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Metáforas da "nação"

ALBERTO, Paulina L. Terms of inclusion: black intellectuals in twentieth-century Brazil. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2011. 396 p.

Como os ativistas e intelectuais negros de São Paulo, do Rio de Janeiro e da Bahia se mobilizaram em movimentos de afirmação racial e cultural ao longo do século XX? De que forma agenciaram questões como identidade racial, autodeterminação, projetos de "nação" e cidadania? Como se relacionaram e negociaram com as ideologias dominantes que emergiram no Brasil nesse período? Ou, sendo mais preciso, como eles lidaram com a"democracia racial" - o termo mais comumente utilizado para se referir às ideias brasileiras de harmonia racial? Perguntas nada fáceis de serem respondidas. Entretanto, é em torno delas e de outras questões correlatas o tema do livro Terms of inclusion: black intellectuals in twentieth-century Brazil, de Paulina L. Alberto.

Nascida na Argentina, Paulina Alberto é professora associada da Universidade de Michigan, em Ann Arbor, Estados Unidos. O livro é produto da sua tese de doutorado, defendida na Universidade da Pensilvânia. A proposta da autora é investigar as articulações e tensões entre as narrativas de raça, identidade nacional, pensamento social e ativismo negro a partir de três cidades (São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador) entre as décadas de 1920 e 1980. Para empreender tal investigação, consultou sobretudo matérias, artigos e editoriais publicados na chamada "imprensa negra" de São Paulo. Em menor escala, explorou os jornais da grande imprensa, textos de memórias e entrevistas realizadas por outros pesquisadores com os militantes afro-brasileiros. De forma bem pontual, ainda se valeu de anais da Assembleia Constituinte, de relatórios do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) - o departamento de polícia política - e de correspondências (pessoais e institucionais).

Partindo do pressuposto de que as ideias de "fraternidade racial" e "democracia racial" eram metáforas mutantes da "nação", que adquiriram diferentes sentidos e diversos significados ao longo do século XX, Paulina Alberto argumenta que os ativistas e intelectuais negros conceberam aquelas metáforas principalmente como meio de abrir um espaço de interlocução e negociação com as elites (intelectuais e políticas), espaço a partir do qual os afro-brasileiros poderiam pautar suas questões, expectativas e aspirações de reconhecimento, igualdade e cidadania. Enquanto o ideal de "democracia racial" foi amiúde usado pelas elites para negar o racismo à brasileira e fazer circular as imagens e representações de convivência harmoniosa entre negros e brancos, os afro-brasileiros tentaram dele fazer uma via para discutir direitos e, no limite, negociar sua inclusão no seio da comunidade nacional.

No decorrer dos seis capítulos do livro - "Foreigners" (1900-1925), "Fraternity" (1925-1929), "Nationals" (1930-1945), "Democracy" (1945-1950), "Difference" (1950-1964) e "Descolonization" (1964-1985) -, a autora examina como os ativistas e intelectuais negros de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, desde as primeiras décadas do século XX, cumpriram um papel ativo, ora na edificação, ora na manutenção, ora na contestação da ideologia da harmonia racial. Mesmo que tenham, em alguns momentos, legitimado tal ideologia, em outros, refutaram-na, vociferando publicamente a existência do racismo. Mais que isso, houve contextos nos quais aquela ideologia foi acionada no sentido antirracista. Isso ocorria, por exemplo, quando o discurso da harmonia racial era usado para denunciar preconceitos e discriminações de cor/raça como contrárias ao ethos, se não ao modus vivendi, do brasileiro. O livro procura, assim, mapear os diferentes momentos do pensamento e das ações político-culturais dos ativistas afro-brasileiros - com suas narrativas, associações e jornais que funcionavam como veículos de propaganda de seus ideais -, inscrevendo tais momentos como parte da longa luta travada por esses ativistas a favor da promoção do negro como cidadão brasileiro.

Depois da abolição da escravatura (1888) e nos primeiros anos da Primeira República (1889-1930), intensificaram-se as imagens e representações que apontavam o Brasil como um lugar "excepcional", onde negros e brancos conviviam fraternal e harmoniosamente, livres, portanto, de antagonismos e tensões típicos do sistema racial norte-americano. A partir de 1920, muitos intelectuais retrataram a "nação" brasileira como "mestiça" ou "mista". Vendo aí uma oportunidade para desacreditarem os postulados do racismo científico, vários ativistas e intelectuais de São Paulo e do Rio de Janeiro saudaram a importância do discurso da mistura racial, na medida em que este reconhecia a contribuição dos negros na formação - linguística, musical, afetiva, comportamental etc. - da população brasileira. Nos anos 1930, muitos intelectuais foram embalados pelo sentimento nacionalista e positivaram a ideia do Brasil mestiço, do ponto de vista tanto racial quanto cultural. Em consonância com esse novo momento, Getúlio Vargas implementou uma política nacionalista, valorizando as manifestações culturais "negras" e "mestiças" a ponto de adotá-las como símbolo da nacionalidade. Os ativistas afro-brasileiros - em seus discursos, jornais e associações - aplaudiram o governo Vargas e a um só tempo aproveitaram a oportunidade para ampliar os sentidos da cidadania para a população afrodescendente, em vista de que o reconhecimento simbólico se traduzisse no plano real, de conquista de direitos e inclusão social.

O livro procura mapear os diferentes momentos do pensamento e das ações político-culturais dos ativistas afro-brasileiros- com suas narrativas, associações e jornais

Após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e o fim da ditadura do Estado Novo (1937-1945), com a consequente volta da democracia, intelectuais (negros e brancos) passaram a descrever a "excepcionalidade" da sociedade brasileira, no que diz respeito a ficar livre de tensões raciais, numa linguagem não mais de fraternidade ou harmonia, mas a partir da linguagem da democracia. Foi nesse contexto que surgiu a expressão "democracia racial". Para os ativistas e líderes negros desse período, a "democracia racial" deveria ser celebrada menos como uma realidade do que um novo pacto nacional sobre o que o Brasil poderia se tornar em um cenário de redemocratização e participação popular ampliada. Ao mesmo tempo em que endossou o potencial inclusivo da "democracia racial", o líder negro Abdias do Nascimento, por exemplo, atuou na esfera pública - pela via de imprensa, teatro, congressos acadêmicos e partidos políticos -, indicando as distorções que precisavam ser corrigidas para se erradicar o racismo e seus efeitos deletérios no Brasil. Nascimento e seus companheiros do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Salvador também batalhavam por conquistar o direito à diferença, em face de discursos cada vez mais dominantes de unidade (homogeneidade) nacional.

Com a instalação da ditadura militar em 1964, os ativistas e intelectuais negros perderam a esperança no potencial inclusivo da "democracia racial". Alvo de ataques abertos, a "democracia racial" passou a ser vista como um instrumento de dominação ideológica. Tal como nos momentos anteriores, a escolha das estratégias políticas do movimento antirracista respondeu em parte às injunções do cenário internacional. As mobilizações de jovens da esquerda marxista de Paris a Praga, os protestos pelos direitos civis nos Estados Unidos e as lutas de libertação nacional na África serviram de inspiração para uma nova geração de ativistas negros de formação universitária.

No entanto, o fator determinante para a redefinição da estratégia política adveio do cenário nacional. Os consecutivos governos militares das décadas de 1960 e 1970 transformaram a "democracia racial" numa "cortina de fumaça" ideológica, que escamoteava a repressão do Estado a qualquer reivindicação pública por parte dos negros. Foi nesse momento que tal ideal perdeu sua base social de legitimidade e se converteu em retórica vazia, quebrando, assim, o pacto nacional forjado na era da democracia. Em outras palavras, foi no período de fechamento dos canais de negociação político-cultural da agenda nacional - quando a noção de democracia racial tornou-se incompatível com os "termos de inclusão" e novas formas de luta antirracista emergiram no contexto nacional - que os ativistas negros (em seus discursos, jornais e agrupamentos) assumiram uma posição político-ideológica de oposição e denúncia, que conhecemos hoje. De campo de disputa e possibilidades, a democracia racial passou a ser vista como um "mito", sendo caracterizada dali em diante como falácia, hipocrisia ou falsa consciência. Tal premissa do movimento negro foi reforçada pelas pesquisas acadêmicas das décadas de 1970 e 1980, que atestaram a existência das desigualdades de oportunidades entre negros e brancos na sociedade brasileira.

Paulina Alberto conclui que os ativistas e intelectuais negros de São Paulo, do Rio de Janeiro e Salvador lidaram de diversas maneiras - quer se acomodando, quer negociando, quer entrando em conflito - com as ideias de relações raciais harmoniosas no Brasil durante o século XX. Sua mudança de posição, entretanto, não deve ser vista como uma contradição política, nem sugere o despertar para um nível superior de consciência racial. Pelo contrário, revela as múltiplas estratégias desenvolvidas por ativistas e intelectuais negros daquelas três cidades para exigir inclusão social e plena participação na vida nacional, mesmo porque, entre tais sujeitos, não havia identidades fixas, pensamento único ou mesmo ligações essenciais. Construindo e reconstruindo identidades fluidas e específicas - de acordo com a experiência histórica, regional e contingencial -, eles desfraldaram várias bandeiras discursivas de afirmação racial e diferentes perspectivas de pertencimento, reconhecimento e cidadania.

Nas primeiras décadas do século XX em São Paulo, onde a população de ascendência africana era minoria e a imigração em massa de europeus levou à constituição de uma ampla maioria populacional branca na cidade, as "pessoas de cor" sentiram fortemente os efeitos da discriminação no mercado de trabalho, na habitação e nos estabelecimentos do espaço público. Como resposta a essa situação, um grupo de afro-paulistas em ascensão social criou jornais e associações em defesa dos "homens de cor". Percebendo-se como porta-voz dos anseios e aspirações da "população de cor", tal grupo de ativistas se mobilizou em torno da centralidade da raça e desenvolveu uma identidade racial a partir da oposição de categorias binárias (negros versus brancos). Por isso, o Brasil foi retratado em larga medida como uma "nação" multirracial, onde negros e brancos viviam separadamente - um sistema mais de coexistência do que de fusão (a saber: mestiçagem). Foi essa forma binária de ver as relações raciais que caracterizou o ativismo negro em São Paulo no decurso do século.

No Rio de Janeiro, cidade onde a imigração europeia foi menor do que em São Paulo nas primeiras décadas do século XX, a população negra e mestiça era significativa, porém minoritária. Foi ali que intelectuais (negros e brancos) imaginaram e celebraram o Brasil como uma "nação" mestiça, do ponto de vista tanto racial quanto cultural. Essa visão se tornou a popular e oficial, tendo sido adotada como base da identidade nacional a partir da década de 1930. E informou o ativismo negro na cidade até os anos 1970, quando as tensões raciais e políticas oriundas da ditadura militar levaram os ativistas dali a incorporarem uma visão binária das relações raciais próxima à de São Paulo. Já a cidade de Salvador, que foi um importante porto de entrada de africanos escravizados, a população negra constituía a maioria. A raça ali não foi o principal vetor em torno do qual as "pessoas de cor" procuraram orientar suas vidas. Em vez disso, suas identidades foram forjadas a partir das tradições culturais e religiosas que remontavam à África. Como resultado dos esforços de líderes dos principais terreiros de candomblé em consórcio com acadêmicos brasileiros e estrangeiros, a Bahia ganhou destaque no cenário nacional, a partir da década de 1930, como berço das mais "autênticas" tradições culturais africanas do Brasil. Tal como ocorreu no Rio de Janeiro, uma nova geração de ativistas políticos e culturais surgiu em Salvador na década de 1970, ressignificando o entendimento das relações raciais. Embora preservassem a preocupação com a herança cultural africana, esses ativistas esposaram as ideias de raça e identidade negra nos moldes paulistanos.

O Brasil foi retratado em larga medida como uma "nação" multirracial, onde negros e brancos viviam separadamente

O livro tem fundamentos analíticos admiráveis, embora, para alguns temas tratados, a pesquisa empírica e bibliográfica tenha perdido força e consistência. Por exemplo, a autora afirmou que a Frente Negra Brasileira (FNB) - uma associação em defesa dos "homens de cor" instituída na cidade de São Paulo em 1931 - expandiu-se pelo interior paulista e pelos estados de Minas Gerais, Espírito Santo, Rio Grande do Sul e Bahia (p. 130). A FNB não abriu sucursais no Rio Grande do Sul e na Bahia. É verdade que, nesses estados, surgiram associações homônimas (Frente Negra Pelotense e Frente Negra de Salvador), mas tais associações eram independentes, sem vínculo direto, portanto, com a congênere paulista.1 1 Petrônio Domingues, A insurgência de ébano: a história da Frente Negra Brasileira, Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. Sobre o Teatro Experimental do Negro (TEN), Paulina Alberto argumentou que era a organização negra de maior visibilidade no Rio de Janeiro no período pós-Segunda Guerra (p. 213). É bom frisar que o TEN - um grupo de "teatro negro" fundado por Abdias do Nascimento em 1944, que, no decorrer do tempo, empreendeu uma atuação mais ampla no campo político e intelectual - jamais criou sistema de afiliação, estatuto, regimento e sequer regulamentou sua estrutura de funcionamento (via reuniões, assembleias, eleições, mandatos etc.). Por isso, não nos parece apropriado caracterizá-lo como uma "black activist organization", como a Frente Negra, por exemplo. Mantendo-se na informalidade, o TEN consistiu num grupo de pressão, vanguardista, que reuniu um número reduzido de integrantes. Decerto algumas das ações do TEN repercutiram na esfera pública, mas não se pode subestimar o papel que a União dos Homens de Cor (UHC) desempenhou no Rio de Janeiro nesse mesmo período. Como as novas pesquisas vêm apontando, a UHC teve mais envergadura do que o TEN no que tange ao número de adeptos, às ações coletivas, aos projetos sociais, à representação político-institucional, sem falar da maior penetração no seio da "população de cor".2 2 Joselina da Silva, União dos Homens de Cor (UHC): uma rede do movimento social negro, após o Estado Novo, Tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.

Uma questão complexa pode ser evocada sobre o empreendimento analítico de Paulina Alberto: em nenhum instante, a autora define conceitualmente o que entende por intelectuais negros, em particular, e movimento negro, em geral. Esses termos de conotação polissêmica - e chaves no encadeamento da narrativa - aparecem de forma quase naturalizada, muitas vezes sem a devida problematização. É nítida a predileção da autora pela consulta de bibliografia em língua inglesa, especialmente pesquisas dos estudiosos norte-americanos a respeito das relações raciais no Brasil, e a relativa "negligência" em relação aos trabalhos mais recentes (sobretudo dissertações e teses) produzidos no mundo acadêmico brasileiro.3 3 Eis alguns dos recentes trabalhos acadêmicos ausentes do livro de Paulina Alberto: Maria Cláudia Cardoso Ferreira, Representações sociais e práticas políticas do movimento negro paulistano: as trajetórias de Correia Leite e Veiga dos Santos (1928-1937), Dissertação de mestrado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005; Flávio Thales Ribeiro Francisco, Fronteiras em definição: identidades negras e imagens dos Estados Unidos e da África no jornal O Clarim da Alvorada(1924-1932), Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010; Flávio dos Santos Gomes, Experiências atlânticas: ensaios e pesquisas sobre a escravidão e o pós-emancipação no Brasil, Passo Fundo: UPF, 2003; Karin Sant'Anna Kossling, As lutas anti-racistas de afro-descendentes sob vigilância do DEOPS/SP (1964-1983), Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007; Maria Aparecida de Oliveira Lopes, História e memória do negro em São Paulo: efemérides, símbolos e identidade (1945-1978), Tese de doutorado, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", 2007; Rodrigo Miranda, Um caminho de suor e letras: a militância negra em Campinas e a construção de uma comunidade imaginada nas páginas do Getulino(Campinas, 1923-1926), Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas, 2005; Laiana de Oliveira, Entre a miscigenação e a multirracialização: brasileiros negros ou negros brasileiros? Os desafios do movimento negro brasileiro no período de valorização nacionalista (1930-1950): a Frente Negra Brasileira e o Teatro Experimental do Negro, Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008; Amilcar Araujo Pereira, O "mundo negro": relações raciais e a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil, Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010; Antônio Liberac Cardoso Simões Pires, As associações de homens de cor e a imprensa negra paulista, Belo Horizonte, Daliana; MEC/SESU/SECAD; NEAB/UFT, 2006; Francisco Carlos Cardoso da Silva, Invenções negras na Bahia: pontos para a discussão do racismo à brasileira, Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008; Joselina da Silva, União dos Homens de Cor (UHC): uma rede do movimento social negro, após o Estado Novo, Tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005; Marcelo Leolino da Silva, A história no discurso do Movimento Negro Unificado: os usos políticos da história como estratégia de combate ao racismo, Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007; José Jorge Siqueira, Orfeu e Xangô: a emergência de uma nova consciência sobre a questão do negro no Brasil (1944-1968), Rio de Janeiro, Pallas, 2006; Reinaldo da Silva Soares, Negros de classe média em São Paulo: estilo de vida e identidade negra, Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004; Lívia Maria Tiede, Sob suspeita: negros, pretos e homens de cor em São Paulo no início do século XX, Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006; Petrônio José Domingues, A insurgência de ébano: a história da Frente Negra Brasileira, Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

Chama atenção no livro de Paulina Alberto os desdobramentos interpretativos de pesquisas anteriores realizadas por brazilianists. Quando analisa o movimento em prol da construção do monumento à "mãe preta" no Rio de Janeiro, originalmente preconizado pelo jornalista branco Cândido de Campos em 1926, Paulina Alberto argumenta que os ativistas e intelectuais negros se apropriaram desse movimento tendo em vista a inclusão dos afro-brasileiros no corpo simbólico, político e social da "nação". Essa interpretação é análoga à da historiadora Micol Seigel, que, em Uneven encounters: making race and nation in Brazil and the United States, publicado em 2009, reservou o sexto capítulo (Black mothers, citizen sons) para perscrutar o assunto e concluiu que afro-brasileiros de diversos perfis (militantes, jornalistas, artistas e religiosos) viram na proposta de Campos um veículo adequado para pautar na agenda nacional a plena cidadania e a ampliação de direitos.4 4 Micol Seigel, Uneven encounters: making race and nation in Brazil and the United States, Durham, Duke University Press, 2009, p. 206-234.

É nítida a predileção da autora pela consulta de bibliografia em língua inglesa e a relativa "negligência" em relação aos trabalhos mais recentes produzidos no mundo acadêmico brasileiro

Isso valeria também para a perspectiva comparada na construção de diferentes identidades negras nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Em Freedoms given, freedoms won, de 1998, a historiadora Kim Butler já havia salientado que, pelo menos para São Paulo e Salvador, os negros engendraram identidades raciais específicas no contexto pós-abolição: na primeira cidade, havia a busca por uma identidade negra, ou uma "política racial", ao passo que, na segunda cidade, predominava a luta pelo direito a manifestações religiosas e culturais, ou uma "política cultural".5 5 Kim D. Butler, Freedoms given, freedoms won: afro-Brazilians in post-abolition São Paulo and Salvador, New Brunswick, Rutgers University Press, 1998. E mesmo antes de Butler, o historiador Richard Morse - em "The negro in São Paulo, Brazil", de 1953 - também já advertira para as diferenças histórico-culturais entre os negros de São Paulo e da Bahia no período pós-escravista. Se num local se desenvolveu o candomblé ou "um padrão residual" de cultura africana, noutro o negro ficou desprovido dessa base cultural para se organizar. Ainda assim, teria encontrado motivação suficiente para se mobilizar "em busca dos direitos socioeconômicos", criando associações e jornais destinados a ajudá-lo a conquistar um "lugar na sociedade".6 6 Richard Morse, "The negro in São Paulo, Brazil", Journal of Negro History, vol. 38, n. 3, 1953, p. 297-303.

Apesar de a proposta de Paulina Alberto ser ambiciosa - abranger três capitais - e o recorte temporal ser dilatado, seu livro é uma contribuição valiosa para a história do movimento negro brasileiro, na perspectiva de suas agências, ações coletivas, políticas identitárias e retóricas raciais. A autora faz parte de uma nova geração de historiadores que procuram reconstituir, documentar e pensar a trajetória da mobilização política antirracista a partir de seus próprios termos - "termos de inclusão". Os ativistas, que povoam as páginas de seu livro, são abordados como sujeitos complexos, que imaginaram sua própria história em diversas direções e agiram com lógicas próprias, porém multifacetadas. A existência de mediações, de ações negociadas, de articulações pelos meandros, as pequenas mas valorosas conquistas não são negligenciadas. Paulina Alberto avança em relação à visão sectária do protagonismo negro. Seus ativistas não são heróis, mas sim humanos plurais, versáteis, articulados, embora dotados de limitações, dilemas, ambiguidades e contradições; sujeitos que, embalados pelo ímpeto emancipatório, concederam, protestaram, selaram alianças, recuaram ou avançaram, conforme a circunstância. Sujeitos, enfim, que sonharam e lutaram com abnegação - e alguns deles lutaram praticamente a vida toda, como José Correia Leite - por um Brasil mais justo, com igualdade e respeito à diversidade.

  • 1
    Petrônio Domingues, A insurgência de ébano: a história da Frente Negra Brasileira, Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
  • 2
    Joselina da Silva, União dos Homens de Cor (UHC): uma rede do movimento social negro, após o Estado Novo, Tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
  • 3
    Eis alguns dos recentes trabalhos acadêmicos ausentes do livro de Paulina Alberto: Maria Cláudia Cardoso Ferreira, Representações sociais e práticas políticas do movimento negro paulistano: as trajetórias de Correia Leite e Veiga dos Santos (1928-1937), Dissertação de mestrado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005; Flávio Thales Ribeiro Francisco, Fronteiras em definição: identidades negras e imagens dos Estados Unidos e da África no jornal O Clarim da Alvorada(1924-1932), Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010; Flávio dos Santos Gomes, Experiências atlânticas: ensaios e pesquisas sobre a escravidão e o pós-emancipação no Brasil, Passo Fundo: UPF, 2003; Karin Sant'Anna Kossling, As lutas anti-racistas de afro-descendentes sob vigilância do DEOPS/SP (1964-1983), Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007; Maria Aparecida de Oliveira Lopes, História e memória do negro em São Paulo: efemérides, símbolos e identidade (1945-1978), Tese de doutorado, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", 2007; Rodrigo Miranda, Um caminho de suor e letras: a militância negra em Campinas e a construção de uma comunidade imaginada nas páginas do Getulino(Campinas, 1923-1926), Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas, 2005; Laiana de Oliveira, Entre a miscigenação e a multirracialização: brasileiros negros ou negros brasileiros? Os desafios do movimento negro brasileiro no período de valorização nacionalista (1930-1950): a Frente Negra Brasileira e o Teatro Experimental do Negro, Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008; Amilcar Araujo Pereira, O "mundo negro": relações raciais e a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil, Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010; Antônio Liberac Cardoso Simões Pires, As associações de homens de cor e a imprensa negra paulista, Belo Horizonte, Daliana; MEC/SESU/SECAD; NEAB/UFT, 2006; Francisco Carlos Cardoso da Silva, Invenções negras na Bahia: pontos para a discussão do racismo à brasileira, Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008; Joselina da Silva, União dos Homens de Cor (UHC): uma rede do movimento social negro, após o Estado Novo, Tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005; Marcelo Leolino da Silva, A história no discurso do Movimento Negro Unificado: os usos políticos da história como estratégia de combate ao racismo, Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007; José Jorge Siqueira, Orfeu e Xangô: a emergência de uma nova consciência sobre a questão do negro no Brasil (1944-1968), Rio de Janeiro, Pallas, 2006; Reinaldo da Silva Soares, Negros de classe média em São Paulo: estilo de vida e identidade negra, Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004; Lívia Maria Tiede, Sob suspeita: negros, pretos e homens de cor em São Paulo no início do século XX, Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006; Petrônio José Domingues, A insurgência de ébano: a história da Frente Negra Brasileira, Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
  • 4
    Micol Seigel, Uneven encounters: making race and nation in Brazil and the United States, Durham, Duke University Press, 2009, p. 206-234.
  • 5
    Kim D. Butler, Freedoms given, freedoms won: afro-Brazilians in post-abolition São Paulo and Salvador, New Brunswick, Rutgers University Press, 1998.
  • 6
    Richard Morse, "The negro in São Paulo, Brazil", Journal of Negro History, vol. 38, n. 3, 1953, p. 297-303.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2014

Histórico

  • Recebido
    26 Fev 2014
  • Aceito
    07 Maio 2014
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