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Cartas de política, cartas de fé: inserção social e vida religiosa entre 1960 e 1990

Letters of politics and faith: social insertion and religious life, 1960 - 1990

Lettres de politique et de foi: insertion sociale et vie religieuse entre 1960 et 1990

Resumos

O presente trabalho apresenta a relação entre política e religiosidade através de uma troca epistolar ocorrida no final da década de 1980. Estas cartas possibilitam perceber impasses dentro da Igreja Católica, os receios em relação à emergência da teologia da libertação e inúmeras divergências entre as formas possíveis de se experienciar a vida institucionalmente consagrada.

Cartas; Política; Religiosidade


The research presented here details the relationship between politics and religiosity by analyzing an exchange of letters which show impasses within the Catholic Church, fears in relation to the emergence of Liberation Theology and innumerable divergences between the possible forms of consecrated institutional life.

Letters; Politics; Religiosity


Ce travail présente les rapports entre politique et religiosité par le biais d'un échange épistolaire qui a eu lieu à la fin des années 1980. Ces lettres permettent de percevoir des impasses à l'intérieur de l'Eglise Catholique, les craintes ayant trait à l'émergence de la Teologia da Libertação (Théologie de la Libération) et d'innombrables divergences entre les formes possibles de faire usage de la vie institutionnellement consacrée.

Lettres; Politique; Religiosité


ARTIGOS

Cartas de política, cartas de fé: inserção social e vida religiosa entre 1960 e 1990

Letters of politics and faith: social insertion and religious life, 1960 - 1990

Lettres de politique et de foi: insertion sociale et vie religieuse entre 1960 et 1990

Caroline Jaques Cubas

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História pela UFSC. E-mail: caroljcubas@hotmail.com

RESUMO

O presente trabalho apresenta a relação entre política e religiosidade através de uma troca epistolar ocorrida no final da década de 1980. Estas cartas possibilitam perceber impasses dentro da Igreja Católica, os receios em relação à emergência da teologia da libertação e inúmeras divergências entre as formas possíveis de se experienciar a vida institucionalmente consagrada.

Palavras-chave: Cartas – Política – Religiosidade

ABSTRACT

The research presented here details the relationship between politics and religiosity by analyzing an exchange of letters which show impasses within the Catholic Church, fears in relation to the emergence of Liberation Theology and innumerable divergences between the possible forms of consecrated institutional life.

Keywords: Letters – Politics – Religiosity

RÉSUMÉ

Ce travail présente les rapports entre politique et religiosité par le biais d'un échange épistolaire qui a eu lieu à la fin des années 1980. Ces lettres permettent de percevoir des impasses à l'intérieur de l'Eglise Catholique, les craintes ayant trait à l'émergence de la Teologia da Libertação (Théologie de la Libération) et d'innombrables divergences entre les formes possibles de faire usage de la vie institutionnellement consacrée.

Mots- clés: Lettres – Politique – Religiosité

" Pelo jeito estás dentro de um inferninho, e isso não é lugar para ninguém" .1 1 Carta de Elizeu Bortolon para Onice Sansonowicz. Escrita em Nova Fátima, 16 de outubro de 1989. Acervo pessoal de Onice Sansonowicz, em posse da autora. Tais palavras iniciam o desfecho de uma troca epistolar que, durante um ano, alimentou as desilusões de dois jovens acerca da vivência institucional da religião. Onice Sansonowicz tinha menos de 20 anos quando, em 1986, ingressou na Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, no Rio Grande do Sul. Elizeu Bortolon, cerca de seis anos mais velho, era noviço capuchinho, também no Rio Grande do Sul. Conheceram-se em meio a trabalhos comunitários, na Pastoral da Juventude, onde estabeleceram laços de amizade e cumplicidade. Cumplicidade esta que se faz visível através da leitura de algumas das cartas que trocaram durante o ano de 1989. Cartas escritas por ele, especificamente. Através delas somos levados a uma experiência bastante singular, a experiência da vida consagrada à religião.

É algumas vezes bastante romântica a imagem que temos daqueles e daquelas que se dedicam à vida religiosa. Bucólicos campos ou claustrais construções configuram cenário perfeito para uma vida envolta em sensibilidade e mistério, retratada pelo cinema e pela literatura através de sinos, cantos incorpóreos, trabalhos, orações, vícios e virtudes. Tamanho romantismo contrasta, todavia, com o tom desencantado das cartas de Elizeu, nas quais o idealismo vai cedendo, aos poucos, lugar à decepção. São, ao todo, quatro cartas. Duas escritas em Hidrolândia, a 21 de março e 14 de abril de 1989, e duas em Nova Fátima, datadas de 28 de junho e 16 de outubro do mesmo ano. Todas manuscritas.

Acompanhar o desenvolvimento do diálogo entre Onice e Elizeu por meio das cartas por ele escritas possibilita-nos perceber o processo de desilusão de ambos em relação à vida religiosa e suas impossibilidades. Tais impossibilidades se referem às questões estruturais da Igreja enquanto instituição e, principalmente, à inserção social da vida religiosa. Apesar de não termos acesso às cartas escritas por Onice, as respostas de Elizeu são bastante taxativas e pontuais, explicitando, através de seus posicionamentos, as situações que a vinham atormentando. A primeira carta sinaliza a retomada de um diálogo. Elizeu admite as incoerências do que vem vivendo no recém-iniciado noviciado, porém transparece esperanças ao afirmar que tais incoerências acabam por ser " a cruz que cada um deve carregar" . Termina a correspondência em tom otimista, acreditando na vida religiosa e nas possibilidades de libertação por intermédio da mesma. Na segunda carta Elizeu responde, surpreendido, à demonstração de confiança de Onice, a qual cogita, pela primeira vez, abandonar a congregação. Elizeu pontua uma série de cuidados e precauções frente à idéia de fundação de uma comunidade alternativa, onde irmãos e irmãs poderiam viver o que chamavam de verdadeiro ideal cristão. Assume que se algum dia decidir abandonar a vida religiosa, seria essa a forma de vida por ele procurada, mas admite que ainda acredita no caráter transformador da vida atrelada a uma ordem religiosa, apesar das dificuldades emocionais e existenciais pelas quais admite estar passando. Dificuldades estas que vão ganhando proporções maiores no decorrer do ano e culminam com o abandono da ordem, descrito com pesar na última carta.

As cartas além da escrita

Trocar correspondências era, à época, uma das formas de sociabilidade recorrentes. Em um ambiente envolto em silêncios, como o quarto de jovens postulantes e/ou noviços, a escrita epistolar emergia como espaço do possível. Estas cartas permitem acesso a códigos, práticas e linguagens representativas de determinada época e do momento dentro do qual foram produzidas.2 2 Marlene de Fáveri, A cultura política através das práticas da escrita de correspondências em Santa Catarina, nos anos de 1937 a 1945. Pesquisa realizada com a participação das bolsistas Daisy Fernanda Alves Fernandes e Julia Scherer, Curso de História, UDESC/FAED, Programa PIBIC, 2004. As cartas de caráter pessoal, como as que foram descritas, são possibilidades de ingresso em um mundo de intimidades, descortinado pela análise das imagens e representações contidas ao longo da escrita. Segundo Maria Teresa Santos Cunha, " o ato de escrever cartas pessoais/íntimas consiste em confrontar-se com códigos estabelecidos e, a partir deles, inventar/construir um lugar para si, através das palavras" .3 3 Maria Teresa Santos Cunha, Destinos das letras: história, educação e escrita epistolar, Passo Fundo, UPF, 2002. Sendo assim, o lugar construído por Onice e Elizeu é aquele do embate, do questionamento, das dúvidas e da inconformação frente a uma instituição que não permitiria a explicitação de tais sentimentos. O papel e o destinatário das correspondências eram os únicos capazes de compreender a lógica da incoerência em não aceitar as estruturas de uma instituição da qual continuavam a fazer parte. O mesmo papel também não poderia emitir juízos de valores perante decisões como a de abandonar a congregação. O abandono, no entanto, não é o único assunto do qual trata o epistolário. Pode, talvez, ser interpretado como o apogeu do que é discorrido ao longo das quatro cartas, e uma leitura marcada pela fugacidade o elegeria como tema principal. Sabemos, porém, que, em se tratando de história, a linearidade não é cardinal e a narrativa não se encerra em seu fim.

As escrituras ordinárias, compreendidas como as práticas epistolares realizadas de forma corriqueira e despretensiosa, cuja intensão consiste no ato da troca e da informação e não na possibilidade de imortalização através de uma publicação impressa, ganhou relativa visibilidade, especialmente na última década do século XX, no fazer historiográfico.4 4 Importante referenciar, neste sentido, os trabalhos de Roger Chartier (1991), Jean Hébrard (1991), Daniel Fabre (1993) e Cecile Dauphin (1995) na França. Antonio Castillo Gómez (2001), Manuel Alberca (2000) e Antonio Frago (1999) na Espanha e no Brasil; os livros organizados por Walnice Nogueira Galvão e Nadia Batella Gotlib (2000), Ângela de Castro Gomes (2004), Ana Chrystina Venâncio Mignot, Maria Helena Câmara Bastos e Maria Teresa Santos Cunha (2000). Por meio das cartas e, para além de sua materialidade, do que nelas é explicitado nas palavras marcadas em tinta, práticas culturais as mais diversas são dadas a ver. São rearticulações e interpretações variadas daquilo que chamamos realidade. De acordo com Chartier, permitem analisar, enquanto práticas de escrita, a forma como " uma realidade é construída, pensada, dada a ler" .5 5 Roger Chartier, A história cultural: entre práticas e representações, Lisboa: Difel/ Bertrand Brasil, 1990, p. 16-17. Essa forma de compreender a realidade deve, no entanto, ser pormenorizada. Especialmente uma realidade lida através de cartas às quais produzem sentido para aquilo que estão narrando. A noção da existência de uma realidade una e apreensível não pode, portanto, ser vista como inerente à produção epistolar. As mesmas, para Maria Teresa Santos Cunha, " por não serem ficção, podem fornecer versões ficcionalizadas daquilo que querem dizer e, em seu rastreamento, pode vir à tona uma história de sujeitos se construindo e se inventando na e pela escrita" .6 6 Maria Teresa Santos Cunha, op. cit., p. 187.

As cartas contam o momento e as condições dentro das quais foram produzidas. Todavia, muito mais que trazer indícios de uma época e de culturas determinadas, elas possibilitam acesso a experiências subjetivas compartilhadas. No ato da escrita, o remetente se desnuda, projetando aflições e, ao mesmo tempo, esboça uma imagem do destinatário, possibilitando capturar, de acordo com Ana Chrystina Venâncio Mignot, a singularidade de uma vida ou o projeto de uma geração.7 7 Ana Chrystina Venâncio Mignot, " Artesãos da palavra: cartas a um prisioneiro político tecem redes de idéias e afetos" , Destinos das letras, Passo Fundo, UPF, 2002. A troca de correspondências, além de ser compreendida como registro de uma visão de mundo compartilhada, conforme pontuado por Marcos Cezar Freitas em estudo acerca de uma série de cartas pastorais da primeira metade do século XX,8 8 Marcos Cezar de Freitas, " Por quem os sinos dobram: as cartas pastorais e a contribuição da história da educação à história das mentalidades" , Destinos das letras, Passo Fundo, UPF, 2002. implica também uma visão de mundo auto-referenciada em outras visões. O ato de escrever cartas, de corresponder-se com alguém é uma forma de exposição, de firmar elos invisíveis e, quiçá, duradouros, respaldados pelas confidências e pelas experiências. Remetendo-nos novamente ao trabalho de Cunha, a carta " tanto fala de quem a escreve como revela sempre algo de quem a recebe.9 9 Maria Teresa Santos Cunha, op. cit., p. 184. Parafraseando expressão já tornada corriqueira, a carta é escrita de si. Reinvenção de si. Ao partilhar experiências, expõe-se aquilo que se deseja que o outro saiba, molda-se um eu ficcional. Esse eu ficcional é, indubitavemente, formado na e pela linguagem. Elizeu fala de si e, indiretamente, de Onice através de palavras compreendidas como signos. Admite seus medos e receios à medida que vai estabelecendo uma relação de confiança com ela. Escreve por se sentir seguro e encontra tal segurança na leitura da amiga que assume inquietações similares às suas. Permitem se conhecer e se revelar por meio de palavras cujos sentidos não são inerentes a elas mesmas. Aquilo que as palavras de Elizeu dizem tem historicidade. As experiências descritas através delas também.

Em que consiste pensar as experiências de Onice e Elizeu através das quatro cartas que, há pouco mais de três anos, não passavam de um amontoado de lembranças esquecidas? Pensar a experiência, a partir do lúcido e envolvente trabalho de Joan Scott, é interpretar interpretações.10 10 Joan Scott. " Experiência" , Falas de gênero: teorias, análises, leituras, Florianópolis, Editora Mulheres, 1999. A experiência não é considerada aqui como uma evidência, como o alicerce que fundamenta e legitima uma explicação. Vista dessa forma, ela apenas reproduz sistemas ideológicos estabelecidos e supõe que fatos falam por si. Do contrário, conforme as palavras de Scott, " precisamos dar conta dos processos históricos que, através do discurso, posicionam sujeitos e produzem suas experiências. Não são os indivíduos que têm experiência, mas os sujeitos é que são constituídos através da experiência" .11 11 Idem, p. 27.

Dessa forma, a experiência de Onice e Elizeu a partir do conjunto composto pelas quatro cartas é, ao invés de elemento que respalda e legitima explicações, aquilo que precisa ser explicado. Ambos escreviam em um ambiente de formação. Haviam optado pela vida religiosa e estavam sendo educados para ela. Suas opções refletiam um conjunto de crenças e desejos que começavam, aos poucos, a gerar problemas.12 12 Tais opções se referem à vida religiosa socialmente engajada, cujos ideais aproximam-se da Teologia da Libertação. Estes se configuravam enquanto tais na medida em que vinham de encontro à estrutura em que viviam Onice e Elizeu. Escrever cartas, neste contexto, implicava uma série de escolhas. O escritor se desvela e, para isso, seleciona aquilo que vai ser mostrado. Ressalta fatos em detrimento de outros. Ressaltar é omitir. As escolhas não são involuntárias. A forma como vão ser apresentadas também não. Conta-se através de palavras e estas têm sentidos. Sentidos que não são inerentes à existência das mesmas. As palavras, assim como a experiência, conforme dito anteriormente, têm historicidade. Segundo Scott, historicizamos a experiência ao historicizar os termos por meio dos quais ela é representada.

Dizem muito, neste sentido, as missivas de Elizeu endereçadas a Onice. Ora remetendo às questões íntimas e até mesmo psicológicas, ora demonstrando inconformação política em relação à Igreja e à ação social da mesma, ambas configuram-se como narrativas históricas. São produções discursivas que acabam por constituir versões sobre si, sobre o outro e sobre o momento que partilham, e não mero reflexo.13 13 Cf. Joan Scott, op. cit., p. 45.

Para compreender o desenvolvimento destas narrativas é necessário, em primeiro lugar, atentar à intensidade da amizade partilhada por nossos protagonistas. Tal intensidade não se faz perceptível apenas no uso do vocativo " querida" , bastante usual nesse tipo de correspondência, nem pelos beijos, abraços e afetos com os quais Elizeu costumava encerrar suas cartas, mas por meio do estabelecimento de um pacto epistolar, aos moldes do que é sugerido por Cécile Dauphin.14 14 Cecile Dauphin. " Por une historie de la correspondance familiale" , Romantisme, n. 90, 1995, apud Maria Teresa Santos Cunha, " Por hoje é só..." . Cartas entre amigas, Destinos das letras. História, educação e escrita epistolar, Passo Fundo, UPF, 2002. Tal pacto, baseado na confiança mútua, é discretamente combinado ao longo das cartas. Em diferentes passagens anunciam-se as confissões por vir e a justificativa para as mesmas é a intimidade, o grau da amizade. Ao reforçar a estima que sentiam um pelo outro e trocar confidências, davam lugar ao outro no mesmo momento em que se expunham. Nas cartas de Elizeu tal jogo é visível. Em relação ao posicionamento de Onice, podemos percebê-lo através das respostas de Elizeu.

Sinto-me até um pouco sem saber o que dizer diante de uma demonstração de confiança tão grande e com tanto sentimento. Realmente a amizade que nos une é fruto de amor, amor que o mesmo Cristo experimentou aqui na Terra. Nada de coisa de deuses ou santos. Mas de homens com limitações aos montes. Mas que conseguem amar e se deixar amar.15 15 Carta de Elizeu Bortolon para Onice Sansonowicz. Escrita em Hidrolândia, 14 de abril de 1989. Acervo pessoal de Onice Sansonowicz, em posse da autora.

A construção da confiança e, conseqüentemente, a ampliação da intimidade, explicitadas por meio da escrita, possibilitam a percepção do estabelecimento e o fortalecimento de laços de sociabilidades e de relações sociais e afetivas em um período específico. Estes se baseiam, por sua vez, em interesses e/ou ideais comuns. Neste sentido, é perceptível a mudança de Elizeu ao longo das cartas. A princípio, suas respostas soavam como conselhos e certezas. Ele, seguro em relação às suas opções, tentava confortar a amiga a partir da descrição das possibilidades que a vida religiosa apresentava. À medida que o diálogo discorre e o pacto é estabelecido, a força de Elizeu dá lugar aos seus medos e temores, os quais se apresentam surpreendentemente semelhantes aos de sua correspondente. Elizeu se mostra frágil.

Maria Teresa Santos Cunha, referindo-se a um conjunto de cartas trocadas entre amigas, ressalta que as mesmas, através da escrita, " iam esquadrinhando dispositivos que acabavam por produzir e alimentar sensibilidades, moldar afetos e inteligências e, notadamente, escrever um tempo" .16 16 Maria Teresa Santos Cunha, op. cit., p. 187. Elizeu, em suas respostas a Onice, faz o mesmo. Na citação anterior, além de ressaltar o quão prezada é a relação de amizade/cumplicidade partilhada, Elizeu apresenta um escopo, indícios do que acredita ser o ideal de vida religiosa. Ao falar do amor que os une como o mesmo experimentado por Cristo na Terra, sendo que este em nada se aproxima " de coisas de deuses ou santos, mas de homens com limitações aos montes" , ele se situa (e ao falar a partir de uma relação, situa, dessa forma, sua consorte) dentro de um projeto institucional para a vida religiosa. Projeto este anunciado na constituição dogmática Lumen Gentium, elaborada nas aulas conciliares realizadas durante o Concílio Vaticano II.17 17 Lumen Gentium: constituição dogmática sobre a Igreja, Frei Frederico Vier (coord. geral), Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos e declarações, Petrópolis, Vozes, 1987. O Concílio e a Constituição serão discutidos adiante. Importante salientar, no momento, a emergência do conceito de Povo de Deus, a fim de compreender como alguns dos posicionamentos explicitados por Elizeu no conjunto das cartas são coerentes em momentos e divergentes em outros com as determinações institucionais da Igreja Católica.

O segundo capítulo da Lumen Gentium, constituição dogmática sobre a Igreja, versa sobre o conceito de Povo de Deus. " Todos os homens são chamados a pertencer ao novo Povo de Deus" .18 18 Idem, p. 53. Este axioma, repetido algumas vezes ao longo da constituição, é representativo na nova autocompreensão de Igreja que estava sendo institucionalizada através da elaboração e divulgação dos documentos conciliares. A Igreja, ao apresentar-se como possibilidade única de salvação,19 19 Orientação assumida pela instituição desde seus primórdios. admitia e convocava agora os leigos à participação efetiva neste processo, por intermédio da prática da evangelização. Dessa forma, tornava-se mais próxima dos fiéis, ao mesmo tempo em que reificava sua importância perante estes fiéis como único instrumento salvífico.

Todos os homens, pois, são chamados a esta católica unidade do Povo de Deus, que prefigura e promove a paz universal. A ela pertencem ou são ordenados de modos diversos quer os fiéis católicos, quer os outros crentes em Cristo, quer enfim todos os homens em geral, chamados à salvação pela graça de Deus.20 20 Idem, p. 55.

Este Povo de Deus passa a integrar-se à Igreja de forma diferenciada. Luiz Roberto Benedetti sinaliza esta diferença ao constatar que as mudanças engendradas pelo Vaticano II foram de ordem estratégica. A postura fundamental da Igreja perante a sociedade continuava a mesma. Mantinha-se como a mediadora entre o povo e Deus, era a Luz dos Povos, conforme o título que denomina a Constituição Dogmática cujo tema é a Igreja.21 21 Lumen Gentium: do latim, Luz dos Povos. No entanto, ao longo de sua tese de doutoramento acerca da articulação do campo religioso católico no Brasil, Benedetti afirma que a postura da Igreja frente à sociedade " não é mais a de proteger seus filhos do mundo, mas a de lançá-los ao mundo, enfrentar os valores do mundo. Formar cristãos convictos, cristãos que escolham a crença em meio a opções ideológicas diversas e conflitantes" .22 22 Luiz Roberto Benedetti, Templo, praça, coração: a articulação do campo religioso católico, São Paulo, Humanitas/FFLCH/ USP, 2000, p. 64.

Ao longo da Lumen Gentium, existem diversas passagens ressaltando a importância do sacerdócio ministerial ou hierárquico e do sacerdócio comum, dos fiéis. Estes últimos responderiam ao " chamado evangelizador" através da recepção dos sacramentos, da oração, da ação de graças e do testemunho de uma vida santa, de abnegação e caridade ativa.23 23 Cf. Lumen Gentium, op. cit., p. 50 Neste sentido, encontramos várias referências ao papel dos leigos no decorrer dos documentos e mesmo após o encerramento das reuniões conciliares. A título de exemplo, podemos citar o trabalho do militante e autodenominado auditor conciliar Henri Rollet. Lançado dois anos após o encerramento do Concílio Vaticano II, Os leigos após o Concílio disserta sobre a necessidade de restauração da consciência cristã com a elaboração de um programa de vida apostólica direcionado aos leigos. Este programa, apresentado como um elemento formativo de personalidade, aborda desde questões litúrgicas até políticas, como a necessidade de uma visão social acerca da propriedade privada ou a promoção da paz.24 24 Henri Rollet, Os leigos após o concílio, Rio de Janeiro, Agir, 1967. Tais posicionamentos tomam por base os próprios documentos conciliares, uma vez que estes também estabelecem definições de papel para os leigos. Aos leigos é dedicado o quarto capítulo da constituição dogmática Lumen Gentium, a qual é bastante explícita quando expõe o que chama de " vida salvífica e apostólica dos leigos" .

O apostolado dos leigos é participação na própria missão salvífica da Igreja (...). Os leigos, porém, são especialmente chamados para tornarem a Igreja presente e operosa naqueles lugares e circunstâncias onde apenas através deles ela pode chegar como sal da terra.25 25 Cf. Lumen Gentium, op. cit., p. 79.

A ação evangelizadora dos leigos, segundo a constituição dogmática, deveria acontecer, portanto, através da execução de tarefas temporais. Dava-se pelo exemplo e pelo testemunho de uma vida em coerência com os postulados da Igreja Católica. Para tanto, não se tratava de um empoderamento dos leigos, que a partir de um momento determinado estariam autorizados a falar em nome da Igreja, mas de um longo e pormenorizado processo de formação. Esta formação continuava a acontecer dentro de institutos específicos como conventos, seminários e/ou colégios religiosos, onde atuavam sacerdotes ordenados, padres e freiras. No entanto, a partir de agora, transcendia seus muros. Os leigos, que, nos termos da constituição, deveriam ser para o mundo o que a alma é para o corpo,26 26 Idem, p. 85. deveriam atender ao chamado da Igreja e disseminar o modo de vida e a verdade instituída pela mesma por meio do exercício e da função específica que ocupavam dentro do Povo de Deus.

Os cônjuges cristãos, enfim, pela virtude do sacramento do matrimônio, pelo qual significam e participam do mistério de unidade e fecundo amor entre Cristo e a Igreja, ajudam-se a santificar-se um ao outro na vida conjugal bem como na aceitação e educação dos filhos e têm para isso, no seu estado e função, um dom especial dentro do Povo de Deus. Deste consórcio procede a família, onde nascem os novos cidadãos da sociedade humana, que pela graça do Espírito Santo se tornam filhos de Deus pelo batismo, para que o Povo de Deus se perpetue no decurso dos tempos. É necessário que nesta espécie de Igreja doméstica os pais sejam para os filhos pela palavra e pelo exemplo os primeiros mestres da fé.27 27 Idem, p. 52.

Uma vez que a responsabilidade pela disseminação da fé católica não estava restrita apenas a sacerdotes, uma série de regras morais foram instituídas e direcionadas aos leigos. A santidade e a perfeição eram um convite e, acima de tudo, obrigação de cada fiel, e deveriam ser buscadas através de uma vida exemplar, onde os afetos eram regulados para que não impedissem a busca de uma experiência de caridade e pobreza evangélica, a qual poderia encontrar na sedução exercida pelas coisas mundanas um sério empecilho.28 28 Cf. Lumen Gentium, p. 92.

Com o objetivo de formar e disseminar formadores para compor o Povo de Deus, o Concílio publicou documentos específicos: O decreto Apostolicam Actuositatem, cujo objetivo apresentado na introdução do documento é a intensificação da atividade apostólica do Povo de Deus, direciona-se exclusivamente ao apostolado dos leigos, instituindo os fundamentos e os campos de atuação em comunidades da Igreja, na família, entre os jovens, no ambiente social, em esfera nacional e internacional. Tal decreto normatiza as possibilidades de atuação dos leigos em modalidades distintas, em grupos e associações ou individualmente. Seja qual for a modalidade escolhida, o documento ressalta a necessidade de relações entre o apostolados leigo e a hierarquia, a qual deve reger de forma conveniente as iniciativas do apostolado. Estabelece também os critérios para a adequada formação do apostolado leigo. Neste sentido, afirma a necessidade de formação contínua e integral, fundamentada no que fora afirmado e declarado pelos documentos resultantes do Sacrossanto Concílio. Para o cumprimento desta formação respaldada nos valores cristãos, o documento estabelece responsabilidades àqueles que chama de " formadores de apóstolos" . Em primeiro lugar ressalta a importância de uma educação cristã desde a infância, delegando responsabilidades aos pais, entre os quais o amor de e a Deus deve ser ensinado sobretudo através do exemplo. A família configura-se, portanto, como um estágio para o apostolado. A mesma responsabilidade é atribuída às comunidades locais, sejam elas eclesiásticas ou não. É ressaltada ainda a imprescindível presença das escolas, colégios e instituições católicas neste processo formativo, estimulando o senso católico e a ação apostólica. O trabalho dos professores e educadores que atuem em coerência com os princípios cristãos é considerado forma superior de apostolado leigo. Além destas instituições, grupos e associações de leigos também constituem espaços de formação. Ao longo destas etapas, é indicada a manutenção de contato com participantes de outros credos, na tentativa de manifestar a mensagem de Cristo, a vida evangélica em contraposição a qualquer espécie de materialismo e o exercício do bem comum, das obras de caridade e misericórdia em conformidade com os princípios da doutrina moral e social da Igreja. Entre os meios a serem empregados ao longo deste, são elencados encontros, reuniões, conferências, organizações, congressos, retiros espirituais, centros e institutos superiores nos quais não se privilegie o estudo apenas da teologia, mas também da antropologia, psicologia, sociologia, metodologia em que os talentos dos leigos sejam estimulados em favor de todos os campos de apostolado.29 29 Apostolicam Actuositatem: decreto sobre o apostolado dos leigos, Frei Frederico Vier (coord. geral), Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos e declarações, Petrópolis, Vozes, 1987.

Em conformidade com o que fora decretado em Apostolicam Actuositatem, a declaração Gravissimum Educationis estabelece os princípios fundamentais que devem reger a educação cristã. Ainda que a tarefa de ministrar educação seja delegada primordialmente aos pais e à família, a declaração outorga responsabilidades à Igreja, a qual assume, além do papel de transmitir educação, o anúncio de um caminho de salvação. Mesmo assumindo os direitos e deveres dos pais, a declaração ressalta a importância da escola, das universidades e associações interescolares católicas no processo formativo do apostolado leigo no sentido de que, por intermédio da prática pedagógica e do estudo das ciências, não promovam " apenas a renovação interna da Igreja, mas conservem e dilatem sua benéfica presença sobretudo no mundo intelectual moderno" .30 30 Gravissimum Educationis: declaração sobre a educação cristã. Idem, p. 596.

Além destes, o decreto Presbyterorum Ordinis, sobre o ministério e a vida dos presbíteros, define o papel dos mesmos dentro da Igreja, no governo do Povo de Deus, e explicita as exigências da vocação sacerdotal em sua relação com o mundo material e espiritual, ressaltando a importância do exercício da humildade, obediência, castidade, celibato e pobreza.31 31 Presbyterorum Ordinis: decreto sobre o ministério e a vida dos presbíteros. O decreto Perfectae Caritatis, sobre a atualização dos religiosos, se propõe a tratar da vida e disciplina nos institutos religiosos, em que os membros professam votos de castidade, obediência e humildade, aferindo e reafirmando a necessidade deles segundo as exigências dos tempos atuais.32 32 Perfectae Caritatis: decreto sobre a atualização dos religiosos. Idem. E o decreto Optatam Totius, sobre a formação sacerdotal, institui normas para a organização de seminários e reestrutura do currículo e dos conteúdos necessários para a formação espiritual.33 33 Optatam Totius: decreto sobre a formação sacerdotal. Idem.

O Concílio, de forma geral, teve entre suas principais ocupações pensar sobre a própria Igreja, no que, para os conciliares, dizia respeito à sua natureza, estrutura, vocação ecumênica, atividade apostólica e missionária. A Igreja como instituição sentia necessidade de definir seu lugar em um contexto dentro do qual ela, em suas antigas estruturas, não mais se adequava. Dar aos leigos a possibilidade da santidade através do exercício da vocação missionária era assumir que todos os cristãos são iguais, distinguindo-se apenas pelos seus ministérios, pela forma – atrelada ou não à instituição – de " servirem a Deus" . No entanto, segundo o teólogo José Comblin, " esse reconhecimento do papel ativo dos leigos não foi seguido de mudanças estruturais" .34 34 José Comblin, " As sete palavras chaves do Concílio Vaticano II" , Vaticano II 40 anos depois, São Paulo, Paulus, 2005. O teólogo afirma existirem evidentes contradições entre as afirmações teóricas do Concílio e a prática instituída. Contradições perceptíveis na experiência de Elizeu e Onice quando estes deparam-se com uma série de entraves ao tentar viver efetivamente entre os que passaram a ser considerados como Povo de Deus.

De qualquer forma, a fala de Elizeu, neste momento, remete a uma coerência. Ao falar que o amor que fundamenta a amizade foi similar ao experimentado por Jesus e que este, por sua vez, não é " coisa de santos ou de deuses, mas de homens com limitações" , busca posicionar-se, como religioso, em um nível horizontalmente igualitário em relação aos leigos. Dissimula a hierarquia ao afirmar que homens (leigos) com limitações e religiosos estão aptos a, de forma idêntica, experimentar o amor vivido por Jesus. Curioso perceber que, mesmo sendo as cartas escritas em 1989, Elizeu se posiciona na correspondência como se sua postura fosse de encontro às estruturas da Igreja e não corroborasse ou fosse corroborada por documentos eclesiásticos. A Lumen Gentium, conforme dito antes, ainda que atribuísse à igreja o papel de Luz dos Povos, instituiu o exercício do sacerdócio aos leigos, atribuindo a todo o Povo de Deus a vocação à santidade e o exercício evangelizador. Vale lembrar que o Concílio Vaticano II, nesta época, já havia completado seu vigésimo quarto aniversário. Teríamos aí um indicativo do que foi afirmado por Comblin, quanto às contradições existentes entre as afirmações teóricas do Concílio e a aplicabilidade das mesmas? Em outras passagens do epistolário Elizeu explicita a existência das contradições. Na primeira carta, ao demonstrar entusiasmo pela retomada do diálogo e admitir que passasse por situação idêntica à de Onice, abrandando dessa forma as sensações de tempo e distância que os separavam (apesar de não nomear a situação), Elizeu pontua a existência de " uma incoerência, um contratestemunho, uma falta de vergonha na cara" .35 35 Carta de Elizeu Bortolon para Onice Sansonowicz. Escrita em Hidrolândia, 21 de março de 1989. Acervo pessoal de Onice Sansonowicz, em posse da autora.

A inconformação perante a constatação da existência desses elementos no seminário e nas casas de formação das congregações às quais ambos pertenciam e a forma como o diálogo entre ele e Onice vai se estabelecendo acerca desse tema demonstra que partilhavam de um pressuposto, de uma preconcepção do que seria ideal e coerente para a vida religiosa. Esse pressuposto vai sendo explicitado no discorrer das correspondências, levando-nos a perceber que, para os dois, a vida religiosa estava intimamente ligada às idéias de inserção e mudança social. O ideal de vida religiosa anacoreta não os servia. Era, na verdade, a negação daquilo no qual acreditavam. Eis porque Elizeu mostra-se condoído perante as revelações de sua colega. A frase " elas querem fazer a cabeça de vocês" é imediatamente anterior a " hoje a realidade das religiosas é de verdadeira transformação" . A seqüência da carta é uma apresentação de dados positivando a experiência da vida religiosa feminina e a enumeração de possibilidades as quais Onice poderia seguir caso viesse realmente a abandonar a congregação. Todas as possibilidades por Elizeu elencadas referiam-se, de alguma forma, à noção de inserção social, de comprometimento com a igreja latino-americana oprimida. O ideal, para os dois, era a mudança.

Já na primeira carta, visivelmente engajada às idéias da teologia da libertação, Elizeu dá indícios das verdades que, para ele, norteiam o que deveria ser a vida religiosa:

A gente aproveita o momento e vai lançando as bases cristãs que nada mais é que uma revolução social. (...) Que sua vida seja marcada por esse constante confronto com os problemas e de insatisfação com o que é medíocre e fácil. (Vamos) espalhar as sementes, as idéias novas, os desafios de um modo novo de viver a vida religiosa.36 36 Idem, ibidem.

Tais posicionamentos são mantidos e intensificam-se no discorrer do epistolário. Elizeu inventa-se através das cartas. Personifica, por meio de palavras, seus próprios ideais. Tudo aquilo que está à mostra, que está desvelado é coerente com o que acredita ser o verdadeiro testemunho de vida evangélica. Mesmo quando essas verdades vão contra as determinações da própria Igreja, a estrutura é incoerente. Ele, não.

Ao pensarmos as cartas a partir da chave de problematização da experiência, somos levados, conforme dito anteriormente, a pensar acerca dos termos através dos quais os indivíduos pensam sobre si mesmos. Nesse sentido, tentamos efetivamente definir as condições nas quais o ser humano problematiza o que ele é, e o mundo no qual vive. Tal objetivo nos remete às perspectivas foucaultinas a respeito da genealogia e da história, em que as diversas histórias estão suscetíveis a diferentes interpretações e, portanto, deve-se fazer com que pareçam como eventos no palco do processo histórico.37 37 Alfredo Veiga-Neto, Foucault e a educação, Belo Horizonte, Autêntica, 2003. Pois bem, sendo as cartas percebidas como um evento, nosso papel é, portanto, interpretá-las. Interpretá-las não buscando uma verdade velada, mas admitindo que, nesse caso, interpretaremos interpretações. Foucault problematiza a questão da interpretação propondo um diálogo entre Freud, Nietzsche e Marx a respeito da mesma. Apesar de divergentes em vários aspectos, Foucault constata que suas apreciações convergem para a concepção da interpretação como um ato inacabado. Para tanto, recorre a Nietzsche para afirmar que a própria linguagem pode ser compreendida como interpretações; afinal criam-se símbolos para representar a interpretação de determinados sentidos. Emerge, neste momento, a figura do intérprete, uma vez que, para Nietzsche, não existem significados originais. As palavras foram criadas para representar não um significado, mas uma interpretação. O intérprete acaba sendo o verídico. Sendo os símbolos como interpretações que se justificam, eles não precedem a interpretação. A interpretação na obrigação de interpretar-se será sempre a interpretação de alguém. O princípio da interpretação será sempre o intérprete.38 38 Michel Foucault, Nietzsche, Freud e Marx, São Paulo, Landy, 2005.

Aqui Elizeu é nosso intérprete. Ao narrar sua experiência através das cartas, elege signos que representam e recriam um momento. A preocupação que norteia o presente trabalho não é justificar os posicionamentos de Elizeu, ou tomá-los por falsos ou verdadeiros. Antes, somos seduzidos a devassar seus escritos no intuito de compreender o que possibilitou a existência dos mesmos. Como, e por quê, em determinado momento, Elizeu pode falar de si (e do momento) a partir dos pressupostos dos quais falou? Para tanto é importante destacar que Elizeu e sua experiência são únicos. A forma como fala de si e dos conflitos que vivencia é íntima e subjetiva. Isso não significa, porém, que pensar a história a partir de experiências individuais é restringi-la ao indivíduo ou condená-la ao frívolo relativismo. Elizeu é único, não isolado. As experiências que narra e interpreta não se deram no vácuo atemporal, mas em sociedade.

As relações entre indivíduo e sociedade há muito figuram entre as mais recorrentes preocupações das ciências humanas, em especial da sociologia, antropologia e história. No ano de 1939, Norbert Elias em um artigo chamado " A sociedade dos Indivíduos" – artigo de abertura do livro homônimo, cuja primeira edição no Brasil data de 1987 – preocupa-se em compreender a relação da pessoa singular dentro de uma pluralidade de pessoas a partir do estudo perspicaz dos diferentes sentidos atribuídos aos termos " indivíduo" e " sociedade" . Tais preocupações continuaram norteando seus trabalhos, levando-o, em 1987, a afirmar que " a relação da identidade-eu com a identidade nós do indivíduo não se estabelece de uma vez por todas, mas está sujeita a transformações muito específicas" .39 39 Norbert Elias, A sociedade dos indivíduos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994, p. 9. Além disso, constatou também que questões referentes à relação entre o indivíduo e a sociedade permaneceriam inacessíveis caso se continuasse a conceber a pessoa como um eu desprovido de nós. Para tanto, ressalta a importância de se pensar o indivíduo e as relações sociais como processos compreensíveis através de sua historicidade. Segundo Elias, " a individualidade que o ser humano acaba por desenvolver não depende apenas de sua constituição natural, mas de todo o processo de individualização" .40 40 Idem, p 28. Tal processo se dá, portanto, na relação estabelecida com outrem. Nas aproximações e diferenciações. Nas (in)definições identitárias perceptíveis através das palavras de Elizeu. Palavras que, ao falar do outro, falam de si. Palavras de embate e sensibilidade, de sensibilidade embativa.

Pensar na sensibilidade não como algo individual, mas coletivo e compartilhado, foi o convite feito por Alcides F. Ramos ao explanar acerca da questão da historicização das sensibilidades.41 41 Reflexão referente às anotações feitas da comunicação de Alcides F. Ramos na mesa-redonda: Imagens de sensibilidades: razões e sentimentos, ocorrida em 20/09/2006, entre as atividades promovidas pelo III Simpósio Nacional de História Cultural. O trabalho do historiador consistiria em buscar os registros desses sentimentos partilhados, e as cartas, nesse sentido, poderiam ser encaradas como bom exemplo desses registros. Sensibilidade, segundo Ramos, é termo bastante abrangente, cujo significado pode oscilar entre a paixão, o encanto e o ódio. Na década de 1960, por exemplo, constata a existência de uma sensibilidade revolucionária, caracterizada por uma paixão política partilhada. Esta se referia a uma espécie de crítica aos valores burgueses, anunciada em diferentes narrativas, como os filmes de Glauber Rocha, canções engajadas ou músicas de protesto e a literatura.42 42 Alcides F. Ramos é professor na Universidade Federal de Uberlândia. Ao falar sobre a percepção de uma sensibilidade revolucionária na década de 1960, remeteu-se aos filmes de Glauber Rocha, em especial " Terra em Transe" . Na música podemos nos referir, por exemplo, ao movimento da tropicália e, na literatura, entre ouros, aos trabalhos de crônica jornalística, como as de Rubem Braga e a produção de Ferreira Gullar.

Ao ponderar sobre a trajetória de setores da intelectualidade brasileira reconhecida como " de esquerda" , a partir dos anos 1960, Marcelo Ridenti apropria-se do conceito de romantismo revolucionário, formulado por Michael Lowy e Robert Sayre em 1995. De acordo com Lowy, o Romantismo, muito além de uma escola literária, caracteriza-se como um movimento cultural que emergiu em fins do século XVIII como forma de protesto ao advento da moderna sociedade capitalista, industrial e burguesa, " fundamentada na racionalidade burocrática, na reificação mercantil, na quantificação da vida social e no desencantamento do mundo" .43 43 Michael Lowy. " Mística revolucionária: José Carlos Mariátegui e a religião", Estudos Avançados, vol. 19, n. 55, São Paulo, set/dez 2005. Respaldado por este conceito, Ridenti corrobora a perspectiva de que o Romantismo é uma visão social de mundo, uma reação contra o modo de vida na sociedade capitalista e uma crítica à modernidade. O Romantismo, em última instância, valoriza o indivíduo e a comunidade na qual este indivíduo está inserido, vista como um conjunto orgânico, vocacionado para a realização de uma utopia histórica. Para Ridenti, mais uma vez, era um marxismo romântico revolucionário que dava o tom das revoluções ocorridas (no Brasil e em outros países caracterizados como de Terceiro Mundo) a partir da década de 1960.

Mesmo assumindo minha predileção teórica ao adotar a percepção de uma sensibilidade revolucionária ao invés do conceito de romantismo revolucionário (uma vez que, assim como Marcos Napolitano, tendo a perceber a arte – manifestação mais visível desta sensibilidade – engajada relacionada aos fenômenos da modernidade e das tensões advindas da mesma e não como manifestação de um romantismo revolucionário, o qual seria " eco tardio dos valores utópicos e anticapitalistas do século XIX" ),44 44 Marcos Napolitano, "Em busca do tempo perdido: utopia revolucionária e cultura engajada no Brasil", Revista de Sociologia Política, n. 16, Curitiba, jun. 2001. creio ser importante pontuar que, modelando tal romantismo, na década de 1960, Ridenti elenca elementos similares àqueles pontuados por Ramos.

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), de Glauber Rocha, Arena contra Zumbi (1965), de Boal e Guarnieri, Ganga Zumba (1963), de Carlos Diegues, e Quarup (1967), de Antônio Callado, trazem, entre seus personagens, exemplos do ideal de homem novo, nos termos de Marx e Che Guevera, o qual encontrava suas referências no mundo rural e no interior, onde a modernidade urbana, a desumanização e o consumismo ainda não haviam atingido.45 45 Marcelo Ridenti, "Intelectuais e Romantismo Revolucionário", São Paulo em Perspectiva, 15 (2), 2001. Neste sentido, Ridenti elenca entre as características dos movimentos libertários dos anos 1960 elementos como:

Ascensão da ética da revolta e da revolução, busca do alargamento dos sistemas de participação política, cada vez mais desacreditados, simpatia pelas propostas alternativas do marxismo soviético, negação da sociedade de consumo, aproximação entre a arte e a política, ânsia de libertação pessoal das estruturas do sistema, mudanças comportamentais e etc.46 46 Idem, p. 14.

A eclosão da ditadura militar no Brasil, em 1964, coibiu através da coerção física e psicológica movimentos e manifestações de libertação. A partir dos anos 1970, concomitantemente à censura e à repressão política, evidenciou-se o ímpeto modernizador que a ditadura vinha demonstrando desde a década de 1960, nas áreas de comunicação e cultura, incentivando o desenvolvimento capitalista privado e atuando diretamente por intermédio do Estado. Frente a este quadro, era inegável a crescente necessidade de uma renovação dos parâmetros da esquerda, em busca de revalorização da democracia, da individualidade, das liberdades civis, dos movimentos populares espontâneos, da cidadania, da resistência à opressão, das lutas de minorias etc. Na esfera política foi criado o Partido dos Trabalhadores (PT), respaldado pelas Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica, inspiradas na teologia da libertação, pelo Novo Sindicalismo, liderado pelos metalúrgicos do ABC paulista e pela participação de intelectuais e remanescentes de organizações políticas marxistas-leninistas. Já nos anos 1980, após a reformulação partidária brasileira, o fim da ditadura militar, os debates sobre as experiências dos movimentos ditos de esquerda,47 47 Inúmeros intelectuais, ao longo da década de 1980, buscaram compreender dilemas que circundavam a esquerda brasileira. Entre eles: Carlos Nelson Coutinho, Francisco Weffort, Maria Victoria Benevides, Marco Aurélio Garcia, Daniel Araão Reis, Zilda Iokoi e Eder Sader. entre outros aspectos, ganhavam projeção as correntes que buscavam contato imediato com a realidade das vidas cotidianas.48 48 Cf. Marcelo Ridenti, op. cit., p. 16.

As estruturas da Igreja Católica não ficavam à parte nestas discussões de cunho político-social. Vale referenciar a participação essencial das CEBs na articulação do PT e ainda os debates e as preocupações que nortearam as Conferências Episcopais Latino-Americanas de Medellin e Puebla e mesmo a emergência da Teologia da Libertação. Apenas a título de ilustração, uma vez que estas temáticas serão desenvolvidas ao longo do segundo capítulo, vale referenciar o livro Igreja: carisma e poder, de Leonardo Boff, seminal para o desenvolvimento da teologia da libertação no Brasil. Se observarmos apenas o sumário do livro, encontraremos referências às problemáticas concernentes aos debates político-sociais dos quais tratávamos há pouco. A existência de capítulos denominados: " A Igreja e a luta pela justiça e pelo direito dos pobres" (III), " A questão da violação dos direitos humanos dentro da igreja" (IV) e " Características da Igreja numa sociedade de classes" (VIII) é, neste sentido, bastante significativa.

Tais preocupações fizeram-se presentes, sem exceção, nas quatro cartas escritas por Elizeu. Prolóquios como " Quem fala de liberdade sem vivê-la no cotidiano fala com um cadáver entre os dentes" , de Roberto Freire, ou " Lidar com dinamite é perigoso, São Francisco é um dinamite" , de J. Lortz, são representativas do que Elizeu pensava que a vida religiosa deveria ser. Além dos prolóquios, encontramos ao longo das cartas várias passagens aproximando a vivência institucional da religião à idéia de transformação, de conflito e de revolução, seja no sentido literário, seja no figurado:

A gente aproveita os momentos e vai lançando as bases cristãs, que nada mais é que uma revolução social. (...) vamos confiar em quem está do nosso lado. (...) A libertação começa por nós. (Primeira Carta)

É na crise que surgem pessoas como você, Onice, que se dispõe a ser ponta de lança. (Segunda Carta)

Nunca sentimos tanto a falta de um amigo, um companheiro de luta. (...) buscando viver o testemunho evangélico na luta, no conflito, que gera partilha de vida. (...) E o jogo que se faz dentro das congregações é violento. O interesse ideológico de justificação da situação de padres e freiras que estão no poder é tremendo. (Terceira Carta)

Primeiramente eu brigava, criticava a muitos, via os defeitos dos outros, depois comecei a discutir diretamente com os causadores dos problemas. (...)

Precisamos rezar muito, nos entregar nas mãos de Deus a fim de nos fazer instrumentos de transformação desse mundo. (Quarta Carta)

Além das cartas, a sensibilidade revolucionária que perpassava a experiência de Onice (e, indiretamente, a de Elizeu) pode ser percebida também através de seu caderno de anotações pessoais. Este caderno, gentilmente cedido por nossa " protagonista" , traz anotações referentes aos cursos, retiros e aulas a que assistia em seus anos de formação. Deter-nos-emos, por um momento, nas mensagens que são transmitidas por este caderno enquanto objeto material e, portanto, visual.

As ilustrações que ornamentam o caderno de Onice compõem o que, certamente, pode ser lido como uma narrativa visual. As imagens, assim como qualquer texto, devem ser interpretadas. Não são, em absoluto, reproduções fiéis e imparciais de um momento, mas significam o que se quer dizer daquele momento. As gravuras, arbitrariamente selecionadas e dispostas, possibilitam-nos acesso à visão de Onice acerca do mundo social que ela compartilhava, que experienciava. Ao dissertar sobre o estudo da história tomando imagens como evidências, Peter Burke alerta para o fato de que as imagens

não são nem um reflexo da realidade social nem um sistema de signos sem relação com a realidade social, mas ocupam uma variedade de posições entre esses extremos. Elas são testemunhas de estereótipos, mas também de mudanças graduais, pelas quais os indivíduos ou os grupos vêem o mundo social, incluindo o mundo de sua imaginação.49 49 Peter Burke, Testemunha ocular, Bauru, Edusc, 2004, p. 232.

As imagens, além de registros ou evidências materiais de um momento, são também dinâmicas, atuando e reconstruindo significados para esse momento. Segundo Ulpiano Meneses, a mesma imagem pode assumir diferentes papéis, pode ressemantizar-se e produzir efeitos diversos. Isso porque elas não têm um sentido imanente. " É a interação social que produz sentidos, mobilizando diferencialmente determinados atributos para dar existência social a sentidos e valores e fazê-los atuar." 50 50 Ulpiano T. Bezerra Meneses, "Fontes Visuais, Cultura Visual, História Visual: balanço provisório, propostas cautelares", Revista Brasileira de História, v. 23, n. 45, São Paulo, julho de 2003.

Dessa forma, o caderno de Onice é uma versão de suas verdades. Tais verdades estão visivelmente imersas na/da sensibilidade revolucionária da qual falávamos anteriormente. Ao iniciar pela capa, impossível não fazer referência ao vermelho. Ainda que tenha sido uma escolha despropositada, ao acaso ou intencional (fato que jamais saberemos), não é imprudente lembrar que tal cor acarreta uma série de representações. Vermelho comunista, vermelho petista, vermelho paixão. Ainda que sejam três predicados bastante delicados, sobre os quais poderíamos discorrer demoradamente, é inegável que durante o diálogo travado ao longo das missivas encontramos elementos de todos eles permeando os receios e as inconformações. Mesmo que a opção pelo vermelho tenha sido involuntária ou absolutamente estética (descartando aqui o quão política a estética pode ser), não podemos nos permitir esquecer que se trata de uma cor-símbolo, sobre a qual serão construídas representações e identificações. Identificações essas potencializadas pelo teor dos adesivos brancos que dividem espaço com o vermelho da capa. Ao iniciar pelo canto inferior esquerdo, o primeiro adesivo que nos chama atenção faz referência às ações da Pastoral da Juventude do Rio Grade do Sul. Tal adesivo, alusivo à comemoração do Dia Nacional da Juventude (em 2 de outubro), traz estampada uma bandeira vermelha (simbólica, conforme dito há pouco) e expressões referentes às lutas de minorias, tais como " Libertação nas lutas do povo" , " Ouvi o clamor do meu povo" (referenciando o versículo 7 do terceiro capítulo Êxodo) e palavras de ordem como " eleições" , " mulher" , " negro" e " índio" . As ilustrações acompanham as palavras, trazendo em primeiro plano as imagens de uma mulher, um índio e um homem e, em segundo, uma multidão agitando cartazes e flâmulas, nas quais estão inscritas as palavras (Figura 1).


O segundo adesivo, no canto superior direito, refere-se a preocupações similares. A máxima " Deus me ama, chama, envia" ladeia uma cruz e a representação dos mesmos grupos ressaltados na gravura anterior. Mulheres, índios, negros, jovens ou adultos aparecem envolvidos pelo abraço de uma religiosa também caracterizável como afro-descendente. Tais representações vêm imediatamente ao encontro das reivindicações dos novos movimentos sindicais e populares, surgidos em fins dos anos 1970. Reinaldo Fleuri aponta o Brasil como um dos países que apresenta o maior número de movimentos sociais, entre os quais os de luta pela terra e reforma agrária, pela habitação, dos negros, dos índios, das mulheres, movimentos ecológicos e cooperativos, de meninos e meninas de rua, de saúde, movimentos comunitários de bairros, de produção e consumo, e tantos outros. Afirma também que diversas conquistas sociais e políticas foram resultado desta multifacetada mobilização popular, como a anistia dos exilados políticos em 1979, a reforma dos partidos políticos, a institucionalização das organizações sindicais e populares, a reforma constitucional de 1988, a eleição direta para presidente da República e aí por diante.51 51 Cf. "Educação intercultural: desafios emergentes na perspectiva dos movimentos sociais", in Fleuri, Reinaldo Matias, Intercultura e movimentos sociais, Florianópolis, 1998. Onice, Elizeu e vários setores da Igreja não estavam alheios a estas preocupações. Vale lembrar aqui que os adesivos que ornamentam o caderno são institucionais, sendo que o primeiro é da Pastoral da Juventude, e o segundo traz em letras quase microscópicas a inscrição " Setor vocacional – região Sul 3" , referindo-se à regional da CNBB localizada no Rio Grande do Sul.

Novos indicativos da vinculação ou propensão de Onice às questões sociais fazem-se presentes também na contracapa e folha de rosto do caderno (Figura 2).


Ocupando totalmente a contracapa, temos a imagem de duas crianças segurando talheres e pratos de lata. Colada sobre a gravura, podemos observar a frase " Queremos viver" . A folha de rosto apresenta-se igualmente militante. Duas frases manuscritas: " São tão fortes as coisas, mas eu não sou as coisas e me revolto" e " Nós não fazemos revolução, nós somos a própria revolução" dividem espaço com um pequeno recorte da imagem de Karl Marx acompanhado da máxima " a história de toda sociedade até hoje tem sido a história da luta de classe" .

A narrativa construída a partir destas frases e imagens apresenta posicionamentos, crenças e desejos. Pode ser interpretada como um registro e manifestação de subjetividade. Subjetividade que, segundo Guattari, não se situa no campo individual, mas em todos os processos de produção social e material. Sendo, portanto, essencialmente social, ela é assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares.

O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade.52 52 Felix Guattari, Sueli Rolnik, Micropolítica: cartografias do desejo, Petrópolis, Vozes, 1986, p. 33.

Sendo assim, manifestações individuais de subjetividades, como as observáveis através do caderno e do diálogo travado ao longo das cartas, podem ser compreendidas como " resultado de um entrecruzamento de determinações coletivas de várias espécies, não só sociais, mas econômicas, tecnológicas, de mídia, etc." .53 53 Idem, p.34. Admitindo, portanto, que as relações de produção econômica e de produção subjetiva não se contrapõe, os afrontamentos sociais são compreendidos não apenas através da ordem econômica, mas também a partir das diversas maneiras pelas quais os indivíduos e grupos entendem viver sua existência.54 54 Cf. Guattari, op. cit., p. 45.

Onice e Elizeu trocavam cartas. Através delas, assumem a inconformação perante a estrutura da Igreja quando percebem que esta mesma estrutura impedi-los-ia a vivência daquilo que acreditavam ser o ideal da vida institucionalmente atrelada à religião. Esta posição de afrontamento, no entanto, não era específica dos dois e transcendia os problemas referentes a uma única instituição. Esta experiência partilhada pode ser compreendida como composta e componente da sensibilidade revolucionária da qual falávamos anteriormente. Sensibilidade esta que conformava subjetividades e permitia a exposição (parcial, em alguns casos) da mesma.

Onice e Elizeu trocavam cartas. Suas cartas, enquanto locais de memória, remetem-nos a sentimentos e ressentimentos. Estes elementos, por sua vez, trazem como questão central as relações entre os afetos e o político, entre os sujeitos em suas afetividades e em suas práticas sociais e políticas. A percepção desses ressentimentos leva-nos a enfatizar não apenas os sentimentos e afetos de indivíduos, mas também as representações, crenças e discursos que presumimos desempenhar papel relevante na formatação dos ressentimentos. Atentando aos mesmos, percebemos, implicitamente, definições de bom e mau, do bem e do mal. De acordo com Pierre Ansart, " os ressentimentos, os sentimentos compartilhados de hostilidade, são um fator eminente de cumplicidade e solidariedade no interior de um grupo, e suas expressões, as manifestações podem ser gratificantes" .55 55 Pierre Ansart, "História e Memória dos Ressentimentos", Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível, Campinas, Editora da Unicamp, 2001, p. 21. Uma vez que um sentimento como o da liberdade tolhida é partilhado, aqueles que sofrem a privação assumem, em um jogo maniqueísta, o papel de inocentes em detrimento das forças nefastas que impuseram a situação, sendo, portanto, hostis. A metáfora " pelo jeito estás em um inferninho e isso não é lugar para ninguém" não nasceu do acaso.

Onice e Elizeu trocavam cartas. Inventavam-se através delas ao mesmo tempo em que recriavam o mundo dentro do qual viviam. Ângela de Castro Gomes afirma que

a correspondência tem um destinatário específico com quem se vai estabelecer relações. Ela implica uma interlocução, uma troca, um jogo interativo entre quem escreve e quem lê – sujeitos que se revezam, ocupando os mesmos papéis através do tempo.56 56 Ângela de Castro Gomes, "Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo", Escrita de si, escrita da História, Rio de Janeiro, FGV, 2004.

Tal como a relação estabelecida entre nossos protagonistas, a reciprocidade de angústias garantia a mútua confiança nas confidências acerca do mundo que estavam partilhando. Mundos similares no que diz respeito ao desencanto e à desilusão. Um mundo que decidiram, por fim, abandonar.

Artigo recebido em julho de 2007 e aprovado para publicação em setembro de 2007.

  • 2 Marlene de Fáveri, A cultura política através das práticas da escrita de correspondências em Santa Catarina, nos anos de 1937 a 1945. Pesquisa realizada com a participação das bolsistas Daisy Fernanda Alves Fernandes e Julia Scherer, Curso de História, UDESC/FAED, Programa PIBIC, 2004.
  • 3 Maria Teresa Santos Cunha, Destinos das letras: história, educação e escrita epistolar, Passo Fundo, UPF, 2002.
  • 5 Roger Chartier, A história cultural: entre práticas e representações, Lisboa: Difel/ Bertrand Brasil, 1990, p. 16-17.
  • 7 Ana Chrystina Venâncio Mignot, " Artesãos da palavra: cartas a um prisioneiro político tecem redes de idéias e afetos" , Destinos das letras, Passo Fundo, UPF, 2002.
  • 8 Marcos Cezar de Freitas, " Por quem os sinos dobram: as cartas pastorais e a contribuição da história da educação à história das mentalidades" , Destinos das letras, Passo Fundo, UPF, 2002.
  • 10 Joan Scott. " Experiência" , Falas de gênero: teorias, análises, leituras, Florianópolis, Editora Mulheres, 1999.
  • 14 Cecile Dauphin. " Por une historie de la correspondance familiale" , Romantisme, n. 90, 1995,
  • apud Maria Teresa Santos Cunha, " Por hoje é só..." . Cartas entre amigas, Destinos das letras. História, educação e escrita epistolar, Passo Fundo, UPF, 2002.
  • 17 Lumen Gentium: constituição dogmática sobre a Igreja, Frei Frederico Vier (coord. geral), Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos e declarações, Petrópolis, Vozes, 1987.
  • 22 Luiz Roberto Benedetti, Templo, praça, coração: a articulação do campo religioso católico, São Paulo, Humanitas/FFLCH/ USP, 2000, p. 64.
  • 24 Henri Rollet, Os leigos após o concílio, Rio de Janeiro, Agir, 1967.
  • 29Apostolicam Actuositatem: decreto sobre o apostolado dos leigos, Frei Frederico Vier (coord. geral), Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos e declarações, Petrópolis, Vozes, 1987.
  • 34 José Comblin, " As sete palavras chaves do Concílio Vaticano II" , Vaticano II 40 anos depois, São Paulo, Paulus, 2005.
  • 37 Alfredo Veiga-Neto, Foucault e a educação, Belo Horizonte, Autêntica, 2003.
  • 38 Michel Foucault, Nietzsche, Freud e Marx, São Paulo, Landy, 2005.
  • 39 Norbert Elias, A sociedade dos indivíduos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994, p. 9.
  • 43 Michael Lowy. " Mística revolucionária: José Carlos Mariátegui e a religião", Estudos Avançados, vol. 19, n. 55, São Paulo, set/dez 2005.
  • 44 Marcos Napolitano, "Em busca do tempo perdido: utopia revolucionária e cultura engajada no Brasil", Revista de Sociologia Política, n. 16, Curitiba, jun. 2001.
  • 45 Marcelo Ridenti, "Intelectuais e Romantismo Revolucionário", São Paulo em Perspectiva, 15 (2), 2001.
  • 49 Peter Burke, Testemunha ocular, Bauru, Edusc, 2004, p. 232.
  • 50 Ulpiano T. Bezerra Meneses, "Fontes Visuais, Cultura Visual, História Visual: balanço provisório, propostas cautelares", Revista Brasileira de História, v. 23, n. 45, São Paulo, julho de 2003.
  • 52 Felix Guattari, Sueli Rolnik, Micropolítica: cartografias do desejo, Petrópolis, Vozes, 1986, p. 33.
  • 55 Pierre Ansart, "História e Memória dos Ressentimentos", Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível, Campinas, Editora da Unicamp, 2001, p. 21.
  • 56 Ângela de Castro Gomes, "Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo", Escrita de si, escrita da História, Rio de Janeiro, FGV, 2004.
  • 1
    Carta de Elizeu Bortolon para Onice Sansonowicz. Escrita em Nova Fátima, 16 de outubro de 1989. Acervo pessoal de Onice Sansonowicz, em posse da autora.
  • 2
    Marlene de Fáveri, A cultura política através das práticas da escrita de correspondências em Santa Catarina, nos anos de 1937 a 1945. Pesquisa realizada com a participação das bolsistas Daisy Fernanda Alves Fernandes e Julia Scherer,
    Curso de História, UDESC/FAED, Programa PIBIC, 2004.
  • 3
    Maria Teresa Santos Cunha,
    Destinos das letras: história, educação e escrita epistolar, Passo Fundo, UPF, 2002.
  • 4
    Importante referenciar, neste sentido, os trabalhos de Roger Chartier (1991), Jean Hébrard (1991), Daniel Fabre (1993) e Cecile Dauphin (1995) na França. Antonio Castillo Gómez (2001), Manuel Alberca (2000) e Antonio Frago (1999) na Espanha e no Brasil; os livros organizados por Walnice Nogueira Galvão e Nadia Batella Gotlib (2000), Ângela de Castro Gomes (2004), Ana Chrystina Venâncio Mignot, Maria Helena Câmara Bastos e Maria Teresa Santos Cunha (2000).
  • 5
    Roger Chartier,
    A história cultural: entre práticas e representações, Lisboa: Difel/ Bertrand Brasil, 1990, p. 16-17.
  • 6
    Maria Teresa Santos Cunha, op. cit., p. 187.
  • 7
    Ana Chrystina Venâncio Mignot, " Artesãos da palavra: cartas a um prisioneiro político tecem redes de idéias e afetos" ,
    Destinos das letras, Passo Fundo, UPF, 2002.
  • 8
    Marcos Cezar de Freitas, " Por quem os sinos dobram: as cartas pastorais e a contribuição da história da educação à história das mentalidades" ,
    Destinos das letras, Passo Fundo, UPF, 2002.
  • 9
    Maria Teresa Santos Cunha, op. cit., p. 184.
  • 10
    Joan Scott. " Experiência" ,
    Falas de gênero: teorias, análises, leituras, Florianópolis, Editora Mulheres, 1999.
  • 11
    Idem, p. 27.
  • 12
    Tais opções se referem à vida religiosa socialmente engajada, cujos ideais aproximam-se da Teologia da Libertação.
  • 13
    Cf. Joan Scott, op. cit., p. 45.
  • 14
    Cecile Dauphin. " Por une historie de la correspondance familiale" ,
    Romantisme, n. 90, 1995, apud Maria Teresa Santos Cunha, " Por hoje é só..." . Cartas entre amigas,
    Destinos das letras. História, educação e escrita epistolar, Passo Fundo, UPF, 2002.
  • 15
    Carta de Elizeu Bortolon para Onice Sansonowicz. Escrita em Hidrolândia, 14 de abril de 1989. Acervo pessoal de Onice Sansonowicz, em posse da autora.
  • 16
    Maria Teresa Santos Cunha, op. cit., p. 187.
  • 17
    Lumen Gentium: constituição dogmática sobre a Igreja, Frei Frederico Vier (coord. geral),
    Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos e declarações, Petrópolis, Vozes, 1987.
  • 18
    Idem, p. 53.
  • 19
    Orientação assumida pela instituição desde seus primórdios.
  • 20
    Idem, p. 55.
  • 21
    Lumen Gentium: do latim, Luz dos Povos.
  • 22
    Luiz Roberto Benedetti,
    Templo, praça, coração: a articulação do campo religioso católico, São Paulo, Humanitas/FFLCH/ USP, 2000, p. 64.
  • 23
    Cf.
    Lumen Gentium, op. cit., p. 50
  • 24
    Henri Rollet,
    Os leigos após o concílio, Rio de Janeiro, Agir, 1967.
  • 25
    Cf.
    Lumen Gentium, op. cit., p. 79.
  • 26
    Idem, p. 85.
  • 27
    Idem, p. 52.
  • 28
    Cf.
    Lumen Gentium, p. 92.
  • 29
    Apostolicam Actuositatem: decreto sobre o apostolado dos leigos, Frei Frederico Vier (coord. geral),
    Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos e declarações, Petrópolis, Vozes, 1987.
  • 30
    Gravissimum Educationis: declaração sobre a educação cristã. Idem, p. 596.
  • 31
    Presbyterorum Ordinis: decreto sobre o ministério e a vida dos presbíteros.
  • 32
    Perfectae Caritatis: decreto sobre a atualização dos religiosos. Idem.
  • 33
    Optatam Totius: decreto sobre a formação sacerdotal. Idem.
  • 34
    José Comblin, " As sete palavras chaves do Concílio Vaticano II" ,
    Vaticano II 40 anos depois, São Paulo, Paulus, 2005.
  • 35
    Carta de Elizeu Bortolon para Onice Sansonowicz. Escrita em Hidrolândia, 21 de março de 1989. Acervo pessoal de Onice Sansonowicz, em posse da autora.
  • 36
    Idem, ibidem.
  • 37
    Alfredo Veiga-Neto,
    Foucault e a educação, Belo Horizonte, Autêntica, 2003.
  • 38
    Michel Foucault,
    Nietzsche, Freud e Marx, São Paulo, Landy, 2005.
  • 39
    Norbert Elias,
    A sociedade dos indivíduos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994, p. 9.
  • 40
    Idem, p 28.
  • 41
    Reflexão referente às anotações feitas da comunicação de Alcides F. Ramos na mesa-redonda:
    Imagens de sensibilidades: razões e sentimentos, ocorrida em 20/09/2006, entre as atividades promovidas pelo III Simpósio Nacional de História Cultural.
  • 42
    Alcides F. Ramos é professor na Universidade Federal de Uberlândia. Ao falar sobre a percepção de uma sensibilidade revolucionária na década de 1960, remeteu-se aos filmes de Glauber Rocha, em especial " Terra em Transe" . Na música podemos nos referir, por exemplo, ao movimento da tropicália e, na literatura, entre ouros, aos trabalhos de crônica jornalística, como as de Rubem Braga e a produção de Ferreira Gullar.
  • 43
    Michael Lowy. " Mística revolucionária: José Carlos Mariátegui e a religião",
    Estudos Avançados, vol. 19, n. 55, São Paulo, set/dez 2005.
  • 44
    Marcos Napolitano, "Em busca do tempo perdido: utopia revolucionária e cultura engajada no Brasil",
    Revista de Sociologia Política, n. 16, Curitiba, jun. 2001.
  • 45
    Marcelo Ridenti, "Intelectuais e Romantismo Revolucionário",
    São Paulo em Perspectiva, 15 (2), 2001.
  • 46
    Idem, p. 14.
  • 47
    Inúmeros intelectuais, ao longo da década de 1980, buscaram compreender dilemas que circundavam a esquerda brasileira. Entre eles: Carlos Nelson Coutinho, Francisco Weffort, Maria Victoria Benevides, Marco Aurélio Garcia, Daniel Araão Reis, Zilda Iokoi e Eder Sader.
  • 48
    Cf. Marcelo Ridenti, op. cit., p. 16.
  • 49
    Peter Burke,
    Testemunha ocular, Bauru, Edusc, 2004, p. 232.
  • 50
    Ulpiano T. Bezerra Meneses, "Fontes Visuais, Cultura Visual, História Visual: balanço provisório, propostas cautelares",
    Revista Brasileira de História, v. 23, n. 45, São Paulo, julho de 2003.
  • 51
    Cf. "Educação intercultural: desafios emergentes na perspectiva dos movimentos sociais", in Fleuri, Reinaldo Matias,
    Intercultura e movimentos sociais, Florianópolis, 1998.
  • 52
    Felix Guattari, Sueli Rolnik,
    Micropolítica: cartografias do desejo, Petrópolis, Vozes, 1986, p. 33.
  • 53
    Idem, p.34.
  • 54
    Cf. Guattari, op. cit., p. 45.
  • 55
    Pierre Ansart, "História e Memória dos Ressentimentos",
    Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível, Campinas, Editora da Unicamp, 2001, p. 21.
  • 56
    Ângela de Castro Gomes, "Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo",
    Escrita de si, escrita da História, Rio de Janeiro, FGV, 2004.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Ago 2008
    • Data do Fascículo
      2008

    Histórico

    • Aceito
      Set 2007
    • Recebido
      Jul 2007
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