Acessibilidade / Reportar erro

O Navio Negreiro: refiguração identitária e escravidão no Brasil

Identity refiguration and slavery in Brazil

Le navire négrier: refiguration de l'identité et esclavage au Brésil

Resumos

O artigo apresenta e analisa a narração de uma encenação teatral realizada pela mãe de santo de um terreiro do Rio de Janeiro sobre a partida, a viagem e a chegada dos escravos africanos no Brasil. A peça é encenada por crianças e membros da família de santo nos quadros de uma atividade educativa. A narração se baseia em uma ideia central: os escravos vieram para o Brasil como portadores de uma cultura material e imaterial, de uma memória e de tradições trazidas por meio daqueles que souberam resistir à escravidão e à condição servil. O candomblé assume neste contexto uma significação política forte e torna-se elemento estruturante da narrativa. Suas entidades tornam-se personagens da peça, com escravos e ancestrais se transformando não apenas em divindades, mas também em libertadores. A figura vitimizada do escravo é assim virada do avesso e se transforma em herói, constrói-se também uma nova narração da nação brasileira que atribui aos escravos e à África um papel central como figuras proeminentes e civilizadoras.

memória; escravidão; identidade; cidadania; direitos humanos; candomblé


This article presents and analyses the dramatic staging by the mother-of-saint of a terreiro in Rio de Janeiro, which recounts the departure, the voyage, and the arrival of African slaves in Brazil. The play is put on as an educational activity by the children and members of the family-of-saint of the candomblé terreiro. The narrative conveys a central idea: that the slaves came to Brazil bearing with them a material and intangible culture, and a memory of traditions transferred to Brazil by those who were able to resist the laws of slavery and the conditions of servility. The candomblé, a religion with strong political implications in this instance, is a structural element of the narrative, as its deities become characters in the play, those of slaves and ancestors who become not only deities but also liberators. The figure of the slave as victim is thus reversed and transformed into hero, while a new narrative of the Brazilian nation gives slaves and Africa a leading and civilizing role.

Memory; Slavery; Identity; Citizenship; Human Rights; Candomblé


L'article présente et analyse la narration théâtrale d'une "mãe de santo» (prêtresse de culte afro-brésilien) d'un terreiro (centre de culte) de Rio de Janeiro portant sur le départ, le voyage et l'arrivée des esclaves africaines au Brésil. La pièce est jouée par des enfants et des membres de la «famille de saints» dans le cadre d'une activité éducative. La narration est porteuse d'une idée centrale : les esclaves sont venus au Brésil porteurs d'une culture matérielle et immatérielle, d'une mémoire et de traditions transposées au Brésil par l'intermédiaire de ceux qui surent résister aux lois de l'esclavage et aux conditions de la servitude. Le candomblé, religion qui prend ici une signification politique forte, est un élément structurant de la narration puisque les entités servent de figures, celles des esclaves et ancêtres divinisés, mais aussi libératrices. La figure victimaire de l'esclave se trouve renversée et se transforme en héros tandis que la narration de la nation brésilienne place les esclaves et l'Afrique comme figures premières et civilisatrices.

Mémoire; Esclavage; Identité; Citoyenneté; Droits de la personne; Candomblé


DOSSIÊ

PATRIMÕNIO E MEMÓRIA DA ESCRAVIDÃO ATLÂNTICA: HISTÓRIA E POLÍTICA

O Navio Negreiro. Refiguração identitária e escravidão no Brasil* * Este texto foi escrito originalmente em francês em 2009, e imediatamente traduzido para o português por Vitor Acselrad e aprovado para publicação neste dossiê da Revista Tempo, a convite de Hebe Mattos. A versão francesa está publicada no dossiê " Black Images" (32-2, 2009) da revista canadense Ethnologies, organizado por Francine Saillant. A narrativa analisada deu origem ao filme de pesquisa O Navio Negreiro, registrado em DVD com legendas em português, apresentado no Brasil em versão ainda preliminar em novembro de 2008, durante o Festival Internacional do Filme de Pesquisa sobre a Memória e História da Escravidão Moderna, organizado pelo Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense, no Centro Cultural do Banco do Brasil, e em sua versão definitiva em novembro de 2009, no contexto de nova versão do festival, também no CCBB e no Espaço Meriti Prev, em São João de Meriti.

Identity refiguration and slavery in Brazil

Le navire négrier - Refiguration de l'identité et esclavage au Brésil

Francine Saillant

Département d'Anthropologie, directrice du Centre Interuniversitaire d'Etudes sur les Lettres, les Arts et les Traditions, Université Laval, Quebec, Canadá. francine.saillant@ant.ulaval.ca

RESUMO

O artigo apresenta e analisa a narração de uma encenação teatral realizada pela mãe de santo de um terreiro do Rio de Janeiro sobre a partida, a viagem e a chegada dos escravos africanos no Brasil. A peça é encenada por crianças e membros da família de santo nos quadros de uma atividade educativa. A narração se baseia em uma ideia central: os escravos vieram para o Brasil como portadores de uma cultura material e imaterial, de uma memória e de tradições trazidas por meio daqueles que souberam resistir à escravidão e à condição servil. O candomblé assume neste contexto uma significação política forte e torna-se elemento estruturante da narrativa. Suas entidades tornam-se personagens da peça, com escravos e ancestrais se transformando não apenas em divindades, mas também em libertadores. A figura vitimizada do escravo é assim virada do avesso e se transforma em herói, constrói-se também uma nova narração da nação brasileira que atribui aos escravos e à África um papel central como figuras proeminentes e civilizadoras.

Palavras-chaves: memória, escravidão, identidade, cidadania, direitos humanos, candomblé.

ABSTRACT

This article presents and analyses the dramatic staging by the mother-of-saint of a terreiro in Rio de Janeiro, which recounts the departure, the voyage, and the arrival of African slaves in Brazil. The play is put on as an educational activity by the children and members of the family-of-saint of the candomblé terreiro. The narrative conveys a central idea: that the slaves came to Brazil bearing with them a material and intangible culture, and a memory of traditions transferred to Brazil by those who were able to resist the laws of slavery and the conditions of servility. The candomblé, a religion with strong political implications in this instance, is a structural element of the narrative, as its deities become characters in the play, those of slaves and ancestors who become not only deities but also liberators. The figure of the slave as victim is thus reversed and transformed into hero, while a new narrative of the Brazilian nation gives slaves and Africa a leading and civilizing role.

Keywords: Memory, Slavery, Identity, Citizenship, Human Rights, Candomblé.

RÉSUMÉ

L'article présente et analyse la narration théâtrale d'une "mãe de santo» (prêtresse de culte afro-brésilien) d'un terreiro (centre de culte) de Rio de Janeiro portant sur le départ, le voyage et l'arrivée des esclaves africaines au Brésil. La pièce est jouée par des enfants et des membres de la «famille de saints» dans le cadre d'une activité éducative. La narration est porteuse d'une idée centrale : les esclaves sont venus au Brésil porteurs d'une culture matérielle et immatérielle, d'une mémoire et de traditions transposées au Brésil par l'intermédiaire de ceux qui surent résister aux lois de l'esclavage et aux conditions de la servitude. Le candomblé, religion qui prend ici une signification politique forte, est un élément structurant de la narration puisque les entités servent de figures, celles des esclaves et ancêtres divinisés, mais aussi libératrices. La figure victimaire de l'esclave se trouve renversée et se transforme en héros tandis que la narration de la nation brésilienne place les esclaves et l'Afrique comme figures premières et civilisatrices.

Motsclés: Mémoire, Esclavage, Identité, Citoyenneté, Droits de la personne, Candomblé.

A narrativa que propomos aos leitores se insere em uma série de ações culturais e políticas destinadas a reenquadrar a história da escravidão e da chegada das populações negras e africanas ao Brasil. Mais precisamente, a narrativa foi criada pela Ialorixá Torodi de Ogum do terreiro de candomblé Ala Koro Wo em São João de Meriti no Rio de Janeiro. Esse terreiro tem de particular o fato de estar envolvido, por seus principais atores que são a mãe de santo e sua família, no movimento negro brasileiro, notadamente por suas ações, em conjunto com outros terreiros da mesma localidade e de outras, contra a discriminação das religiões afro-brasileiras no país.1 1 Sobre o debate a respeito da discriminação que os adeptos das religiões neopentecostais exerceriam sobre as religiões de matriz africana no Brasil, ver Gonçalves da Silva V., «Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: Significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo», Mana, v. 13, nº. 1, 2007 e Corten A. , Le pentecostisme au Brésil, Paris, Karthala, 1995. Alguns terreiros se organizaram em rede para lutar contra essa discriminação, incluindo o terreiro de que falamos neste artigo. O movimento negro, presente no Brasil desde os anos 1930, adquiriu uma envergadura particular a partir dos anos 1970.2 2 Cf. Alberti V. e A. Araújo Pereira, Histórias do movimento negro no Brasil, Rio de Janeiro, Pallas, 2007; Contins M., Lideranças negras, Rio de Janeiro, Aeroplano, 2005; Garcia J., 25 anos movimento negro no Brasil. 1980-2005, Brasília, Fundação Cultural Palmares, 2005 . Ele desenvolve ações e discursos críticos da narrativa nacional brasileira cujo eixo é a inserção do sujeito afro-brasileiro3 3 O termo Afro-brasileiro pode ser considerado como relativamente novo no Brasil e tem atualmente certo consenso, mais do que o de Negro ou o de Afrodescendente, para nomear os que são ligados, por sua experiência e sua identificação, aos elementos culturais de influência africana e reconfigurados na trama da cultura afro-brasileira, através das práticas indumentárias, ornamentais, culinárias, musicais ou religiosas; é este o termo usado no texto da Lei sobre igualdade racial no Brasil (PL 6.264/2005). Sobre a história desse termo, entre outros, L. Sansone, From Africa to Afro: Use and Abuse of Africa in Brazil, Amsterdam, Dakar, South-South Exchange Programme for Research on History of Development (SEPHIS) and Council for the Development of Social Science Research in Africa (CODESRIA), 1999; L. Sansone, «La Communauté noire existe-elle?: Identité et culture des Afro-bahianais», dans Michel Agier, dir., «Les Mots du discours afro-brésilien en débat», Cahiers du Brésil contemporain, 49/50, 2002: 135-151; L. Sansone, Blackness without ethnicity: constructing race in Brazil, New York, Palgrave Macmillan, 2003 e J. -F. Véran, «L'Afro-brésilianité aujourd'hui: un modèle d'intégration?», Caravelle, numéro 75, Centre National du Livre, Presses Universitaires du Mirail, Toulouse, décembre, 2000: 25-47. no coração da história nacional, da riqueza cultural e econômica, da ação política que transforma a servidão em cidadania plena, deslocando a figura da vítima da escravidão em favor da do herói libertador. A narrativa que apresentamos expõe esta memória revisitada da escravidão, herdada de diversas narrativas e reconfigurada no movimento de uma mímesis (no sentido de Ricoeur4 4 P. Ricoeur, Temps et récit, 1. «L'intrigue et le récit historique», Paris, Seuil, 1983: 105-162. ); a escravidão está no centro da narrativa por meio de uma representação teatral que traz à tona a partida, a travessia e a chegada dos escravos trazidos pelo comércio atlântico da África para o Brasil. Essa representação teatral é elaborada por e para as crianças de uma escola (o projeto Amalyra) vizinha ao terreiro e fundada por Mãe Torodi5 5 Oficialmente o nome deste terreiro é identificado em língua Iorubá. Tendo em vista a dificuldade de traduzir corretamente todos os termos do candomblé na língua Iorubá, e levando em conta a instabilidade da ortografia Iorubá tal qual se observa no Brasil, muito variável segundo os autores, optamos no conjunto do artigo usar os termos Iorubá de acordo com a ortografia portuguesa, seguindo as indicações encontradas nas obras de Prandi (Prandi R., Mitologia dos Orixás, São Paulo, Companhia das Letras, 2001 e Segredos Guardados, São Paulo, Companhia das Letras, 2005). A partir de agora, o terreiro será identificado neste artigo pela letra X e a Mãe de Santo pela letra T precedida da palavra Mãe. e sua família. O jogo teatral é assim uma ação educativa que se poderia associar ao trabalho das chamadas ações afirmativas,6 6 As ações afirmativas consistem num conjunto de medidas de equidade voltadas para os grupos que sofrem discriminação sistemática: consultar Castel R., La discrimination négative, Paris, Seuil, 2007 e Dos Santos R. E. e F. Lobato, Ações afirmativas, Rio de Janeiro, DP&A, 2003. que têm por objetivo influir nas desigualdades sociais que atravessam a sociedade brasileira e nos diferentes problemas que se apresentam para os afro-brasileiros em numerosos setores, particularmente relacionados aos direitos sociais e econômicos: a educação, a saúde, o emprego, por exemplo, mas também os direitos culturais, entre os quais a prática do candomblé.

O artigo propõe de início uma discussão sobre o contexto das teorias e debates atuais referentes à cultura brasileira e ao lugar que nela ocupam os afro-brasileiros, assim como a herança da escravidão. Expomos em seguida a metodologia utilizada na coleta e na análise da narrativa que está na base da representação teatral que apresentamos. A terceira parte expõe em detalhe a narrativa e elementos da representação teatral, e, enfim, a quarta parte é um convite à discussão a partir de temas recorrentes da narração, permitindo-nos refletir sobre o processo em curso de refiguração da identidade e da subjetividade afro-brasileira.

Cultura brasileira, teorias da mestiçagem e narrativa nacional

As teorias sobre a cultura brasileira são marcadas por uma herança incontornável, a de Gilberto Freyre. A recente reedição de sua obra Casa-Grande & Senzala em 2003,7 7 Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, São Paulo, Global, 2003 [1933] . acrescida dos debates atuais em torno das ações afirmativas e do conceito de democracia racial, reatualizou a influência de seu trabalho sempre reafirmada tanto por cientistas quanto por políticos no Brasil. Um dos pontos fortes da obra de Freyre foi tornar explícita a contribuição das culturas africanas e aborígines para a formação da sociedade brasileira através do encontro destas últimas com a cultura europeia e portuguesa. Gilberto Freyre sugeriu que o encontro do colonizador com os povos que ele submeteu à sua vontade foi fundamental, posto que foi o motor da miscigenação,8 8 Segundo Laplantine e Nouss: "Noção forjada pelo sociólogo Gilberto Freyre em seu livro Casa-Grande & Senzala para mostrar o nascimento de um povo novo - o Brasil - formado pelo encontro cultural mas antes de mais nada sensual e sexual dos índios, dos Africanos e dos Portugueses sob os trópicos". Esta noção é anterior à da mestiçagem e à sua teorização. Ela assume sobretudo o sentido de fusão e não tem o alcance teórico daquela proposta por esses mesmos autores no que se refere à noção de mestiçagem. (Ver Laplantine F. e A. Nouss, Métissages, de Arciboldo à Zomi, Paris, Pauvert, 2001: 428-430. ) ou, se quisermos, da mistura biossomática e sociocultural que deu à sociedade brasileira sua unicidade e sua riqueza. Assim, de seu ponto de vista, a escravidão na vida cotidiana não foi apenas uma injustiça e uma desumanização, sendo também influência recíproca e mútua dependência entre senhores colonizadores e escravos, feita de muitos paradoxos e conducente a uma dinâmica cultural cuja trama seria uma forma de mistura generalizada (hibridação, miscigenação), a qual se efetivou, todavia, contra um fundo de violência doméstica e política. O interesse da obra fundadora de Freyre é ter sabido retirar da noite e do tabu o tema da escravidão, e colocá-lo no coração da narrativa histórica e da teoria da cultura brasileira. A escravidão não foi apenas um episódio vergonhoso, tendo também o papel de motor na formação histórica da cultura e da sociedade. Freyre, é forçoso dizer, inscrevia-se numa luta política e científica importante, pois seus detratores, à época da publicação de seu célebre livro, eram os que faziam uso das teorias racistas do século XIX; eles consideravam a "mistura das raças" um horror e um fator de degenerescência nacional;9 9 L. M. Schwarcz, O espectáculo das raças, São Paulo, Companhia das Letras, 1993. a miscigenação era percebida como altamente nociva para a sociedade brasileira. Esse temor da mistura inter-racial Freyre tentava combater ao recordar aos brasileiros daquele jovem Estado moderno de pouco mais de 40 anos que eles eram o seu produto, quisessem ou não aceitá-lo. O livro foi um sucesso mundial, traduzido em muitas línguas e reeditado várias vezes. Essa teoria serviu ao Estado brasileiro dos anos 1930, que precisava de uma ideologia unificadora para pensar a nacionalidade brasileira.

Mais perto de nós, e no contexto do Brasil contemporâneo, a questão da mestiçagem (não se fala mais de miscigenação) e de suas ligações com a teoria da cultura foi retomada de múltiplas formas: ela é ilustrada nos debates em torno do caráter mestiço das culturas latino-americanas e da importância dos temas do encontro, do intercâmbio e da interpenetração, ainda que num quadro de violência, como mostra Grunzinski;10 10 S. Grunzinski, La pensée métisse, Paris, Fayard, 1999. essa mesma teoria é também veiculada pelo trabalho de Laplantine e Nouss,11 11 F. Laplantine e A. Nouss, op. cit. que fazem do Brasil um lugar por excelência da mestiçagem no sentido da superação dos dualismos e das identidades estanques - ela se torna então a ética do encontro a partir de sua articulação com as filosofias de Levinas e de Derrida;12 12 E. Levinas, Autrement qu'être ou au-delà de l'essence, Paris, Biblio Poche, 1993 e Derrida J. , De l'hospitalité, Paris, Calmann-Levy, 1997. ela é igualmente invocada pelos literatos da mundialidade oriundos do imaginário caribenho, como Glissant,13 13 É. Glissant, Traité du tout-monde, Paris, Gallimard, 1997 e Mé moires des esclavages, Paris, Gallimar , 2007. em particular - que não hesita em propor que a mestiçagem possa ser equiparada à metáfora do arquipélago, cujas fronteiras indefinidas marcariam as formas culturais - como seria também o caso do Brasil, um exemplo disso. A teoria da mestiçagem ancora-se no tempo em uma tripla perspectiva: socioantropológica, filosófica e literária. Ela procura nomear o encontro dos corpos e dos imaginários culturais, e sobretudo seus efeitos sobre as formas culturais originais às quais ela daria lugar. A mestiçagem se refere antes e acima de tudo à inovação cultural. Os autores desse grupo de teorias não deixam de reconhecer que os encontros entre o Velho e o Novo Mundo, os missionários e os aborígines, os senhores e os escravos (negros), ocorreram segundo as lógicas mortíferas da colonização e da escravidão. O Outro do encontro devia se dissolver para se tornar o Mesmo ou desaparecer pura e simplesmente. As teorias da mestiçagem procuram, desse ponto de vista, reafirmar que o resultado não foi apenas o aniquilamento do Outro posto que o Outro ressurgiria constantemente através de formas culturais inéditas, introduzindo o impensado na colonização e na escravidão.

Para além dessas distinções, um dos problemas das categorias ligadas à mistura, à miscigenação e à mestiçagem continua a ser a sua utilização política. Segundo Guimarães, essa utilização se faz no Brasil sob o nome de teoria da democracia racial.14 14 A. S. Guimarães, «Démocratie raciale», dans Michel Agier, Les mots du discours afro-brésilien en débat, Cahiers du Brésil Contemporain, numéro 49/50: 11-38, 2002 e « Depois da democracia racial», Tempo Social, revista de Sociologia da USP, v. 18, nº. 2, 2006. Retomando a perspectiva de Freyre, os atuais defensores, e entre eles diversos especialistas das ciências sociais,15 15 Ver as excelentes sínteses de Y. Maggie e C. B. Rezende (Org.), Raça Como Retórica: A Construção da Diferença, Rio de Janeiro, Record, 2001; Fry P.; Maggie, Y.; Maio, C. M.; Monteiro, S., e V. Ricardo Santos (Org.), Divisões Perigosas: Políticas Raciais no Brasil Contemporâneo, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, e Fry P., A Persistência da Raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África Austral, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005. consideram o Brasil como um país único cuja riqueza cultural e cuja contribuição civilizatória residem na capacidade de seus habitantes de terem sabido integrar seus diferentes aportes de forma harmoniosa, e isso para além da violência fundadora que Freyre não negava e que tampouco negam esses autores. O Brasil teria logrado um equilíbrio não igual, diferente dos modelos de sociedade onde se impôs o Apartheid (África do Sul) ou a segregação (Estados Unidos).16 16 O Brasil não adotou a lei segregacionista como foi o caso dos Estados Unidos. Este fato é muito importante nos debates que opõem os herdeiros da teoria da democracia racial aos que veem esta teoria como uma heresia. Notemos, entretanto, que desde os anos 1950 um primeiro diagnóstico do problema da construção étnico-racial das desigualdades no Brasil foi colocado por um grupo de sociólogos de São Paulo, por ocasião da publicação de uma série de estudos encomendados pela UNESCO (Cf. Marcos Chor Maio, «UNESCO and the Study of Race Relations in Brazil», Latin American Research Review, 36, 2, 2001: 118-136). Por outro lado, na sociedade brasileira, a questão da cor permanece fundamental para quem é ou não "Afro-Brasileiro", e tem, consequentemente, direitos às ações afirmativas. Ver sobre esta questão o debate que levou à tomada de posição de 25 antropólogos no número especial da Revista Horizontes Antropológicos, vol. 11, nº. 23, 2005, e em particular o artigo de Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos, "Política de cotas raciais, os "olhos da sociedade" e os usos da antropologia: o caso do vestibular da Universidade de Brasília (UnB)", p. 181-214. Os adversários daqueles que sustentam essa visão da sociedade brasileira, e entre eles defensores de direitos humanos, críticos das desigualdades sociais e da violência cultural e também especialistas na questão afro-brasileira,17 17 K. Munanga, Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Identidade Nacional versus Identidade Negra, 2ª. ed., Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2004 e D'Adesky J. , Liberdade e reconhecimento, Rio de Janeiro, DAUDTDESIGN EDITORA, 2006. consideram, ao contrário, que se a mistura e a mestiçagem ocorreram - um fato inegável - isso não poderia legitimar duas realidades que muitos consideram intimamente ligadas: as desigualdades socioeconômicas fundadas na diferença racial, de uma parte e de outra, o difícil reconhecimento da singularidade dos sujeitos e coletividades englobados na mestiçagem, notadamente os aborígines e os afro-brasileiros.

Colocar o problema da democracia racial para as minorias em geral, e para os afro-brasileiros em particular, negros e mestiços, com relação à formação histórica do Brasil é colocar o triplo problema da equidade, do reconhecimento e da representação, seja ele 1) o problema posto pelas condições históricas das desigualdades socioeconômicas das minorias e de grupos considerados como tais, e das consequências traduzidas em termos de iniquidades; 2) o problema da dissolução da singularidade (cultural) no mito (da democracia racial) que consiste em um uso político perverso da noção de mestiçagem, a pluralidade fundamental da formação histórica brasileira diluindo-se na Nação; 3) o problema do reconhecimento que decorre do da representação dos sujeitos e das coletividades minorizados no espaço público e cultural. Como representar a existência e a afirmação das identidades singulares quando elas são fundadas na "cultura" e na "sociedade" concebidas como produto de uma fusão? É numa tal problemática que, no Brasil, o movimento negro, apoiado por numerosos intelectuais brasileiros autodeclarados negros ou brancos, contesta a democracia racial que seria o Brasil. O movimento contesta não apenas o que para ele é um mito, mas também diversas versões generalizadas da história da escravidão, do momento de sua abolição e de suas consequências. Ao fazê-lo, constrói uma espécie de contra-discurso, que põe em evidência a ideia de que os escravos não foram passivos mas, ao contrário, estiveram na origem de muitas revoltas, fugas e formas de resistência. Para tanto, o discurso público do movimento negro considera de forma bastante generalizada que o fim da escravidão não aconteceu, o que seria comprovado pelas desigualdades sociais atuais que decorreriam das condições nas quais os antigos escravos foram deixados a partir da abolição oficial da escravidão em 1888.18 18 Sobre as condições dos libertos após a abolição, cf. Gomes da Cunha O.M. e F. Dos Santos Gomes, Quase-cidadão, Rio de Janeiro, FGV Editora, 2007. Enfim, para o movimento negro, a atual liberdade dos afro-brasileiros seria creditada não ao gesto da princesa Isabel, signatária da Lei Áurea, que permitiu a abolição oficial, mas ao acúmulo dos gestos de revolta, de fuga e de resistência dos próprios escravos e, sem dúvida, também das ações dos abolicionistas brasileiros e dos países ocidentais.19 19 Para uma síntese desses pontos de vista, ver Saillant F. e A.L. Araujo, «Zumbi: mort, mémoire et résistance», Frontières, nº. 19-1, 2006: 37-43. ____., «L'esclavage au Brésil. Le travail du mouvement noir», Ethnologie française, XXXVII, 3, 2007: 457-467.

É certo que a contribuição africana à cultura brasileira é inegável, e que ela deu lugar a formas culturais originais. O Museu Afro Brasil, criado em São Paulo (Museu Afro Brasil, http://www.museuafrobrasil.com.br/animacao.htm), exibe múltiplos exemplos desses aportes e mestiçagens na história.20 20 Araujo E., Museu Afrobrasil. Um conceito em perspectiva, São Paulo, Instituto Florestan Fernandes e SEPPIR, 2006. Todavia, tais exemplos não conseguem resolver as contradições evidentes entre o sucesso e a difusão da cultura afro-brasileira e as desigualdades sociais vividas pelos afro-brasileiros, entre a estima da qual desfrutam certos aspectos da cultura afro-brasileira e o status socioeconômico dos próprios afro-brasileiros.

Outra dimensão do problema da mestiçagem é a dificuldade de identificar com clareza quem é afro-brasileiro. Se é simples referir-se a um conjunto de símbolos da cultura afro-brasileira hoje - aceitos e reconhecidos, quando não patrimonializados - é mais difícil dizer quem é afro-brasileiro - tendo em conta justamente a mestiçagem e a não existência de um grupo perfeitamente delimitado que seria o dos afro-brasileiros. Afro-brasileiro é aquele que, no sentido da lei brasileira, se identifica como tal; e esse critério de autoidentificação não é unânime, tendo em conta os problemas de aplicabilidade dos programas de ações afirmativas que ele coloca.

As dificuldades para resolver as contradições socioeconômicas dos afro-brasileiros desde a abolição e os avanços recentes dos debates internacionais sobre as realidades de discriminação em torno das consequências da escravidão e do tráfico atlântico,21 21 Saillant F. e A.L. Araujo. «L'esclavage au Brésil. Le travail du mouvement noir», Ethnologie française, XXXVII, 3, 2007 : 457-467. para além do problema que aos olhos de alguns decorre da incerteza de sua identidade, levaram o governo atual a propor uma série de ações afirmativas,22 22 Essas leis dizem respeito não só ao ensino obrigatório da história africana e afro-brasileira, mas também à do reconhecimento das comunidades de quilombos (Artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição) e o projeto de lei sobre as cotas nas universidades (PL 73/1999). entre as quais o ensino obrigatório de história africana e afro-brasileira nas escolas públicas do Brasil. A lei 10.639, de 2003, constituiu-se também como problema, por diversas razões: conhecimentos insuficientes dos professores, falta de equipamentos pedagógicos adequados, resistência das regiões onde a escravidão foi menos marcante e recusa a oferecer esse ensino por parte de professores adeptos da religião pentecostal, muito numerosos, que consideram certas práticas afro-brasileiras, notadamente as de religiões de matriz africana, contrárias a seus valores. Muitos sujeitos e grupos autodefinidos como afro-brasileiros são contudo entusiastas dessa lei e contam com a sua aplicação. Trata-se do reconhecimento e do aparecimento desse grupo no campo das representações e do conhecimento.

Metodologia

Nas comunidades "tradicionais"23 23 Usamos o termo tradicional de forma émique. Os terreiros e os quilombos são considerados pelos historiadores e antropólogos como lugares de elaboração da cultura afro-brasileira e de resistência em relação às condições ligadas à história da escravidão. Trata-se de comunidades no sentido de meio de vida que reúne um grupo social ligado a um território restrito e definido, mesmo se facilmente reconhecido no sentido legal da propriedade. Esse grupo é também ligado por um conjunto de práticas culturais e por uma memória coletiva herdada, apropriada e transmitida. A tradição não está entretanto fechada; ela é aberta no sentido que Ricoeur dá a este termo (Ricoeur, P., op. cit.). afro-brasileiras, notadamente os terreiros de candomblé, a transmissão oral da história religiosa e social através da mitologia dos orixás foi uma maneira de favorecer a conservação memorial e de cultivar o sentimento de pertencimento dos membros dessas comunidades.24 24 Prandi R., Mitologia dos Orixás, São Paulo, Companhia das Letras, 2001 e Segredos Guardados, São Paulo, Companhia das Letras, 2005. A experiência que queremos apresentar se situa justamente no cruzamento dessa tradição oral própria dos terreiros quanto à transmissão dos valores da afro-brasilidade e da africanidade, de um lado, com ações afirmativas desenvolvidas no movimento negro e no atual governo brasileiro, de outro. Trata-se de uma crítica da cultura e da história brasileira em seus aspectos hegemônicos, do encontro de uma tradição de resistência e de políticas sociais destinadas, a partir das ações afirmativas com vistas à reparação, a oferecer aos afro-brasileiros uma visibilidade maior, assim como um lugar mais equitativo, na sociedade em geral.

O terreiro onde se dá o jogo teatral descrito a seguir está situado no Rio de Janeiro, no município de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, onde se encontra uma importante concentração de terreiros de candomblé25 25 De fato, segundo algumas fontes, a região conhecida como Baixada Fluminense acolheria a maior concentração de terreiros, cerca de 450, depois de Salvador (comunicação pessoal, Luis Fernando Martins da Silva). . O terreiro Ilê Asé X existe há cinquenta anos, e, nos anos recentes, sua líder, Mãe T, fundou, no mesmo terreiro, uma ONG, Amalyra, que deu lugar à implantação de uma escola onde se realiza o prolongamento da ação social do terreiro na localidade de implantação. Essa escola recebe crianças da família de santo, crianças de adeptos do candomblé ligados ao terreiro, assim como as crianças da localidade de outras religiões ou praticamente sem religião.

O terreiro deve ser classificado entre os mais politizados da Baixada; ele se inscreve no cerne da evolução recente do candomblé no Rio de Janeiro;26 26 A busca de autenticidade de alguns Afro-Brasileiros abre espaço a uma espécie de reafirmação do candomblé em relação à umbanda, ainda majoritária no Rio de Janeiro. da nação Ketu, ele se inscreve também num processo de africanização.27 27 Processo pelo qual terreiros buscam se inspirar no que eles chamam de "tradições africanas" na prática do culto. O termo nação é usado para distinguir as formas de expressão do candomblé e suas variações quanto ao dialeto usado no culto, os ritmos dos tambores sagrados e a liturgia. A escola do terreiro não tem por objetivo principal formar as crianças na cosmogonia do candomblé, mas antes, segundo o discurso oficial, oferecer uma alternativa à pobreza da escola pública, assim como abrir às crianças da localidade maiores oportunidades de desenvolvimento de conhecimentos, apoiando-se notadamente na tradição afro-brasileira, na cultura oral do candomblé, no ensino de disciplinas gerais como a aritmética, o português e o inglês, mas também no aprendizado da dança e da música (maculelê, capoeira), da língua Ioruba e da cidadania. Uma das atividades propostas nessa escola é a do teatro com uma peça criada no terreiro - O Navio Negreiro.

No contexto de um trabalho de campo em andamento28 28 Trata-se do trabalho de campo que efetuo no Rio de Janeiro no contexto do projeto "As formas socioculturais e político-jurídicas das demandas de reparação dos afro-brasileiros: os paradoxos do comunitarismo e da democracia", projeto subvencionado pelo Conselho de Pesquisas em Ciências Humanas do Canadá desde 2005. Este trabalho de campo permite explorar os diferentes sentidos e formas das práticas ligadas à ideia de reparação nas esferas religiosas, culturais e jurídico-políticas. e de ligações privilegiadas estabelecidas com o terreiro,29 29 Em particular com o objetivo de explorar as formas culturais e religiosas da ideia de reparações ligadas à escravidão no Brasil. foi possível assistir a uma das representações dessa montagem teatral e de filmá-la na íntegra.30 30 Dois filmes têm produção e colaboração com o terreiro, com a preciosa colaboração de Pedro Simonard: Axé, Dignidade! e O Navio Negreiro. O segundo filme apresenta a peça que discutimos. O documento visual, assim como diversas entrevistas realizadas com a narradora, Mãe T, além das informações obtidas no campo, servem de ponto de apoio à presente descrição, bem como à sua análise.

Entre os elementos contextuais fundamentais que é preciso ter em mente a partir desta descrição, notemos que os atores da representação teatral são todos vinculados à escola, membros da família de santo ou, ainda, adeptos do candomblé e amigos do terreiro. Os membros da família de santo envolvem-se em roupas assemelhadas às dos orixás do candomblé, mas não desempenham o papel de seu orixá nem se vestem com roupas normalmente usadas nas festas religiosas. As roupas são confeccionadas especialmente para o jogo teatral. Os tocadores de tambor (Ogan) presentes na peça são alguns dos que participam das festas religiosas. As peças musicais cantadas pela mãe de santo são oriundas do repertório popular e profano brasileiro e do repertório dos afoxés.31 31 Segundo a história do candomblé, a saída pública dos terreiros por ocasião do carnaval, chamada por Roger Bastide candomblé para rir (Bastide, R., Le candomblé de Bahia, Paris, Plon, 2000 [1958] ). O afoxé no fundo é uma forma de candomblé de rua (Lody, R., «Afoxé», Cadernos de Folclore, 7, 1976; Ribard F., Le carnaval noir de Bahia, Paris, L'Harmattan, 1999), na sua forma não sagrada, e que abre espaço a um estilo musical com o mesmo nome, para blocos carnavalescos com repertório de canções. As crianças, quando da representação, já haviam apresentado essa peça no mesmo terreiro (trata-se de uma atividade educativa) e numa escola em Santa Teresa, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro habitado pela classe média alta. No momento em que foi possível assistir à representação, não havia público, pois a atividade, embora difundida por vezes para fora do terreiro, tem normalmente, no seio da escola, o objetivo de socialização dos valores e de uma narrativa suscetível de transformar a visão hegemônica de um passado escravista supostamente harmonioso no Brasil; trata-se então de apresentar a figura do escravo dessocializado e subjetivado pelo senhor substituindo-a pela de um ator e de um ator coletivo inscrito em uma história onde se mesclam sofrimento e busca das origens, desumanização e memória protetora, resistência e esperteza.

A narrativa32 32 A narrativa aqui apresentada deve ser considerada como um conto. Em alguns casos considerados mais importantes, comentaremos em notas algumas afirmações com o objetivo de compará-las com o ponto de vista estabelecido pelos historiadores.

Os preparativos

No início mesmo da ação, Mãe T33 33 A ação acontece em maio de 2007. prepara as crianças participantes da representação teatral. A família de santo ajuda a vesti-las, enquanto elas e pessoas próximas do terreiro realizam a encenação. Um imenso lençol azul é posto no meio do caminho que separa o espaço Nanã (orixá da memória e da inteligência, mãe das mães) ou casa da cidadania e uma das portas de entrada do terreiro que dão para a rua, fora de seu ambiente. Objetos são postos sobre o lençol que representa o oceano separando a África e o Brasil, o passado e o presente, o lugar da travessia e o lugar da chegada. De cada um dos lados do oceano simbólico são colocados objetos, longas varas, utilizadas habitualmente para afastar os espíritos maléficos e, nesse caso preciso, para orientar o caminho do navio e proteger seus passageiros. Sobre o lençol-oceano são depositados objetos lembrando a África dos ancestrais e daqueles que vieram ao Brasil como escravos: cerâmicas, plantas, máscaras de fabricação doméstica local. Os tambores, instrumentos que servirão para acompanhar os cantos e a narração, são localizados ao longo do lençol-oceano. Os futuros participantes cobrem-se com suas vestimentas. Os ancestrais são inteiramente vestidos de branco; o escravo comum usa uma vestimenta laranja e azul, quando mulher, e uma calça azul, no caso dos homens. As crianças que representam adultos têm idades entre 5 e 14 anos. Algumas meninas fazem o papel de princesas africanas capturadas. Juntam-se a essas crianças alguns membros adultos da família de santo e pessoas próximas do terreiro no papel de orixás do candomblé. Mãe T cobre-se com suas roupas brancas e utiliza joias e acessórios de cor azul, conforme a preferência de seu orixá: Ogum (orixá da guerra, do ferro e dos caminhos).

Antes de fazer as crianças entrarem no espaço oceânico e reunirem-se no navio imaginário, Mãe T lembra aos jovens participantes que, entre eles, encontram-se princesas que foram arrancadas do povo africano Nagô, e que elas levam consigo para o navio diversas coisas, notadamente pequenas pedras. Ela os lembra um dos cantos que será o seu, a ser repetido durante o jogo teatral, "Eu venho de Luanda, ai, ê!",34 34 Luanda: hoje capital de Angola, país africano do qual partiram numerosos escravos. que será preciso entoar durante a travessia. Ela ainda lembra que os primeiros entre eles (africanos) a atravessar o oceano vinham de Angola, e que eles foram transformados em escravos uma vez chegando ao Brasil. Que eles também foram os primeiros a se dispersar. Alguns, acrescenta ela, através da história, chegaram também ao Haiti, e esses negros realizaram uma revolução sem sequer irem à caserna para se tornarem generais.

Ela conta igualmente que outrora, na África, os quilombos existiram, pois eram uma antiga prática africana que servia àqueles que tinham problemas em situação de perigo: eram um lugar de refúgio. Além disso, três princesas atravessaram o oceano: Yá Calá, Yá Detá, Yá Nassô,35 35 Princesas nigerianas tornadas escravas às quais a tradição oral do candomblé atribui a fundação do terreiro Casa Branca de Salvador, Bahia. e trouxeram seus segredos consigo. Enquanto Yá (mulheres favoritas), essas princesas africanas são identificadas por Mãe T no candomblé, e são elas que trazem da África e difundem o candomblé. Assim foi com o povo do Dahomé e com o povo Funfun (orixás que se vestem de branco, como Oxalá). E ela completa:

"Vamos agora fazer mais do que o navio negreiro. Vamos contar a história da África e, sobretudo, da vida daqueles que vieram para cá como escravos e se dispersaram".

A partida

A partir desta seção, apresentamos quase integralmente a narrativa.36 36 Foram suprimidas apenas algumas partes, como passagens inaudíveis ligadas à gravação de certos ensaios e mais particularmente aos cantos de tipo litania, em particular "Trabalha, trabalha, negro" que atravessa umas vinte vezes a narrativa. As intenções de Mãe T, única narradora, são inseridas entre aspas. Nossos comentários sobre a ação que se realiza não têm aspas. Os cantos aparecem em itálico. O texto foi transcrito depois de gravado, em seguida validado e comentado na presença dos autores adultos e de Mãe T, e visualizando o DVD da gravação. Os nomes dos orixás aparecem em Iorubá, de acordo com a vontade da mãe de santo. A tradução é nossa, acompanhada por Pedro Simonard. Por questões de espaço, cantos não litânicos foram excluídos da narrativa.

"O mensageiro Exu (orixá da comunicação) sabia, através do sacerdote de Ifá (orixá da adivinhação e do destino), o que aconteceria e o que ele já havia anunciado nos povoados. Sabia já dos abusos da feitiçaria na África e sabia que viriam os brancos para sujeitá-los como escravos. Sabia que muitos iriam morrer, ser separados, mas que sua cultura iria sobreviver. As princesas vieram com seus segredos e foram separadas. Elas tinham consigo uma pedra sagrada de seu povoado (okuta), e a trocaram a fim de poderem continuar a viver em outros povoados. Antecipando-se à chegada de Exu e de Ogum, elas vieram antes do navio por ordem do Senhor do Mais-Além (criador do Universo). Elas sabiam o que ocorreria. Elas trocaram as pedras no navio, levando o segredo consigo e ocultando sua identidade de princesas. As três princesas foram vendidas, uma delas conseguindo escapar e juntar dinheiro para libertar suas irmãs e reunir todo o seu povo. O povo Ketu, o povo Nagô, o povo Jêje, o povo Mahi, o povo daometano, e todos eles começaram a se aglutinar. Misturaram-se. Os que tinham a pela mais negra eram os escravos. Exu mostra o caminho antes. Ossaim (orixá das plantas e ervas medicinais) leva a medicina. Já havia escravidão na África, mas não foi a escravidão que veio da África para o Brasil. Eles invadiam os povoados, capturavam-nos para levá-los a outros povoados. Essa história foi um grande mercado. Foram vendidos como peças separadas. Deixaram que tudo fosse vendido, toda a nossa identidade, o valor do ser humano, e eram mercadorias em peças. Pessoas que se transformaram em coisas, em mercadorias, como se vende uma panela. Eles abriam e olhavam os pés, as unhas, a boca, o tamanho. Os mais gordos e mais fortes eram os mais caros. As mulheres mais fortes davam mais leite. O homem para ser reprodutor, esta é a história."

A mãe de santo lembra então às crianças que os orixás não devem se manifestar pela palavra, e que seu papel é de indicar, orientar.

"É o pensamento do negro do navio que se recordará de vocês. Vocês vão chegar e vocês vão se acomodar."

A partir desse momento da narrativa, a mãe de santo sugere a cada um dos orixás que tome seu lugar. O grupo, saído do espaço sagrado onde se dão normalmente as cerimônias das festas religiosas, desloca-se lentamente para a árvore do esquecimento.37 37 Trata-se, segundo a narrativa, do último gesto que os escravos teriam feito antes de deixar a África, e de embarcar no navio negreiro. Dar a volta na árvore, partir e não olhar para trás. Este gesto é conhecido principalmente no Benin (Araujo, A. L., Mémoires de l'esclavage et traite des esclaves dans l'Atlantique Sud: Enjeux politiques de la patrimonialisation au Brésil et au Bénin, Thèse de doctorat, Québec, Université Laval, 2007). Os orixás se dispersam no arvoredo que cerca o terreiro. As crianças que representam os ancestrais, que estão vestidas de branco, caminham em torno da árvore do esquecimento, sendo seguidas, depois, pelas outras crianças, os escravos comuns. A mãe de santo canta: "Eu venho de Luanda, ai! Os caminhos de Luanda, ai! É um dia em Luanda, ai! Pequena pedra, pequenina pedra Luanda, Luanda, ai! Pequena pedra, pequena pedra! Uma pedra tão pequena, tão grande em Luanda, ai".

"É daqui que nós partiremos. Nós saímos de Luanda. Vocês verão ainda de longe essa pedra, e eles traziam a vocês para fazê-los retornar e esquecer todo o passado que foi o vosso. Eles acreditaram que vocês iriam esquecer. Para que vocês esqueçam os orixás, os oriquis,38 38 Cântico aos orixás no candomblé. toda a tradição, a história dos cativos dessas sociedades."

A mãe de santo entoa enfim outro canto que é repetido várias vezes ao longo da narrativa, em coro com os passageiros do navio imaginário: "Trabalha, trabalha, negro, trabalha para se cansar. O negro que não trabalha apanha para trabalhar". Os participantes se deslocam em seguida para o lençol-oceano, onde eles tomam assento reproduzindo com seus corpos, e em posição sentada, a forma alongada do navio negreiro.

A travessia no navio

"Vieram da África o culto de Ifá, o culto de Exu, o culto de Ogum. Eles louvavam Exu para que ele aparecesse e ajudasse. Exu, estais na África, estais no Ifé,39 39 Antiga cidade iorubá da Nigéria. vós estais por toda parte, mas vosso povo sofre nos porões dos navios. Nos porões dos navios, eles depositaram os acessórios dos orixás (seus objetos rituais característicos), e em seguida o trigo branco para transformá-lo em oferenda, pilões, medidas, pratos, os dos orixás, e eles disseram que era para alimentá-los. A sociedade de Oxalá (orixá da criação) pediu que os orixás pudessem interceder contra o sofrimento, seu sofrimento."

A mãe de santo recebe então Oxalá: "Epa epa Babá!".40 40 O ato de receber os orixás no terreiro é feito normalmente com uma frase ritual, específica para cada um; a mãe de santo reutiliza essas mesmas frases. Ela pede a Oxalá que se coloque ao lado do povo Funfun, que está presente no navio, pois se encontram ali todos os povos transportados como escravos da África para o Brasil.

"O rosto dos escravos eram as lágrimas, a tristeza, o sofrimento. O forte barulho do mar fazendo com que eles implorassem ainda mais ao Senhor do Mais-Além (Olorum) que ordenasse para que se trouxesse Obaluaê (orixá das pestes, da varíola, das doenças contagiosas), Nanã, e Oxumaré (orixá do arco-íris) que era conhecido como o rei dos oceanos. Exu fugiu para o céu e trouxe o povo do Dahomé, que se colocou entre Oxalá e Ossaim. Obaluaê! Para cuidar, o rei da terra, Nanã, a mulher do saber, da inteligência e Oxumaré, o rei do arco-íris e o primeiro que foi iniciado no culto de Ifá. E todo esse povo, esses orixás, conseguiu ver os porões e a fé dos escravos aumentou. As princesas se esconderam no meio dos escravos. Elas foram separadas. Pensou-se em destruir a cultura, mas elas a preservaram através da adivinhação. Elas sofreram. Elas apelaram a Ogum, o grande guerreiro que vinha defender, de Mais-Além, com a força de Olofim;41 41 Outra denominação para Oxalá. Elegba42 42 Outra denominação para Exu. chamou seu irmão, Ogum."

A mãe de santo recebe então Iemanjá (orixá do mar e das águas, mãe dos orixás): "Eru yá!", e depois Ogum: "Ogunhê! Ogunhê!"

"O segredo das princesas foi conservado, e elas abriram a primeira casa [de candomblé] em Salvador. Ogum, ao lado dos escravos, sentiu o desejo de chamar Iemanjá, sua mãe, mãe dos peixes, descendente de Yá Ori (rainha africana, mãe da cabeça), a mulher dos seios. Várias mulheres não podiam amamentar seus filhos por sofrerem. Ela sentia isso e se sentava na extremidade do navio. E Ogum chamou Exu a fim de que ele pudesse trazer Odé, o caçador (Odé: orixá da caça). Odé, pouco depois, transformou-se em Oxóssi,43 43 Efetivamente, Odé e Oxóssi são ambas denominações usadas no candomblé para nomear a divindade da caça. homem de belas roupas. Odé, sem sua vestimenta, levou carne para distribuir, e começaram então a aparecer os alimentos. Alguns escravos começaram a fabricar ebós (oferendas) para Oxalá. Perguntaram a Oroniã (orixá das terras profundas), a Ifá,44 44 Outro nome para Oxóssi. qual seria o destino a sua frente. E chamaram Obá (orixá e esposa do rei Xangô)."

A mãe de santo recebe então Obá: "Oba sirê! Obá sirê!"

"Obá chegou e se reencontrou com Iemanjá. Obá foi a primeira mulher a sofrer violência. Obá, em meio a uma intriga, perdeu suas orelhas por causa de um rei. Obá chamou Iansã (orixá dos ventos), que era mais velha, esposa do rei."

A mãe de santo recebe agora Iansã: "Eparrê Oiá!"

"Iansã, com seu leque, limpou suas feridas. Ela viu seus filhos e filhas sofrerem." "Eles [os orixás] começaram a acolher [seu povo]. Não deixe que ocorram brigas entre nós. Hoje somos ketus, angolas, jêjes, (...), ijejás, quibundos, todos juntos reunidos, e precisamos estar unidos."

"E todos recebem o grande rei de Oro."45 45 Referência ao antigo império e ao Estado de Oyo na Nigéria, da mesma forma que à atual cidade de Oyo no Congo. Supõe-se que a referência na narrativa é a primeira.

A mãe de santo recebe agora Xangô (orixá do trovão, do fogo e da justiça): "Kabiecile! Kabiecile!".

"Xangô chamou sua esposa Oxum (orixá das águas doces, do ouro e da beleza e outra esposa de Xangô) que é sua menina dos olhos e também menina dos olhos de Exu. Odé veio com suas duas esposas. Odé chamou então uma mulher de sua sociedade. Exu tomou as roupas ritualísticas que Ossaim escondia e as distribuiu a cada um deles; além disso, os abebés (utensílios), os ofás (arcos e flechas) e os eru (chifres) para que Iansã afaste a morte.46 46 Cada orixá carrega, por ocasião dos rituais de candomblé, um objeto ritual, arco e flecha, facas, espelhos, que lhe é próprio. São esses objetos que são dados aos orixás por ocasião da travessia do ambiente, como acontece após o transe no candomblé, quando o participante no ritual incorporou seu ancestral divinizado. Os corpos haviam sido atirados ao mar. O sasara (bastão ritualístico decorado com conchas) para Obaluaê para que ele afaste as pestes! E os orixás nos recolocaram de pé, recuperaram nossas vidas e nos libertaram. Caminhavam no navio. Iam na frente e reconheciam cada filho de cada povoado. As águas começavam a invadir o porão, e os orixás eram os últimos a começar a se sentar, como se fossem todos escravos, na mesma fileira destes, para os acolher e os liberar. Xangô, situado atrás do navio, com suas esposas Odé e Karé,47 47 Outro nome para Oxum. Oxalá e a sociedade Funfun os acompanhavam. O povo do Dahomé se sentou. Obaluaê estava ao fundo do navio, conduziu sua mãe, Nanã, consigo e deixou Oxumaré."

A chegada ao Brasil

"Eles se levantaram e começaram a receber a liberdade. Os que não suportaram partiram para o Além, reunidos com os orixás. Eles partiram mais cedo para reencontrar a liberdade dos outros. Lançaram um grito de liberdade. Os espíritos do Além e a sociedade dos Egunguns (ancestrais) os libertaram. Liberdade! O capataz ouviu que devia voltar para o meio de seu povo. Sua pele é clara, mas ele é negro. Foi uma política usada pelos brancos, os que tinham a pele mais clara eram levados a maltratar os seus, a açoitá-los. Elagba veio dançar e foi a única a dançar com seus ancestrais. Eles perceberam o espírito de seus pais, de seus avós, os que morreram, os que não suportaram a liberdade, todos de branco [vestidos]."

A mãe de santo saúda então Elagba: "Laroyé! Laroyé!"

"Liberdade, salve Luanda, salve Ifá, salve o povo ketu, salve todos eles, orixás masculinos e femininos, salve a sociedade de Ossaim! E, através de Exu, em cada casa onde houvesse um negro que já estivesse libertado, eles reconstruíram uma nova cultura que levou a boneca afoxé, e cantaram por não poderem participar do carnaval dos brancos. Cantaram o ritual dos orixás, o ritmo de Ijexá,48 48 Nação do candomblé herdeira das tradições da Nigéria. e ficaram na expectativa. Cantaram o ritual dos orixás, o ritmo de Ijexá e usaram de seus elekes,49 49 Nome para os orixás na santeria de Cuba. A mãe de santo sabe da existência dos outros cultos Iorubá trazidos para a América, o vudu e a santeria. de suas contas, de seus panos de costa (panos sagrados). Oxum se levantou e soube que poderia retornar para o Além. Oxum abriu os primeiros templos, e os negros construíram os primeiros templos da Bahia. Oxum foi a esposa de Ifá, e o povo de Ifá foi ter com Oxum. E os orixás também se foram do templo. O mensageiro (Exu) caminhou mais rapidamente avisando cada orixá que já podia retornar para o Além. Os últimos a voltar serão Odé, Ogum. O povo do Dahomé retornou para o Além para ser venerado nos terreiros de candomblé no Brasil. Agora, para além dos terreiros, podemos venerar nossos orixás na rua, através do afoxé. Oxalá reuniu-se com sua segunda esposa, Iemanjá; a primeira foi Nanã, de volta ao Além. Todos se abaixam e reverenciam Oxalá, o senhor do Além, representante de Obatalá na terra (o Criador na mitologia iorubá). As princesas voltaram e retomaram Oxé (o duplo de Xangô). E alguns dos escravos libertados começaram a levar os instrumentos e abriram as primeiras casas de candomblé. Yá Nassô abriu a primeira casa em Salvador a praticar o culto dos orixás. E ligadas ao culto dos ancestrais, ao culto dos Egunguns, outras culturas surgiram no Brasil."

Comentários e conclusão

Diversas tramas se encontram em copresença na narrativa que Mãe T propõe da partida, da travessia e da chegada dos escravos ao Brasil. A fim de estender nossas últimas análises, havendo já vários comentários ao longo da narrativa, retivemos dessas tramas a da construção da própria narrativa e de suas influências, a da refiguração identitária, a da experiência da escravidão e da liberdade e, enfim, a da ancestralidade e do destino.

Uma narrativa no encontro da diáspora, da tradição do candomblé e das ações afirmativas

A narrativa de Mãe T deve ser compreendida, inicialmente, como a encruzilhada entre três fontes que assumem um caráter social, religioso e político.

No plano social, há alguns anos, as religiões fundadas na herança Iorubá (candomblé, vudu, santeria) presentes na América do Norte, do Sul e no Caribe são mais e mais interconectadas pelos laços que estabelecem com a internet, as viagens cada vez mais frequentes das maiores autoridades religiosas e os chefes de cultos nos e entre os países onde se encontram essas religiões (Brasil, Estados Unidos, Cuba e Haiti, entre outros).50 50 Olupona J.K. e T. Rey, Òrìsà Devotion as World Religion, Madison, Wisconsin University Press, 2007. A esse fenômeno soma-se o da colaboração das ONGs com esses meios. Assim, diversas ONGs trabalham junto aos terreiros, ou, ainda, há terreiros que criam suas próprias ONGs. Mãe T é uma autoridade religiosa que tem acesso à internet em seu terreiro, que faz parte de muitas redes locais e nacionais, entre as quais uma que luta contra a discriminação religiosa no Brasil (Comissão Executiva do Movimento Inter-religioso do Rio de Janeiro) e outra que se preocupa com questões de saúde nos terreiros (desenvolvimento da Saúde nas Comunidades de Terreiro [ATOIRE]). Esta a faz encontrar seus pares brasileiros e circular em cidades como Salvador, São Luís do Maranhão, São Paulo. Ela também se deslocou em 2007 para o Panamá, e, em 2008, para o México, para encontros inter-religiosos. Ela não apenas fundou sua própria ONG como também é membro da ONG Crioula (Organização das Mulheres Negras do Rio de Janeiro) (www.crioula.org.br), através de um programa de combate à violência contra as mulheres, no seio do qual está presente uma rede de terreiros e de Ialorixás de sua localidade, dita das Iabás (orixás femininos). Mãe T é também uma mulher cujas influências são múltiplas na prática do que ela denomina um candomblé social, isto é, aberto para as realidades históricas, políticas e culturais de seu ambiente e de seus adeptos. Rompendo com a tradição do terreiro de um certo fechamento provocado pela necessidade de defesa e de autopreservação, primeiro pela tradição de resistência durante o período da escravidão, e depois em razão das violências das quais foi objeto após a abolição (destruição dos lugares e dos objetos de culto, remoção, etc.). Mãe T abre seu terreiro ao olhar externo (sem com isso quebrar a tradição do segredo que cerca a ancestralidade) e se expõe, ela mesma, para se abrir a outros olhares que não o seu, inclusive àquele da diáspora e de outras categorias de pessoas. Sua narrativa encontra-se assim na confluência de várias influências facilmente perceptíveis. A narrativa que propõe da vinda dos escravos ao Brasil é, por exemplo, totalmente consoante àquela que faz o movimento negro: encontra-se ali a crítica da democracia racial à brasileira e o ponto de vista bastante consensual sobre as relações entre os senhores e escravos durante o período colonial (elas não foram harmoniosas, os negros foram maltratados). Ela evoca diversas vezes, o que é inclusive sustentado pelos objetos dispostos sobre o lençol-oceano, pela presença dos afoxés, do samba, do candomblé durante a performance, a ideia da contribuição dos africanos e seus descendentes à cultura brasileira. Enfim, ela propõe uma narrativa que faz dos descendentes de escravos os autores de sua libertação, um tema que se encontra também no discurso de numerosos líderes negros no Brasil. Pode-se assim reconhecer a influência direta de algumas das ideias mais correntes que circulam fora do ambiente da cultura dominante.

A modernidade da prática dessa mãe de santo não significa, todavia, que a influência da tradição religiosa do candomblé brasileiro não esteja tão presente. Mãe T passou sua infância em Salvador; veio de uma família de adeptos do candomblé, e sua mãe era igualmente Ialorixá. Ela mesma diz que essa narrativa da travessia dos escravos foi por ela aprendida de início com o que se dizia no terreiro de sua infância, em sua família e sua família de santo, ali onde se contavam histórias para as crianças sobre suas origens. A tradição oral afro-brasileira, em particular a tradição do candomblé, é oriunda da resistência dos escravos à experiência de desumanização que eles conheceram através da escravidão; essa tradição, mesmo revisitada hoje, foi essencial para a preservação dos laços intracomunitários, o desenvolvimento da solidariedade e das estratégias de sobrevivência, a conectividade simbólica com as culturas de origem africana como base de uma elaboração identitária sempre renovada ao longo da colonização e depois dela. Os terreiros são também lugares de sociabilidade familiar e comunitária, e mesmo de socialização, favorecendo a criação de narrativas em torno da origem, do cativeiro, da liberdade, da identidade, da ancestralidade e do destino. Essa narrativa, ou, antes, essas múltiplas narrativas deram origem a contos que algumas mães de santo editaram em nosso tempo e destinaram às crianças que elas procuram expor no panteão dos orixás. Além desse propósito, acrescente-se que está claro que Mãe T teve acesso às narrativas tradicionais do panteão dos orixás,narrativas orais, escritas ou midiatizadas na web, atualmente efervescente. Tudo está conforme essas narrativas em seus aspectos paradigmáticos: os papéis dos orixás no desenrolar das homenagens, as palavras ritualísticas para recebê-los, as relações que se formam entre eles. Os objetos de culto, as cores das roupas, certos dramas e eventos (a orelha cortada de Obá ou as relações entre as mulheres de Xangô, por exemplo) se reencontram na maior parte das fontes clássicas referentes ao candomblé.51 51 Cf. Prandi, R., op. cit.

Uma terceira fonte de influência é a do trabalho das ONGs brasileiras e internacionais e do governo atual em relação às ações afirmativas. Esse trabalho, embora por vezes motivo de polêmicas, é certamente de uma importância capital, pois veio cristalizar mais de 75 anos de lutas pelo reconhecimento dos direitos sociais e econômicos e contra a discriminação racial no Brasil. As ações afirmativas, como vimos anteriormente, têm a ver com, entre outras coisas, o ensino de história africana e afro-brasileira, e com o lugar ocupado pela escravidão no seio dessa história; tais ações são semelhantes àquelas que reencontramos em um país como o Canadá a respeito dos autóctones. Por meio delas, certo número de publicações e de discursos circula, encontra nova credibilidade, devido ao lugar e ao caráter mais oficial das publicações, entre as quais são exemplo as publicações governamentais da Fundação Palmares (http://www.palmares.gov.br), e contribuem, sem dúvida, para formar as representações alternativas da narrativa nacional. No terreiro Ilê Asê X, algumas publicações oficiais do governo circulam, folders sobre a discriminação ou a cultura afro-brasileira, livros e também vídeos. Eles contribuem, certamente, para formar o esquema geral da narrativa, de seus temas e do papel que neles desempenham os escravos.52 52 Assinalamos que essa performance teatral não é ainda objeto de nenhum financiamento direto do governo ou de uma ONG externa. A narrativa e a representação teatral devem ser consideradas modos de refiguração da identidade no sentido da descolonização das representações das quais os escravos brasileiros foram portadores.

A refiguração identitária

A identidade proposta pela representação teatral e pela narrativa nos afasta em primeiro lugar da identidade-destino do escravo, isto é, a identidade daquele que herdou a infelicidade do cativeiro, que seria eternamente o atrasado e assistido da nação, esse pobre serviçal ignorante e subalterno. A vítima da escravidão, aquela designada pela identidade-destino, torna-se, na figuração proposta na narrativa de O Navio Negreiro, um vencedor (o cativo sabe escapar da sobrecarga de trabalho, ele engana, dissimula, guarda segredos, conhece o invisível, muda às vezes de nome como os orixás). Ele escapa daquilo a que era destinado (cativeiro e servidão) para se tornar filho de rei e de rainha, fundador, autoridade religiosa, criador, ancestral, divindade. Ele não foi destituído de sua identidade e de sua cultura, ele soube, ao contrário, preservá-la pelas diversas formas de resistências ilustradas pela pedra trazida da terra africana pelas princesas. Pôde então transigir entre os mundos do visível e do invisível (conexão com os ancestrais), entre a vida e a morte (pois aqueles que morrem retornam). Ele fez de sua identidade um objeto de preservação e de reinvenção do qual sua narrativa é, entre outras coisas, a ilustração.

Um aspecto importante desse trabalho sobre a identidade é o dos problemas atuais vividos pelas crianças, os pais e os adeptos do candomblé presentes. Embora o terreiro seja um lugar de orgulho e de afirmação identitária referente à presença africana em terra brasileira, isso não significa que essas pessoas não sejam hoje, elas mesmas, objeto de discriminação. Embora muitas vivam nos próprios lugares dos terreiros, e outras sejam vizinhas dele e nele encontrem um certa proteção, o candomblé (e seus adeptos) permanece ainda hoje objeto de discriminação da parte de, entre outros, praticantes das religiões neopentecostais, cujo acesso ao poder municipal é notável na região onde o terreiro está localizado. Mais ainda, apesar de os terreiros terem ganho as classes média e superior em sua maioria branca, uma maioria de seus adeptos são afro-brasileiros e estão entre as vítimas das desigualdades socioeconômicas no Brasil. Torna-se então importante, para além da história passada, tornar presentes e efetivas ações que promovam o candomblé como experiência de conquista (as princesas libertadas que abrem as primeiras casas de candomblé em Salvador, a religião que subsiste à desumanização) e transpor essa experiência de conquista para o espaço público (uma representação teatral que se desdobra entre dois espaços: a casa do culto e a casa da cidadania). A passagem do fim (a saída do navio e a chegada ao Brasil) que permite ver os escravos representados pelas crianças saírem do navio dançando samba e afoxé diante do espaço da cidadania (a escola), dirigir-se a ele ou, ainda, seguir para o espaço religioso (lugar das festividades do culto), é nesse ponto indicativo. Essa oscilação da narrativa e dos deslocamentos dos passageiros entre a sociedade civil dos cidadãos e a sociedade religiosa dos adeptos do candomblé oferece uma interpretação flexível aos participantes, evitando, ao mesmo tempo, uma sobrecarga proselitista: a religião pode se constituir como memória sem por isso ser uma escolha obrigatória. No presente caso, o papel desempenhado por essa religião na memória afro-brasileira parece prevalecer sobre a própria prática.

Outro ponto a sublinhar é o do lugar representado pelos corpos. A narrativa não se basta por si mesma e necessita, para se concretizar, da representação de corpos em cena. Com efeito, a narrativa propõe uma memória e uma identidade para os afro-brasileiros e ganha uma eficácia pelo jogo corporal dos passageiros que encenam o sofrimento do escravo açoitado e depois o transcendem, que oferecem aos olhos a graça das figuras femininas principescas, o porte altaneiro dos orixás, a dança dos cativos e dos não cativos. Além disso, os atores fazem mais do que tornar eficaz a narrativa pela figuração dos corpos: eles incorporam (embodiment) por seu gesto a narrativa. Com efeito, a experiência da representação teatral é uma interiorização do discurso que passa pela sensorialidade global do corpo sujeitado do escravo, e em seguida pela de outro sujeito, livre apesar de suas correntes, revestido metafórica e concretamente, e ao qual se confere a dignidade a um tempo reencontrada (aos próprios olhos) e almejada (da parte dos outros).

Escravidão e liberdade

A liberdade jurídica dos antigos escravos não veio somente de um decreto governamental, notadamente do ato de assinatura que aboliu a escravidão e que é atribuído na narrativa nacional à princesa Isabel, mas de vários outros acontecimentos: voltamos a eles através da narrativa.

A liberdade está ligada antes e acima de tudo à resistência. Ocultar e em seguida transportar pedras da África é um gesto último realizado pelas princesas africanas às quais se dão o status de Yá, antes mesmo que elas entrassem no navio negreiro e depois que elas tivessem dado a volta em torno da árvore do esquecimento. Fazer a volta em torno da árvore do esquecimento é o gesto de abandono da África e das raízes (simbolizado pelo baobá) que conduz ao processo de perda da identidade de origem. Ora, a narrativa fala dessas princesas capturadas que lograram esconder pedras, símbolos de memória, de cultura, de resistência e de segredo. A narrativa não se refere somente a esse gesto último de resistência antes da travessia, mas também a uma cultura da resistência outrora já presente (os quilombos) e à presença da escravidão em terra africana: era preciso saber se proteger do malefício e dos saqueadores, mesmo se o que ocorreu em terra africana foi julgado menos grave do que tudo o que aconteceu em seguida no Brasil.

A preservação da memória da cultura, figurada pela pedra (imutável) levada e mais tarde trocada, não é neutra: o terreiro se instala e se funda no Ayé (terra e vida), ali onde estão as pedras. A pedra, ao contrário da árvore (do esquecimento, o baobá, símbolo africano de fertilidade), podia ser levada e trocada. A pedra é também um pedaço simbólico da terra ancestral (a terra supõe permanência e renovação) que se transporta para outro pedaço de terra (sugerindo sedimentação e retomada de vida). O lençol-oceano religa essas duas terras, conecta-as pelos gestos dos passageiros portadores dessas pedras que são memória e cultura.

O tema da solidariedade reaparece na narrativa e merece atenção. Diz-se que foram os escravos libertos que abriram os terreiros em Salvador (gesto efetivamente impossível no cativeiro). O dinheiro da liberdade, ganho pelos escravos libertos, serviu para, entre outras coisas, a fundação de terreiros. A Abolição com certeza favoreceu a criação, e sobretudo a multiplicação, dos terreiros. Os escravos forros e presentes nos terreiros de outrora participaram de uma cultura de solidariedade característica desses meios onde tudo é comum, bens, alimentos, dinheiro. Tal cultura provavelmente facilitou a vida de muitas pessoas que foram deixadas em condições muito difíceis no momento da abolição e, depois, sem ajuda nem medidas do Estado para a sua transição. A solidariedade é a dos vivos em situação de resistência, mas é também a dos mortos, daqueles que são ancestrais figurados pelas crianças vestidas de branco, mortos durante a travessia, mas protegendo os vivos. É também aquela dos orixás do candomblé, ancestrais deificados, que se comportam como iguais bondosos com seus passageiros, e que não abandonam os seus. Que se sentam com eles no fundo dos porões. A liberdade veio igualmente das próprias práticas religiosas: estas últimas permitem criar uma humanidade negra humanizada, ao mesmo tempo em que implicam estratégias concretas de sobrevivência que passam pela alimentação, a roupa, a estética, os valores culturais e o laço familiar.

A narrativa proposta da escravidão é a do sofrimento, mas desemboca no orgulho, na dignidade, na força (potência de agir) dos sujeitos: desses sujeitos que sabem (o que aconteceria era sabido), enganam, escondem, desviam-se, detêm as chaves dos códigos e as artes do fazer que será preciso transmitir até hoje.

Último ponto: a sociedade brasileira é apresentada como uma sociedade racista, mas atravessada pela influência afro-brasileira e africana. Os valores afro-brasileiros, fortemente religados aos valores africanos, seriam também valores salvadores, posto que é neles e por eles que os cativos encontram a forma de não desaparecer. A chegada dos escravos no Brasil e alhures é representada por aqueles que, já no navio negreiro, dançam, cantam, rejubilam-se, carregam a alegria, a sensualidade, o encantamento e os Deuses. É no barco mesmo que se grita e se representa o gesto da liberdade por um jovem rapaz: vê-se-o levantar após alguns passos de capoeira, essa arte do combate dos antigos, e dizer "Liberdade!", trazendo de imediato todos os passageiros para o movimento de avanço libertador. A África é assim apresentada como o lugar de onde se é arrancado e desenraizado, tornando-se fonte infinita da memória e das raízes que simples pedras ocultadas desde a sua terra permitiram reimplantar. A narrativa da sujeição à escravidão e da posterior libertação inscreve-se finalmente na sequência da trama narradora da identidade e da refiguração do sujeito afro-brasileiro no espaço público, sujeito criador de seu destino coletivo.

Destino e ancestralidade

A refiguração da identidade e da liberdade que propõe a narrativa de Mãe T é baseada em dois primeiros princípios que evocamos e que lembramos: a heroicização da vítima e sua humanização. A figura do escravo servil, despossuído, e do sujeito desqualificado se encontra na narrativa metamorfoseada e migra para a do sujeito do qual a memória, a cultura e a potência de agir prevalecem. Ele é herói porque escapou aos desejos do senhor; é humanizado porque sabe guardar a memória dos ancestrais e das divindades que o conduzem a uma humanização que poderia ir até a deificação, segundo o ciclo da vida e da morte no candomblé.

Dois outros princípios se unem ao primeiro: a ancestralidade e a africanidade.

A importância que assume a ancestralidade na narrativa é central. Os ancestrais remetem os participantes à origem que marca sua identidade, à morte imposta (daqueles que morreram antes da travessia e dos quais se tem a memória, daqueles que morreram durante a travessia ou na chegada) e ao retorno desses seres na comunidade dos vivos (e dos resistentes). O sujeito afro-brasileiro de que trata a narrativa não poderia ser reconhecido sem essa parte genealógica e transcontinental de sua historicidade. Precisa de algum modo tirar as consequências disso. Existir, aparecer no seio da sociedade brasileira, é viver a aliança incontornável com os mortos, com "os que sofreram antes de nós".

O outro princípio é o da africanidade, estreitamente ligado ao primeiro. À desumanização que reduziu os sujeitos a seus corpos, os afro-brasileiros do candomblé responderam com o apelo ao Além do corpo que é o ancestral tornado divindade, habitando os lugares da natureza e ocupando o espaço, de parte a parte, pela ancestralidade que liga as divindades (ou orixás) entre África e Brasil. A África em seu conjunto, e não a Nigéria, o Benin ou Angola. Longe de ser o lugar da condenação que poderia representar, a escravidão era lá praticada muito antes do comércio atlântico, e a narrativa de Mãe T faz referência a isso, a África imaginada aqui é o lugar das glórias (a realeza de origem), das fortes tradições (milenares), dos modelos de vida (os orixás) e, seguramente, da distinção (fundamento da diferença afro-brasileira).

É assim, por palavras e corpos, pela ancestralidade afirmada e africanizada e pela humanização e heroicização do antigo escravo, que se constrói nessa narrativa mimética (no sentido de Ricoeur, op.cit.) ligando passado, presente e porvir, um processo de refiguração identitária que conduz a uma nova subjetividade afro-brasileira.

  • 1 Sobre o debate a respeito da discriminação que os adeptos das religiões neopentecostais exerceriam sobre as religiões de matriz africana no Brasil, ver Gonçalves da Silva V., «Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: Significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo», Mana, v. 13, nş. 1, 2007 e Corten A.
  • , Le pentecostisme au Brésil, Paris, Karthala, 1995.
  • 2 Cf. Alberti V. e A. Araújo Pereira, Histórias do movimento negro no Brasil, Rio de Janeiro, Pallas, 2007;
  • Contins M., Lideranças negras, Rio de Janeiro, Aeroplano, 2005;
  • Garcia J., 25 anos movimento negro no Brasil. 1980-2005, Brasília, Fundação Cultural Palmares, 2005 .
  • 3 O termo Afro-brasileiro pode ser considerado como relativamente novo no Brasil e tem atualmente certo consenso, mais do que o de Negro ou o de Afrodescendente, para nomear os que são ligados, por sua experiência e sua identificação, aos elementos culturais de influência africana e reconfigurados na trama da cultura afro-brasileira, através das práticas indumentárias, ornamentais, culinárias, musicais ou religiosas; é este o termo usado no texto da Lei sobre igualdade racial no Brasil (PL 6.264/2005). Sobre a história desse termo, entre outros, L. Sansone, From Africa to Afro: Use and Abuse of Africa in Brazil, Amsterdam, Dakar, South-South Exchange Programme for Research on History of Development (SEPHIS) and Council for the Development of Social Science Research in Africa (CODESRIA), 1999;
  • L. Sansone, «La Communauté noire existe-elle?: Identité et culture des Afro-bahianais», dans Michel Agier, dir., «Les Mots du discours afro-brésilien en débat», Cahiers du Brésil contemporain, 49/50, 2002: 135-151;
  • L. Sansone, Blackness without ethnicity: constructing race in Brazil, New York, Palgrave Macmillan, 2003 e J.
  • -F. Véran, «L'Afro-brésilianité aujourd'hui: un modèle d'intégration?», Caravelle, numéro 75, Centre National du Livre, Presses Universitaires du Mirail, Toulouse, décembre, 2000: 25-47.
  • 4 P. Ricoeur, Temps et récit, 1. «L'intrigue et le récit historique», Paris, Seuil, 1983: 105-162.
  • 5 Oficialmente o nome deste terreiro é identificado em língua Iorubá. Tendo em vista a dificuldade de traduzir corretamente todos os termos do candomblé na língua Iorubá, e levando em conta a instabilidade da ortografia Iorubá tal qual se observa no Brasil, muito variável segundo os autores, optamos no conjunto do artigo usar os termos Iorubá de acordo com a ortografia portuguesa, seguindo as indicações encontradas nas obras de Prandi (Prandi R., Mitologia dos Orixás, São Paulo, Companhia das Letras, 2001 e Segredos Guardados,
  • 6 As ações afirmativas consistem num conjunto de medidas de equidade voltadas para os grupos que sofrem discriminação sistemática: consultar Castel R., La discrimination négative, Paris, Seuil, 2007 e Dos Santos R.
  • E. e F. Lobato, Ações afirmativas, Rio de Janeiro, DP&A, 2003.
  • 7 Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, São Paulo, Global, 2003 [1933]
  • 8 Segundo Laplantine e Nouss: "Noção forjada pelo sociólogo Gilberto Freyre em seu livro Casa-Grande & Senzala para mostrar o nascimento de um povo novo - o Brasil - formado pelo encontro cultural mas antes de mais nada sensual e sexual dos índios, dos Africanos e dos Portugueses sob os trópicos". Esta noção é anterior à da mestiçagem e à sua teorização. Ela assume sobretudo o sentido de fusão e não tem o alcance teórico daquela proposta por esses mesmos autores no que se refere à noção de mestiçagem. (Ver Laplantine F. e A. Nouss, Métissages, de Arciboldo à Zomi, Paris, Pauvert, 2001: 428-430.
  • 9 L. M. Schwarcz, O espectáculo das raças, São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
  • 10 S. Grunzinski, La pensée métisse, Paris, Fayard, 1999.
  • 12 E. Levinas, Autrement qu'être ou au-delà de l'essence, Paris, Biblio Poche, 1993 e Derrida J.
  • , De l'hospitalité, Paris, Calmann-Levy, 1997.
  • 13 É. Glissant, Traité du tout-monde, Paris, Gallimard, 1997 e
  • moires des esclavages, Paris, Gallimar , 2007.
  • 14 A. S. Guimarães, «Démocratie raciale», dans Michel Agier, Les mots du discours afro-brésilien en débat, Cahiers du Brésil Contemporain, numéro 49/50: 11-38, 2002 e «
  • Depois da democracia racial», Tempo Social, revista de Sociologia da USP, v. 18, nº. 2, 2006.
  • 15 Ver as excelentes sínteses de Y. Maggie e C. B. Rezende (Org.), Raça Como Retórica: A Construção da Diferença, Rio de Janeiro, Record, 2001;
  • Fry P.; Maggie, Y.; Maio, C. M.; Monteiro, S., e V. Ricardo Santos (Org.), Divisões Perigosas: Políticas Raciais no Brasil Contemporâneo, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007,
  • e Fry P., A Persistência da Raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África Austral, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005.
  • 16 O Brasil não adotou a lei segregacionista como foi o caso dos Estados Unidos. Este fato é muito importante nos debates que opõem os herdeiros da teoria da democracia racial aos que veem esta teoria como uma heresia. Notemos, entretanto, que desde os anos 1950 um primeiro diagnóstico do problema da construção étnico-racial das desigualdades no Brasil foi colocado por um grupo de sociólogos de São Paulo, por ocasião da publicação de uma série de estudos encomendados pela UNESCO (Cf. Marcos Chor Maio, «UNESCO and the Study of Race Relations in Brazil», Latin American Research Review, 36, 2, 2001: 118-136).
  • Por outro lado, na sociedade brasileira, a questão da cor permanece fundamental para quem é ou não "Afro-Brasileiro", e tem, consequentemente, direitos às ações afirmativas. Ver sobre esta questão o debate que levou à tomada de posição de 25 antropólogos no número especial da Revista Horizontes Antropológicos, vol. 11, nş. 23, 2005, e em particular o artigo de Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos, "Política de cotas raciais, os "olhos da sociedade" e os usos da antropologia: o caso do vestibular da Universidade de Brasília (UnB)", p. 181-214.
  • 17 K. Munanga, Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Identidade Nacional versus Identidade Negra, 2Ş. ed., Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2004 e D'Adesky J.
  • , Liberdade e reconhecimento, Rio de Janeiro, DAUDTDESIGN EDITORA, 2006.
  • 18 Sobre as condições dos libertos após a abolição, cf. Gomes da Cunha O.M. e F. Dos Santos Gomes, Quase-cidadão, Rio de Janeiro, FGV Editora, 2007.
  • 19 Para uma síntese desses pontos de vista, ver Saillant F. e A.L. Araujo, «Zumbi: mort, mémoire et résistance», Frontières, nş. 19-1, 2006: 37-43.
  • ____., «L'esclavage au Brésil. Le travail du mouvement noir», Ethnologie française, XXXVII, 3, 2007: 457-467.
  • 20 Araujo E., Museu Afrobrasil. Um conceito em perspectiva, São Paulo, Instituto Florestan Fernandes e SEPPIR, 2006.
  • 21 Saillant F. e A.L. Araujo. «L'esclavage au Brésil. Le travail du mouvement noir», Ethnologie française, XXXVII, 3, 2007 : 457-467.
  • 24 Prandi R., Mitologia dos Orixás, São Paulo, Companhia das Letras, 2001 e Segredos Guardados,
  • São Paulo, Companhia das Letras, 2005.
  • 31 Segundo a história do candomblé, a saída pública dos terreiros por ocasião do carnaval, chamada por Roger Bastide candomblé para rir (Bastide, R., Le candomblé de Bahia, Paris, Plon, 2000 [1958]
  • ). O afoxé no fundo é uma forma de candomblé de rua (Lody, R., «Afoxé», Cadernos de Folclore, 7, 1976;
  • Ribard F., Le carnaval noir de Bahia, Paris, L'Harmattan, 1999),
  • 37 Trata-se, segundo a narrativa, do último gesto que os escravos teriam feito antes de deixar a África, e de embarcar no navio negreiro. Dar a volta na árvore, partir e não olhar para trás. Este gesto é conhecido principalmente no Benin (Araujo, A. L., Mémoires de l'esclavage et traite des esclaves dans l'Atlantique Sud: Enjeux politiques de la patrimonialisation au Brésil et au Bénin, Thèse de doctorat, Québec, Université Laval, 2007).
  • 50 Olupona J.K. e T. Rey, Òrìsà Devotion as World Religion, Madison, Wisconsin University Press, 2007.
  • *
    Este texto foi escrito originalmente em francês em 2009, e imediatamente traduzido para o português por Vitor Acselrad e aprovado para publicação neste dossiê da
    Revista Tempo, a convite de Hebe Mattos. A versão francesa está publicada no dossiê "
    Black Images" (32-2, 2009) da revista canadense
    Ethnologies, organizado por Francine Saillant. A narrativa analisada deu origem ao filme de pesquisa
    O Navio Negreiro, registrado em DVD com legendas em português, apresentado no Brasil em versão ainda preliminar em novembro de 2008, durante o Festival Internacional do Filme de Pesquisa sobre a Memória e História da Escravidão Moderna, organizado pelo Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense, no Centro Cultural do Banco do Brasil, e em sua versão definitiva em novembro de 2009, no contexto de nova versão do festival, também no CCBB e no Espaço Meriti Prev, em São João de Meriti.
  • 1
    Sobre o debate a respeito da discriminação que os adeptos das religiões neopentecostais exerceriam sobre as religiões de matriz africana no Brasil, ver Gonçalves da Silva V., «Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: Significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo»,
    Mana, v. 13, nº. 1, 2007 e Corten A. ,
    Le pentecostisme au Brésil, Paris, Karthala, 1995. Alguns terreiros se organizaram em rede para lutar contra essa discriminação, incluindo o terreiro de que falamos neste artigo.
  • 2
    Cf. Alberti V. e A. Araújo Pereira,
    Histórias do movimento negro no Brasil, Rio de Janeiro, Pallas, 2007; Contins M.,
    Lideranças negras, Rio de Janeiro, Aeroplano, 2005; Garcia J.,
    25 anos movimento negro no Brasil. 1980-2005, Brasília, Fundação Cultural Palmares, 2005 .
  • 3
    O termo Afro-brasileiro pode ser considerado como relativamente novo no Brasil e tem atualmente certo consenso, mais do que o de Negro ou o de Afrodescendente, para nomear os que são ligados, por sua experiência e sua identificação, aos elementos culturais de influência africana e reconfigurados na trama da cultura afro-brasileira, através das práticas indumentárias, ornamentais, culinárias, musicais ou religiosas; é este o termo usado no texto da Lei sobre igualdade racial no Brasil (PL 6.264/2005). Sobre a história desse termo, entre outros, L. Sansone,
    From Africa to Afro: Use and Abuse of Africa in Brazil, Amsterdam, Dakar,
    South-South Exchange Programme for Research on History of Development (SEPHIS) and Council for the Development of Social Science Research in Africa (CODESRIA), 1999; L. Sansone,
    «La Communauté noire existe-elle?: Identité et culture des Afro-bahianais», dans Michel Agier, dir.,
    «Les Mots du discours afro-brésilien en débat», Cahiers du Brésil contemporain, 49/50, 2002: 135-151; L. Sansone,
    Blackness without ethnicity: constructing race in Brazil, New York, Palgrave Macmillan, 2003 e J. -F. Véran,
    «L'Afro-brésilianité aujourd'hui: un modèle d'intégration?», Caravelle, numéro 75, Centre National du Livre, Presses Universitaires du Mirail, Toulouse,
    décembre, 2000: 25-47.
  • 4
    P. Ricoeur,
    Temps et récit, 1. «L'intrigue et le récit historique», Paris, Seuil, 1983: 105-162.
  • 5
    Oficialmente o nome deste terreiro é identificado em língua Iorubá. Tendo em vista a dificuldade de traduzir corretamente todos os termos do candomblé na língua Iorubá, e levando em conta a instabilidade da ortografia Iorubá tal qual se observa no Brasil, muito variável segundo os autores, optamos no conjunto do artigo usar os termos Iorubá de acordo com a ortografia portuguesa, seguindo as indicações encontradas nas obras de Prandi (Prandi R.,
    Mitologia dos Orixás, São Paulo, Companhia das Letras, 2001 e
    Segredos Guardados, São Paulo, Companhia das Letras, 2005). A partir de agora, o terreiro será identificado neste artigo pela letra X e a Mãe de Santo pela letra T precedida da palavra Mãe.
  • 6
    As ações afirmativas consistem num conjunto de medidas de equidade voltadas para os grupos que sofrem discriminação sistemática: consultar Castel R.,
    La discrimination négative, Paris, Seuil, 2007 e Dos Santos R. E. e F. Lobato,
    Ações afirmativas, Rio de Janeiro, DP&A, 2003.
  • 7
    Gilberto Freyre,
    Casa-Grande & Senzala, São Paulo, Global, 2003 [1933] .
  • 8
    Segundo Laplantine e Nouss: "Noção forjada pelo sociólogo Gilberto Freyre em seu livro
    Casa-Grande & Senzala para mostrar o nascimento de um povo novo - o Brasil - formado pelo encontro cultural mas antes de mais nada sensual e sexual dos índios, dos Africanos e dos Portugueses sob os trópicos". Esta noção é anterior à da mestiçagem e à sua teorização. Ela assume sobretudo o sentido de fusão e não tem o alcance teórico daquela proposta por esses mesmos autores no que se refere à noção de mestiçagem. (Ver Laplantine F. e A. Nouss,
    Métissages, de Arciboldo à Zomi, Paris, Pauvert, 2001: 428-430. )
  • 9
    L. M. Schwarcz,
    O espectáculo das raças, São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
  • 10
    S. Grunzinski,
    La pensée métisse, Paris, Fayard, 1999.
  • 11
    F. Laplantine e A. Nouss, op. cit.
  • 12
    E. Levinas, Autrement qu'être ou au-delà de l'essence, Paris, Biblio Poche, 1993 e Derrida J. , De l'hospitalité, Paris, Calmann-Levy, 1997.
  • 13
    É. Glissant,
    Traité du tout-monde, Paris, Gallimard, 1997 e
    Mé moires des esclavages, Paris, Gallimar , 2007.
  • 14
    A. S. Guimarães,
    «Démocratie raciale», dans Michel Agier,
    Les mots du discours afro-brésilien en débat, Cahiers du Brésil Contemporain, numéro 49/50: 11-38, 2002 e « Depois da democracia racial»,
    Tempo Social, revista de Sociologia da USP, v. 18, nº. 2, 2006.
  • 15
    Ver as excelentes sínteses de Y. Maggie e C. B. Rezende (Org.),
    Raça Como Retórica: A Construção da Diferença, Rio de Janeiro, Record, 2001; Fry P.; Maggie, Y.; Maio, C. M.; Monteiro, S., e V. Ricardo Santos (Org.),
    Divisões Perigosas: Políticas Raciais no Brasil Contemporâneo, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, e Fry P.,
    A Persistência da Raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África Austral, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005.
  • 16
    O Brasil não adotou a lei segregacionista como foi o caso dos Estados Unidos. Este fato é muito importante nos debates que opõem os herdeiros da teoria da democracia racial aos que veem esta teoria como uma heresia. Notemos, entretanto, que desde os anos 1950 um primeiro diagnóstico do problema da construção étnico-racial das desigualdades no Brasil foi colocado por um grupo de sociólogos de São Paulo, por ocasião da publicação de uma série de estudos encomendados pela UNESCO (Cf. Marcos Chor Maio,
    «UNESCO and the Study of Race Relations in Brazil», Latin American Research Review, 36, 2, 2001: 118-136). Por outro lado, na sociedade brasileira, a questão da cor permanece fundamental para quem é ou não "Afro-Brasileiro", e tem, consequentemente, direitos às ações afirmativas. Ver sobre esta questão o debate que levou à tomada de posição de 25 antropólogos no número especial da
    Revista Horizontes Antropológicos, vol. 11, nº. 23, 2005, e em particular o artigo de Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos, "Política de cotas raciais, os "olhos da sociedade" e os usos da antropologia: o caso do vestibular da Universidade de Brasília (UnB)", p. 181-214.
  • 17
    K. Munanga,
    Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Identidade Nacional versus Identidade Negra, 2ª. ed., Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2004 e D'Adesky J. ,
    Liberdade e reconhecimento, Rio de Janeiro, DAUDTDESIGN EDITORA, 2006.
  • 18
    Sobre as condições dos libertos após a abolição, cf. Gomes da Cunha O.M. e F. Dos Santos Gomes,
    Quase-cidadão, Rio de Janeiro, FGV Editora, 2007.
  • 19
    Para uma síntese desses pontos de vista, ver Saillant F. e A.L. Araujo,
    «Zumbi: mort, mémoire et résistance», Frontières, nº. 19-1, 2006: 37-43. ____.,
    «L'esclavage au Brésil. Le travail du mouvement noir», Ethnologie française, XXXVII, 3, 2007: 457-467.
  • 20
    Araujo E.,
    Museu Afrobrasil. Um conceito em perspectiva, São Paulo, Instituto Florestan Fernandes e SEPPIR, 2006.
  • 21
    Saillant F. e A.L. Araujo. «L'esclavage au Brésil.
    Le travail du mouvement noir», Ethnologie française, XXXVII, 3, 2007 : 457-467.
  • 22
    Essas leis dizem respeito não só ao ensino obrigatório da história africana e afro-brasileira, mas também à do reconhecimento das comunidades de quilombos (Artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição) e o projeto de lei sobre as cotas nas universidades (PL 73/1999).
  • 23
    Usamos o termo tradicional de forma
    émique. Os terreiros e os quilombos são considerados pelos historiadores e antropólogos como lugares de elaboração da cultura afro-brasileira e de resistência em relação às condições ligadas à história da escravidão. Trata-se de comunidades no sentido de meio de vida que reúne um grupo social ligado a um território restrito e definido, mesmo se facilmente reconhecido no sentido legal da propriedade. Esse grupo é também ligado por um conjunto de práticas culturais e por uma memória coletiva herdada, apropriada e transmitida. A tradição não está entretanto fechada; ela é aberta no sentido que Ricoeur dá a este termo (Ricoeur, P.,
    op. cit.).
  • 24
    Prandi R.,
    Mitologia dos Orixás, São Paulo, Companhia das Letras, 2001 e
    Segredos Guardados, São Paulo, Companhia das Letras, 2005.
  • 25
    De fato, segundo algumas fontes, a região conhecida como Baixada Fluminense acolheria a maior concentração de terreiros, cerca de 450, depois de Salvador (comunicação pessoal, Luis Fernando Martins da Silva).
  • 26
    A busca de autenticidade de alguns Afro-Brasileiros abre espaço a uma espécie de reafirmação do candomblé em relação à umbanda, ainda majoritária no Rio de Janeiro.
  • 27
    Processo pelo qual terreiros buscam se inspirar no que eles chamam de "tradições africanas" na prática do culto. O termo nação é usado para distinguir as formas de expressão do candomblé e suas variações quanto ao dialeto usado no culto, os ritmos dos tambores sagrados e a liturgia.
  • 28
    Trata-se do trabalho de campo que efetuo no Rio de Janeiro no contexto do projeto "As formas socioculturais e político-jurídicas das demandas de reparação dos afro-brasileiros: os paradoxos do comunitarismo e da democracia", projeto subvencionado pelo Conselho de Pesquisas em Ciências Humanas do Canadá desde 2005. Este trabalho de campo permite explorar os diferentes sentidos e formas das práticas ligadas à ideia de reparação nas esferas religiosas, culturais e jurídico-políticas.
  • 29
    Em particular com o objetivo de explorar as formas culturais e religiosas da ideia de reparações ligadas à escravidão no Brasil.
  • 30
    Dois filmes têm produção e colaboração com o terreiro, com a preciosa colaboração de Pedro Simonard:
    Axé, Dignidade! e
    O Navio Negreiro. O segundo filme apresenta a peça que discutimos.
  • 31
    Segundo a história do candomblé, a saída pública dos terreiros por ocasião do carnaval, chamada por Roger Bastide candomblé para rir (Bastide, R.,
    Le candomblé de Bahia, Paris, Plon, 2000 [1958] ). O afoxé no fundo é uma forma de candomblé de rua (Lody, R., «Afoxé»,
    Cadernos de Folclore, 7, 1976; Ribard F.,
    Le carnaval noir de Bahia, Paris, L'Harmattan, 1999), na sua forma não sagrada, e que abre espaço a um estilo musical com o mesmo nome, para blocos carnavalescos com repertório de canções.
  • 32
    A narrativa aqui apresentada deve ser considerada como um conto. Em alguns casos considerados mais importantes, comentaremos em notas algumas afirmações com o objetivo de compará-las com o ponto de vista estabelecido pelos historiadores.
  • 33
    A ação acontece em maio de 2007.
  • 34
    Luanda: hoje capital de Angola, país africano do qual partiram numerosos escravos.
  • 35
    Princesas nigerianas tornadas escravas às quais a tradição oral do candomblé atribui a fundação do terreiro Casa Branca de Salvador, Bahia.
  • 36
    Foram suprimidas apenas algumas partes, como passagens inaudíveis ligadas à gravação de certos ensaios e mais particularmente aos cantos de tipo litania, em particular
    "Trabalha, trabalha, negro" que atravessa umas vinte vezes a narrativa. As intenções de Mãe T, única narradora, são inseridas entre aspas. Nossos comentários sobre a ação que se realiza não têm aspas. Os cantos aparecem em itálico. O texto foi transcrito depois de gravado, em seguida validado e comentado na presença dos autores adultos e de Mãe T, e visualizando o DVD da gravação. Os nomes dos orixás aparecem em Iorubá, de acordo com a vontade da mãe de santo. A tradução é nossa, acompanhada por Pedro Simonard. Por questões de espaço, cantos não litânicos foram excluídos da narrativa.
  • 37
    Trata-se, segundo a narrativa, do último gesto que os escravos teriam feito antes de deixar a África, e de embarcar no navio negreiro. Dar a volta na árvore, partir e não olhar para trás. Este gesto é conhecido principalmente no Benin (Araujo, A. L.,
    Mémoires de l'esclavage et traite des esclaves dans l'Atlantique Sud: Enjeux politiques de la patrimonialisation au Brésil et au Bénin,
    Thèse de doctorat, Québec, Université Laval, 2007).
  • 38
    Cântico aos orixás no candomblé.
  • 39
    Antiga cidade iorubá da Nigéria.
  • 40
    O ato de receber os orixás no terreiro é feito normalmente com uma frase ritual, específica para cada um; a mãe de santo reutiliza essas mesmas frases.
  • 41
    Outra denominação para Oxalá.
  • 42
    Outra denominação para Exu.
  • 43
    Efetivamente, Odé e Oxóssi são ambas denominações usadas no candomblé para nomear a divindade da caça.
  • 44
    Outro nome para Oxóssi.
  • 45
    Referência ao antigo império e ao Estado de Oyo na Nigéria, da mesma forma que à atual cidade de Oyo no Congo. Supõe-se que a referência na narrativa é a primeira.
  • 46
    Cada orixá carrega, por ocasião dos rituais de candomblé, um objeto ritual, arco e flecha, facas, espelhos, que lhe é próprio. São esses objetos que são dados aos orixás por ocasião da travessia do ambiente, como acontece após o transe no candomblé, quando o participante no ritual incorporou seu ancestral divinizado.
  • 47
    Outro nome para Oxum.
  • 48
    Nação do candomblé herdeira das tradições da Nigéria.
  • 49
    Nome para os orixás na santeria de Cuba. A mãe de santo sabe da existência dos outros cultos Iorubá trazidos para a América, o vudu e a santeria.
  • 50
    Olupona J.K. e T. Rey, Òrìsà Devotion as World Religion, Madison, Wisconsin University Press, 2007.
  • 51
    Cf. Prandi, R., op. cit.
  • 52
    Assinalamos que essa
    performance teatral não é ainda objeto de nenhum financiamento direto do governo ou de uma ONG externa.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010
    EdUFF - Editora da UFF Instituto de História/Universidade Federal Fluminense, Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, Bloco O, sala 503, 24210-201, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, tel:(21)2629-2920, (21)2629-2920 - Niterói - RJ - Brazil
    E-mail: tempouff2013@gmail.com