da docência, é importante que se tenha em mente que o/a professor/a, com suas vivências, experiências e práticas, precisa ser o agente central de tais estudos e pesquisas, não apenas seu fazer pedagógico como docente. Faz-se necessário expandir o olhar para toda realidade que cerca esse profissional da educação (Limachi & Zucolotto, 2020Limachi, E. K. U., & Zucolotto, M. P. R. (2020). A construção da subjetividade do/a professor/a: Implicações no ser docente na atualidade. Research, Society and Development, 9(2). http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v9i2.1927
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), pois, segundo Nóvoa (2007Nóvoa, A. (2007). Vidas de professores. Porto, PT: Porto Editora., p. 17, grifo nosso) “[...] é impossível separar o ‘eu’ profissional do ‘eu’ pessoal”. Para este autor, o ser professor/a, como aquele/a que ensina um saber, está intimamente ligado àquilo que ele/a é como pessoa.

A docência é uma profissão envolta em uma diversidade de conceitos e modos de ser-fazer-agir (Aquino, 2019Aquino, J. G. (2019). Educação pelo arquivo: ensinar, pesquisar, escrever com Foucault. São Paulo, SP: Entremeios.). Embora nas últimas décadas os estudos sobre a docência tenham se voltado mais diretamente para a figura do/a professor/a e sua profissão, o que se percebe é uma nova profissionalização, inculcando neste/a professor/a a autorresponsabilização por sua prática como professor (Silva, Pereira, Novelho, & Silveira, 2018Silva, L. M. S., Pereira, F. D,; Novelho, T. P., & Silveira, D. S. (2018). Relação entre a desvalorização profissional e o mal-estar docente.RELACult-Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e Sociedade, 4(ed. esp.), 1-10. https://doi.org/10.23899/relacult.v4i0.752
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). Importante acrescentar que a profissão docente sempre parece haver caminhado não pelas ‘próprias pernas’, mas ‘puxada ou empurrada’ na direção de interesses político-econômicos (Limachi & Zucolotto, 2020Limachi, E. K. U., & Zucolotto, M. P. R. (2020). A construção da subjetividade do/a professor/a: Implicações no ser docente na atualidade. Research, Society and Development, 9(2). http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v9i2.1927
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). Dentro desta lógica capitalística, os processos de subjetivação se deram (e ainda se dão) pelo controle de tudo o que cerca o sujeito, moldando-o a padrões de consumo e produção (Guattari & Rolnik, 2013Guattari, F., & Rolnik, S. (2013). Micropolítica: cartografias do desejo (2a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.). Essa modelagem/moldagem também teve suas repercussões no campo da docência, por exemplo, na intensificação da jornada de trabalho e no excesso de atividades que envolvem a docência.

Vivendo tempos de constantes mudanças, em que as certezas se esvaem diante da velocidade de novas informações, em que o/a professor/a se vê imerso/a num mal-estar decorrente de bruscas transformações sociais, urge a necessidade de se ouvir estes profissionais da educação (Limachi & Zucolotto, 2020Limachi, E. K. U., & Zucolotto, M. P. R. (2020). A construção da subjetividade do/a professor/a: Implicações no ser docente na atualidade. Research, Society and Development, 9(2). http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v9i2.1927
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). Torna-se imperativo, segundo Zucolotto (2018Zucolotto, M. P. R. (2018). Contribuições da psicologia à educação básica e o problema da psicologização da educação: uma revisão narrativa.Revista HISTEDBR On-line, 18(4), 1195-1208. https://doi.org/10.20396/rho.v18i4.8652472
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), favorecer o debate sobre as dificuldades enfrentadas no trabalho de educar na atualidade. Ouvir e atentar para o que experienciam cotidianamente, tanto dentro como fora da escola, seus conceitos/concepções do que é ser professor/a, diante de uma conjuntura globalizadora que homogeneíza comportamentos e hegemoniza formas de pensar.

Diante disto, este trabalho objetiva investigar as percepções e significados da docência para os/as professores/as de uma escola da rede pública de ensino fundamental da cidade de Santa Maria-RS. Neste propósito, buscou-se reunir narrativas destes/as professores/as sobre suas vivências como docentes, suas motivações pela escolha desta carreira profissional; discutir acerca das possíveis dificuldades e satisfações encontradas no cotidiano da prática docente e, concomitantemente, oportunizar espaços de fala e ressignificações sobre as próprias vivências como professores/as nos contextos onde se inserem.

Considerações sobre o método e análise

Compreender os processos de subjetivação do/a professor/a na atualidade, suas percepções e significados acerca do seu fazer profissional e de como estes influem em todo seu contexto de vida envolve buscar e manter um caráter inventivo na forma de pesquisar (Passos, Kastrup, & Tedesco, 2016Passos, E., Kastrup, V., & Tedesco, S. (2016). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum (Vol. 2). Porto Alegre, RS: Sulina.). Tal forma de investigação visa ampliar o olhar de ‘sobre os objetos’ da pesquisa para um olhar ‘com’ os mesmos; o que significa então que ambos/as, pesquisador/a e pesquisados/as são coparticipantes da mesma, ou seja, a pesquisa se torna uma prática coletiva.

Portanto, em vez de neutralidade, este trabalho propôs-se a um mergulho na experiência (Heckert & Barros, 2013Heckert, A., & Barros, M. E. B. (2013). Desafios metodológicos para a pesquisa no campo da psicologia: O que pode uma pesquisa. In A. M. Machado, A. M. D. Fernandes & M. L. Rocha (Orgs.), Novos possíveis no encontro da psicologia com a educação(p. 87-116). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.), voltando o olhar para as diferentes realidades que se apresentam nas relações entre os sujeitos da pesquisa. Veiga-Neto (2016Veiga-Neto, A. (2016). Foucault & a educação (3a ed.). Belo horizonte, MG: Autêntica.) comenta que é na força destas relações que se produz conhecimento, mudanças e ainda subjetivações.

Tal empreendimento evocou a necessidade de se entender a noção de movimento e deslocamento (Dias, 2012Dias, R. O. (Org.). (2012). Formação inventiva de professores. Rio de Janeiro, RJ: Lamparina.), pois estes denunciam a constante mudança e transformação no percurso da pesquisa. Nesta trajetória de passagem, o que está aparentemente imóvel, na realidade se transforma e, neste campo de pesquisa, precisa ser ‘desenhado’ por meio de “[...] ferramentas específicas e abertas aos movimentos, às intensidades [perfazendo] o traçado de uma trajetória em constituição” (Dias, 2012Dias, R. O. (Org.). (2012). Formação inventiva de professores. Rio de Janeiro, RJ: Lamparina., p. 25).

A cartografia é uma destas formas de se realizar uma pesquisa que se move e reinventa a todo momento, pois é importante e necessário unir-se a todos os processos que a envolvem. Rolnik (2016Rolnik, S. (2016). Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo (2a ed.). Porto Alegre, RS: Sulina.) comenta que na cartografia busca-se acompanhar o desenho ao mesmo tempo em que este se transforma na paisagem. No campo psicossocial, segundo a autora, a cartografia permite que se presencie e participe dos ‘mundos’ que se desmancham e se formam em outros. De aí decorre a necessidade do/a cartógrafo/a ‘mergulhar’ nestes mundos e atentar para as linhas, linguagens que poderão servir para compor ‘seu desenho’.

Neste ponto é preciso esclarecer que este tipo de pesquisa transcorre de forma interventiva, pois, ao emergir realidades que não são dadas de forma fixa, desloca-se a atenção para os processos que envolvem mutuamente os sujeitos nela envolvidos (Barros & Barros, 2016Barros, L. M. R., & Barros, M. E. B. (2016). O problema da análise em pesquisa cartográfica. In E. Passos, V. Kastrup& S. Tedesco. Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum (p. 175-202). Porto Alegre, RS: Sulina.). Estabelece-se, por conseguinte, uma reciprocidade entre pesquisador/a e participantes que, juntos, em meio às relações tecidas no momento, problematizam as realidades postas pela ciência, provocando transformações ao levantar novos problemas, fomentando assim outras práticas de investigação (Passos et al., 2016Passos, E., Kastrup, V., & Tedesco, S. (2016). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum (Vol. 2). Porto Alegre, RS: Sulina.).

Tal como proposto por Gilles Deleuze e Félix Guattari, a cartografia busca então estruturar-se a partir dos processos que envolvem o campo social, pois estes estão em constante mudança (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Conversações (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Editora 34.; Passos et al., 2016Passos, E., Kastrup, V., & Tedesco, S. (2016). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum (Vol. 2). Porto Alegre, RS: Sulina.). Portanto, questões estabelecidas a priori, envoltas em modelos já estruturados são postas de lado, pois o que se busca nesta forma de pesquisar são os arranjos e desarranjos das realidades que se revelam, mesmo que provisória e dinamicamente na existência humana. Neste sentido, ao buscar empreender a cartografia em uma pesquisa no campo da educação e, neste caso, no campo da docência, procura-se compreender muito mais que dados de uma realidade, mas também as afetações e sensações que circundam esse/a professor/a, suas inter-relações, interlocuções, suas linhas de fuga4 4 Toma-se aqui como linhas de fuga a concepção de Deleuze e Guattari (2012), que sinalizam que o ser humano, bem como os grupos sociais são atravessados por basicamente três tipos de linhas: uma de segmentaridade mais dura, outra mais maleável e uma terceira que sinaliza ruptura/fuga. Estas últimas surgem em meio à inventividade criativa para contrapor uma máquina dominante que impede o fluxo das mudanças. estabelecidas em uma malha existencial no seu campo social.

Esses autores também apontam que o procedimento de análise perpassa a mesma visão de uma realidade composta por linhas, ou seja, na cartografia, um desenho se forma à medida que os dados se revelam (Passos et al., 2016Passos, E., Kastrup, V., & Tedesco, S. (2016). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum (Vol. 2). Porto Alegre, RS: Sulina.). Isto significa que a maneira com que se abordam estes dados também se distingue da objetividade da ciência moderna. A própria compreensão acerca da coleta de dados é distinta ao se empreender uma pesquisa no modo cartográfico, pois estes não estão prontos em algum lugar e/ou alguém, mas são parte das relações, das experiências que emergem dos processos da pesquisa. Diante disto, a construção dos dados é processual, resultante dos encontros e desencontros entre campo de pesquisa e pesquisador/a (Passos et al., 2016Passos, E., Kastrup, V., & Tedesco, S. (2016). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum (Vol. 2). Porto Alegre, RS: Sulina.).

Neste sentido, a análise em cartografia se faz sem distanciamento, uma vez que está imersa na experiência coletiva em que tudo e todos estão implicados (Passos et al., 2016Passos, E., Kastrup, V., & Tedesco, S. (2016). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum (Vol. 2). Porto Alegre, RS: Sulina.). O que significa que toda análise cartográfica possui uma dimensão participativa, entendendo que o/a analista está implicado no campo da pesquisa, ou seja, o/a pesquisador/a precisa participar da experiência e não simplesmente falar/escrever sobre ela.

Por essa razão, não se pode aderir a uma posição de neutralidade ao se analisar todos os processos e relações estabelecidas durante a pesquisa. Sendo uma forma de pesquisa-intervenção, a participação e a implicação do/a pesquisador/a se fazem necessárias para maior compreensão das múltiplas relações que emergem do processo. Barros e Barros (2016Barros, L. M. R., & Barros, M. E. B. (2016). O problema da análise em pesquisa cartográfica. In E. Passos, V. Kastrup& S. Tedesco. Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum (p. 175-202). Porto Alegre, RS: Sulina.) salientam essa dimensão participativa da pesquisa cartográfica registrando que a pesquisa se faz criação nos mais diversos momentos da pesquisa. Portanto, em cartografia, não há uma divisão de etapas, em que a análise se constitui como uma delas, pelo contrário, a análise acompanha todo processo da pesquisa.

Considerações sobre o campo da pesquisa

Antes de seguir em frente, é importante saber como se deu e quem são estes/as professores/as participantes desta pesquisa. Como o objetivo era investigar as concepções acerca da docência que tem os/as professores/as do ensino fundamental, de uma escola municipal de ensino fundamental de Santa Maria (Rio Grande do Sul), foi estabelecido contato com uma instituição onde já se se desenvolvia um projeto de estágio em psicologia. O encontro entre direção e pesquisadora transcorreu com muita cordialidade e disposição. Ficou acordado que, uma vez por semana e por um período de seis semanas, seriam realizadas observações e encontros de grupo com os/as professores/as interessados/as em participar da pesquisa. A diretora prontamente se dispôs a alterar o horário de saída dos alunos, caso um número expressivo de docentes se dispusesse a comparecer. As observações se deram durante o intervalo dos/as professores/as (recreio dos/as alunos/as), na sala dos/as professores/as por seis ocasiões. Também ocorreram observações durante algumas aulas ministradas por aqueles/as que participaram da pesquisa, em três momentos.

Os encontros de grupo aconteceram a partir da segunda semana de observação, para que os/as professores/as convidados/as pudessem pensar e decidir se participariam da pesquisa. Aderiram à proposta três professoras, que prontamente abriram as portas da sala de aula para os momentos de observação. As participantes da pesquisa são oriundas de diferentes contextos, com idades distintas e com um tempo de atuação na docência bastante diverso. Neste texto, a fim de respeitar o sigilo, as mesmas foram nomeadas como: Professora C, Professora D, Professora E, estas com cinco, 18 e 24 anos de experiência no magistério/docência respectivamente; casadas, mas apenas duas (Professoras D e E) relataram ter filhos. As Professoras D e E iniciaram a docência no contexto de ensino médio, vindo atuar no ensino fundamental há cerca de um (D) e dez anos (E). Já a Professora C iniciou sua profissão docente no contexto de ensino técnico, adentrando ao contexto de ensino fundamental há cerca de dois anos. Todas atuam nos anos finais do ensino fundamental, sendo que uma delas (Professora E) também leciona em turmas dos anos iniciais.

Inicialmente foi proposta a realização de seis encontros, no entanto, pela pouca disponibilidade de horários no calendário escolar, foram realizados apenas quatro encontros, o que se fez sentir na pesquisa como pouco tempo para alcançar com maior amplitude os objetivos da mesma. No primeiro encontro foi exposto o teor da pesquisa e se propôs que pudessem partilhar suas opiniões, anseios, ideias sobre o que fosse levantado para refletir. A partir de então, cada encontro (as propostas interventivas, ou questões problematizadoras) era resultado de algo já despertado/criado/recriado pelas professoras em encontros anteriores. O uso da arte (pintura, desenhos, escrita, colagem) também foi um meio utilizado para que pudessem expor suas percepções acerca do que estava sendo discutido.

A proposta para cada encontro era seguir o caminho das articulações que forjavam a criação de novos modos de pensar e agir. Neste sentido, partia da pesquisadora um posicionamento flexível (Dias, 2015Dias, R. (2015). Pesquisa-intervenção e formação inventiva de professores.Revista Polis e Psique, 5(2), 193-209. https://doi.org/10.22456/2238-152X.53949
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) a fim de que pudesse atentar às formulações e problematizações que surgiam em meio aos discursos. Portanto, não havia nada pré-determinado em si, apenas proposições que eram aceitas ou não pelas integrantes do grupo.

O processo de análise dos dados construídos foi acontecendo desde o primeiro momento de contato com as professoras. As expressões, narrativas, opiniões e discussões empreendidas a cada encontro foram sendo registradas em um diário de campo como forma também de refletir sobre as diferentes dimensões e percepções dadas por elas ao que era discutido no momento. Com base no material registrado no diário de campo, buscou-se neste trabalho destacar os eixos de discussão maiormente expresso pelas professoras. Como fruto das discussões empreendidas em cada encontro revelaram-se, por exemplo, a importância do social, do coletivo, na construção e exercício da docência.

Cabe esclarecer que, por se tratar de uma pesquisa com seres humanos, foram utilizados os preceitos éticos descritos na Resolução nº 510 (2016) do Conselho Nacional de Saúde, assegurando às participantes tanto o sigilo como a liberdade para participar, recusar ou desistir deste estudo a qualquer momento. Esta pesquisa foi apreciada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sendo aprovada sob o parecer - CAAE nº 19445319.4.0000.5306.

Resultados e discussão

O ato de escutar/ouvir é um dos sentidos mais comuns a muitos seres vivos. Entretanto, no ser humano, ele vem carregado por uma gama de significados e impressões. Para ouvir é necessário oferecer-se para isso, por atenção, dispor o corpo, a presença a um outro que fala e que deseja ser ouvido. A docência é uma profissão de muito falar e os/as professores/as compartilham seus saberes e conhecimentos àqueles/as que estão dispostos a ouvir. Nesta direção, Nóvoa (2006Nóvoa, A. (2006). Nota de apresentação. In V. F. Oliveira (Org.), Narrativas e saberes docentes(pp. 9-16). Ijuí, RS: Ed. Unijuí., p. 14) expressa que

[...] os professores não são anjos, nem demônios. São apenas pessoas. E já não é pouco. Não são super-homens, nem supermulheres. São profissionais que se dedicam a uma missão para a qual têm que se preparar devidamente, para a qual têm que encontrar os apoios, nomeadamente nas escolas e junto dos colegas, que lhes permitam uma acção serena e qualificada.

Portanto, os/as professores/as são sujeitos subjetivados/as em uma complexa malha de relações e modelizações e precisam ser ouvidos/as, pois a prática profissional destes é sempre complexa e intensificada por conflitos, multiplicidades e incertezas (Figueiredo, 2017Figueiredo, G. (2017). Traçados nômades da pedagogia: do ofício do pedagogo e das imagens indenitárias da profissão na contemporaneidade(3a ed.). Curitiba, PR: Appris.).

Os encontros realizados com as professoras envolvidas nesta pesquisa foram tecidos em meio a relatos, às reflexões, às afetações, às linhas que se revelaram como potencial transformador. As informações mais proeminentes nos encontros estão abaixo relacionadas em dois pontos: primeiramente traçando a linha de que a docência é uma profissão que se constrói no social, para em um segundo momento compreender também que a docência é uma profissão que se exerce no coletivo.

A docência como profissão construída no social

A docência, no transcurso da história, tem sido uma atividade/profissão muito atrelada a interesses externos ao/à próprio/a professor/a (Limachi & Zucolotto, 2020Limachi, E. K. U., & Zucolotto, M. P. R. (2020). A construção da subjetividade do/a professor/a: Implicações no ser docente na atualidade. Research, Society and Development, 9(2). http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v9i2.1927
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). Despontou, inicialmente, como uma profissão com certo status, mas seu caminho foi e ainda é permeado com contínuos embaraços e descasos por parte tanto de seus agenciadores como da sociedade em si. Barretto (2015Barretto, E. S. S. (2015). Políticas de formação docente para a educação básica no Brasil: Embates contemporâneos.Revista Brasileira de Educação, 20(62), 679-701.) faz uma pesquisa sobre a formação de professores ao longo da história e registra que, mesmo diante de alguns investimentos governamentais na educação e na formação de educadores, ainda se contempla a precarização da profissão.

Para se compreender a construção do ser professor/a hoje na escola também se faz necessário entender que o trabalho é uma experiência fundante na constituição psíquica do sujeito; sendo este (o trabalho) uma prática que pode tanto enriquecer como adoecer. O/a professor/a não surge de imediato (ou no momento em que é contratado/a) no ambiente escolar; a imagem que se tem acerca do/a professor/a, ou do que é ser professor/a, se constrói ao longo da história de vida de cada um/a (Oliveira, 2006Oliveira, V. F. (Org). (2006). Narrativas e saberes docentes. Ijuí, RS: Ed. Unijuí.).

Isto se observou nas narrativas compartilhadas pelas professoras em um dos encontros. A Professora D reporta a imagem de um professor em sua infância, que era “[...] incansável em sua prática diária. Um professor dedicado que puxava os alunos para estudar e aprender, não dando folga para brincadeiras”. A Professora E comenta do prazer que sentia de brincar de ser professora, quando era muito pequena. Nesse caso, ela tinha a mãe, tias e tios que eram professores/as, os/as quais lhe presentearam com uma lousa pequena que usava para brincar, tendo suas bonecas como alunas. Esse prazer foi se perdendo ao longo dos anos, mas ressurgiu quando começou a lecionar para os anos iniciais do ensino fundamental. Já a Professora C motiva-se para docência no momento em que se depara fazendo uma pós-graduação em educação, embora desde muito pequena estivesse envolvida com o ato de ensinar, seja em família ou entre os/as amigos/as.

Os relatos compartilhados expressam com clareza que suas práticas e formas de pensar são resultados de interações em uma determinada cultura, que perpetua valores, crenças e artefatos em sociedade (Guattari & Rolnik, 2013Guattari, F., & Rolnik, S. (2013). Micropolítica: cartografias do desejo (2a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.). A isto reconhecemos como processos de subjetivação, em que o sujeito se constitui com base em uma rede de relações que compõe um tecido social (Limachi & Zucolotto, 2020Limachi, E. K. U., & Zucolotto, M. P. R. (2020). A construção da subjetividade do/a professor/a: Implicações no ser docente na atualidade. Research, Society and Development, 9(2). http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v9i2.1927
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). Como professoras, as práticas discursivas produzidas no social contribuíram na construção identitária da própria profissão, delimitando valores e condutas.

A discursividade presente nas narrativas das professoras durante os encontros (e também nos intervalos de trabalho) revelaram uma existência moldada nos padrões desta rede ampla e heterogênea (Rolnik, 2016Rolnik, S. (2016). Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo (2a ed.). Porto Alegre, RS: Sulina.). Uma rede que não é fechada em si mesma, mas tecida com base nas relações, experiências vivenciadas nos encontros e desencontros da vida. A própria história de infância e escolarização destas professoras serviu de referência para construção de suas percepções do que é ser professora, bem como de práticas diárias como docente.

Também cabe considerar que o próprio ambiente escolar é constitutivo no processo de subjetivação deste/a docente. Como tal, Foucault (2013Foucault, M. (2013). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes.) reflete sobre o quanto a escola se torna um dispositivo de poder cuja missão é a de normatizar/padronizar comportamentos, docilizar os corpos, preparar o sujeito para o mundo do trabalho. Veiga-Neto (2016Veiga-Neto, A. (2016). Foucault & a educação (3a ed.). Belo horizonte, MG: Autêntica.) também registra a escola como centro gerador de um saber-poder e de subjetivação, pois neste espaço, discursos de fora são introjetados e repetidos continuamente resultando numa estereotipia e cristalizando modos de ser e fazer.

Quando Deleuze (2013Deleuze, G. (2013). Conversações (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Editora 34.) esboça a presença de uma sociedade do controle, os processos de subjetivação do sujeito começam a se dar por diferentes vetores, heterogêneos em si, os quais revelam uma fragilização das fronteiras, antes estáveis na Modernidade (como a religião, a família, as tradições...). Tal fragilização foi significando que a subjetividade contemporânea está atrelada à lógica consumista, manifestando-se de forma individualizada e serializada, permeada por relações assimétricas, denominada por ele como subjetividade capitalística (Deleuze & Guattari, 2012Deleuze, G. (2013). Conversações (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Editora 34.).

No contexto educacional-escolar o/a professor/a é subjetivado/a segundo as práticas discursivas presentes no que é ser/fazer escola. Práticas que se originam nos mais diversos lugares, desde políticas e pautas de um governo até na junção entre saberes acadêmicos e saberes locais (Guattari & Rolnik, 2013Guattari, F., & Rolnik, S. (2013). Micropolítica: cartografias do desejo (2a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.; Rolnik, 2016Rolnik, S. (2016). Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo (2a ed.). Porto Alegre, RS: Sulina.). O discurso expresso pelas professoras revelou um anseio por um tempo de ‘supostas seguranças’ em que “[...] o professor era mais valorizado e respeitado” (Professora D); ou quando havia “[...] mais controle e disciplina na escola” (Professora E). Um sofrimento docente se estabelece porque atualmente o meio e suas diferentes relações parecem estar em um contínuo processo de mudança, em que tudo parece ser imprevisível e incontrolável (Rolnik, 2016Rolnik, S. (2016). Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo (2a ed.). Porto Alegre, RS: Sulina.). Ficam evidenciadas as contrariedades presentes nos processos de subjetivação vivenciados por estas professoras, pois se formaram sob moldes de uma suposta estabilidade e depois, na atualidade, ‘foram lançadas’ em um mercado de trabalho totalmente instável e em constante mudança.

Gallo & Mendonça (2020Gallo, S., & Mendonça, S. (Orgs.). (2020). A escola: uma questão pública. São Paulo, SP: Parábola Editorial.) ressaltam que o mercado se tornou a referência para tudo na atualidade e, nesta direção, podemos pensar com Sacristán (2015Sacristán, J. G. (2015). Tendências investigativas na formação de professores. In S. G. Pimenta & E. Ghedin. Professor reflexivo no Brasil: Gênese e crítica de um conceito(6a ed., p. 81-87). São Paulo, SP: Cortez.) que a educação se tornou uma mercadoria a ser consumida ininterruptamente e o/a docente acaba realizando, cada vez mais, aquilo que o mercado exige. Este quadro revela que a educação e, por conseguinte, a escola estão sujeitas ao mercado capitalista e neoliberal de produção.

Este contexto tem gerado desmotivação nas professoras para com a carreira, e também ampliado o grau de desvalorização da profissão. A Professora D mencionou: “[...] não desejo que meus filhos sigam nessa profissão, pois não quero que passem trabalho”. Uma preocupação, desta mesma professora (D), se expõe na seguinte fala: “Como será o futuro do professor?”. Tais questionamentos e preocupações refletem certos tipos de processos de subjetivação aos quais cada professor/a está sujeito atualmente. Processos que vão amoldando certos tipos de comportamentos, como rigidez, apatia diante dos/as alunos/as, agressividade e, consequentemente, gerando formas de pensar descontextualizadas do ambiente de trabalho. Refletindo na direção do que representa a figura do/a professor/a na atualidade, Masschelein e Simons (2017Masschelein, J., & Simons, M. (2017). Em defesa da escola: uma questão pública (2a ed.). Belo Horizonte, MG: Autêntica.) comentam que este/a profissional ocupa um lugar de evidência e cheio de inadequações. Com seus diferentes modos de ser-fazer, torna-se também uma figura que desestabiliza a ordem, confrontando cotidianamente o status quo.

Cabe esclarecer então a importância que tem a multiplicidade e diversidade de relações que envolvem o sujeito, na constituição de si mesmo, como mencionam Guattari e Rolnik (2013Guattari, F., & Rolnik, S. (2013). Micropolítica: cartografias do desejo (2a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.), este ser humano é um ser/do social. Implicar-se nessa visão significa romper com o individualismo e avançar no fortalecimento das redes relacionais que envolvem e constroem os sujeitos. No contexto docente, implica fortalecer as relações presentes na escola e fora dela, permitindo que novos arranjos sociais se construam, colaborando para o surgimento de novos significados para uma profissão que sempre esteve, e sempre estará envolta em relações.

A docência como profissão exercida no coletivo

Durante os encontros realizados com as professoras, foram diversas as vezes em que mencionaram a satisfação por terem aquele momento e aquele espaço para refletir, conversar, compartilhar e, por que não, também relaxar. Em meio às reflexões quanto a esse espaço, alguns questionamentos se levantaram: De qual espaço, exatamente, se referem as professoras? Um espaço físico, determinado num tempo e lugar específicos? Ou seria um espaço caracterizado por um posicionamento, por relações? Foucault (2009Foucault, M. (2009). Outros espaços. In M. Foucault. Estética: literatura e pintura, música e cinema(Ditos e escritos, Vol. III, p. 411-422). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária.) refletiu acerca dessa questão articulando a ideia de que o sujeito é envolto por uma diversidade de espaços; desde espaços fixos, constituídos por relações mais ‘disciplinares, normalizadoras e de controle’, como também por espaços denominados por ele como heterotopias, ou seja, espaços reais que se contrapõem às utopias presentes na cultura.

Então... a que poderia referir, por exemplo a Professora D, ao reclamar/convocar a existência, um espaço para o/a professor/a na escola? Num primeiro momento, é evidente, pelo menos nesta escola, a carência de um espaço físico, para o qual os/as professores/as podem fugir e refugiar-se. Tal desejo de fuga ou refúgio parece ser um claro sintoma dos sofrimentos que envolvem a docência, a ponto de o/a professor/a não desejar estar mais nesse lugar.

Pereira (2017Pereira, M. R. (2017). De que hoje padecem os professores da Educação Básica?Educar em Revista, 64, 71-87. https://doi.org/10.1590/0104-4060.49815
https://doi.org/10.1590/0104-4060.49815...
) fala sobre a importância de um tempo e espaço para os/as professores/as conversarem com tranquilidade e também para ter um breve descanso das rotinas escolares. Este autor comenta que as relações entre os/as professores/as no contexto escolar encontram-se fragilizadas, o que pode resultar em adoecimento no trabalho. Tal adoecimento pode ser refletido no sentido de que a profissão docente parece haver sido confinada a um espaço restrito à sala de aula.

Uma consideração importante a se fazer antes de seguir em frente. Durante todo o percurso até aqui empreendido, por vezes se retomou a expressão ‘encontro’. Compreende-se que os encontros não são apenas uma junção de sujeitos que (talvez) pensem da mesma forma, ou então um embate de pessoas com suas opiniões distintas, ou mesmo uma convergência de ideias e ideais daqueles/as que se reúnem. Encontros são, simultaneamente, todo esse conjunto que já foi exposto, uma diversidade de relações e opiniões que fazem emergir um potencial de construção e transformação. Rolnik (2016Rolnik, S. (2016). Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo (2a ed.). Porto Alegre, RS: Sulina.) comenta que nos encontros os corpos se atraem e se repelem e este movimento revela seu poder de afetar e serem afetados. Isto significa que a cada encontro do grupo entre as professoras uma diversidade de afetações ocorria, em que as opiniões de uma reverberavam em outra que, consequentemente, afetavam as demais do grupo. Algumas vezes divergências ocorriam, como quando a Professora D referiu-se ao professor de hoje como um coitado, o que mobilizou a Professora C a imediatamente dizer: “Eu não me considero uma coitada! Pelo contrário, me considero uma guerreira!”. Em seguida, a Professora E comenta também sua concordância com a colega de que, atualmente, é preciso ser valente para ser professora/a. Observa-se que nesse encontro suscitaram forças que pareciam opor-se entre si, no entanto resultaram em forças geradoras de novos laços que foram capazes de desterritorializar, possibilitando a “[...] criação de espaços em movimentos e afecções que nos deixam à deriva” (Silva, Macedo, Barros & Vilhena, 2012Silva, A. F., Macedo, B. S. R., Barros, J. G. R., & Vilhena, V. (2012). Encontros e conversas sobre estética, experiência e amizade. In R. O. Dias(Org.), Formação inventiva de professores (p. 113-129). Rio de Janeiro, RJ: Lamparina., p. 114).

No decorrer dos encontros de grupo com as professoras buscou-se promover a possibilidade de se construir um novo espaço. Um espaço-tempo também real e localizável em que poderiam expressar opiniões e ideias, compartilhar sentimentos e sensações/impressões, ou então tentar construir novas relações fortalecendo assim a teia relacional na escola. É preciso recordar a processualidade da condição humana, ou seja, o ser humano é subjetivado em meio às práticas coletivas, institucionais e sociais (Figueiredo, 2017Figueiredo, G. (2017). Traçados nômades da pedagogia: do ofício do pedagogo e das imagens indenitárias da profissão na contemporaneidade(3a ed.). Curitiba, PR: Appris.), portanto, atentar para este espaço construído no coletivo possibilita que emerjam novos significados para docência, para o/a próprio/a docente.

O espaço aberto para os encontros entre as professoras possibilitou que um sentimento e/ou sensação viesse à tona durante as vivências no grupo - a solidão. Segundo elas, com frequência precisavam resolver, sozinhas, conflitos que extrapolavam a sala de aula, não contando com o auxílio de outras instâncias do ambiente escolar, o que acabava gerando cansaço e desânimo no cotidiano da prática docente. Oliveira (2006Oliveira, V. F. (Org). (2006). Narrativas e saberes docentes. Ijuí, RS: Ed. Unijuí., p. 172), em seus estudos, evidencia que o ofício docente geralmente é exercido de “[...] forma isolada, sem nenhuma partilha, com muito pouca vivência solidária”. Por essa razão, pode-se perceber que conversar umas com as outras, repartir os temores e angústias, ouvir as alegrias e tristezas das colegas durante os encontros serviram como gatilhos motivadores para trabalharem juntas e reconhecerem o potencial umas das outras. Em um destes momentos, a Professora C voltou-se para a colega (Professora E) e comentou que, apesar de muitos a chamarem de “[...] dura, reclamona e chata” (como ela mesma tinha mencionado em um dos encontros), ela conseguia perceber que também havia nela (Professora E), sensibilidade e afeição. Este momento despertou muitas emoções entre elas, o que repercutiu nos encontros seguintes, gerando maior respeito e preocupação umas com as outras.

Enxergar a possibilidade de novos sentimentos, sensações e perspectivas para a própria atuação profissional pode ser considerada uma forma de escape à essa lógica adoecedora que envolve a profissão docente. A imanência de outra ‘linha de fuga’ observou-se na fala da Professora C recusando-se em aceitar a ideia de ser uma coitada por ser professora, revelando com isso sua recusa em entregar-se aos rótulos que a profissão docente recebe atualmente (e que elas mesmas mencionaram) como difícil, desvalorizada, solitária, angustiante, dentre outros.

“Como seria lindo o professor ter um espaço/lugar para relaxar, compartilhar! Creio que todo professor deveria ter um tempo como esse [...] a gente não se cuida [...] ou não é cuidada desse jeito” (Professora D). Tal expressão também mobilizou reflexões nos encontros de grupo. Em cada um destes, as professoras buscavam uma a outra para não se atrasarem. Tal comportamento parece revelar a ânsia por um tempo e espaço para conviver de forma mais estreita e reflexiva. Os encontros foram considerados como formas de cuidado entre elas. A Professora C lembrou-se de outra colega que não pode participar daqueles momentos e comentou que compartilharia com ela as experiências vivenciadas naquele tempo e espaço.

Esta perspectiva de autocuidado desencadeou a proposta de realizarem-se mais encontros entre eles/as, mesmo em grupos pequenos, em distintos momentos do ano letivo. A ideia parece haver despertado o desejo de vivenciar outras experiências como docente, compartilhando, ouvindo/sendo ouvidas pelos seus/suas colegas para assim, talvez, tentar minimizar a sensação de solidão que tem angustiado alguns/mas destes/as. Nóvoa (2009Nóvoa, A. (2009). Professores: imagens do futuro presente. Lisboa, PT: EDUCA.) corrobora, salientando a importância de se gerarem espaços de solidariedade desde a formação do professor, pois “[...] ser professor é compreender os sentidos da instituição escolar, integrar-se numa profissão, aprender com os colegas mais experientes. É na escola e no diálogo com os outros professores que se aprende a profissão” (Nóvoa, 2009Nóvoa, A. (2009). Professores: imagens do futuro presente. Lisboa, PT: EDUCA., p. 30).

Em uma cultura individualizada, as responsabilizações e culpabilizações recaem sobre um sujeito excluído do seu contexto social, solicitações por um espaço-tempo de convivência e reflexão, sinalizam a importância de se proporcionar momentos para conviver, dialogar, refletir. Tais encontros abrem portas para romper com a cultura individualizante presente na contemporaneidade e estreita as relações fortalecendo as redes de interações que constituem a subjetividade de todo ser humano.

Considerações finais

Sustentando o caráter processual do mundo e das relações que nele se estabelecem e acreditando no potencial de mutabilidade do sujeito nos processos de subjetivação contemporâneos, não se pode acatar a uma forma de existência estagnada, sem perspectivas de quaisquer mudanças. Embora a sociedade de controle se apresente no contemporâneo social como volátil e inconstante e condicione os sujeitos a agirem e pensarem de forma individualizante e solitária, importa que se promovam escapes, linhas de fuga, que mesmo sendo invisíveis, possam ser potentes geradoras de novas formas de pensar e agir (Guattari & Rolnik, 2013Guattari, F., & Rolnik, S. (2013). Micropolítica: cartografias do desejo (2a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.).

Nos encontros de grupo entre as professoras, algumas tênues linhas puderam ser vislumbradas. O discurso de sofrimento, descaso acerca da profissão evidenciaram-se como ‘linhas duras’ de uma realidade que parece estar fadada ao caos, sem perspectiva de mudança, como as linhas do plano molar5 5 Rolnik (2016) explana esse conceito como sendo linhas que se configuram de forma clara, limitada e definidora dos territórios, em que a consciência comanda os afetos, compondo um plano de alguma forma estável e rígido. , bem explicitadas por Rolnik (2016Rolnik, S. (2016). Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo (2a ed.). Porto Alegre, RS: Sulina.). Os discursos quanto ao que é ser professor/a ainda parecem estar circunscritos à uma noção de competências necessárias (como inteligência, comprometimento, responsabilidade), havendo muitas limitações para se recriar novas modalidades de existência. Parece ser muito difícil pensar em outros significados do que é ‘ser’ professor/a, sendo muito mais simples e prático pensar em algo que ele/a precisa ‘ter’ para ser um bom/boa profissional da educação.

A realidade de sofrimento na docência se manifestou através das narrativas das professoras. Mas esse quadro já dado não precisa permanecer, é possível transformá-lo, encontrar outras saídas, repensar planos e assim recriar a própria existência como docente. Entretanto, ressignificar experiências é complexo e envolve uma disposição para desenvolver outro olhar sobre as circunstâncias ao redor. Para tanto é preciso observar os processos de re(criação) que despontam nos encontros e desencontros de vivências que se dão no coletivo.

Pensar e mobilizar-se em diferentes espaços do coletivo pode abrir oportunidades de resistência ao isolamento que tem se instaurado na profissão docente. Professores/as, mesmo em um ambiente propício à socialização e convivência têm se sentido cada vez mais sozinhos/as e distantes uns/umas dos/as outros/as. Justamente nesse ponto é que os encontros de grupo romperam com os muros de abandono e forjaram escapes, linhas de fuga que permitiram que vissem umas às outras, ouvissem umas às outras, afetando-se mutuamente. Por isso, a importância de todo o conjunto de relações se fortalecerem para que o/a professor/a possa construir uma nova existência. É preciso um trabalho não apenas de um setor da sociedade como, por exemplo, uma instância governamental, ou alguma organização fora do governo. Também não envolve apenas a boa vontade deste/a professor/a, envolve uma ação conjunta de todos/as que se importam com a educação e com aqueles/as que nela estão implicados/as. Para tanto, faz-se necessário um desacomodar-se, deixar-se envolver pela estranheza com o que está posto, resistir ao engessamento do social e, então, dispor-se a criar e recriar.

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    » https://doi.org/10.20396/rho.v18i4.8652472
  • 4
    Toma-se aqui como linhas de fuga a concepção de Deleuze e Guattari (2012), que sinalizam que o ser humano, bem como os grupos sociais são atravessados por basicamente três tipos de linhas: uma de segmentaridade mais dura, outra mais maleável e uma terceira que sinaliza ruptura/fuga. Estas últimas surgem em meio à inventividade criativa para contrapor uma máquina dominante que impede o fluxo das mudanças.
  • 5
    Rolnik (2016) explana esse conceito como sendo linhas que se configuram de forma clara, limitada e definidora dos territórios, em que a consciência comanda os afetos, compondo um plano de alguma forma estável e rígido.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Ago 2020
  • Aceito
    08 Nov 2021
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